Acessibilidade / Reportar erro

As Fontes indológicas de Nietzsche: um espanto antimodernista ao ritmo do Ganges

Nietzsche’s Indological sources: an anti-modernistic astonishment to the rhythm of the Ganges

RESUMO

Apresentamos um Nietzsche pouco conhecido e com marcas profundas de uma cultura oriental que ocupou seu espírito e seus escritos. A Índia, o pensamento nela inserido e o que chegou à Alemanha até a época do filósofo, não foi ou se tornou uma simples aventura ou curiosidade em Nietzsche, senão um choque proveitoso de cultura, misturado com um encanto de pensamento sistemático, novos olhares e ousadias. Novos olhares: fora das fronteiras europeias, fora da moral e erudição (otimismo da razão moderna). Nietzsche deleita-se, aconchega-se, encontra-se e anseia, como ele mesmo expressa, mais e mais. A Índia lhe faz bem, muito bem, bem além do bem e do mal. Uma Índia que, além de ser ponto de referência para suas comparações frente ao cristianismo, servia-lhe de ponte ou de inspiração para além-do-homem. E, aqui, mostramos esse encontro de ideias e damos dois exemplos de como o filósofo se apoderou delas, especialmente em torno do Manu-saṁhitā e do budismo, sobre os quais ele debruça-se com “uma espécie de sede crescente”, utilizando-os em comparações.

Palavras-chave:
Nietzsche; Índia; Manu-saṁhitā; budismo; modernidade

ABSTRACT

We present here a mostly unknown Nietzsche with deep marks of an Eastern culture that occupied his spirit and his writings. India, its thinking and what was taken of it to Germany until Nietzcshe’s time were not a simple adventure or curiosity in Nietzsche, neither became one, but it was rather a fruitful cultural shock, mixed with a charm of systematic thinking, new perspectives, and boldness. New perspectives here mean to say: outside European borders, outside morals and erudition (optimism of modern reasoning). Nietzsche delights in it, feels comfortable, finds himself and yearns for it -as he himself expresses- more and more often. India suits him well, very well, way beyond good and evil. A singular India that, in addition to being a point of reference for his comparisons with Christianity, served as a bridge or an inspiration to go “beyond man”. Here we show this gathering of ideas, and we present two examples of how the philosopher seized them, especially in relation to Manu-saṁhitā and Buddhism, which he approaches with “a kind of growing thirst”, using them in comparisons.

Keywords:
Nietzsche; India; Manu-saṁhitā; buddhism; modernity

Primeiros contatos de Nietzsche com o pensamento indiano

Muitos orientalistas ingleses, franceses e especialmente alemães do XVIII e XIX, certamente moldaram a visão cultural do intelectual ocidental moderno por meio de uma indomania sem precedentes. E Nietzsche, mais do que seguir a esteira de uma indomania avassaladora que contagiara a Europa, será um representante incisivo dessa contracultura em alvorecer, ampliando tal relação intelectual através de um “olhar transeuropeu”, como ele mesmo caracterizou.

Todavia, de imediato, é de suma importância observarmos que o grande interesse de Nietzsche pela filosofia sânscrita e pensamento indiano, conforme nos alerta Mervyn Sprung (1996SPRUNG, Mervyn. Nietzsche’s trans-European eye. In: PARKES, Graham (org.). Nietzsche and Asian thought. Chicago and London: The University of Chicago Press, 1996., p. 76), deu-se durante toda a sua vida. Helmuth Von Glasenapp também será enfático ao relacionar Nietzsche e a filosofia indiana: “ele penetrou profundamente em sua essência”; assim como também “refletiu muito sobre o budismo” e tantos outros assuntos indológicos (SPRUNG, 1996SPRUNG, Mervyn. Nietzsche’s trans-European eye. In: PARKES, Graham (org.). Nietzsche and Asian thought. Chicago and London: The University of Chicago Press, 1996., p. 76-77). Rüdiger Safranski, em sua biografia sobre Nietzsche, acrescenta que o jovem Wilamowitz-Moellendorf:

[...] futuro papa da filologia clássica, publica em 1873 um artigo aniquilador, que termina com as frases: “Que o senhor Nietzsche tome a palavra, pegue o tirso, mude-se da Índia para a Grécia, mas que desça da cátedra na qual deveria ensinar de maneira científica; que reúna tigres e panteras em torno de suas pernas, mas não a juventude filológica alemã”. (SAFRANSKI, 2001SAFRANSKI, Rüdiger. Nietzsche: biografia de uma tragédia. São Paulo: Geração Editorial, 2001., p. 73).

Até mesmo os críticos de sua época não deixavam de relacionar o ditirâmbico com a Índia. E segundo o não menos eminente catedrático de filosofia comparada e asiática, Graham Parkes (1996PARKES, Graham. Nietzsche and East Asian thought: influences, impacts, and resonances. In: BERND, Magnus; HIGGINS, Kathlen. The Cambridge companion to Nietzsche. Cambridge: Cambridge University Press, 1996. p. 356-384. DOI: https://doi.org/10.1017/ccol0521365864.012
https://doi.org/10.1017/ccol0521365864.0...
, p. 378, nota 6), também confirmado por Sprung, “olhar transeuropeu” é uma expressão do próprio filósofo dionisíaco, surgida em vivazes cartas ao seu amigo sanscritista Paul Deussen, escritas em 3 de janeiro de 1888. Em tal carta, diz Sprung (1996SPRUNG, Mervyn. Nietzsche’s trans-European eye. In: PARKES, Graham (org.). Nietzsche and Asian thought. Chicago and London: The University of Chicago Press, 1996., p. 76, tradução nossa): “Nietzsche fala de seu ‘olhar transeuropeu’, o qual lhe permite ver que ‘a filosofia indiana é o único paralelo à nossa filosofia europeia’”. Lembra Sprung que, treze anos antes (janeiro de 1875), Nietzsche evidenciara: “anseio, eu mesmo, beber da fonte da filosofia indiana, que um dia você [Deussen] há de abrir para todos nós”. Parkes, por sua vez, será sucinto em relação à passagem dessa expressão na carta a Deussen, afirmando que Nietzsche diz possuir um “olhar transeuropeu” para demonstrar que ele não era definitivamente paroquiano em seu entendimento da Filosofia, e que estava aberto a uma perspectiva mais ampla, mais multicultural. Expressar-se-á Nietzsche na carta:

Eu tenho, como você sabe, uma profunda simpatia a tudo o que você tem em mente para analisar [a filosofia indiana], e isto pertence ao que há de mais essencial para promover a minha liberdade de preconceitos (o meu “olhar transeuropeu”): que a sua vida e trabalho me lembrem novamente, outra vez e outra vez, desse grande paralelo à nossa filosofia europeia. Em relação a este desenvolvimento indiano, ainda reina aqui na França a mesma e velha ignorância absoluta. Os seguidores de Comte, por exemplo, estão criando leis totalmente ingênuas para um desenvolvimento historicamente necessário, com uma sucessão das principais fases da filosofia,1 1 Para Comte, a história da Filosofia se cinde, como a história em geral, em três fases evolutivas: a teológica, a metafísica e a positivista. Fases que Nietzsche, a priori, caracteriza como pensamento típico de um francês desinformado, moderno e eurocêntrico. nas quais os indianos não são citados em nenhuma delas -2 2 Assim se refere Wilhelm Halbfass (2001, p. 131, tradução nossa): “A tradição da Índia há produzido uma literatura sistemática e filosófica de grande riqueza, que se penetra - em sua maior parte - na forma de comentários, subcomentários e compêndios independentes”. leis que estão, de fato, em contradição com o desenvolvimento da filosofia na Índia. (PARKES, 1996PARKES, Graham. Nietzsche and East Asian thought: influences, impacts, and resonances. In: BERND, Magnus; HIGGINS, Kathlen. The Cambridge companion to Nietzsche. Cambridge: Cambridge University Press, 1996. p. 356-384. DOI: https://doi.org/10.1017/ccol0521365864.012
https://doi.org/10.1017/ccol0521365864.0...
, p. 358, tradução nossa).

Certamente, esse “olhar transeuropeu” lhe permite lançar pensamentos intempestivos e distanciados de sua própria cultura e época, para além de uma Europa, como ele mesmo expressou, ainda dissimuladamente teológica e dada ao sofrimento, niilismo e ressentimento. E o próprio Nietzsche, em 1884, adverte: “eu preciso aprender a pensar mais orientalmente sobre filosofia e conhecimento” (PARKES, 1996PARKES, Graham. Nietzsche and East Asian thought: influences, impacts, and resonances. In: BERND, Magnus; HIGGINS, Kathlen. The Cambridge companion to Nietzsche. Cambridge: Cambridge University Press, 1996. p. 356-384. DOI: https://doi.org/10.1017/ccol0521365864.012
https://doi.org/10.1017/ccol0521365864.0...
, p. 358).

Deduz-se, nitidamente, que ele se preocupa em tomar certa distância de sua própria tradição ou valores, reivindicando e explicando, ao mesmo tempo, diz Anne-Gaëlle Argy (2010ARGY, Anne-Gaëlle. Nietzsche e o bramanismo. Revista trágica: estudos sobre Nietzsche. Rio de Janeiro, vol. 3, n. 1, p. 56-70, 2010. Disponível em: http://tragica.org/artigos/05/07-anne-trad.pdf . Acesso em: 24 jun. 2018.
http://tragica.org/artigos/05/07-anne-tr...
, p. 56): “Bem facilmente por sua vontade de multiplicar os pontos de vista a fim de que nenhuma interpelação, seja de um dado histórico ou de um valor com um fundamento metafísico, não seja jamais considerada como sendo a única valiosa”.

E sabemos que Nietzsche não é um indólogo, adverte Argy, “mas se ele não fez, à maneira de Schopenhauer ou sob a influência de Paul Deussen, o esforço de aprofundar seus conhecimentos sobre filosofias da Índia, esses mesmos conhecimentos tomam lugar nos contextos-chave de seu percurso” (ARGY, 2010ARGY, Anne-Gaëlle. Nietzsche e o bramanismo. Revista trágica: estudos sobre Nietzsche. Rio de Janeiro, vol. 3, n. 1, p. 56-70, 2010. Disponível em: http://tragica.org/artigos/05/07-anne-trad.pdf . Acesso em: 24 jun. 2018.
http://tragica.org/artigos/05/07-anne-tr...
, p. 57).

Dessa forma, um significativo número de importantes análises intelectivas aclara a relação de Nietzsche com a Índia, já que “pode-se dizer, sem muito medo de errar, que a influência exercida pelo pensamento asiático está longe de ser algo secundário na obra de Nietzsche” (BARROS, 2003BARROS, Fernando de Moraes. Um Oriente ao oriente do Oriente: a investigação de Johann Figl. Cadernos Nietzsche, São Paulo, n. 15, p. 69-81, 2003., p. 69), em especial sobre os seus pressupostos e moldes teóricos, avaliando a influência decisiva de Schopenhauer e Paul Deussen. Este último, um proeminente estudioso e comentador da filosofia indiana em geral, além de perito sanscritista, amigo de escola e universidade de Nietzsche e editor de Schopenhauer. Na verdade, o “primeiro verdadeiro conhecedor da filosofia indiana na Europa, meu amigo Paul Deussen”, afirma Nietzsche (2008aNIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras , 2008a. , III, §17) com certo orgulho em A Genealogia da Moral. Amizade que lhe rendeu muitos frutos intelectuais, aliada à sua precoce exposição aos milenares épicos indianos, durante os anos de ensino médio, e à filosofia indiana, enquanto estudante da Universidade de Bonn, principalmente por intermédio das aulas e dos cursos de Carl Schaarschmidt. Ademais, seu entusiasmo finalmente se amplia, quando adquire uma tradução francesa das Leis de Manu ou Manu-saṁhitā, na primavera de 1888, citando-a várias vezes em seus cadernos de anotações. Conjunto de prerrogativas que levará Graham Parkes a observar fortes ressonâncias do pensamento indiano em Nietzsche.

No entanto, será Johann Figl que abordará com mais clareza os primeiros contatos de Nietzsche com o pensamento indiano. Figl (2003FIGL, Johann. Os primeiros contatos de Nietzsche com o pensamento asiático. Cadernos Nietzsche, São Paulo, n. 15, p. 83-103, 2003. Disponível em: http://www.gen.fflch.usp.br/sites/gen.fflch.usp.br/files/u41/CN015.83-103.pdf . Acesso em: 10 jan. 2018.
http://www.gen.fflch.usp.br/sites/gen.ff...
, p. 84) anotará que os primeiros contatos acontecerão em sua juventude, anos antes de suas primeiras publicações, em especial nos anos ginasiais em Pforta (1858-1864) e, posteriormente, por meio de anotações de sala de aula em Bonn (1864-1865). Fatores que, afirma Figl, foram decisivos “à sua ligação posterior com a tradição intelectual e espiritual asiática” (FIGL, 2003FIGL, Johann. Os primeiros contatos de Nietzsche com o pensamento asiático. Cadernos Nietzsche, São Paulo, n. 15, p. 83-103, 2003. Disponível em: http://www.gen.fflch.usp.br/sites/gen.fflch.usp.br/files/u41/CN015.83-103.pdf . Acesso em: 10 jan. 2018.
http://www.gen.fflch.usp.br/sites/gen.ff...
, p. 85). Em ocasião de seu décimo sétimo aniversário, ainda observa Figl, Nietzsche elaborou uma lista de presentes, dentre os quais estavam livros de Feuerbach e Mythologie des alten Indien, editado em 1856, do linguista e ensaísta político Anton Wilhelm da Fonseca.

Figl apoiar-se-á em uma das anotações de Nietzsche, feita durante a escola secundária, a fim de averiguar que tal afirmação é o ponto de partida para se observar o explícito conhecimento dele a respeito das ideias indianas. Nessa nota, de abril de 1862, cujo título é Liberdade da Vontade e do Destino, o filósofo escreve: “o hindu diz: o destino não é nada mais do que as ações levadas a cabo durante uma fase mais precoce de nossa existência” (FIGL, 2003FIGL, Johann. Os primeiros contatos de Nietzsche com o pensamento asiático. Cadernos Nietzsche, São Paulo, n. 15, p. 83-103, 2003. Disponível em: http://www.gen.fflch.usp.br/sites/gen.fflch.usp.br/files/u41/CN015.83-103.pdf . Acesso em: 10 jan. 2018.
http://www.gen.fflch.usp.br/sites/gen.ff...
, p. 84). De acordo com Figl, tal afirmação personifica uma intimidade com as teorias do karma e da reencarnação - relação inteligente e facilmente observável -, além de se contrapor à crença cristã na imortalidade da alma, já que, segundo Nietzsche, para todos aqueles que acreditam nessa imortalidade, devem, ao mesmo tempo, “acreditar na preexistência da alma”, se eles (os cristãos) não quiserem que “algo imortal surja de algo mortal”. Isso nos indica que Nietzsche, precocemente (com dezoito anos), já contrapunha o saber oriental com o cristianismo.

Certamente, prossegue Figl (2003FIGL, Johann. Os primeiros contatos de Nietzsche com o pensamento asiático. Cadernos Nietzsche, São Paulo, n. 15, p. 83-103, 2003. Disponível em: http://www.gen.fflch.usp.br/sites/gen.fflch.usp.br/files/u41/CN015.83-103.pdf . Acesso em: 10 jan. 2018.
http://www.gen.fflch.usp.br/sites/gen.ff...
, p. 84), “este foi o período no qual ele estava, pois, despedindo-se da fé cristã - ou daquela que posteriormente ele caracterizará como a vontade de fazer do homem um ‘sublime aborto’ [NIETZSCHE, 2004bNIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. São Paulo: Companhia das Letras , 2004b., §62] -, como tantos outros documentos do mesmo período demonstram”;3 3 Para maiores detalhes sobre os demais textos, verificar Kremer-Marietti (1969, p. 223-233). ao ponto de se transferir do curso de Teologia para Filologia Clássica e, posteriormente, para a Filosofia, em 1864 (com vinte anos).

