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Entre irmãos: sociabilidade, mobilidade e identidade maçônica em São Paulo (1850-1888)

Between brothers: sociability, mobility and masonic identity in São Paulo (1850-1888)

RESUMO

O presente artigo analisa a mudança do perfil dos frequentadores de dois dos templos maçônicos mais antigos da cidade de São Paulo, o Piratininga e o América, fundados respectivamente em 1850 e 1868. As lojas maçônicas reuniram importantes lideranças políticas e sociais da cidade, personagens como os abolicionistas Luiz Gama, Joaquim Nabuco e Antonio Bento, entre outros. Ao final do século XIX, a organização havia se transformado num dos principais espaços de sociabilidade, onde o debate político e social tornou-se frequente. A maçonaria como espaço de interlocução, tributária de prestígio e status, no início do século XIX, esteve marcadamente circunscrita a participação de grupos mais abastados da sociedade, no entanto, uma série de transformações sociais acenaria para o ingresso de grupos menos privilegiados na organização, como “homens de cor”, nascidos livres e libertos, imigrantes e trabalhadores nacionais. O ingresso de grupos menos privilegiados suscitaria conflitos, disputas e debates no interior dos templos. Aspecto que colocaria em xeque a afirmação historiográfica de que a organização maçônica compunha um grupo formado por bem-nascidos.

Palavras-chave:
sociabilidade; maçonaria; iniciação; São Paulo; identidade; perfil maçônico

ABSTRACT

This article analyzes the change in the Masonic profile of the visitors to two of the oldest Masonic temples in the city of São Paulo, Piratininga and América, founded respectively in 1850 and 1868. The Masonic lodges brought together important political and social leaders of the city, characters like the abolitionists Luiz Gama, Joaquim Nabuco and Antonio Bento. By the end of the 19th century, the organization had become one of the main spaces for sociability, where political and social debate became frequent. Freemasonry as a space for interlocution, a tributary of prestige and status, at the beginning of the 19th century, the participation of more affluent groups in society was markedly circumscribed, however, a series of social transformations would signal the entry of less privileged groups into the organization, such as “men of color”, born free and freed, immigrants and national workers. The entry of less privileged groups would raise conflicts, disputes and debates within the Masonic temples. Characteristics that call into question the historiographical claim that the Masonic organization comprised a homogeneous group.

Keywords:
sociability; freemasonry; São Paulo; identity; masonic profile

A produção historiográfica maçônica vigente tem abordado a maçonaria como grupo unitário homogêneo do ponto de vista da composição social de seus integrantes. O maçom Nicola Aslan, em seu estudo Pequenas biografias de grandes maçons brasileiros (ASLAN, 1973ASLAN, Nicola. Pequenas biografias de grandes maçons brasileiros. A Trolha, Londrina, 1973.), reuniu apenas trajetórias de maçons que ocuparam espaços de poder ou exerceram algum tipo de influência política ou social. Essas narrativas ajudaram a construir a imagem da organização maçônica como lugar comum dos bem-nascidos. Outro pesquisador que seguiu na mesma direção foi o pesquisador maçom José Castellani. Em seu livro, Os maçons que fizeram a história do Brasil (CASTELLANI, 1973CASTELLANI, José. Os maçons que fizeram a história no Brasil. São Paulo: Editora A Gazeta Maçônica, 1973.), a lista de nomes mantém o padrão de escolhas, propondo a elaboração de pequenas biografias compostas por agentes políticos e sociais.

Fora dos templos maçônicos, a historiadora Eliane Lucia Colussi, em seu estudo A maçonaria gaúcha no século XIX (COLUSSI, 2000COLUSSI, Eliane Lucia. A maçonaria gaúcha no século XIX. 2. ed. Passo Fundo: Universidade de Passo Fundo, 2000.), ao investigar o perfil maçônico dos iniciados nas lojas gaúchas, levanta questões relevantes sobre a diversidade política, social e religiosa no interior da organização. Segundo Colussi “a homogeneidade da instituição de seus integrantes foram muito mais frutos da própria difusão da literatura maçônica e antimaçônica do que de estudos acadêmicos específicos” (COLUSSI, 2000. p. 269). A autora conclui em sua investigação que havia diferenças no campo político e ideológico entre os membros da maçonaria, mas não no campo social.

Portanto, pode-se afirmar que Colussi avança em seus apontamentos ao afirmar que a maçonaria era sim uma organização heterogênea, mas mantém em sua interpretação a ideia de que a maçonaria é um espaço elitizado. De acordo com a autora a rigidez das regras maçônicas teria colaborado para manter afastados da organização indivíduos desprovidos de renda, garantindo a concentração de homens de proa na organização.

A iniciação à maçonaria demandava muitos recursos do iniciado, assim como a evolução de grau maçônico e outras taxas consideradas obrigatórias. Contudo, vale ressaltar que, de acordo com as atas maçônicas, há registros de que nem todos os maçons pagavam as taxas exigidas. No presente artigo foram analisadas as atas das duas lojas maçônicas Piratininga e América.

As atas maçônicas das lojas Piratininga e América utilizadas para a elaboração do presente estudo permitem conhecer em detalhe o perfil dos maçons frequentadores das lojas Piratininga e América. Nas atas há registros referentes ao perfil dos iniciados e informações sobre iniciação com pedidos de isenção de taxas, o que demonstrava que o ingresso de Irmãos de origens remediadas foi em alguma medida facilitado.

A cidade de São Paulo, na segunda metade do século XIX, experimentava um processo de grandes transformações sociais e econômicas que impactaram a urbe, como a chegada de imigrantes, o aumento da população formada por homens livres e libertos, além, evidentemente, das mudanças de ordem econômica gerada pela expansão da economia cafeeira.

Essas mudanças socioeconômicas foram acompanhadas pelo crescimento da organização maçônica na segunda metade do século XIX. O aumento do número de lojas maçônicas na província de São Paulo tornou-se expressiva (CASTELLANI, 1994CASTELLANI, José. História de Grande Oriente de São Paulo. Brasília: Grande Oriente do Brasil, 1994. ). O poder maçônico, então centralizado no Rio de Janeiro, difundiu-se para todos os cantos do país, e com maior número de lojas, a demanda por iniciados aumentou, consequentemente, as lojas maçônicas flexibilizaram suas regras e normas a fim de incorporar novos membros.

Marcadamente elitizada na primeira metade do século XIX, a organização maçônica na segunda metade do século XIX permitiu o ingresso de indivíduos provenientes de camadas sociais menos abastadas. No final da década de 1870 e início de 1880, as lojas maçônicas de todos os cantos do país tornaram menos rígidas as regras para a iniciação, sobretudo no que diz respeito ao pagamento de taxas. Muitos maçons que ingressaram nesse período não possuíam os mesmos recursos que os membros iniciados no início da década de 1850. As disputas por legitimidade entre as obediências refletiriam no aumento das iniciações.

Nota-se que entre as décadas de 1870 e 1880, a maçonaria apresentou a face mais popular de sua história. E a falta de recursos não seria de modo algum um impedimento para que homens sem cabedais fossem iniciados.

Nas lojas maçônicas paulistanas Piratininga e América é possível identificar a mudança do perfil do quadro de membros a partir das transformações socioeconômicas da cidade, que comparada ao levantamento do perfil maçônico realizado por Colussi no Rio Grande do Sul, nota-se em São Paulo um cenário maçônico bem mais diversificado.

O intuito deste artigo não é apenas reconstituir o perfil dos homens iniciados na maçonaria, mas demonstrar a dinâmica desse espaço, que na segunda metade do século XIX consagrou-se como um dos principais espaços de sociabilidade para distintos grupos sociais. O presente texto buscou analisar dentro dessa ótica aspectos que definiram a identidade maçônica, bem como as semelhanças e as diferenças que as lojas maçônicas guardavam entre si, que refletiam, diretamente, no cotidiano das lojas, na ação de seus agentes e nos projetos desenvolvidos dentro de cada uma delas. Pertencentes a obediências diferentes, as Lojas Piratininga e América trataram o tema da abolição de formas distintas: a Piratininga envolveu os setores mais conservadores e escravistas na sua loja, enquanto a América contou com a participação de integrantes mais progressistas, parte deles com envolvimento direto com o movimento abolicionista.