Ainda abordando os temas do destino e da culpa, Nietzsche cita os dois maiores épicos humanos, e que são indianos, o Mahābhārata e o Rāmāyaṇa, mencionados por ele em um esboço a propósito de uma monografia, em oito de dezembro de 1862, durante uma aula em Schulpforta.4 4 Escola pertencente a um antigo mosteiro católico, mas que, na época, era uma das principais escolas-internatos protestantes, localizada próxima à Naumburg e às margens do rio Saale, Estado da Saxônia-Anhalt, na qual também estudaram o historiador Ranke e o filósofo Fichte. Aqui, Nietzsche estudou de 1858 a 1864. Em tal ensaio, Nietzsche chega a afirmar que muitos “pensam que são arrastados pelas rodas de um destino eterno”, mas, mesmo em tal situação, há instantes “em que o ser humano apercebe-se dos Deuses em sua grandeza serena e eterna, sentados em seus tronos, acorrentados eles mesmos à sua culpa e dilacerados pelo remorso” (FIGL, 2003FIGL, Johann. Os primeiros contatos de Nietzsche com o pensamento asiático. Cadernos Nietzsche, São Paulo, n. 15, p. 83-103, 2003. Disponível em: http://www.gen.fflch.usp.br/sites/gen.fflch.usp.br/files/u41/CN015.83-103.pdf . Acesso em: 10 jan. 2018.
http://www.gen.fflch.usp.br/sites/gen.ff...
, p. 86). E em alusão aos épicos indianos, complementará:

Uma tal concepção de destino emana - mesmo que visível apenas para a visão mais aguçada - daqueles poemas populares nos quais o mundo espiritual e emocional de toda uma nação vem à luz em sua pureza e magnitude primordiais, na Ilíada e na Odisseia, no Rāmāyaṇa e no Mahābhārata, nos Nibelungos e no Gudrun. (FIGL, 2003FIGL, Johann. Os primeiros contatos de Nietzsche com o pensamento asiático. Cadernos Nietzsche, São Paulo, n. 15, p. 83-103, 2003. Disponível em: http://www.gen.fflch.usp.br/sites/gen.fflch.usp.br/files/u41/CN015.83-103.pdf . Acesso em: 10 jan. 2018.
http://www.gen.fflch.usp.br/sites/gen.ff...
, p. 86, conformidade do sânscrito nossa).

Figl afirmará que as fontes para as informações, às quais o filósofo teve acesso em suas aulas em Pforta, foram os relatórios dos programas de ensino da escola, o que incluía uma lista dos livros doados à biblioteca e os respectivos conteúdos das disciplinas. Os catálogos de livros, diz Figl, fornecem-nos um material relevante para a investigação aqui exposta, já que “tais catálogos revelam que a erudição vigente sobre a Ásia e, em especial, sobre a Índia, era, com efeito, levada em consideração em Pforta”. E Figl ainda destaca a presença da obra do norueguês Christian Lassen: Indische Alterthumskunde (1847), em quatro volumes. Léon Poliakov (1996POLIAKOV, Léon. The Aryan myth: a history of racist and nationalist ideas in Europe. New York: Barnes & Noble Books, 1996., p. 197) acrescentará que Lassen foi um pupilo e aluno dos irmãos Schlegel (filósofos românticos e pioneiros sanscritistas alemães, fundadores da primeira cadeira de Indologia alemã, em Bonn, 1818), o que implica dizer que Lassen obteve dos mesmos sua base indológica, chegando a publicar em conjunto com os irmãos algumas obras da literatura clássica indiana. Por sua vez, auxiliou Deussen e Nietzsche com seus escritos, tornando-se, Lassen, também, um dos pioneiros em estudos indológicos na Alemanha, porém, mais profícuo que os irmãos Schlegel.

Para Figl, a evidência de que certo número de alunos em Pforta tiveram interesse pelas línguas e culturas orientais “depreende-se do exemplo de Paul Deussen”, que continuou a estudar sânscrito em Bonn.

Outras fontes de Nietzsche estão calcadas nos demais professores de Pforta, que transmitiam nas aulas muitas das suas próprias pesquisas, as quais sempre norteavam culturas asiáticas. Figl destacará August Steinhart (1801-1872), o neoplatônico professor de grego, latim e hebraico que lecionou durante quarenta anos em Pforta, de 1831 a 1871. Steinhart foi professor de latim durante a segunda série do secundário, e grego, durante a primeira série, de Nietzsche. O interessante para nossa análise é que Steinhart considera sempre em suas publicações a influência da Ásia durante o período da dialética plotiniana, fornecendo em sua Maletemata Plotiniana: “uma estimativa mais positiva do pensamento oriental ao dizer que ‘a filosofia dos povos asiáticos e, sobretudo, dos indianos, não deve ser ignorada’ se se pretende compreender apropriadamente a filosofia dos platônicos” (FIGL, 2003FIGL, Johann. Os primeiros contatos de Nietzsche com o pensamento asiático. Cadernos Nietzsche, São Paulo, n. 15, p. 83-103, 2003. Disponível em: http://www.gen.fflch.usp.br/sites/gen.fflch.usp.br/files/u41/CN015.83-103.pdf . Acesso em: 10 jan. 2018.
http://www.gen.fflch.usp.br/sites/gen.ff...
, p. 88). Figl ainda nos informará que a base da indologia do professor de Nietzsche seria o tratado On the Philosophy of the Hindus, do inglês Thomas Colebrooke, de 1824.5 5 Aos 17 anos (1782), sob a influência política do pai (parlamentar inglês), Colebrooke viajou para a Índia, onde permaneceu quase ininterruptamente até 1814, alcançando sua magistratura. Orientado por Charles Wilkins, motivou-se a estudar o sânscrito e a literatura e filosofia indianas com contumácia, surgindo logo apoiadores, como Graves Haughton em The Exposition of the Vedanta-Philosophy by H. T. Colebrooke (1835), Dietrich Tiedemann em Geist der Spekulativen Philosophie (6 volumes, 1791-1797) e Heinrich Ritter em Geschichte der Jonischen Philosophie (1821). Sobre as seis clássicas escolas filosóficas da Índia, Colebrooke dirá, por exemplo, que o Mīmāṁsā é um sistema que ensina “a arte de raciocinar com uma expressiva visão de auxílio à interpretação dos Vedas”. Por outro lado, o Vedānta, ele diz, extrai dos Vedas uma apurada psicologia, enquanto o Nyāya e o Vaiśeṣika fornecem uma disposição filosófica com regras rigorosas de raciocínio, acrescentando que o Vaiśeṣika apresenta uma teoria do atomismo. O sistema Sāṅkhya, por sua vez, dirá ele, propõe um conhecimento libertador, através de uma discriminação ponderada e metódica sobre o mundo e o espírito. Por fim, o Yoga será para o inglês um meio de contemplação para a liberdade individual sem precedentes (COLEBROOKE, 1858, p. 143-148).

Outra fonte intelectual para Nietzsche, que mediou o debate sobre a Índia, foi o professor de alemão (de 1820 a 1870) e historiador da literatura Karl August Koberstein (1797-1870). Figl (2003FIGL, Johann. Os primeiros contatos de Nietzsche com o pensamento asiático. Cadernos Nietzsche, São Paulo, n. 15, p. 83-103, 2003. Disponível em: http://www.gen.fflch.usp.br/sites/gen.fflch.usp.br/files/u41/CN015.83-103.pdf . Acesso em: 10 jan. 2018.
http://www.gen.fflch.usp.br/sites/gen.ff...
, p. 89-90) assim reportará:

Nietzsche havia se referido ao Mahābhārata e ao Rāmāyaṇa numa monografia de língua alemã a partir de um cotejo com os Nibelungos. Esta conexão aponta para uma das principais características da formação em língua alemã que Nietzsche recebera de Koberstein [...]. Contudo, ainda permanece em aberto a questão de se saber se Nietzsche ganhara, de fato, intimidade com o Mahābhārata e o Rāmāyaṇa em suas aulas de língua alemã ou, então, se o fizera por meio de uma outra fonte. De qualquer forma, a justaposição destes dois poemas épicos com outras culturas diversas podia ser encontrada na literatura da época - como, por exemplo, num trabalho de Valentin Rose, que surgiu em 1854 e do qual Nietzsche transcrevera algumas passagens três anos depois de deixar Pforta. O importante é que Nietzsche decerto comparou os épicos indianos com os Nibelungos; que tal comparação poderia ser não só possível, mas também provável no contexto da formação e das publicações de Koberstein [...].

Koberstein publica várias edições da sua obra Geschichte (História), na qual dedica boa parte à discussão da Canção dos Nibelungos. E, logo na introdução da obra, menciona que “ele [o épico] veio, provavelmente, do Oriente com tribos alemãs emigrantes” (FIGL, 2003FIGL, Johann. Os primeiros contatos de Nietzsche com o pensamento asiático. Cadernos Nietzsche, São Paulo, n. 15, p. 83-103, 2003. Disponível em: http://www.gen.fflch.usp.br/sites/gen.fflch.usp.br/files/u41/CN015.83-103.pdf . Acesso em: 10 jan. 2018.
http://www.gen.fflch.usp.br/sites/gen.ff...
, p. 90). Acrescenta, ainda, que, mais a fundo, “as literaturas do Oriente auxiliaram em diversos momentos, se não diretamente, pelo menos indiretamente, a determinar, numa maior ou menor proporção, a vida literária dos alemães no que diz respeito aos dados, à forma e ao conteúdo” (FIGL, 2003FIGL, Johann. Os primeiros contatos de Nietzsche com o pensamento asiático. Cadernos Nietzsche, São Paulo, n. 15, p. 83-103, 2003. Disponível em: http://www.gen.fflch.usp.br/sites/gen.fflch.usp.br/files/u41/CN015.83-103.pdf . Acesso em: 10 jan. 2018.
http://www.gen.fflch.usp.br/sites/gen.ff...
, p. 90). Ademais, em especial durante as cruzadas cristãs e posteriormente no período romântico, há uma abundância de poesia indiana que se mostrou decisiva para o estudo histórico alemão.

Koberstein não tardou em estabelecer uma relação fundamental entre a Europa e a Índia, qual seja, sob a teoria da família linguística indo-germânica, fato que para ele foi estabelecido e aprimorado pelos pensadores contemporâneos. Não por acaso, logo no início de sua Geschichte, estabelece a origem asiática dos alemães.

Será, portanto, dentro de tal contexto indo-germânico, que Nietzsche presumivelmente vivenciou as aulas daquele que Anton Springer, o historiador da arte em Bonn, segundo uma carta escrita por Nietzsche em 1865, caracterizou como o mais importante historiador da literatura de sua época: Koberstein. Nesse ínterim, Nietzsche praticamente reproduzirá a tese de Koberstein, mas indo além da Linguística, chegando à Filosofia, como bem explanará em Além do Bem e do Mal:

O curioso ar de família de todo o filosofar indiano, grego e alemão tem uma explicação simples. Onde há parentesco linguístico é inevitável que, graças à comum filosofia da gramática, quero dizer, graças ao domínio e direção inconsciente das mesmas funções gramaticais, tudo esteja predisposto para uma evolução e uma sequência similares dos sistemas filosóficos: do mesmo modo o caminho parece interditado a certas possibilidades outras de interpretação do mundo. (NIETZSCHE, 2004bNIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. São Paulo: Companhia das Letras , 2004b., §20).

Nietzsche, nolens, volens, realmente não deixa de lado a filosofia indiana, sempre assemelhando tal filosofia aos ícones ocidentais. Porém, ele não se apraz com tão pouco, ele vai fundo:

É difícil ser compreendido, sobretudo quando se pensa e se vive gangasrotogati [ao ritmo do rio Ganges] entre homens que pensam e vivem diferentemente, ou seja, [em] kurmagati [ao ritmo da tartaruga = Kūrma] ou, no melhor dos casos, “conforme o andar da rã”, mandeikagati - vê-se que estou fazendo tudo para não ser compreendido. (NIETZSCHE, 2004bNIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. São Paulo: Companhia das Letras , 2004b.b, §27, grifos do autor).

“Se pensa e se vive ao ritmo do Ganges”, assim como um sādhu ou brāhmaṇa6 6 Gminosofista, de acordo com os gregos antigos. Representa a cabeça da sociedade indiana, aquela que pensa, fala e orienta. É o mestre encarregado de transmitir o conhecimento para as demais castas ou varṇas. Ocupa-se no desenvolvimento intelectual, educacional e mágico da sociedade. em espírito livre (solto em ideias reflexivas e fisiologia mística): largo, profundo, mordaz e ao mesmo tempo para além-do-homem, com a “obrigação à quietude, ao ócio, ao esperar e ser paciente”, ou seja, em meditação, mas não meditando como se apregoa no senso comum, já que “isto significa pensar!”, conclui o filósofo, e é o que o torna incompreendido (NIETZSCHE, 2008cNIETZSCHE, Friedrich. Ecce homo: como alguém se torna o que é. São Paulo: Companhia das Letras , 2008c., p. 72). Noutros termos, esse ritmo bramânico do Ganges, ao mesmo tempo em que desejado, provoca inquietude pela quietude; ao mesmo tempo em que purificador, com seus mortos à deriva e boiando à vista nas águas brilhantes ou com seus corpos queimados pelo fogo sacrificial, espanta de sua compreensão e companhia os caṇḍālas,7 7 Outcaste indiano que Nietzsche adapta e utiliza como termo a designar uma resignação fatalista, ressentimento ou mundo-gueto dos antiarianos: sacerdotes, Jesus ou judeus em geral se enquadram nessa categoria. os quais caminham (pensam e vivem) lentamente como as tartarugas, ou a pequenos lances (impulsivos ou mortais) como as rãs. E tal espanto e solidão se fazem-se presentes quando se voltam para “a busca de tudo o que é estranho e questionável no existir, de tudo o que a moral até agora baniu” (NIETZSCHE, 2008cNIETZSCHE, Friedrich. Ecce homo: como alguém se torna o que é. São Paulo: Companhia das Letras , 2008c., p. 16).

Tudo isso, acrescenta Nietzsche (2004bNIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. São Paulo: Companhia das Letras , 2004b., §29), porque ser verdadeiramente independente é privilégio de uma minoria, dos fortes, dos que pensam e vivem ao ritmo do Ganges, já que para os caṇḍālas, às tarântulas e aos “políticos de cervejaria”, tudo aqui exposto parece loucura ou crime. E ele destaca, em suma, que pensar como caṇḍāla é algo oposto ou distinto das filosofias indiana, grega e persa (NIETZSCHE, 2004bNIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. São Paulo: Companhia das Letras , 2004b., §30).

Distinção de “pensamentos” que fica mais evidente quando os brāhmaṇas são enfatizados por Nietzsche - fugindo de um eurocentrismo vigente na época - em relação aos europeus, pois, “por mais que haja progredido em outros âmbitos, em matéria de religião a Europa não alcançou ainda a ternura dos antigos brāhmaṇas: sinal de que na Índia de quatro mil anos atrás8 8 Hoje, podemos até falar em oito ou nove mil anos atrás, época da composição do Ṛg Veda. havia mais pensamento, e costuma-se herdar mais prazer no pensar, do que agora entre nós” (NIETZSCHE, 2004cNIETZSCHE, Friedrich. Aurora: reflexões sobre os preconceitos morais. São Paulo: Companhia das Letras , 2004c., § 96).

Todavia, voltando ao nosso ponto, é interessante notarmos que Koberstein também estava interessado em uma ligação entre a poesia europeia e a asiática, e mais detidamente no que tange a um tipo de “transmigração da alma” ou reencarnação, qual seja, a presente no reino vegetal. Diante dessa prerrogativa, Figl, de imediato, concluirá que “é possível que a familiaridade de Nietzsche com a ideia da preexistência da alma - a qual se referia como sendo hinduísta [e é!] - derive dos contatos com as reflexões de seu professor ao longo de tais linhas” (FIGL, 2003FIGL, Johann. Os primeiros contatos de Nietzsche com o pensamento asiático. Cadernos Nietzsche, São Paulo, n. 15, p. 83-103, 2003. Disponível em: http://www.gen.fflch.usp.br/sites/gen.fflch.usp.br/files/u41/CN015.83-103.pdf . Acesso em: 10 jan. 2018.
http://www.gen.fflch.usp.br/sites/gen.ff...
, p. 92). Dessa forma, Koberstein, o mais “habituado à literatura estrangeira”, construiu uma ligação entre a Europa e o pensamento do Oriente, passando a representar para Nietzsche “um dos mais brilhantes professores de filosofia” (FIGL, 2003FIGL, Johann. Os primeiros contatos de Nietzsche com o pensamento asiático. Cadernos Nietzsche, São Paulo, n. 15, p. 83-103, 2003. Disponível em: http://www.gen.fflch.usp.br/sites/gen.fflch.usp.br/files/u41/CN015.83-103.pdf . Acesso em: 10 jan. 2018.
http://www.gen.fflch.usp.br/sites/gen.ff...
, p. 92) de Pforta, por ser, aos olhos do filósofo, a sua mais afortunada ligação intelectual. Noutros termos,

A ampla erudição dos professores de Pforta constituía, a ser assim, não apenas a melhor das preparações para o estudo da filologia, mas também estava apta a comunicar a Nietzsche uma certa noção das ideias orientais; o que resulta no fato de que ele não se achava totalmente despreparado para travar contato com o pensamento asiático, na medida em que isto se deu na universidade. Ali ele colheu, provavelmente, informações mais extensas sobre as religiões e culturas asiáticas, tal como pode ser visto a partir de anotações inéditas feitas quando ele ainda era um estudante universitário em Bonn. (FIGL, 2003FIGL, Johann. Os primeiros contatos de Nietzsche com o pensamento asiático. Cadernos Nietzsche, São Paulo, n. 15, p. 83-103, 2003. Disponível em: http://www.gen.fflch.usp.br/sites/gen.fflch.usp.br/files/u41/CN015.83-103.pdf . Acesso em: 10 jan. 2018.
http://www.gen.fflch.usp.br/sites/gen.ff...
, p. 92).

Em uma carta ao amigo Barão de Gersdorff, datada em 7 de abril de 1866, época de intenso avivamento intelectual em Bonn, Nietzsche (1944NIETZSCHE, Friedrich. Despojos de uma tragédia. Lisboa: Educação-Nacional, 1944., p. 15) revela:

Há pouco, falei com alguém que pensa partir, em breve, para a Índia [...]. Fiz-lhe várias perguntas. Apurei que não conhecia o Oupnek'hat [Upaniṣad]9 9 Um dos principais expoentes filosóficos da literatura clássica indiana, aqui, citado por Nietzsche em sua versão traduzida pelo francês Anquetil-Duperron. O Oupnek’hat de Anquetil foi traduzido para a língua alemã por Friedrich Majer em 1808, (CLARKE, 1997, p. 68), o mesmo que marcara profundamente os pensadores alemães Schopenhauer (a partir de 1813) e Paul Deussen. Este último, um intelectual e amigo de Nietzsche, o qual traduzira inúmeros Upaniṣads e tivera uma brilhante carreira indológica. Além destes, Anquetil marca os primeiros ensaios de Colebrooke (nos Vedas, oitavo volume do Asiatic Researches, em 1805) e de Schlegel (Sobre a Língua e a Sabedoria dos Hindus, de 1808). Ele foi relembrado na discussão elaborada do Oupnek’hat pelo indólogo alemão Albrecht Weber (1825-1901), na década de 1850; um evento que serviu para destacar o importante papel desempenhado por Anquetil na nascente e no desenvolvimento dos estudos indológicos europeus. Dirá Louis Renou que as publicações dos Asiatic Researches ou pesquisas inglesas, publicadas sobre a Índia em Kolkata, “são imediatamente traduzidas para o francês, assim como os textos em sânscrito publicados por Wilkins e Jones. Os alemães Klaproth, Lassen, os irmãos Schlegel (...) e Bopp, que acabaria por estabelecer a gramática comparativa, enquanto manifestava-se sanscritista - todos vieram a Paris” (RENOU, 1950, p. 97-98, tradução nossa). nem sequer de nome e que estava decidido a não discutir com os brāhmaṇas, porque estes possuem uma grande cultura filosófica. Ó, Ganges sagrado!

Além do mais, durante sua empreitada inicial e intelectual em Bonn, no verão de 1865, Nietzsche participará de vários cursos ministrados pelo professor Carl Schaarschmidt, por meio do qual o Oriente sempre fora abordado em comparação. Um dos indícios de tais abordagens está nas anotações do calouro Nietzsche, que menciona três vezes o pensamento do Extremo Oriente: na introdução, durante a discussão do neoplatonismo e no excerto de Schopenhauer. E logo na afirmação inicial de Schaarschmidt, anota Nietzsche: “filosofia começa com o espanto”. Diz Figl (2003FIGL, Johann. Os primeiros contatos de Nietzsche com o pensamento asiático. Cadernos Nietzsche, São Paulo, n. 15, p. 83-103, 2003. Disponível em: http://www.gen.fflch.usp.br/sites/gen.fflch.usp.br/files/u41/CN015.83-103.pdf . Acesso em: 10 jan. 2018.
http://www.gen.fflch.usp.br/sites/gen.ff...
, p. 84) que ela é seguida pelo enunciado de que “os ramos indo-germânicos constituem os próprios portadores do desenvolvimento filosófico”, ou seja, que a todo instante surpreende para que surja a inquietação intelectiva. O professor de Viena inferirá que tal admissão, qual seja, do indo-germânico como algo orgânico, induz uma ligação necessária com o pensamento indiano. Para tanto, ele cita uma passagem sequencial de Nietzsche: “o ramo indo-germânico estende-se do sudoeste asiático até a Europa, Índia e Pérsia [...]. A nação indiana, os gregos e os povos germânicos são os portadores do significado filosófico” (FIGL, 2003FIGL, Johann. Os primeiros contatos de Nietzsche com o pensamento asiático. Cadernos Nietzsche, São Paulo, n. 15, p. 83-103, 2003. Disponível em: http://www.gen.fflch.usp.br/sites/gen.fflch.usp.br/files/u41/CN015.83-103.pdf . Acesso em: 10 jan. 2018.
http://www.gen.fflch.usp.br/sites/gen.ff...
, p. 95).

Tal relação de ideias provavelmente tenha se instalado com a pressuposição econômica entre os povos envolvidos, cogita Figl, uma vez que, ainda citando as anotações do filósofo, “relações comerciais primitivas entre a Ásia Menor, a Índia e a Grécia nos fazem supor que as ideias foram, igualmente, transportadas” (FIGL, 2003FIGL, Johann. Os primeiros contatos de Nietzsche com o pensamento asiático. Cadernos Nietzsche, São Paulo, n. 15, p. 83-103, 2003. Disponível em: http://www.gen.fflch.usp.br/sites/gen.fflch.usp.br/files/u41/CN015.83-103.pdf . Acesso em: 10 jan. 2018.
http://www.gen.fflch.usp.br/sites/gen.ff...
, p. 95) como em vasos comunicantes. Não obstante, “a filosofia indiana é, em contrapartida, especialmente atendida e seu conteúdo rapidamente delineado”, conclui Figl.

Mas elas não cessam por aqui, Figl explanará a profundidade polêmica de Nietzsche ao transcrever que o sistema de religião bramânica é “uma ossificação de uma religião natural, originalmente pura e nobre”, a qual se traduz como: “a própria filosofia [que] surge em conexão com tal sistema” (FIGL, 2003FIGL, Johann. Os primeiros contatos de Nietzsche com o pensamento asiático. Cadernos Nietzsche, São Paulo, n. 15, p. 83-103, 2003. Disponível em: http://www.gen.fflch.usp.br/sites/gen.fflch.usp.br/files/u41/CN015.83-103.pdf . Acesso em: 10 jan. 2018.
http://www.gen.fflch.usp.br/sites/gen.ff...
, p. 95).

Com isso, e ainda arrolando menções outras sobre o legislador indiano (Manu) e o nirvana budista, completa Figl (2003FIGL, Johann. Os primeiros contatos de Nietzsche com o pensamento asiático. Cadernos Nietzsche, São Paulo, n. 15, p. 83-103, 2003. Disponível em: http://www.gen.fflch.usp.br/sites/gen.fflch.usp.br/files/u41/CN015.83-103.pdf . Acesso em: 10 jan. 2018.
http://www.gen.fflch.usp.br/sites/gen.ff...
, p. 96), “Nietzsche parece ter adquirido ainda mais familiaridade com o pensamento indiano, ou, ao menos, uma noção de suas principais correntes fundamentais”. Ademais, em uma anotação presente no contexto neoplatônico, observa Nietzsche: “Há, aqui, uma influência oriental. Gnosticismo. 1) Parsismo (dualismo). 2) Budismo (sinos e rosários)10 10 Que são, na verdade, de origem védica, muito anteriores ao budismo. . 3) Judaísmo” (FIGL, 2003FIGL, Johann. Os primeiros contatos de Nietzsche com o pensamento asiático. Cadernos Nietzsche, São Paulo, n. 15, p. 83-103, 2003. Disponível em: http://www.gen.fflch.usp.br/sites/gen.fflch.usp.br/files/u41/CN015.83-103.pdf . Acesso em: 10 jan. 2018.
http://www.gen.fflch.usp.br/sites/gen.ff...
, p. 96).

Ao lado de uma das últimas passagens do manuscrito do curso de Schaarschmidt, ou seja, em torno de um excerto da discussão comparativa de Schopenhauer sobre Kant e o pensamento indiano, anota Nietzsche: “Esta é, ao mesmo tempo, a concepção básica de Platão, assim como a dos Vedas e dos Purāṇas (Alegoria da Caverna em A República - O Véu de Maya)” (FIGL, 2003FIGL, Johann. Os primeiros contatos de Nietzsche com o pensamento asiático. Cadernos Nietzsche, São Paulo, n. 15, p. 83-103, 2003. Disponível em: http://www.gen.fflch.usp.br/sites/gen.fflch.usp.br/files/u41/CN015.83-103.pdf . Acesso em: 10 jan. 2018.
http://www.gen.fflch.usp.br/sites/gen.ff...
, p. 96). Aqui se vê o filósofo fazendo relações significativas que muitas vezes fogem do alcance ou da alçada dos analistas modernos e que estão pouco familiarizados com a filosofia indiana.

Figl ainda expôs que, após se transferir de Bonn para a Universidade de Leipzig, Nietzsche, continuando seus estudos de filologia, fez inúmeras anotações em torno da história dessa ciência em relação à Ásia e ao budismo.

Thomas Brobjer (2008BROBJER, Thomas. Nietzsche’s philosophical context: an intellectual biography. Illinois: University of Illinois Press, 2008., p. 65) também nos informa que em 1870 Nietzsche obteve a obra Die Religion des Buddha und ihre Entstehung, de Carl Koeppen, e lera Beiträge zur vergleichenden Religionswissenschaft e Beiträge zur vergleichenden Mythologie und Ethologie, de Max Müller, todas contendo filosofia indiana ou análises em torno desta. Além disso, a partir de janeiro de 1875, uma forte influência da filosofia indiana assolou Nietzsche, completa Brobjer, principalmente com a descoberta e leitura de Schopenhauer, ampliando a visão obtida sobre a Índia nos cursos de filosofia do professor Schaarschmidt.

Ainda em 1875, Nietzsche animou o amigo Deussen a revelar seus planos para analisar e traduzir obras de filosofia indiana. Ficando claro que ele tinha em alta estima tal filosofia, chegando a mencionar uma palestra pública de Brockhaus em Leipzig, que ele assistira poucos anos antes, intitulada: “Visão Geral dos Resultados da Filologia Indiana”, mas que, para decepção de Nietzsche, não continha nada sobre filosofia indiana. Afirmação essa que está associada à certeza de seu contato com tal filosofia, ao ponto de identificações e comparações devidas.

Em cartas a Overbeck, datada em 26 de maio de 1875, e a Rohde, datada em 08 de dezembro do mesmo ano, Nietzsche diz que iria tentar convencer seu editor a começar uma série de traduções da filosofia indiana e, mais tarde, e mais especificamente, o texto budista Tripitaka, uma compilação da literatura budista tradicional.

Ainda durante o ano de 1875, Nietzsche leu e comprou uma série de livros relacionados com a filosofia oriental. Na primeira parte do ano, ele comprou e leu o terceiro volume de Indische Sprüche (Provérbios Indianos) (1870-1873), de Otto von Böhtlingk, e pegou emprestado da biblioteca da Universidade da Basileia a Einleitung in die Vergleichende Religionswissenschaft (Introdução à Religião Comparada), de 1874, de Müller. Nietzsche também lera Kulturgeschichte (História Cultural), 1874, de Friedrich von Hellwald, que continha valores culturais de vários povos, incluindo os orientais.

Nietzsche apreciou o terceiro volume da obra Indischer Sprüche (Ditados Indianos), de Wolfgang Senff, que Gersdorff lhe enviara como um presente de Natal adiantado. Ademais, a partir de uma tradução inglesa, chegou a adquirir e ler o Sutta Nipāta11 11 Uma das mais antigas literaturas budistas em forma de Sutta ou “coleção de discursos”: o quinto livro do Khuddaka Nikāya, com 71 Suttas curtos e divididos em cinco capítulos, os quais também são um dos principais cânones do budismo theravada (SADDHATISSA, 1994, p. VIII). .

Sobre tal contexto, Nietzsche (1944NIETZSCHE, Friedrich. Despojos de uma tragédia. Lisboa: Educação-Nacional, 1944., p. 132) assim se referirá em uma carta escrita na Basiléia, em 13 de dezembro de 1875:

[...] Sobretudo nos últimos meses, voltava a minha vista para a Índia com uma espécie de sede crescente. Pedi emprestado a Widemann, o amigo de Schneitzner, a tradução inglesa de Sutta Nipāta e qualquer coisa dos livros sagrados budistas, e já adquiri, para uso doméstico, um dos mais firmes finais de um Sutta: “assim eu vago, solitário como o rinoceronte”.12 12 Em sânscrito: eko care khaḍgaviṣāṇakalpo, curiosamente retirada de um refrão do texto budista Khaggavisāṇa-sutta, do Dhammapada, e fazendo referência à vida solitária do ganda ou rinoceronte típico da Índia: sem predadores, com pele grossa, herbívoro e o atual quarto maior animal terrestre; características que o transformou em símbolo indiano: da mística e do saber que se autossustenta e se autorrealiza em plena autonomia conquistada. Ele cerca-me com tal força em certas ocasiões, sobretudo quando estou enfermo, a convicção de falta de valor da vida e da mentira de todos os fins que, nesses instantes, desejo ouvir ou ler um pouco sobre as referidas coisas, mas não amalgamado com as formas de expressão judaico-cristãs, que me repugnam de tal maneira que, às vezes, tenho de fazer um grande esforço para não cair em injustiças.