Para traçar o perfil das lojas foram examinados os livros de atas e outros registros avulsos encontrados no acervo dos templos maçônicos das Lojas Piratininga e América. Dessa documentação, levantou-se o total de 671 nomes de membros, referentes ao período de 1850 a 1888, e 268 nomes de membros da loja América para o intervalo entre 1868 e 1870 e de 1874 a 1888. Nessa massa documental foram descobertas informações referentes à data de iniciação dos maçons, idade, religião1 1 O quesito religião aparece no primeiro período de modo sistemático, uma parcela significativa de iniciados declarou-se católico. Como as informações sobre a religião dos ingressantes aparece apenas com significativa representatividade na Loja Piratininga optou-se por não realizar uma análise comparativa sobre esse quesito na pesquisa.

estado conjugal, profissão, nacionalidade, naturalidade e orientação política. Esses dados eram registrados em atas pelas lojas quando a iniciação do Irmão acontecia. O maçom, depois de ter sua candidatura aceita no processo ritualístico de iniciação, submetia-se ao testemunho, momento em que fornecia seus dados pessoais à loja.

Vale destacar que nos testemunhos a cor da pele do iniciado não era registrada, por essa razão, esse estudo não incluiu a cor como quesito no perfil elaborado referentes as lojas Piratininga e América. Embora não seja possível fazer o levantamento sobre a identidade racial dos iniciados, é possível afirmar que a organização contou com a presença de homens negros. Personagens de destaque na sociedade que eram negros, como Luiz Gama e José Ferreira de Menezes, foram membros da loja América. Ambos ocuparam posições de destaque na organização. O primeiro atuou como venerável por vários anos consecutivos. O segundo ocupou a função de orador e foi representante da América na cidade do Rio de Janeiro. Outros homens negros se tornaram personagens destacados dentro da maçonaria, como, por exemplo, Joaquim Saldanha Marinho, que fundou a ordem do Grande Oriente dos Beneditinos e Francisco Gê Acayaba de Montezuma responsável por introduzir no Brasil o rito Escocês Antigo e Aceito do Grau 33º, o rito mais difundido no país.

Segundo a Constituição de Anderson, documento que normatiza o comportamento maçônico, a organização não podia discriminar pela “cor”. Segundo Margaret Jacob, o iluminismo maçônico propunha que a “igualdade natural” fosse substituída pelo mérito individual e direitos humanos (JACOB, 2005JACOB, Margaret C. The Origins of Freemasonry: Facts & fictions. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2005., p. 154), assim sendo, seria proibido em espaço maçônico haver distinção por raça, cor, religião ou origem social entre os Irmãos, todos deveriam ser vistos como iguais e quando iniciados a maçonaria, os Irmãos deveriam deixar para trás as diferenças impostas pela sociedade e seguir adiante considerando tão somente os talentos e virtudes dos Irmãos. Provavelmente, muitos outros iniciados foram homens de “cor”. Na ordem criada por Joaquim Saldanha Marinho até mesmo libertos estavam autorizados a iniciação.

As atas maçônicas não traziam informações completas sobre todos os iniciados, alguns desses registros traziam apenas o nome e a ocupação do candidato, enquanto outros mencionavam o nome e a nacionalidade ou demais categorias. Supõe-se que o volume de atividades, o tempo de duração do ritual e até mesmo o número de candidatos a serem iniciados tenha prejudicado o registro dos dados então fornecidos pelos novos membros. Entretanto, mesmo diante desse grande volume documental, em que algumas lacunas nem sempre podiam ser preenchidas, foi possível obter dados suficientes para a elaboração dos perfis das Lojas Piratininga e América.

O arco temporal delimitado da análise (1850 a 1888) demonstrou ter havido uma sensível alteração no quadro de iniciados a partir de 1870; por essa razão, optou-se como melhor forma de avaliar os dados das Lojas Piratininga e América, separar o período de 1850 a 1888 em dois intervalos de distintas temporalidades.