Aqui se instala explicitamente seu propósito comparativo e tresvalorativo dos valores morais, utilizando-se de uma ideia indiana como motivação e convicção sobre aquilo que ele conclamará posteriormente como “eterno retorno do mesmo”, ou seja, “da mentira de todos os fins” ou do “processo circular do todo”. Para quem não acredita, aponta Nietzsche (1978NIETZSCHE, Friedrich. Obras incompletas. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Coleção Os Pensadores). , p. 388), só lhe resta acreditar em um deus voluntário.

Após 1875, Brobjer (2008BROBJER, Thomas. Nietzsche’s philosophical context: an intellectual biography. Illinois: University of Illinois Press, 2008., p. 66) nos informa que as leituras mais importantes de Nietzsche sobre a filosofia indiana, fora das prerrogativas de Schopenhauer, serão o Die Elemente der Metaphysik (Os Elementos da Metafísica), de Deussen, em 1877, e o Brahma und die Brahmanen (Brahmā e o brāhmaṇa), de Martin Haug, em 1878. Em 1879, Nietzsche escutou uma palestra sobre budismo, de Jacob Wackernagel, e, em 1880, leu Über den Ursprung des Brahmanismus (A Origem do Bramanismo - 1879), do mesmo autor. Ainda no ano de 1880, Nietzsche lerá Buddha: Sein Leben, seine lehre, seine Gemeinde (Buda: sua vida, seus ensinamentos, sua comunidade), de Hermann Oldenberg; em 1883, Die System des Vedanta (O Sistema do Vedānta), de Deussen e, em 1887, Die Sutra’s des Vedanta (Os Sūtras do Vedānta), também do mesmo amigo; em 1888, Les législateurs religieux Manou (Os Legisladores Religiosos de Manu), do já famoso Louis Jacolliot. Esta última, recheada de aforismos e vontades que predem sua atenção até o fim da vida.

Nietzsche e o Manu-saṁhitā

O Manu-saṁhitā será uma obra de importância vital para a tresvaloração dos valores proposta por Nietzsche. Para tanto, comentará Daniel Halévy (2006NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos. São Paulo: Companhia das Letras , 2006.) em torno de uma carta de Jorge Brandes a Nietzsche, de 1888:

É tarde, e Nietzsche já entrou no caminho que o arrasta ao seu destino. Durante esses dias de fadiga e tensão, fez uma das mais importantes leituras de sua vida - a última. Desejando conhecer o modelo dessas sociedades hierarquizadas, cuja renovação esperara, consegue uma tradução das leis de Manu. Lê e sua esperança não se vê traída. Este código, que estabelece os costumes e a ordem de quatro castas; esta linguagem, tão bela, tão simples e tão humana na sua severidade; esta constante nobreza e, por fim, esta impressão de segurança e de doçura que se desprendem do conjunto do livro - entusiasmaram-no. (HALÉVY, 2006HALÉVY, Daniel. Solidão e morte de Nietzsche. 2006. Disponível em: http://www.consciencia.org/nietzschehalevy7.shtml . Acesso em: 15 out. 2018.
http://www.consciencia.org/nietzschehale...
, s.p.).

Dirá Halévy que Nietzsche admira e copia inúmeros trechos da antiquíssima literatura, da qual nasceu a sua mensagem tresvalorativa aos dogmas judaico-cristãos e a qual interpreta como constituindo o soberaníssimo antídoto contra a Bíblia. Na antiga literatura indiana é possível reconhecer, diz Nietzsche, por exemplo, um olhar goetheano e cheio de boa vontade.

O código de Manu é, para Nietzsche, algo indispensável ao espírito livre, posto que a natureza é inevitavelmente um caos, uma zombaria de todo apotegma e de toda ordem e, para aquele que cogita a instalação de uma ordem, deverá se afastar dela e conceber um mundo ilusório; algo que o excesso de realidade presente em Manu tenta elegantemente escapar ou não se motivar para tanto.

Halévy ainda nos apresentará ensejos explicativos acerca da relação Nietzsche e Manu:

Nietzsche está só em Turim [...]. Que pensa? Estuda, sem dúvida, e medita sem cessar neste velho livro ariano13 13 “Ariano”, aqui, no sentido sânscrito do termo. O termo ārya está presente em todas as literaturas védicas e bramânicas antigas, e etimologicamente indica sabedoria, bom comportamento etc., sem nenhuma conotação racial. Será com o eurocêntrico Max Müller, a serviço da então imperialista Royal Society inglesa que, em 1853, deturpa o termo ārya e o adequa à língua inglesa e alemã, difundo-o à comunidade europeia como aplicação de um grupo racial; surgindo, então, a teoria da raça ārya ou ariana. Fato que demonstra uma invenção intencional contra a conotação etimológica indiana original, tornando-a racista e pejorativa após o advento do nazismo. que lhe oferece o modelo de suas ideias [...], o Código de Manu é o mais belo monumento de perfeição estética e social [...], [com o qual ele] reflete, se assombra e suspende o trabalho. (HALÉVY, 2006HALÉVY, Daniel. Solidão e morte de Nietzsche. 2006. Disponível em: http://www.consciencia.org/nietzschehalevy7.shtml . Acesso em: 15 out. 2018.
http://www.consciencia.org/nietzschehale...
, s.p.).

Rüdiger Safranski (2001SAFRANSKI, Rüdiger. Nietzsche: biografia de uma tragédia. São Paulo: Geração Editorial, 2001., p. 285) adiciona:

No “Crepúsculo dos Ídolos” [VII.3, VII.5] e no “Anticristo” [§56-57] Nietzsche avalia um livro que lhe caiu nas mãos em Turim. Trata-se do “Livro de Leis de Manu”, editado e traduzido por Louis Jacolliot, [...]. Nietzsche mostra-se fascinado pela cruel coerência com que nesse livro de leis, segundo um funesto mandamento de pureza, a sociedade se organiza em classes sociais14 14 Na realidade, castas ou varṇas são de melhor aplicação conceitual, já que “classe” carrega em seu bojo hierarquias econômicas e não deveres sociorrituais, como é o caso indiano. rigorosamente separadas. Interpreta o fato das diversas castas não poderem se misturar entre si como uma inteligente biopolítica [...].

Portanto, visivelmente, Manu adiciona um modelo às ideias de Nietzsche e faz com que ele reflita e assombre-se, ao ponto de moldar os campos de objeto e pensamento que há de considerar para sua empreitada mais audaciosa e sagaz: a tresvaloração dos valores. Para tanto, em O Anticristo ele chegará às seguintes aferições:

É com sentimento oposto que leio o código de Manu, uma obra inigualavelmente espiritual e superior, tanto que apenas nomeá-la juntamente com a Bíblia seria um pecado contra o espírito. Logo se percebe: ele tem uma verdadeira filosofia atrás de si, em si, não apenas uma malcheirosa judaína de rabinismo15 15 “Judaína”, termo criado pelo orientalista alemão Paul Bötticher (1827-1891). “Judaína” diz respeito à junção de judaísmo com o sufixo “ína” (que denota, neste caso, alcaloide entorpecente), ou seja, um entorpecente judaico ou um judaísmo viciante, intoxicante, ilusório e criador de hipnofrenoses e cegueiras artificiais. e superstição - até ao mais fastidioso psicólogo ele dá algo substancial para morder. (NIETZSCHE, 2007NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo & ditirambos de Dionísio. São Paulo: Companhia das Letras , 2007., §56, grifo do autor).

Tomando a moral, por outro lado, como o cultivo de uma determinada espécie, Nietzsche apontará mais uma vez para Manu:

O mais formidável exemplo dele é fornecido pela moral indiana, sancionada como religião na forma da “lei de Manu”. Aí se propõe a tarefa de cultivar não menos que quatro raças [casta] de vez: uma sacerdotal, uma guerreira, uma de mercadores e agricultores e, por fim, uma raça de servidores, os śudras. Evidentemente, aí já não estamos entre domadores de animais: uma espécie de homem cem vezes mais branda e mais razoável é o pressuposto para simplesmente conceber o plano de tal cultivo. Respira-se aliviado, quando se deixa o ar cristão de doença e masmorra e se adentra esse mundo mais são, mais elevado, mais amplo. Quão miserável é o Novo Testamento ao lado de Manu, como cheira mal. (NIETZSCHE, 2006NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos. São Paulo: Companhia das Letras , 2006., VII, § 3, grifos do autor e conformidade do sânscrito nossa).

Uma inebriante comparação de um espírito transeuropeu. Mas suas penas afiadas não tardam em anunciar que a sensibilidade europeia não possui maior contrariedade do que as medidas de proteção para tamanha moral. Uma proteção que coloca o caṇḍāla em “seu lugar”, já que os mesmos - e aqui repete Nietzsche a voz de Manu - “são fruto do adultério, do incesto e do crime”; uma consequência necessária do conceito de cultivo, conclui o filósofo. E diante de inúmeras prescrições aos caṇḍālas, tais como apenas usarem adornos de ferro, a mão esquerda para quaisquer afazeres, viverem errantes e em farrapos, conclui, são instrutivas, visto que “nelas temos a humanidade ariana, totalmente pura, totalmente primordial [...]. Por outro lado, torna-se claro em qual povo se eternizou o ódio, o ódio de caṇḍāla a essa ‘humanidade’ [ariana], onde se tornou religião, onde se tornou gênio” (NIETZCHE, 2006NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos. São Paulo: Companhia das Letras , 2006., VII, § 3, grifo do autor); eis sua visão de homem ariano: o homem védico apresentado por Manu.

E ele deixará mais claro o conceito de ariano em sua Genealogia da Moral, não sendo simplesmente uma etnia ou espécime, senão um traço típico de caráter, especialmente indiano, assim como também fica claro tal prerrogativa em Manu; nada tendo, porquanto de relação intrínseca com esta ou aquela raça. Expressar-se-á assim:

É verdade que, talvez na maioria dos casos, eles designam a si mesmos conforme simplesmente a sua superioridade no poder (como “os poderosos”, “os senhores”, “os comandantes”), ou segundo o signo mais visível desta superioridade, por exemplo, “os ricos”, “os possuidores” (este é o sentido de ārya, e de termos correspondentes [...]. Mas também segundo um traço típico de caráter: e é este caso que aqui nos interessa. (NIETZSCHE, 2008aNIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras , 2008a. , I, §5, grifos do autor e conformidade do sânscrito nossa).

O caso que “interessa” a Nietzsche é o aspecto que “interessa” a Manu: o caráter, uma vez que ārya designa notadamente o nobre de espírito e ação, “alguém que é, que tem realidade, que é real, verdadeiro” (NIETZCHE, 2008aNIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras , 2008a. , I, § 5.). Nietzsche, como filólogo, aperceberá que um conceito de preeminência política sempre resulta de um conceito de preeminência espiritual, embora dê ensejos às exceções. Em relação à Índia, complementa: “o fato de a casta mais elevada ser simultaneamente a casta sacerdotal [também intelectual], e portanto preferir, para sua designação geral, um predicado que lembre sua função sacerdotal [brahman, que resulta em brāhmaṇa]”, remete ao fato de que o “puro” e “impuro” se contrapõem pela primeira vez como distinção de camadas sociais, sem o dualismo “bom” e “ruim”.

E mais uma vez, com um olhar além das sensibilidades europeias, Nietzsche solta o verbo contra os antiarianos (ou antivalores nobres indianos) e os valores caṇḍālas:

O cristianismo, de raiz judaica e compreensível apenas como produto deste solo, representa o movimento oposto a toda moral do cultivo, da raça, do privilégio: - é a religião antiariana par excellence: o cristianismo, a tresvaloração de todos os valores arianos, o triunfo dos valores caṇḍālas, o evangelho pregado aos pobres, aos baixos, a revolta geral de todos os pisoteados, miseráveis, malogrados e desfavorecidos contra a “raça” - a imorredoura vingança caṇḍāla como religião do amor [...]. (NIETZSCHE, 2006NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos. São Paulo: Companhia das Letras , 2006., §4).

Em outros termos, Nietzsche está mais uma vez repetindo a máxima indiana: “torna-te quem tu és!”, caso contrário, transformar-te-ás em caṇḍāla: ressentido, mais um do rebanho, homem do não cultivo e da mixórdia. Porém, Nietzsche não satisfeito com essa inicial comparação intelectiva, adicionará que ainda existe algo mais importante ou prioritário que não pode ser esquecido: “[...] com ele [o Código de Manu] as classes nobres, os filósofos e os guerreiros, erguem a mão sobre a multidão; valores nobres em toda a parte, um sentimento de perfeição, um dizer Sim à vida, um triunfante sentimento de bem-estar consigo e com a vida - o Sol está em todo o livro” (NIETZCHE, 2007NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo & ditirambos de Dionísio. São Paulo: Companhia das Letras , 2007., §56, grifos do autor).

Como fruto desse sentimento de perfeição, do bem-estar, do Sim à vida e da presença onipenetrante da luz na obra, perpassa-se um antídoto, complementa Nietzsche, contra todas as “coisas nas quais o cristianismo verte a sua insondável vulgaridade” (NIETZCHE, 2007NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo & ditirambos de Dionísio. São Paulo: Companhia das Letras , 2007., §56), como, por exemplo, a procriação, a mulher e o matrimônio. Conclui que são estes (a procriação, a mulher e o matrimônio no código de Manu) tratados seriamente, com reverência, com amor e confiança. Por outro lado, diz o filósofo: “como se pode mesmo pôr nas mãos de crianças e mulheres um livro [como a Bíblia]” (NIETZCHE, 2007NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo & ditirambos de Dionísio. São Paulo: Companhia das Letras , 2007., §56) que contém palavras vis em torno do casamento e do tratamento para com as mulheres, tendo a noção da origem do ser humano ligado a uma concepção “imaculada”. E logo em seguida lança seu olhar transeuropeu com força máxima:

Não conheço livro em que se dizem tantas coisas delicadas e gentis às mulheres como o Código de Manu; esses velhuscos e santos [brāhmaṇas] têm um modo de serem amáveis com as mulheres que talvez não tenha sido superado. “A boca de uma mulher” - diz um trecho -, “o busto de uma garota, a oração de uma criança e a fumaça do sacrifício são sempre puros”. Outra passagem: “nada existe mais puro que a luz do sol, a sombra de uma vaca, o ar, a água, o fogo e o respirar de uma garota”. Uma última passagem [...]: “todas as aberturas do corpo acima do umbigo são puras, todas abaixo, impuras. Apenas na garota o corpo inteiro é puro”. (NIETZCHE, 2007NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo & ditirambos de Dionísio. São Paulo: Companhia das Letras , 2007., §56, grifo nosso).

No entanto, Nietzsche (2004bNIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. São Paulo: Companhia das Letras , 2004b., §238) irá ainda além, quando afirma que um homem que possui profundidade no espírito, como nos desejos, jamais poderá ter a respeito da mulher senão uma opinião ao modo oriental. Tal grande espírito se baseará na prodigiosa e “imensa razão asiática, na superioridade de instinto da Ásia, tal como antigamente fizeram os gregos, esses grandes herdeiros e discípulos da Ásia” (NIETZCHE, 2004bNIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. São Paulo: Companhia das Letras , 2004b., §238). A despeito, “como isto era necessário, lógico e mesmo humanamente desejado: que cada um medite a respeito”, remata Nietzsche. Ele apontará ainda, em seu escopo para a época trágica dos gregos, que seria “[...] certo que se empenharam [muitos europeus] em apontar o quanto os gregos poderiam encontrar e aprender no estrangeiro, no Oriente, e quantas coisas, de fato, trouxeram de lá [...], [como] os hindus ao lado dos eleatas [...]”, porquanto, eles “sorveram toda a cultura viva de outros povos” (NIETZSCHE, 1978NIETZSCHE, Friedrich. Obras incompletas. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Coleção Os Pensadores). , p. 31). Contudo, não seriam os gregos meros reprodutores: teriam ido além de suas apreensões e teriam vivido sua filosofia como poucos, completa.