Crescimento maçônico e a diversificação dos membros

O primeiro período analisado da loja Piratininga se estende de 1850 a 1873 e o segundo, de 1874 a 1888. Para a loja América, há diferenças nesses intervalos, uma vez que a documentação está incompleta. No arquivo dessa loja não foram encontrados, por exemplo, os primeiros livros de ata para o intervalo de 1868 a 1870. Sem prejuízo à pesquisa, o primeiro período referente à loja América foi preenchido com as informações extraídas do registro produzido por José Maria de Azevedo Marques, em 18702 2 José Maria de Azevedo Marques foi proprietário do jornal Correio Paulistano e produziu o documento que oferece informações sobre a iniciação e filiação de maçons que haviam ingressado na Loja América no intervalo de 1868 a 1870. Supõe-se que o material tenha sido distribuído entre as lojas maçônicas da cidade, haja vista que o conteúdo foi encontrado no arquivo da Loja Piratininga. Provavelmente se tratava de registro de divulgação da loja. , localizado no arquivo da loja Piratininga.

José Maria de Azevedo Marques era membro da loja América. O apontamento em questão informa o nome, estado conjugal, nacionalidade, data de iniciação, filiação e idade dos maçons da loja, no período de 1868 a 1870. Para analisar o perfil dos iniciados na loja América, no intervalo de tempo de 1874 a 1888, recorreu-se aos próprios livros de atas da loja América, que traziam também essas informações.

A ocupação profissional teve papel fundamental na compreensão da dinâmica do perfil maçônico das lojas analisadas nos dois períodos, considerando que a ocupação pode ser entendida como “um indicador de classe social” (CARVALHO, 2012CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política Imperial. 7. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. ), embora José Murilo de Carvalho tenha avaliado em estudo a grande dificuldade de realizar uma pesquisa de classificação profissional no século XIX, haja vista que, via de regra, um mesmo indivíduo desempenhava mais de uma atividade econômica; negociante advogado, médico jornalista, assim como advogado que era proprietário rural. Tratava-se do “fenômeno de ocupação múltipla” (CARVALHO, 1995CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política Imperial. 7. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. ).

No rastro profissional dos iniciados das lojas maçônicas Piratininga e América, identificam-se não apenas um perfil dinâmico, como também as especificidades de cada obediência maçônica e o modo de operar de cada uma delas no trato com o tema da abolição da escravidão.

Vinculada ao Grande Oriente do Vale do Lavradio, a loja Piratininga manteve-se refratária a qualquer iniciativa de publicizar suas atividades. Há poucos registros na Piratininga que revelam seu comprometimento com o movimento abolicionista, embora fosse comum o alforriamento de escravizados durante as festividades maçônicas. Prevaleceu na loja Piratininga a presença de maçons escravocratas, posição ideológica que prevaleceu notadamente e foi registrada nas atas maçônicas. Por diversas vezes, a discussão levantada sobre a iniciativa de barrar a entrada de maçons escravistas na organização foi vedada. Em contrapartida, a loja América, vinculada à ordem dos Beneditinos, considerada mais liberal, envolveu maçons preocupados com as questões sociais e políticas correntes fora do círculo maçônico.

A loja América tornava pública todas as ações realizadas, ajudou na articulação política que resultou na criação do Partido Republicano Paulista (RIBEIRO, 2011RIBEIRO, Luaê Carregari Carneiro. Uma América em São Paulo: a Maçonaria e o Partido Republicano. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011., p. 63), criou uma comissão de manumissão de escravizados e parte de seus membros colaboraram individualmente para o alforriamento de diversos cativos.

A filantropia maçônica era parte integrante de tradição maçônica. Todas as lojas possuíam um fundo de solidariedade, denominado tronco beneficente. O auxílio não se estendia apenas aos membros da loja. Nas atas da América, por exemplo, há registros de pedidos de ajuda, solicitado por membros de lojas de outras cidades e províncias. Nessa pesquisa, notou-se que cerca de 25 lojas enviaram pranchas 3 3 Na terminologia maçônica o termo “prancha” é o nome utilizado para designar as correspondências que eram trocadas entre as lojas co-irmãs, bem como, com o Grande Oriente. Ver: CAMINO, Rizzardo de. Dicionário maçônico. São Paulo: Madras, 2010. p. 396. à América, com o intuito de solicitar algum tipo de auxílio, que iam desde assistência às viúvas e filhos de maçons, até Irmãos doentes, em situação financeira frágil, que solicitavam proteção, bem como indicação a cargos públicos ou mesmo para alforriamento de escravizados. A loja América exerceu forte influência sobre outras lojas que também estavam vinculadas ao Grande Oriente dos Beneditinos. O mesmo não se reproduziu na loja Piratininga que influenciou cerca de dez loja.

Tabela 1:
Ocupação dos maçons da Loja Piratininga (1850-1873) e da Loja América (1868-1870)

Na Tabela 1 foi arrolada a ocupação dos maçons iniciados na Loja Piratininga entre 1850 e 1873. A distribuição dos 24 ofícios, identificados nesse primeiro intervalo de tempo, revelou a presença majoritária de estudantes, seguida pela participação de negociantes.

O perfil maçônico dessa loja no primeiro período (1850-1873) refletia a própria estrutura socioeconômica da cidade de São Paulo. Conforme Ernani Bruno, a dinâmica social e econômica do local, entre 1827 e 1872, girava em torno da Faculdade de Direito, fundada em 1827 (BRUNO, 1954BRUNO, Ernani Silva. História e tradições da cidade de São Paulo: Burgo de estudantes (1828-1872). Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1954., p. 825). Por essa razão, o número de estudantes era significativo.

A Loja América, fundada no final da década de 1860, por sua vez, esteve menos sujeita à pressão da iniciação de estudantes. No primeiro período, a loja contabilizou o total de 20 ocupações, prevalecendo a iniciação de negociantes, seguida pelos estudantes, advogados e funcionário públicos. Comparativamente, as profissões dos integrantes das duas lojas nesse primeiro período foram equivalentes, embora variasse o peso do grupo de estudantes e negociantes, como se vê na Tabela 1.

Os estudantes formavam um grupo bastante representativo, mas que estava sempre de passagem pelas lojas maçônicas da cidade de São Paulo. Muitos alunos iniciados durante o curso de Direito partiam para suas cidades de origem após concluírem o bacharelado. Joaquim Nabuco e Rui Barbosa são exemplos de maçons iniciados quando frequentavam a faculdade e que acabaram abandonando a organização maçônica.

Joaquim Nabuco, nascido em Recife, mudou-se para a cidade de São Paulo em 1866 para cursar Direito, permanecendo no local até 1870. Nesse intervalo de tempo, o abolicionista foi iniciado na Loja América, em 1º de abril de 1869, afastou-se da maçonaria em decorrência de seu retorno a Pernambuco, no ano seguinte4 4 Joaquim Nabuco retomou sua posição como maçom em 1873, após aceitar o convite de Saldanha Marinho para discursar em defesa do anticlericalismo na obediência dos Beneditinos. . Em sua terra natal, Nabuco concluiu o bacharelado na Faculdade de Direito de Recife e “adormeceu em loja”5 5 “Adormecer em loja” na terminologia maçônica significa que o maçom deixou de frequentar as sessões da loja, mas não se desligou oficialmente dela. . Caso semelhante ocorreu com o baiano Rui Barbosa. O estudante cursou os dois primeiros anos (1866-1867) em Recife, mudando-se depois para São Paulo para concluir o curso jurídico. Em 1º de julho de 1869, tornou-se maçom da Loja América, mas, no ano seguinte, após a formatura, desligou-se da organização, regressando à Bahia. Barbosa, contudo, não se reintegrou à maçonaria.

Antonio Bento esteve entre as exceções dos estudantes. Iniciado quando cursava o último ano da Faculdade de Direito, em 1868, na Loja Piratininga. O maçom, embora tivesse saído da cidade à trabalho, manteve-se vinculado ao quadro da loja como membro ativo, ausentando-se sucessivamente das sessões. Antonio Bento retornou à capital da província e às atividades maçônicas efetivamente na Loja Piratininga, depois de exonerar-se do cargo de juiz em Atibaia. Antonio Bento permaneceu ligado a essa loja até o fim de seus dias.

A presença da Faculdade de Direito na cidade de São Paulo, de acordo com Richard Morse, foi um dos primeiros elementos de dinamização da urbe. A instituição de ensino impulsionou a criação de espaços de sociabilidade como cafés, tabernas, hotéis, restaurantes e teatros. Em consequência disso, a capital da província ia deixando no passado suas feições rurais e religiosas (MOURA, 2005MOURA, Denise Soares de. Sociedade movediça: economia, cultura e relações sociais em São Paulo (1808-1850). São Paulo: Editora Unesp, 2005., p. 116). As tradicionais procissões católicas realizadas na cidade, nas primeiras décadas do século XIX, foram perdendo força a partir de 1850.