Por conseguinte, Nietzsche (2007NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo & ditirambos de Dionísio. São Paulo: Companhia das Letras , 2007., §57) entenderá que nos surpreendemos com a não-santidade visível, sob luz forte e in flagrante do livro de Manu. Isso, porque “estabelecer um código como o de Manu significa conceder a um povo, a partir de então, que ele venha a tornar-se mestre, tornar-se perfeito - ambicionar a suprema arte da vida” ( §57). E aqui Nietzsche apresentar-se-á como apreciador e defensor do que ele chama “ordem das castas”:

A ordem das castas, a lei suprema, dominante, é apenas a sanção de uma ordem natural, de leis naturais de primeira categoria, sobre as quais nenhum arbítrio, nenhuma “ideia moderna” tem poder. Em toda a sociedade sã se distinguem, condicionando um ao outro, três tipos de diferente gravitação fisiológica, dos quais cada um tem a sua própria higiene, seu próprio âmbito de trabalho, sua própria espécie de mestria e sentimento de perfeição. A natureza, e não Manu, é que separa os predominantemente espirituais, os predominantemente fortes em músculo e temperamento, e os que não se destacam nem de uma maneira nem de outra, os medíocres - estes sendo o grande número, e os primeiros, os seletos. A casta mais alta - eu a denomino os poucos - tem, sendo ela a perfeita, também as prerrogativas dos poucos: entre elas, a de representar a felicidade, a beleza e a bondade na Terra. Apenas aos indivíduos mais espirituais é permitida a beleza, o belo: apenas neles a bondade não é fraqueza. (NIETZSCHE, 2007NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo & ditirambos de Dionísio. São Paulo: Companhia das Letras , 2007., §57, grifos do autor).

O belo é para poucos porque é caótico e porque está na vida, sendo a vida uma bela tragédia que só pode ser contemplada e vivida, como tal, por poucos, assim, como uma moderna lente de observação, quando focada na natureza selvagem, percebem-na como uma insinuante beleza da morte eminente, a cada passo e olhar faminto.

Em Manu, semelhantemente, adverte Nietzsche, não há maus modos, pessimismo, “um olhar que torna feio” ou uma indignação com a vida, já que tudo isso é prerrogativa dos caṇḍālas, para os quais o mundo não é perfeito em sua bela tragédia. Isto é, para o instinto dos mais espirituais, como Manu, “a imperfeição, tudo o que se acha abaixo de nós, à distância, o páthos da distância, o próprio caṇḍāla é parte dessa perfeição” (NIETZSCHE, 2007NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo & ditirambos de Dionísio. São Paulo: Companhia das Letras , 2007., §57). Em outras palavras, a perfeição não está e nem é moldada pelo “bem” ou pelo “bom”, senão pelo que é natural e instintivo. E, para tanto, sabe-se da importância dos mais fortes, no caso dos brāhmaṇas, os quais observa Nietzsche:

Encontram sua felicidade onde outros achariam sua ruína: no labirinto, na dureza consigo e com os outros, na tentativa; seu prazer é a autossujeição: o ascetismo torna-se neles dureza, necessidade, instinto. A tarefa difícil é para eles privilégio, lidar com fardos que esmagam outros, uma recreação. Conhecimento - uma forma de ascetismo. É a mais venerável espécie de homens: o que não exclui que seja a mais jovial, a mais adorável. Eles não dominam porque querem, mas porque são, não lhes é dado serem os segundos [apesar de desprovidos de posses]. (NIETZSCHE, 2007NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo & ditirambos de Dionísio. São Paulo: Companhia das Letras , 2007., §57, grifo do autor).

Não por outro motivo, até o momento se permitiu meramente “buscar a beleza no moralmente bom”, razão suficiente, completa ele, para “acharmos tão pouco e termos de lidar com imaginárias belezas sem ossos! - tal como é certo haver, entre os maus, cem tipos de felicidade de que os virtuosos não suspeitam, neles também se acham cem tipos de beleza: e muitos ainda não foram descobertos” (NIETZSCHE, 2004cNIETZSCHE, Friedrich. Aurora: reflexões sobre os preconceitos morais. São Paulo: Companhia das Letras , 2004c., §468).

Nietzsche e o budismo

Outro ramo do pensar indiano também contagiou profundamente o filósofo: o budismo. E a primeira observação a ser feita, entre budismo e Nietzsche, vem de Max Weber (1992WEBER, Max. Economía y Sociedad: esbozo de sociología comprensiva. México: Fondo de Cultura Económica, 1992, p. 399):

Em nenhum outro lugar, os limites da importância do esquema de “ressentimento” e a aplicação demasiadamente universal do esquema da “repressão” mostram-se mais claramente do que no erro de Nietzsche, ao aplicar seu esquema também ao exemplo, totalmente inadequado, do budismo. É o budismo o mais radicalmente contrário a todo moralismo ressentido; se trata, porém, de uma doutrina de salvação orgulhosa e aristocrática [intelectual] que deprecia por igual as ilusões deste mundo e as do outro.

Assim dizendo, o budista rechaça o cosmos inteiro, inclusive um possível paraíso, o que demonstra, completa Weber, que a necessidade de libertação do mundo, junto à sua religiosidade ética, tem outra fonte diversa da situação social dos negativamente privilegiados e do racionalismo burguês, condicionado pela situação prática da vida, como bem presentes no cristianismo. E Weber será enfático ao dizer que há aqui um “puro intelectualismo”, ou seja, uma necessidade metafísica do espírito, que não é levado a meditar sobre questões éticas e religiosas por nenhuma penúria material ou promessa, senão por uma força interior que o impulsiona a compreender o mundo como um cosmos com sentido.

Mas o que seria o ressentimento em si para Nietzsche? Vejamos:

O aborrecimento, a suscetibilidade doentia, a impotência de vingança, o desejo, a sede de vingança, o revolver venenos em todo sentido - para os exaustos é esta certamente a forma mais nociva de reação: produz um rápido consumo de energia nervosa, um aumento doentio de secreções prejudiciais [...] O ressentimento é o proibido em si para o doente - seu mal: infelizmente também sua mais natural inclinação. (NIETZSCHE, 2008cNIETZSCHE, Friedrich. Ecce homo: como alguém se torna o que é. São Paulo: Companhia das Letras , 2008c., p. 28).

Todavia, as observações weberianas que envolvem o ressentimento também estão aclaradas em Nietzsche, onde ele coaduna que:

Isso compreendeu aquele profundo fisiólogo que foi Buda. Sua “religião”, que se poderia designar mais corretamente como uma higiene, para não confundi-la com coisas lastimáveis como o cristianismo, fazia depender sua eficácia da vitória sobre o ressentimento: libertar a alma dele - primeiro passo para a convalescença [...] assim não fala a moral, assim fala a fisiologia. (NIETZSCHE, 2008cNIETZSCHE, Friedrich. Ecce homo: como alguém se torna o que é. São Paulo: Companhia das Letras , 2008c., p. 28).

E como um transeuropeu autêntico, Nietzsche exortará essa higiene também para o âmbito brahmânico: “pois aqueles brāhmaṇas achavam, primeiramente, que os sacerdotes eram mais poderosos que os Deuses [...]” (NIETZSCHE, 2004cNIETZSCHE, Friedrich. Aurora: reflexões sobre os preconceitos morais. São Paulo: Companhia das Letras , 2004c., § 96, conformidade do sânscrito nossa).

Nietzsche dirá que ao se seguir a história indiana, em um passo adiante (com o budismo) os Deuses foram deixados de lado - ao menos em parte e por algum tempo. No entanto, seguindo seu raciocínio, dirá que realizar tal feito “a Europa também terá de fazer um dia!”. E mais um passo adiante, complementa: “já não havia mais necessidade dos sacerdotes e intermediários, e apareceu Buda, o mestre da religião da autorredenção”, e, por fim, conclama profeticamente: “como a Europa ainda se acha distante desse estágio da cultura” (NIETZSCHE, 2004cNIETZSCHE, Friedrich. Aurora: reflexões sobre os preconceitos morais. São Paulo: Companhia das Letras , 2004c., § 96).

Seguindo ainda sua comparação transeuropeia, Nietzsche afirmará que o conhecimento ou “a elevação acima dos demais homens pela disciplina e educação lógica do pensamento, eram erigidos como sinal de santidade entre os budistas, enquanto os mesmos atributos, no mundo cristão, são rejeitados e denegridos como sinal de impiedade” (NIETZSCHE, 2004aNIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. São Paulo: Companhia das Letras , 2004a., §144).

Acompanhando o cortejo dionisíaco da Índia para a Grécia, ele lançará uma ideia surpreendente: “eu poderia ser o Buda da Europa” (LUISETTI, 2010LUISETTI, Federico. Nietzsche’s Orientalist Biopolitics. Conferência internacional na Universidad Diego Portales, Santiago do Chile, 2010. Disponível em: https://www.yumpu.com/en/document/read/12063299/nietzsches-orientalist-biopolitics-federico-biopolitica . Acesso em: 10 mai. 2022.
https://www.yumpu.com/en/document/read/1...
, s.p.), ao mesmo tempo que, em uma carta a Burkhardt, datada em 3 de janeiro de 1889, falará em devaneio reencarnacionista: “Entre os indianos fui Buda; na Grécia, Dionísio. Alexandre e César são minhas encarnações, da mesma forma que Lord Bakon [...], o poeta de Shakespeare. Por último, fui ainda Voltaire e Napoleão [...]” (BISHOP, 2004BISHOP, Paul. Nietzsche and Antiquity: his reaction and response to the classical tradition. New York: Camden House, 2004. , p. 130).

Assim, alguns autores defendem que o modo pelo qual Nietzsche entendeu o budismo está fortemente calcado pela influência de Schopenhauer, reagindo e pensando o budismo de acordo com a leitura do seu mestre inicial. Heinrich Dumolin, por exemplo, afirmará que Nietzsche “deve a sua compreensão do budismo inteiramente a Schopenhauer e ao modo pelo qual ele entendeu Schopenhauer” (DUMOULIN, 1981DUMOULIN, Heinrich. Buddhism and Nineteenth-Century German Philosophy. Journal of the History of Ideas, vol. 42, no. 3, Jul/Sep. 1981, p. 457-470. Disponível em: http://www.jstor.org/pss/2709187 . Acesso em: 12 nov. 2010.
http://www.jstor.org/pss/2709187...
, p. 468). De fato, Schopenhauer será o maior propagador do budismo na Alemanha do XIX. Freny Mistry (1981MISTRY, Freny. Nietzsche and Buddhism: prolegomenon to a comparative study. Berlin: Gruyter, 1981., p. 09) acrescentará que: “as interpretações de Nietzsche sobre o budismo baseiam-se em traduções e fontes secundárias até então disponíveis, e a insegurança destas traduções não se deve, pelo menos, à escassez de material de primeira mão sobre o budismo, acessível na Europa do século XIX”. Fato que leva Jared Lincourt a observar que não será por tal motivo que devemos concluir imediatamente estar Nietzsche simplesmente conjecturando interpretações erradas sobre os princípios ou ideias budistas, mas sim que a sua predisposição diante de poucas fontes, combinada com sua significativa influência de Schopenhauer, “não permitiam interpretações precisas e completas” (LINCOURT, 2011LINCOURT, Jared. Revaluating Nietzsche and Buddhism: active and passive nihilism. Disponível em: http://organizations.oneonta.edu/philosc/papers09/Lincourt.pdf . Acesso em: 19 abr. 2011.
http://organizations.oneonta.edu/philosc...
, p. 03). Por exemplo, Benjamin Elman (2011ELMAN, Benjamin. Nietzsche and Buddhism. JSTOR: Journal of the History of Ideas, 2011. Disponível em: http://www.jstor.org/pss/2709223 . Acesso em: 19 abr. 2011.
http://www.jstor.org/pss/2709223...
, p. 679) bramará: “Nietzsche concluiu que o budismo representou uma retirada niilista da existência e um desejo para um diferente modo de ser”, e que tal retirada está atrelada ao conceito e visão do nirvana, algo que Nietzsche olhava com pouca apreciação, por representar o desejo de nada do nirvana uma ascese passiva que desqualifica o indivíduo e hostiliza a vida; algo que está longe de ser verdade, senão o seu oposto, já que o nirvana é alcançado individual e ativamente. Não há eliminação das ações asceticamente, há total ação (ou inação na ação), mas sem os desejos que dela provém. Agir pacificamente não implica dizer agir passivamente, já que para exercer o ahiṁsa (não violência) necessita-se da ação constante em prol de um sentido do mundo, o qual se abstém das reações psicofísicas desse mesmo mundo que nos “prende”. Deve-se entender esse nirvana, afirma Lincourt e com base no budólogo japonês Daisetsu Teitaro Suzuki, como um processo de realizar e experimentar a liberdade da sede insaciável do desejo e as dores de repetidos nascimentos e mortes (LINCOURT, 2011LINCOURT, Jared. Revaluating Nietzsche and Buddhism: active and passive nihilism. Disponível em: http://organizations.oneonta.edu/philosc/papers09/Lincourt.pdf . Acesso em: 19 abr. 2011.
http://organizations.oneonta.edu/philosc...
, p. 05). Para tanto, as ações mentais e físicas são fundamentais. Dizer que se deve esvaziar a mente ou parar de desejar não se associa com o “não agir”, mas com o “agir individualmente” e com toda a força de sua existência para se atingir a finalidade da ascese. Não se deve agir, portanto, desejando aquilo que te prende e te impede de ser realmente livre do cativeiro do maniqueísmo ou das dualidades aparentes.

A metáfora da “extinção da chama” ou daquilo que sustenta energeticamente o corpo, diz Lincourt com base em Robert Buswell (2003BUSWELL, Robert E. Nirvana. Encyclopedia of Buddhism. New York: MacMillan Reference Books, 2003., p. 601), geralmente é utilizada para ilustrar o nirvana em si, podendo ser interpretado de diversas maneiras, como um tipo de autodefinição e autoconsciência, ou mesmo como a liberdade das atitudes geradas por esse modo de pensar. Sendo um equívoco, portanto, pensar que a extinção dessas qualidades “negativas” do comportamento humano implica em uma completa extinção do individual. O Nirvana deve ser visto, assim sendo, como um “esfriamento” ocorrido após o uso de um extintor. Nacy Ross (1981ROSS, Nancy Wilson. Buddhism: a way of life and thought. New York: Random House, 1981., p. 30) acrescentará que:

O que se extingue na realização do nirvana é simplesmente a vida autocentrada e a vida de autoafirmação, a que o homem ignorante tende a se apegar como se fosse o bem mais elevado e a segurança última. [Uma vez que] o verdadeiro “real” não se extingue quando o nirvana é alcançado: já que o real é finalmente atingido. (ROSS, 1981ROSS, Nancy Wilson. Buddhism: a way of life and thought. New York: Random House, 1981., p. 30)

Tudo isso implica dizer que o nirvana deve ser entendido simbolicamente, ao invés de apresentar-se com um sentido estrito e literal, como parece ter apresentado Nietzsche e tantos outros ocidentais até os nossos dias.