O total de habitantes em São Paulo até 1850 girava em torno de 20 mil a 25 mil pessoas. Desse percentual, apenas 1.109 sabiam ler e escrever, como informa Richard Morse (MORSE, 1943MORSE, Richard. Formação histórica de São Paulo: da comunidade à metrópole. São Paulo, 1943., p. 104). Nesse sentido, a criação da Faculdade de Direito foi essencial porque estimulou a concepção de outros estabelecimentos de ensino, como, por exemplo, o curso anexo, que oferecia aulas de geografia, história, línguas modernas, matemática, geometria e filosofia aos estudantes que pretendiam ingressar no curso jurídico, assim como a escola de “Engenharia de Estradas”, criada em 1835, e o Seminário Episcopal, fundado em 1862 e que reuniu 229 estudantes (BRUNO, 1954BRUNO, Ernani Silva. História e tradições da cidade de São Paulo: Burgo de estudantes (1828-1872). Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1954., p. 831).

Em 1846, uma lei foi criada com o intuito de promover o avanço da educação, embora tenha ganhado corpo depois da reforma educacional de 1874, que tornou obrigatório o ensino para meninos de 7 a 14 anos e meninas de 7 a 11 anos (MORSE, 1943MORSE, Richard. Formação histórica de São Paulo: da comunidade à metrópole. São Paulo, 1943., p. 215). Embora a cidade tenha sido impactada pela presença dos estudantes, esse contingente, em geral, estava de passagem pela urbe (BRUNO, 1954BRUNO, Ernani Silva. História e tradições da cidade de São Paulo: Burgo de estudantes (1828-1872). Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1954., p.809).

Segundo Richard Morse, dos 1.767 bacharéis formados entre 1831 e 1875, apenas 26% eram da província de São Paulo. Os demais seguiram esta divisão: 33% da cidade e da província do Rio de Janeiro, 19% de Minas Gerais, 6% do Rio Grande do Sul, 6% da Bahia e 8,5% de províncias diversificadas (MORSE, 1943MORSE, Richard. Formação histórica de São Paulo: da comunidade à metrópole. São Paulo, 1943., p.131). Em razão disso, a iniciação e o abandono tornaram-se constante nas lojas Piratininga e América no primeiro período (1850-1873), embora essa última tivesse menor número de estudantes em seu quadro.

A presença do professor Joaquim Ignácio Ramalho6 6 Joaquim Ignácio Ramalho recebeu o título de Barão de Água Branca. Inicialmente, Ramalho não aceitou o título, porque não concordava com o nome, teria o maçom afirmado que somente aceitaria a honraria caso o pudesse adotar o nome de Ramalho, sobrenome de sua esposa. O maçom havia sido acolhido pela família da esposa, após seu pai ter se mudado da cidade de São Paulo. O venerável recebeu em substituição o nome de Barão de Ramalho, como desejava. , maçom venerável da loja Piratininga, na Faculdade de Direito, atraiu estudantes para a organização, principalmente no primeiro período (1850-1873). Além de Ramalho, José Bonifácio de Andrada e Silva também influenciou os alunos da instituição a ingressarem na Piratininga.

José Bonifácio, “O moço”, era sobrinho neto de José Bonifácio, este último fundador do Grande Oriente do Brasil, em 1822. O maçom nasceu em Bordeaux, na França, no período em que seus pais estavam no exílio. O abolicionista retornou ao Brasil e formou-se na Faculdade de Direito de Pernambuco (1855-1858). Lecionou na instituição, entre os anos de 1859 e 1860 e, em 1861, foi transferido para a Faculdade de Direito de São Paulo.

Enquanto José Ignácio Ramalho era lembrado como figura rígida no trato com os alunos, José Bonifácio era figura maleável e muito querida pelos estudantes. Prova disso foi a recepção que recebeu em seu retorno à cidade em 1868. “O moço” foi recepcionado com grande banquete pelos estudantes da Faculdade (Joaquim Nabuco, Rui Barbosa, Castro Alves, Américo de Campos etc.) por ter-se manifestado contra a dissolução do Gabinete Liberal, promovido pelo Visconde de Itaboraí (SANTOS, 1942, p. 57-59SANTOS, José Maria dos. Os republicanos paulistas e a abolição. São Paulo: Livraria Martins, 1942.).

Bonifácio transitava com facilidade entre os diferentes círculos sociais. “Moço” manteve boas relações com Luiz Gama (AZEVEDO, 1999AZEVEDO, Elciene. Orfeu de carapinha: trajetória de Luiz Gama na Imperial cidade de São Paulo. Campinas, São Paulo: Editora da Unicamp, 1999., p. 84), a ponto deste, no ano de 1861, incorporar na segunda edição de seu livro Primeiras trovas burlescas de Getulino, poemas escritos por Bonifácio (GAMA, 2000). A relação entre eles só ficou estremecida em 1867, quando Gama e seus aliados se posicionaram contra o Partido Liberal, que, na época, tinha como uma das principais lideranças “O moço” (SANTOS, 1942, p. 57-59). No entanto, a proximidade entre ambos foi reestabelecida tempos depois.

José Bonifácio possuía uma agenda semelhante à de Luiz Gama. Ambos eram abolicionistas, embora discordassem quanto ao modelo de regime político que o país deveria adotar. Gama era republicano e Bonifácio, monarquista. Essas diferenças, contudo, não impediram que Luiz Gama e outros membros da Loja América convivessem com o maçom da Loja Piratininga.

As atas da Loja Piratininga revelam que José Bonifácio não era membro tão ativo como Joaquim Ignácio Ramalho. O primeiro passou grande parte de sua vida lecionando na Faculdade de Direito e acompanhando de perto a trajetória de figuras importantes como Rui Barbosa, Antonio Bento de Sousa Castro, Joaquim Nabuco, Américo Brasiliense, Américo de Campos, José Ferreira de Menezes e José Vieira Couto de Magalhães. O segundo deixou de lecionar na instituição somente em 1883, quando assumiu o cargo de diretor da Faculdade, permanecendo como liderança maçônica entre os anos de 1850 até 1889 (CENEVIVA, 2002CENEVIVA, Walter. Barão de Ramalho: uma vida para o bem comum. São Paulo: Editora Saraiva, 2002., p. 11).

Ramalho era figura influente na sociedade paulistana. Nascido na capital da província de São Paulo, o maçom construiu uma carreira sólida como docente da Faculdade de Direito. Formou-se na terceira turma da instituição (1830-1835) e nomeado para a cadeira de lente substituto do curso de Filosofia Moral, quando ainda cursava o último ano do curso jurídico (CENEVIVA, 2002CENEVIVA, Walter. Barão de Ramalho: uma vida para o bem comum. São Paulo: Editora Saraiva, 2002., p. 11).

Joaquim Ignácio Ramalho ocupou diversos cargos ao longo da segunda metade do século XIX, trajetória que o ajudou a se tornar um personagem influente na capital paulista. Seu prestígio e autoridade foram determinantes para atrair e arregimentar novos membros para a Loja Piratininga, sobretudo no primeiro período de 1850 a 1873.

Muitos estudantes acreditavam que ingressar na maçonaria poderia ser uma boa oportunidade para a construção de laços de proteção e uma possibilidade de alavancar suas carreiras após a formatura; afinal, a organização tinha à testa uma figura capaz de arregimentar uma rede importante de trocas de favores, conforme cita de Richard Graham:

O presidente de São Paulo relatou, em 1861, que um juiz de direito caiu sob o jugo dos professores da Faculdade de Direito, na esperança de sucesso acadêmico de dois filhos, um dos quais se acha matriculado no 1º ano e outro no 3º, e de um genro no 5º. Acrescentou que seis catedráticos se apresentaram como candidatos nas últimas eleições gerais, valendo-se principalmente do poder discricionário da aprovação e reprovação de seus alunos. (GRAHAN, 1997, p. 122).

A rede de influência construída em torno de Joaquim Ignácio Ramalho estabelecia uma ponte direta entre a Faculdade de Direito e a Loja Piratininga. Ramalho foi um personagem importante dentro da loja por ter assegurado a iniciação de muitos estudantes, principalmente no primeiro período.