Ao mesmo tempo, Nietzsche utiliza a ideia de um budismo europeu para caracterizar o que ele denomina, segundo Federico Luisetti (2011LUISETTI, Federico. Nietzsche’s Orientalist Biopolitics. Conferência internacional na Universidad Diego Portales, Santiago do Chile, 2010. Disponível em: https://www.yumpu.com/en/document/read/12063299/nietzsches-orientalist-biopolitics-federico-biopolitica . Acesso em: 10 mai. 2022.
https://www.yumpu.com/en/document/read/1...
, p. 04), de “niilismo extremo” ou “a segunda aparição do budismo”, com o qual surge uma incoerência entre palavra e ação, algo que o oriental (em geral) não permite por ser fiel a si mesmo na vida diária. Aqui, Nietzsche alimentará uma semente indiana e budista frente ao cristianismo, desintegrando-o e desmitificando-o, ao passo que também afoga o ressentimento aparente do budismo.

O que impulsiona Luisetti a pensar em um “movimento crucial da filosofia nietzschiana: a conversão do niilismo ocidental ou a ‘tresvaloração dos valores’, [que] é marcada pelo regresso de ‘sutilezas orientais’ [...]” (2011LUISETTI, Federico. Nietzsche’s Orientalist Biopolitics. Conferência internacional na Universidad Diego Portales, Santiago do Chile, 2010. Disponível em: https://www.yumpu.com/en/document/read/12063299/nietzsches-orientalist-biopolitics-federico-biopolitica . Acesso em: 10 mai. 2022.
https://www.yumpu.com/en/document/read/1...
, p. 3). Ou seja:

Nietzsche, “tornando-se oriental” é um processo multifatorial: não apenas uma performance, “tornando-se Dionísio e Zaratustra”, que é simultaneamente uma forma mais sutil e estratificada de “tornando-se indiano” por “tornando-se budista” e “tornando-se um brāhmaṇa sacerdote”. Em cada caso, há uma topologia específica de forças vitais que é evocada e um mecanismo de intensificação ou enfraquecimento da vontade, acompanhada por uma tecnologia de felicidade. (LUISETTI, 2011LUISETTI, Federico. Nietzsche’s Orientalist Biopolitics. Conferência internacional na Universidad Diego Portales, Santiago do Chile, 2010. Disponível em: https://www.yumpu.com/en/document/read/12063299/nietzsches-orientalist-biopolitics-federico-biopolitica . Acesso em: 10 mai. 2022.
https://www.yumpu.com/en/document/read/1...
, p. 3, conformidade do sânscrito nossa).

Há, em outros termos, uma passagem do último estágio do niilismo para um dionisíaco imanente a partir do “último homem”, sendo isto o arcano de todo o pensamento de Nietzsche. E essa realização e superação do niilismo será formulada como um movimento interno europeu via renovação da sensibilidade budista, o que definitivamente provocou as principais características do vitalismo racional em Nietzsche.

Para Luisetti, Nietzsche sugere que esse desenvolvimento poderia ter ocorrido mais cedo na Europa, caso não surgisse a fraqueza imposta pelo cristianismo. E o problema cristão estaria, com mais enfermidade, no envenenamento de Paulo, o qual travou o cristianismo para a não abolição do pecado e da vingança. Em vez disso, tornou-se uma moral que nega a saúde fisiológica, como aquela apresentada pelo budismo. A seita judaica, dessa forma, “em razão de um ato de autodissolução” (LUISETTI, 2011LUISETTI, Federico. Nietzsche’s Orientalist Biopolitics. Conferência internacional na Universidad Diego Portales, Santiago do Chile, 2010. Disponível em: https://www.yumpu.com/en/document/read/12063299/nietzsches-orientalist-biopolitics-federico-biopolitica . Acesso em: 10 mai. 2022.
https://www.yumpu.com/en/document/read/1...
, p. 5), torna-se escrava vitalícia de seu núcleo de fundação e entra em uma catástrofe de dois mil anos. Só posteriormente, por razões políticas e econômicas, decide aceitar dissimuladamente alguma face intelectual que não a contradissesse. Intelecto que, muito mais abrangente e fidedigno, na Índia, fora observado por Nietzsche, como já realizado milênios antes do início do cristianismo. A vida oriental ou o modo de ser oriental, completa Luisetti, com suas técnicas ascéticas, com os brāhmaṇas e as práticas budistas, são para Nietzsche “nada mais e nada menos do que o feito mais historicamente prefigurado de uma dionisíaca forma de vida” (LUISETTI, 2011LUISETTI, Federico. Nietzsche’s Orientalist Biopolitics. Conferência internacional na Universidad Diego Portales, Santiago do Chile, 2010. Disponível em: https://www.yumpu.com/en/document/read/12063299/nietzsches-orientalist-biopolitics-federico-biopolitica . Acesso em: 10 mai. 2022.
https://www.yumpu.com/en/document/read/1...
, p. 5). Os brāhmaṇas, nesse ínterim, completa Luisetti,

Encarnam os comportamentos exigidos por uma relação positiva junto à vontade de poder: [já que] são gentis, frugais, automodestos e aristocráticos. Eles entenderam que as maiores espécies de felicidade e de lazer podem ser alcançadas através de renúncias parciais e de um desdém por riquezas e honras. (LUISETTI, 2011LUISETTI, Federico. Nietzsche’s Orientalist Biopolitics. Conferência internacional na Universidad Diego Portales, Santiago do Chile, 2010. Disponível em: https://www.yumpu.com/en/document/read/12063299/nietzsches-orientalist-biopolitics-federico-biopolitica . Acesso em: 10 mai. 2022.
https://www.yumpu.com/en/document/read/1...
, p. 5).

Quanto ao budismo, exorta Nietzsche (2007NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo & ditirambos de Dionísio. São Paulo: Companhia das Letras , 2007., §21) o seguinte pressuposto:

É um clima bastante ameno, grande mansidão e liberalidade nos costumes, nenhum militarismo; e que o movimento tenha sua origem nas classes mais elevadas e mesmo eruditas. A jovialidade, o sossego, a ausência de desejos são objetivos supremos, e o objetivo é alcançado. O budismo não é uma religião em que meramente se aspira à perfeição: o perfeito é o caso normal. (NIETZCHE, 2007NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo & ditirambos de Dionísio. São Paulo: Companhia das Letras , 2007., §21)

No cristianismo, por outro lado, buscam-se seres mais rudes e fracos, sendo o budismo, portanto “mil vezes mais realista do que o cristianismo” (NIETZCHE, 2007NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo & ditirambos de Dionísio. São Paulo: Companhia das Letras , 2007., §20), pois nos mostra, via teoria do conhecimento e com um rigoroso fenomenalismo, um combate ao sofrimento e não ao pecado, diz o filósofo ditirâmbico: “ele já deixou para trás - algo que o diferencia profundamente do cristianismo - a trapaça consigo mesmo que são os conceitos morais - ele se acha usando minha linguagem, além do bem e do mal” (NIETZCHE, 2007NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo & ditirambos de Dionísio. São Paulo: Companhia das Letras , 2007., §20, grifos do autor). Ao budismo resta, completa Nietzsche, uma refinada suscetibilidade à dor, uma hiperespiritualização, conceitos e procedimentos lógicos, uma higienização da depressão, vida ao ar livre, afetos, comida e bebida seletivas, sem, enfim, preocupações maiores consigo e com os outros. Fatores que produzem ideias que animam e tranquilizam, excluem os imperativos categóricos, as vinganças, a aversão e o ressentimento. Tudo isso culmina em uma excessiva objetividade para livrar-se do sofrimento. Comparativamente, sob o olhar nietzschiano, por fim, “o budismo não promete, mas cumpre, o cristianismo promete tudo, mas nada cumpre” (NIETZCHE, 2007NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo & ditirambos de Dionísio. São Paulo: Companhia das Letras , 2007., §20, grifos do autor).

Dessa forma, percebe-se como Nietzsche utiliza-se do seu olhar transeuropeu para contrapor-se a todos os valores vigentes e decadentes de uma Europa moderna, ressentida e intoxicada de judaína.

O Homem Moderno

Por fim, observamos uma elaboração comparativa nietzschiana entre ideias e valores: entre as tarântulas modernas da moral (NIETZSCHE, 2008aNIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras , 2008a. , III, §17) e o jardim encantado e filosófico da Índia. E, certamente, um dos objetivos da filosofia nietzschiana é realizar este diagnóstico realístico e trágico da situação, das ideias e dos valores modernos, que se apresentam confiantes no deus instrumental Logos e nos seus subprodutos, relativizando outros valores e virtudes.

A partir desse perfil do homem moderno, Nietzsche (2006NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos. São Paulo: Companhia das Letras , 2006., II, §4) proporá compreender como esse otimismo na razão instrumental, no progresso mecanicista e na relativização dos valores são otimismos de uma razão desencantada e de rebanho hedonista, bem como suas origens idiossincráticas estão na equação socrática de: razão = virtude = felicidade, que, para ele, nada mais é do que uma bizarra equação fantasiosa. E, ao mesmo tempo que denuncia os limites e as formas com as quais esse homem tecnocrata moderno trabalha, tentando fugir da visão dos perigos de sua condição e vontade de fim, Nietzsche abordará tal empreitada com um olhar bem indiano:

Antes [como na filosofia indiana] se tomava a mudança, a transformação, o vir-a-ser como prova da aparência [Māyā = ilusão], como sinal de que aí deve haver algo que nos induz ao erro. Hoje [em Kali-yuga, a era de ferro, como chamam os indianos], ao contrário, é justamente na medida em que o preconceito da razão nos obriga a estipular unidade, identidade, duração, substância, causa, materialidade, ser, vemo-nos enredados de certo modo no erro, forçados ao erro; tão seguros estamos nós, com base em rigoroso exame, que aqui está o erro. (NIETZSCHE, 2006NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos. São Paulo: Companhia das Letras , 2006., III, §5, grifo do autor).

Ele também comparará os antigos com os modernos em termos de moral individual e moral do costume. Na antiguidade se fazia parte “do domínio da moralidade: toda a educação e os cuidados da saúde, o casamento, as artes da cura, a guerra, a agricultura, a fala e o silêncio, o relacionamento de uns com os outros e com os Deuses: ela exigia que alguém observasse os preceitos sem pensar em si como indivíduo” (NIETZSCHE, 2004cNIETZSCHE, Friedrich. Aurora: reflexões sobre os preconceitos morais. São Paulo: Companhia das Letras , 2004c., §9, grifos do autor). Enquanto, na modernidade, amplia-se o caminho da moral voltada ao indivíduo, na qual o bem do indivíduo é ambicionar sua própria felicidade: “Já os moralistas que, como os seguidores das pegadas de Sócrates, encarecem no indivíduo a moral do autodomínio e da abstinência como vantagem mais sua, como a sua chave pessoal para a felicidade” (NIETZSCHE, 2004cNIETZSCHE, Friedrich. Aurora: reflexões sobre os preconceitos morais. São Paulo: Companhia das Letras , 2004c., §9, grifo do autor). Esse período, ademais, é caracterizado pela responsabilidade moral que abafa os instintos em prol de uma inteligência instrumental, significando que a razão se “contaminou” e caminha se imaginando em um progresso moral e histórico, carregando nas costas um cristianismo morto ao se criar vertentes laicas de seus dogmas, seja no hegelianismo ou no exacerbado utilitarismo. O indivíduo está, dessa forma, não apenas submetido à coerção das instituições e leis convencionais e arbitrárias, mas também de uma racionalidade moral - o que Nietzsche (2008aNIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras , 2008a. , II, §2) chama de “camisa-de-força social” e Weber de desencantamento do mundo.

Como nos adverte Giovanni Reale (2003REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da filosofia: do romantismo até nossos dias. São Paulo: Paulus, 2003. v. 3., p. 426), “Nietzsche procura mostrar como a civilização grega pré-socrática16 16 Juntamente com seus mestres, os asiáticos, como o próprio Nietzsche defende. explodiu em vigoroso sentido trágico, que é aceitação extasiada da vida, coragem diante do destino e exaltação dos valores vitais”, ou seja, “[...] o símbolo de uma humanidade em plena harmonia com a natureza”, seja por meio dos mistérios órficos, da tragédia, dos êxtases dionisíacos ou do ritmo de seus mestres que vagam como pelo Ganges. Harmonia que apenas retornará, e com maior força, quando o homem voltar a cantar e dançar sem culpa, sobrepondo-se à alegria perpassada ao prazer efêmero e manifestando-se como um membro de uma comunidade superior. A modernidade desaprendeu a caminhar e falar como os antigos, dirá Nietzsche (1999NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da tragédia: ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras , 1999., §I), mas está a ponto de, novamente dançando com Śiva ou Dionísio, voar pelos ares com gestos encantados.

Tudo isso terá uma total desaprovação dos modernos representantes da moralidade, e Nietzsche sagazmente explanará que para um virtuoso romano ou indiano da antiguidade, por exemplo, todo cristão ou pārya que, antes de tudo, cuidasse de sua particular “salvação”, parecer-se-ia um mal, tornar-se-ia um imoral, sendo convidado a afastar-se da comunidade ou casta, ou punido pelo dano que sua ação causasse, já que as reações para tais ofensas contra a comunidade ou casta se voltariam, sobretudo, à própria comunidade (NIETZSCHE, 2004NIETZSCHE, Friedrich. Aurora: reflexões sobre os preconceitos morais. São Paulo: Companhia das Letras , 2004c.c, §9).

Nietzsche observará que tal hedonismo racional, na modernidade, terá seus pressupostos e alcances em crise a partir de Kant - o pessimista, como ele assim o chamava -, o qual demonstrará que o deus cristão, a liberdade em si e a imortalidade não poderiam ser explicados racionalmente, seja pela ciência, seja pela teoria especulativa, senão pela e a partir de uma “boa vontade” (sob escolha categórica, por dever, deliberada, contra os desejos e independente dos riscos e da felicidade) dos seres finitos de seguir a moralidade (descolamento da natureza), a qual possui caráter de lei inflexível, universal e com faculdade de razão prática (orientando a ação). Kant, o intencionalista, desconfia profundamente da exuberância natural de cada um (como pensavam e defendiam as premissas cósmicas de Manu, Aristóteles e depois Nietzsche), descolando-se da natureza e das pulsões e inclinações humanas, tendo a razão como tutora do desejante. De tal modo, Nietzsche critica a fundamentação dessa moral (ou do fanatismo francês de um reino moral e exportado para os alemães do XVIII) dada por Kant, por ser indemonstrável ou “além” lógico, além da natureza e história (ambos radicalmente imorais), por castrar os espíritos mais raros ou originais, e por Kant ainda confiar na sedutora moral e tentar transformá-la em algo inatacável ou inapreensível, portanto, diferente da vontade como essência Una (Brahman, em sânscrito, como bem nos apresentou Schopenhauer) ou da vontade de poder em sua multiplicidade (como bem apresentou Nietzsche). O sentido da causalidade sempre sufoca o sentido da moralidade, e quem deseja incrementar esta última, como Kant, dirá Nietzsche (2004cNIETZSCHE, Friedrich. Aurora: reflexões sobre os preconceitos morais. São Paulo: Companhia das Letras , 2004c., §10): “deve saber evitar que os resultados se tornem controláveis”. Nessa perspectiva, prosseguirá o ditirâmbico, a tarefa kantiana de criticar a razão mediante a própria razão seria contraditória, já que tal procedimento, da razão ser ao mesmo tempo árbitra e suspeita, é ilegítimo e absurdo, e ocultaria interesses escusos ou dissimulados de uma teologia moral, de um charme empresarial da moral, cuja tarefa oculta seria a de aplainar, dirigir e preparar “majestosos edifícios morais”, os quais, insuspeitamente, opor-se-iam “ao surgimento de novos e melhores costumes” (NIETZSCHE, 2004cNIETZSCHE, Friedrich. Aurora: reflexões sobre os preconceitos morais. São Paulo: Companhia das Letras , 2004c., §19), como os indianos. Sendo Kant, portanto, um insípido e nada mais do que um filho do seu século, “o século do entusiasmo”, que quer instaurar o reino da moral e abrir novamente o caminho da fé (NIETZSCHE, 2004cNIETZSCHE, Friedrich. Aurora: reflexões sobre os preconceitos morais. São Paulo: Companhia das Letras , 2004c., §197), inatacáveis e inapreensíveis pela razão (NIETZSCHE, 2004cNIETZSCHE, Friedrich. Aurora: reflexões sobre os preconceitos morais. São Paulo: Companhia das Letras , 2004c., prólogo 3). Uma criminosa fé solta sob a moral.

Tudo isso seria uma verdadeira iniquidade do espírito para todo “verdadeiro” romano, grego ou indiano. Em outras palavras, a confiança nessa razão é um fenômeno moral, o que explicaria, diz Nietzsche (2006NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos. São Paulo: Companhia das Letras , 2006., III, §6, grifos do autor), o porquê de “dividir o mundo em um ‘verdadeiro’ e um ‘aparente’, seja à maneira do cristianismo, seja à maneira de Kant (um cristão insidioso, afinal de contas), é apenas uma sugestão da décadence - um sintoma da vida que declina”.

Aqui, o conceito de moral (a razão pura prática) não está na essência do mundo, visto que a razão não teria poderes para legislar. Essa será a tarefa dos filósofos vindouros que pensarão no “ritmo do Ganges”, para os quais a verdadeira vontade será a vontade de poder ou o instinto de crescimento, de acumulação de forças, de afetos tônicos e de essências da vida (NIETZSCHE, 2004bNIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. São Paulo: Companhia das Letras , 2004b., §211).

Surge, então, a necessidade de se ampliar e combater essa esperança racionalmente irracional dos modernos, para um novo ressurgimento da cultura trágica, para a qual o homem verdadeiramente científico só se faz presente quando há o desenvolvimento do homem artístico, ou seja, quando se eliminam as dicotomias entre Ciência e Arte (NIETZSCHE, 2004aNIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. São Paulo: Companhia das Letras , 2004a., §222), ou quando “a felicidade do homem que conhece aumenta a beleza do mundo e torna mais ensolarado tudo o que há” (NIETZSCHE, 2004cNIETZSCHE, Friedrich. Aurora: reflexões sobre os preconceitos morais. São Paulo: Companhia das Letras , 2004c., §550).

Partindo filosoficamente da constatação da relativização desses valores, Nietzsche propõe outros valores (“extramoral”, “além-da-moral”, “supramoral”, “autossupressão da moral”, enfim, e por que não, como ele bem assinalou: o próprio código de leis bramânicas de Manu) ou a tresvaloração de todos os valores até então manifestos e propostos pelos otimistas e niilistas de plantão, tarântulas da moral, medíocres. A moral, para Nietzsche, portanto, somente poderia ser justificada como fenômeno estético, válida somente para indivíduos singulares, mais uma vez, como os brāhmaṇas, os quais se colocam e visam o além-do-homem.

As tarântulas da moral, em última instância, desvalorizam a vida e iniciam um processo de valorização utilitarista, como a ciência técnica, na tentativa desesperada e prófuga de fugir do lado trágico da existência. Em suma, para a razão moderna é insuportável e incompreensível a existência, já que absurda. E para engendrar novamente um tipo nobre, é preciso, de qualquer modo, uma nova educação transeuropeia. Lembrando sempre, nos alertará Nietzsche (2004cNIETZSCHE, Friedrich. Aurora: reflexões sobre os preconceitos morais. São Paulo: Companhia das Letras , 2004c., §2), que: “é um preconceito dos eruditos achar que agora sabemos mais do que em qualquer tempo”. E, com tal afirmação, ele romperá com a maioria dos pensadores modernos, em particular com eurocêntricos alemães denegridores da Índia, tais como Hegel, Marx e Max Müller.

Considerações finais

Importa ainda lembrar que Nietzsche aproxima-se calorosamente da defesa de uma verdadeira cultura germânica, com o júbilo de um paganismo vibrante e ostentoso que diz Sim à vida, nos mínimos detalhes de seu cotidiano e de suas ideias. Para tanto, a comparação sociocultural, posteriormente seguida por Max Weber, será uma arma epistemológica crucial na empreitada tresvalorativa nietzschiana, colocando a postos esses valores europeus modernos frente aos indianos.

Nessa esteira, o pensamento indiano clássico exortará o desapego ao entusiasmo e ao abatimento diante de um suposto bem e mal: “Neste mundo transitório, quem não se deixa afetar pelo bem ou pelo mal que poderão sobrevir, sem louvá-lo ou maldizê-lo, já se encontra situado na permanente sabedoria”; ou ainda: “Tu que és o melhor dos homens, sabes que aquele que não se altera pelas circunstâncias, aquele que considera iguais o prazer e a dor, está apto à imortalidade” (MARTÍN, 2009MARTÍN, Consuelo (trad. e ed.). Bhagavad-gītā: con los comentarios Advaita de Śankara. Madrid: Editorial Trotta, 2009., II.15). Como conclusão, os indianos dirão que o mundo está em constante transformação ou ciclicidade, principalmente dos valores. Valores esses que interferem, moldam e direcionam a visão sobre o outro, e Nietzsche (2008aNIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras , 2008a. , III, §17, grifo do autor) ratificará conclusivamente o estado “além do bem e do mal” desse pensamento oriental:

O estado supremo, a própria redenção, aquela hipnotização e quietude total enfim alcançada, é para eles o mistério em si, para cuja expressão não bastam sequer símbolos mais elevados, sendo retorno e refúgio no fundo das coisas, sendo desprendimento de toda ilusão, sendo “saber”, “verdade”, “ser”, sendo libertação de todo fim, todo ato, todo desejo, sendo estar além também do bem e do mal. “Bem e mal”, diz o budista, “são ambos cadeias: de ambos o Perfeito se tornou senhor”; “o efeito e o não-efeito” diz o crente Vedānta, “não lhe causam dor; o bem e o mal sacodem ele de si como um sábio; nenhum ato pode ferir seu reino; bem e mal, a ambos ele superou”: - uma concepção de toda a Índia, portanto bramânica assim como budista.

Tudo isso se faz presente em Nietzsche, dirá Anne-Gaëlle Argy, para se inscreverem no “quadro de uma análise crítica dos valores europeus”, compreendendo “como as outras tradições religiosas entendem o divino [por exemplo] e, em torno dele, estruturam a religião”, permitindo, assim, distanciar-se dos dogmas para só então compreender o real interesse pela degenerescência na modernidade. Isso permite a Nietzsche retornar à busca dos valores sobre os quais não repousa a cultura judaico-cristã, adentrando o universo da intersubjetividade humana e de uma sociedade apropriada entre os homens (ARGY, 2010ARGY, Anne-Gaëlle. Nietzsche e o bramanismo. Revista trágica: estudos sobre Nietzsche. Rio de Janeiro, vol. 3, n. 1, p. 56-70, 2010. Disponível em: http://tragica.org/artigos/05/07-anne-trad.pdf . Acesso em: 24 jun. 2018.
http://tragica.org/artigos/05/07-anne-tr...
, p. 57).

Para tanto, assim como dirá Nietzsche acerca da Grécia não socrática, contrária aos modernos niilistas ou aos carregadores dos sacos de culpas, a percepção de si mesmo para os indianos também será exaltada, já que os Deuses - tais como Varuṇa, Indra, Śiva, Agni etc. -, dividem com os humanos os mesmos “defeitos” e “virtudes”, de tal forma que é uma característica do homem ser como é: como uma representação integral e alquímica do “alto” no “baixo”, enquanto a perfeição e o poder ficam para uma Verdade que não está desprovida de bem e mal e nem do “além de bem e mal”. O Tudo e o Nada, acima e abaixo, preto e branco, bem e mal, dentro e fora, são apenas complementos que podem permitir uma visão além ou aquém de tais conceitos, e não meramente sob um julgo ou encalço dogmático, mas arraigados no solo da consciência e da percepção, como um apriorismo das ideias.

Tanto a Nietzsche quanto aos guerreiros kṣatriyas da Índia clássica, por exemplo - e aqui averiguando verossimilhanças -, pode-se ouvir os ditirambos: “como soam bem a música ruim e os maus motivos, quando marchamos sobre um inimigo” (NIETZSCHE, 2004NIETZSCHE, Friedrich. Aurora: reflexões sobre os preconceitos morais. São Paulo: Companhia das Letras , 2004c.c, §557).

Em outras palavras, inferirá Argy (2010ARGY, Anne-Gaëlle. Nietzsche e o bramanismo. Revista trágica: estudos sobre Nietzsche. Rio de Janeiro, vol. 3, n. 1, p. 56-70, 2010. Disponível em: http://tragica.org/artigos/05/07-anne-trad.pdf . Acesso em: 24 jun. 2018.
http://tragica.org/artigos/05/07-anne-tr...
, p. 69):

A religião dos brāhmaṇas, tal como Nietzsche a compreende, e em particular pela via de seu conhecimento do Vedānta é, em muitos aspectos, ao lado do politeísmo grego, a religião que lhe traz mais elementos que tratam da possibilidade de uma concepção do divino que não entrave a expansão da vontade de potência. Ele compreende que, até um certo ponto, o que ele chama de “a mais profunda das três grandes religiões” (Genealogia da Moral, III, §17) impede que seus fiéis se refugiem na esperança debilitante de um outro mundo, para, ao contrário, encorajar a superação de si. O divino aparece, aqui, como um potente motor de expansão e de domínio de si [...]. Nietzsche pensa que a redenção, tal como ela é compreendida no mundo indiano, “tem verdadeiramente libertado [...], ou seja, [...] a via que leva a esse objetivo passa pela possibilidade de uma ação desvinculada da crença em um fundamento transcendente dos valores morais”. Assim, para Nietzsche, os brāhmaṇas souberam, ao mesmo tempo, elaborar uma estrutura religiosa que deixa aos que não são capazes de suportar a ideia de sua própria liberdade a possibilidade de idolatria, e souberam, também, colocar todas as condições para [...] afirmar sua própria potência desafiando os Deuses.

Desta forma, assim como na Grécia não socrática, os indianos também manifestaram e tornaram-se necessários em um contraideal nietzschiano, frente à tendência, nivelamento ou uniformização dogmática (instrumental e cristã) que caracteriza os valores da sociedade europeia moderna. Contraideal esse que nos revela um homem capaz de “afirmar sua própria potência desafiando os Deuses”.

O homem, o brāhmaṇa ou aquele que pretende ir além de si mesmo (sendo o grego e o indiano modelos não contingentes), portanto, não é um fim em si mesmo, mas um meio para se chegar ao além-do-homem ou ao além-da-humanidade. Sendo ele verdadeiramente “o sentido da terra”, em uma condição transitória, circunstancial e necessária para algo além de si ou em retorno, ou seja, “o que há de grande, no homem, é ser ponte, e não meta: o que pode amar-se, no homem, é ser uma transição e um ocaso [ou crepúsculo]” (NIETZSCHE, 2008bNIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008b. , p. 38).

Dirá a Bhagavad-gītā, também indo além do bem e do mal e da moral de rebanho, que: “uma vez adquirida a sabedoria [...], não cairás outra vez na confusão” (MARTÍN, 2009MARTÍN, Consuelo (trad. e ed.). Bhagavad-gītā: con los comentarios Advaita de Śankara. Madrid: Editorial Trotta, 2009., IV.35), já que, com isso, se realiza o fato de que “os que compreendem olham, com a mesma equanimidade, um sábio e um humilde brāhmaṇa, a uma vaca, a um elefante, e incluso a um cachorro e um comedor de cachorro” (MARTÍN, 2009MARTÍN, Consuelo (trad. e ed.). Bhagavad-gītā: con los comentarios Advaita de Śankara. Madrid: Editorial Trotta, 2009., V.18). E com tal visão em devaneio, tal ser “será capaz de cruzar o oceano de misérias” (DUARTE, 1999DUARTE, Rogério (trad. e ed.). Bhagavad-gītā: canção do divino mestre. São Paulo: Companhia das Letras, 1999., IV.36), ou seja, o oceano das visões humanas: enquanto humano, sendo humano e para os humanos.

Dirá o filósofo indiano Śaṅkara que apenas e unicamente nessa embarcação do conhecimento “podemos usar essa verdade para flutuar no mal. Aqui, inclusive, a obediência à virtude se considera um mal para aquele que aspira a libertação [destas ilusões]” (MARTÍN, 2009MARTÍN, Consuelo (trad. e ed.). Bhagavad-gītā: con los comentarios Advaita de Śankara. Madrid: Editorial Trotta, 2009., IV.36). E Martín aclarará tal comentário inquietante:

Ao ajustar-se às regras estabelecidas para ser virtuoso, se está obedecendo consignas que se encontram, todavia, dentro da ilusão daqueles que não hão descoberto a unidade do Ser. A verdade não dualista cria uma nova maneira de viver em liberdade. [Uma vez que] as regras de conduta religiosas e sociais se hão instituído baseando-se na ideia separatista dos seres. Por isso, a obediência à virtude [em Śaṅkara] é considerada um mal, partindo-se desta verdade (MARTÍN, 2009MARTÍN, Consuelo (trad. e ed.). Bhagavad-gītā: con los comentarios Advaita de Śankara. Madrid: Editorial Trotta, 2009., nota 22, tradução nossa).

Esse instinto que se expulsa da realidade moderna é o mesmo que Nietzsche abraça com esmero e utiliza comparativamente (contrariamente) ao que ele denomina de feiras e trapos de “filosofastros da realidade” (NIETZSCHE, 2004bNIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. São Paulo: Companhia das Letras , 2004b., §10). “Realidade” em uma época “de gostos profundamente plebeus” (NIETZSCHE, 2004bNIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. São Paulo: Companhia das Letras , 2004b., §14), gostos de rudes e laboriosos construtores grosseiros de máquinas, com prazeres de “subalmas servis” em subvontades (NIETZSCHE, 2004bNIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. São Paulo: Companhia das Letras , 2004b., §19). Para o Dionysiokolax alemão, toda essa realidade moderna não é párea (mas, sendo pārya) para o “singular ar de família das filosofias indianas, gregas e alemãs” (NIETZSCHE, 2004bNIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. São Paulo: Companhia das Letras , 2004b., §20), in moribus et artibus. Por fim, os “olhos asiáticos e superasiáticos” que caminham reflexivamente para além do bem e do mal, não se encontram “sob o encanto e a ilusão da moral” (NIETZSCHE, 2004bNIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. São Paulo: Companhia das Letras , 2004b., §56), de uma moral utilitária. Encanto esse, por outro lado, dominante e contaminante nas inversões de valores da modernidade, iniciadas com a antiga “insurreição dos escravos na moral” (NIETZSCHE, 2004bNIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. São Paulo: Companhia das Letras , 2004b., §195). Noutros termos comparativos:

O conhecimento, a ciência - na medida em que existia -, a elevação acima dos demais homens pela disciplina e educação lógica do pensamento, eram exigidos como sinal de santidade [por exemplo] entre os budistas, enquanto os mesmos atributos, no mundo cristão, são rejeitados e denegridos como sinal de impiedade (NIETZSCHE, 2004aNIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. São Paulo: Companhia das Letras , 2004a., §144).

Tudo isso é o que Antoine Panaïoti (2017PANAÏOTI, Antoine. Nietzsche e a filosofia budista. Tradução de Marcello Borges. São Paulo: Cultrix, 2017. , p. 315-339) chama de ideal, ética e “perfeccionismo budo-nietzschiano”, que indica algo inusitado: “o pensamento nietzschiano e a filosofia budista [e hinduísta] movem-se juntos em uma direção específica. A ética que propõem compartilha a mesma estrutura fundamental e o mesmo conteúdo fundamental” (PANAÏOTI, 2017PANAÏOTI, Antoine. Nietzsche e a filosofia budista. Tradução de Marcello Borges. São Paulo: Cultrix, 2017. , p. 323).

Eis a vontade do espantado alemão ao ritmo do Ganges, com passos budistas e o martelo de Manu em mãos.

Referências

  • ARGY, Anne-Gaëlle. Nietzsche e o bramanismo. Revista trágica: estudos sobre Nietzsche. Rio de Janeiro, vol. 3, n. 1, p. 56-70, 2010. Disponível em: http://tragica.org/artigos/05/07-anne-trad.pdf Acesso em: 24 jun. 2018.
    » http://tragica.org/artigos/05/07-anne-trad.pdf
  • BARROS, Fernando de Moraes. Um Oriente ao oriente do Oriente: a investigação de Johann Figl. Cadernos Nietzsche, São Paulo, n. 15, p. 69-81, 2003.
  • BISHOP, Paul. Nietzsche and Antiquity: his reaction and response to the classical tradition. New York: Camden House, 2004.
  • BROBJER, Thomas. Nietzsche’s philosophical context: an intellectual biography. Illinois: University of Illinois Press, 2008.
  • BUSWELL, Robert E. Nirvana. Encyclopedia of Buddhism New York: MacMillan Reference Books, 2003.
  • CLARKE, John James. Oriental enlightenment: the encounter between Asian and Western thought. London: Routledge, 1997.
  • COLEBROOKE, Henry Thomas. Essays on the religion and philosophy of the Hindus London: Williams and Norgate, 1858.
  • DUARTE, Rogério (trad. e ed.). Bhagavad-gītā: canção do divino mestre. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
  • DUMOULIN, Heinrich. Buddhism and Nineteenth-Century German Philosophy. Journal of the History of Ideas, vol. 42, no. 3, Jul/Sep. 1981, p. 457-470. Disponível em: http://www.jstor.org/pss/2709187 Acesso em: 12 nov. 2010.
    » http://www.jstor.org/pss/2709187
  • ELMAN, Benjamin. Nietzsche and Buddhism. JSTOR: Journal of the History of Ideas, 2011. Disponível em: http://www.jstor.org/pss/2709223 Acesso em: 19 abr. 2011.
    » http://www.jstor.org/pss/2709223
  • FIGL, Johann. Os primeiros contatos de Nietzsche com o pensamento asiático. Cadernos Nietzsche, São Paulo, n. 15, p. 83-103, 2003. Disponível em: http://www.gen.fflch.usp.br/sites/gen.fflch.usp.br/files/u41/CN015.83-103.pdf Acesso em: 10 jan. 2018.
    » http://www.gen.fflch.usp.br/sites/gen.fflch.usp.br/files/u41/CN015.83-103.pdf
  • HALBFASS, Wilhelm. Karma y renacimiento: dos conceptos fundamentales en la filosofía hindú. Barcelona: Grupo Editorial CEAC, 2001.
  • HALÉVY, Daniel. Solidão e morte de Nietzsche 2006. Disponível em: http://www.consciencia.org/nietzschehalevy7.shtml Acesso em: 15 out. 2018.
    » http://www.consciencia.org/nietzschehalevy7.shtml
  • KREMER-MARIETTI, Angèle. La pénssée de Nietzsche adolescent. Études germaniques, Paris, n. 24, p. 223-233, 1969.
  • LINCOURT, Jared. Revaluating Nietzsche and Buddhism: active and passive nihilism. Disponível em: http://organizations.oneonta.edu/philosc/papers09/Lincourt.pdf Acesso em: 19 abr. 2011.
    » http://organizations.oneonta.edu/philosc/papers09/Lincourt.pdf
  • LUISETTI, Federico. Nietzsche’s Orientalist Biopolitics. Conferência internacional na Universidad Diego Portales, Santiago do Chile, 2010. Disponível em: https://www.yumpu.com/en/document/read/12063299/nietzsches-orientalist-biopolitics-federico-biopolitica Acesso em: 10 mai. 2022.
    » https://www.yumpu.com/en/document/read/12063299/nietzsches-orientalist-biopolitics-federico-biopolitica
  • MARTÍN, Consuelo (trad. e ed.). Bhagavad-gītā: con los comentarios Advaita de Śankara. Madrid: Editorial Trotta, 2009.
  • MISTRY, Freny. Nietzsche and Buddhism: prolegomenon to a comparative study. Berlin: Gruyter, 1981.
  • NIETZSCHE, Friedrich. Despojos de uma tragédia Lisboa: Educação-Nacional, 1944.
  • NIETZSCHE, Friedrich. Obras incompletas São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Coleção Os Pensadores).
  • NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da tragédia: ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras , 1999.
  • NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. São Paulo: Companhia das Letras , 2004a.
  • NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. São Paulo: Companhia das Letras , 2004b.
  • NIETZSCHE, Friedrich. Aurora: reflexões sobre os preconceitos morais. São Paulo: Companhia das Letras , 2004c.
  • NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos São Paulo: Companhia das Letras , 2006.
  • NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo & ditirambos de Dionísio São Paulo: Companhia das Letras , 2007.
  • NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras , 2008a.
  • NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008b.
  • NIETZSCHE, Friedrich. Ecce homo: como alguém se torna o que é. São Paulo: Companhia das Letras , 2008c.
  • PANAÏOTI, Antoine. Nietzsche e a filosofia budista Tradução de Marcello Borges. São Paulo: Cultrix, 2017.
  • PARKES, Graham. Nietzsche and East Asian thought: influences, impacts, and resonances. In: BERND, Magnus; HIGGINS, Kathlen. The Cambridge companion to Nietzsche Cambridge: Cambridge University Press, 1996. p. 356-384. DOI: https://doi.org/10.1017/ccol0521365864.012
    » https://doi.org/10.1017/ccol0521365864.012
  • POLIAKOV, Léon. The Aryan myth: a history of racist and nationalist ideas in Europe. New York: Barnes & Noble Books, 1996.
  • REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da filosofia: do romantismo até nossos dias. São Paulo: Paulus, 2003. v. 3.
  • RENOU, Louis. Sanskrit et culture: l’apport de l’Indie a la civilization humaine. Paris: Payot, 1950.
  • ROSS, Nancy Wilson. Buddhism: a way of life and thought. New York: Random House, 1981.
  • SADDHATISSA, Hammalawa. The Sutta-Nipāta Oxon: Routledge, 1994.
  • SAFRANSKI, Rüdiger. Nietzsche: biografia de uma tragédia. São Paulo: Geração Editorial, 2001.
  • SPRUNG, Mervyn. Nietzsche’s trans-European eye. In: PARKES, Graham (org.). Nietzsche and Asian thought Chicago and London: The University of Chicago Press, 1996.
  • WEBER, Max. Economía y Sociedad: esbozo de sociología comprensiva. México: Fondo de Cultura Económica, 1992

Notas

  • 1
    Para Comte, a história da Filosofia se cinde, como a história em geral, em três fases evolutivas: a teológica, a metafísica e a positivista. Fases que Nietzsche, a priori, caracteriza como pensamento típico de um francês desinformado, moderno e eurocêntrico.
  • 2
    Assim se refere Wilhelm Halbfass (2001HALBFASS, Wilhelm. Karma y renacimiento: dos conceptos fundamentales en la filosofía hindú. Barcelona: Grupo Editorial CEAC, 2001., p. 131, tradução nossa): “A tradição da Índia há produzido uma literatura sistemática e filosófica de grande riqueza, que se penetra - em sua maior parte - na forma de comentários, subcomentários e compêndios independentes”.
  • 3
    Para maiores detalhes sobre os demais textos, verificar Kremer-Marietti (1969KREMER-MARIETTI, Angèle. La pénssée de Nietzsche adolescent. Études germaniques, Paris, n. 24, p. 223-233, 1969., p. 223-233).
  • 4
    Escola pertencente a um antigo mosteiro católico, mas que, na época, era uma das principais escolas-internatos protestantes, localizada próxima à Naumburg e às margens do rio Saale, Estado da Saxônia-Anhalt, na qual também estudaram o historiador Ranke e o filósofo Fichte. Aqui, Nietzsche estudou de 1858 a 1864.
  • 5
    Aos 17 anos (1782), sob a influência política do pai (parlamentar inglês), Colebrooke viajou para a Índia, onde permaneceu quase ininterruptamente até 1814, alcançando sua magistratura. Orientado por Charles Wilkins, motivou-se a estudar o sânscrito e a literatura e filosofia indianas com contumácia, surgindo logo apoiadores, como Graves Haughton em The Exposition of the Vedanta-Philosophy by H. T. Colebrooke (1835), Dietrich Tiedemann em Geist der Spekulativen Philosophie (6 volumes, 1791-1797) e Heinrich Ritter em Geschichte der Jonischen Philosophie (1821). Sobre as seis clássicas escolas filosóficas da Índia, Colebrooke dirá, por exemplo, que o Mīmāṁsā é um sistema que ensina “a arte de raciocinar com uma expressiva visão de auxílio à interpretação dos Vedas”. Por outro lado, o Vedānta, ele diz, extrai dos Vedas uma apurada psicologia, enquanto o Nyāya e o Vaiśeṣika fornecem uma disposição filosófica com regras rigorosas de raciocínio, acrescentando que o Vaiśeṣika apresenta uma teoria do atomismo. O sistema Sāṅkhya, por sua vez, dirá ele, propõe um conhecimento libertador, através de uma discriminação ponderada e metódica sobre o mundo e o espírito. Por fim, o Yoga será para o inglês um meio de contemplação para a liberdade individual sem precedentes (COLEBROOKE, 1858COLEBROOKE, Henry Thomas. Essays on the religion and philosophy of the Hindus. London: Williams and Norgate, 1858., p. 143-148).
  • 6
    Gminosofista, de acordo com os gregos antigos. Representa a cabeça da sociedade indiana, aquela que pensa, fala e orienta. É o mestre encarregado de transmitir o conhecimento para as demais castas ou varṇas. Ocupa-se no desenvolvimento intelectual, educacional e mágico da sociedade.
  • 7
    Outcaste indiano que Nietzsche adapta e utiliza como termo a designar uma resignação fatalista, ressentimento ou mundo-gueto dos antiarianos: sacerdotes, Jesus ou judeus em geral se enquadram nessa categoria.
  • 8
    Hoje, podemos até falar em oito ou nove mil anos atrás, época da composição do Ṛg Veda.
  • 9
    Um dos principais expoentes filosóficos da literatura clássica indiana, aqui, citado por Nietzsche em sua versão traduzida pelo francês Anquetil-Duperron. O Oupnek’hat de Anquetil foi traduzido para a língua alemã por Friedrich Majer em 1808, (CLARKE, 1997CLARKE, John James. Oriental enlightenment: the encounter between Asian and Western thought. London: Routledge, 1997., p. 68), o mesmo que marcara profundamente os pensadores alemães Schopenhauer (a partir de 1813) e Paul Deussen. Este último, um intelectual e amigo de Nietzsche, o qual traduzira inúmeros Upaniṣads e tivera uma brilhante carreira indológica. Além destes, Anquetil marca os primeiros ensaios de Colebrooke (nos Vedas, oitavo volume do Asiatic Researches, em 1805) e de Schlegel (Sobre a Língua e a Sabedoria dos Hindus, de 1808). Ele foi relembrado na discussão elaborada do Oupnek’hat pelo indólogo alemão Albrecht Weber (1825-1901), na década de 1850; um evento que serviu para destacar o importante papel desempenhado por Anquetil na nascente e no desenvolvimento dos estudos indológicos europeus. Dirá Louis Renou que as publicações dos Asiatic Researches ou pesquisas inglesas, publicadas sobre a Índia em Kolkata, “são imediatamente traduzidas para o francês, assim como os textos em sânscrito publicados por Wilkins e Jones. Os alemães Klaproth, Lassen, os irmãos Schlegel (...) e Bopp, que acabaria por estabelecer a gramática comparativa, enquanto manifestava-se sanscritista - todos vieram a Paris” (RENOU, 1950RENOU, Louis. Sanskrit et culture: l’apport de l’Indie a la civilization humaine. Paris: Payot, 1950., p. 97-98, tradução nossa).
  • 10
    Que são, na verdade, de origem védica, muito anteriores ao budismo.
  • 11
    Uma das mais antigas literaturas budistas em forma de Sutta ou “coleção de discursos”: o quinto livro do Khuddaka Nikāya, com 71 Suttas curtos e divididos em cinco capítulos, os quais também são um dos principais cânones do budismo theravada (SADDHATISSA, 1994SADDHATISSA, Hammalawa. The Sutta-Nipāta. Oxon: Routledge, 1994., p. VIII).
  • 12
    Em sânscrito: eko care khaḍgaviṣāṇakalpo, curiosamente retirada de um refrão do texto budista Khaggavisāṇa-sutta, do Dhammapada, e fazendo referência à vida solitária do ganda ou rinoceronte típico da Índia: sem predadores, com pele grossa, herbívoro e o atual quarto maior animal terrestre; características que o transformou em símbolo indiano: da mística e do saber que se autossustenta e se autorrealiza em plena autonomia conquistada.
  • 13
    “Ariano”, aqui, no sentido sânscrito do termo. O termo ārya está presente em todas as literaturas védicas e bramânicas antigas, e etimologicamente indica sabedoria, bom comportamento etc., sem nenhuma conotação racial. Será com o eurocêntrico Max Müller, a serviço da então imperialista Royal Society inglesa que, em 1853, deturpa o termo ārya e o adequa à língua inglesa e alemã, difundo-o à comunidade europeia como aplicação de um grupo racial; surgindo, então, a teoria da raça ārya ou ariana. Fato que demonstra uma invenção intencional contra a conotação etimológica indiana original, tornando-a racista e pejorativa após o advento do nazismo.
  • 14
    Na realidade, castas ou varṇas são de melhor aplicação conceitual, já que “classe” carrega em seu bojo hierarquias econômicas e não deveres sociorrituais, como é o caso indiano.
  • 15
    “Judaína”, termo criado pelo orientalista alemão Paul Bötticher (1827-1891). “Judaína” diz respeito à junção de judaísmo com o sufixo “ína” (que denota, neste caso, alcaloide entorpecente), ou seja, um entorpecente judaico ou um judaísmo viciante, intoxicante, ilusório e criador de hipnofrenoses e cegueiras artificiais.
  • 16
    Juntamente com seus mestres, os asiáticos, como o próprio Nietzsche defende.

Editado por

Editores:

Karina Anhezini e André Figueiredo Rodrigues

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Set 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    22 Jun 2019
  • Aceito
    08 Out 2020
Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho Faculdade de Ciências e Letras, UNESP, Campus de Assis, 19 806-900 - Assis - São Paulo - Brasil, Tel: (55 18) 3302-5861, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, UNESP, Campus de Franca, 14409-160 - Franca - São Paulo - Brasil, Tel: (55 16) 3706-8700 - Assis/Franca - SP - Brazil
E-mail: revistahistoria@unesp.br