Embora a Faculdade de Direito tivesse dado o primeiro impulso no processo de urbanização da capital da província, o gatilho para o seu desenvolvimento econômico ocorreu devido à economia cafeeira. A riqueza acumulada com o produto permitiu que grandes investidores destinassem recursos para a construção das primeiras estradas de ferro da Província: a Companhia Paulista, extensão do eixo Santos-Jundiaí, aberta na direção norte-noroeste, de Jundiaí a Campinas, em 1872; a Limeira e Rio Claro, em 1876; a de Descalvado, em 1881; a Companhia Ituana, em 1873, a Piracicaba, em 1879; a Companhia Sorocabana, em 1875; e a Companhia Mogiana, aberta na direção norte de Campinas e de Ribeirão Preto, em 1883 (MORSE, 1943MORSE, Richard. Formação histórica de São Paulo: da comunidade à metrópole. São Paulo, 1943., p. 215), facilitando, assim, o transporte do café do interior da província paulista ao porto de Santos.

A mudança urbanística da cidade de São Paulo foi consequência direta dessas transformações. De acordo com Richard Morse, nesse contexto, a cidade de São Paulo passou por um rápido e amplo processo de urbanização, responsável pela modificação da paisagem da cidade, como a instalação de iluminação pública e o estabelecimento de bondes elétricos (MORSE, 1943MORSE, Richard. Formação histórica de São Paulo: da comunidade à metrópole. São Paulo, 1943., p. 215).

A presença de escravos negros na província de São Paulo, até o final do século XVIII, era pouco substancial. Com a introdução da economia da cana-de-açúcar, depois do café, houve um crescimento significativo dessa população. De acordo com Suely Queiroz, a mão de obra negra, introduzida em São Paulo ao longo das primeiras décadas do século XVIII, não tinha como destino a economia paulista, mas sim a mineira. Nesse período, os escravizados que chegavam pelos portos de São Paulo, em sua maioria, seguiam para ser empregados na região mineradora, embora uma pequena parcela acabasse permanecendo na província (QUEIROZ, 1977QUEIROZ, Suely Robles Reis de. Escravidão Negra em São Paulo: um estudo das tensões provocadas pelo escravismo no século XIX. Rio de Janeiro: J. Olympio ; Brasília: INL, 1977. , p. 17-18). Conforme Queiroz, o fim da mineração, no século XVIII, colaborou para que São Paulo retomasse a economia agrícola de subsistência, permitindo também a introdução da cana e, posteriormente, a do café (QUEIROZ, 1977QUEIROZ, Suely Robles Reis de. Escravidão Negra em São Paulo: um estudo das tensões provocadas pelo escravismo no século XIX. Rio de Janeiro: J. Olympio ; Brasília: INL, 1977. , p. 17-18).

O fortalecimento da agricultura no final do século XVIII na província de São Paulo justificou, finalmente, o grande ingresso de escravizados na economia. A cultura da cana demandou o aumento da população escrava que seria empregada na economia da cana-de- açúcar na província, produto que se adaptou rapidamente à região, baseada na plantation (mão de obra escrava negra e propensão à monocultura e latifúndio).

Entre o final do século XVIII e meados do XIX, o açúcar reinou na economia paulista e só foi ultrapassado pelo café na década de 1860 (QUEIROZ, 1977QUEIROZ, Suely Robles Reis de. Escravidão Negra em São Paulo: um estudo das tensões provocadas pelo escravismo no século XIX. Rio de Janeiro: J. Olympio ; Brasília: INL, 1977. , p. 17-18). Este havia invadido, primeiramente, a economia do Rio de Janeiro; depois, com a expansão das fazendas, seguiu em direção à província de São Paulo, ocupando, inicialmente, a região do Vale do Paraíba, e depois, a do Oeste Paulista.

Com a economia do café trabalhando intensamente, a demanda por mão de obra escrava cresceu vertiginosamente, atraindo, após a proibição do tráfico em 1850, cativos das províncias do norte do país. A concentração massiva de escravos e o aumento das fazendas de café colocaram a província de São Paulo ao lado das principais exportadoras do produto (Rio de Janeiro e Minas Gerais). Não demorou muito até que a capital sentisse os efeitos da mudança econômica, urbanística e social provenientes do café.

As modificações urbanísticas ocorreram de diversas maneiras, por meio do calçamento, da iluminação pública, da expansão do setor de serviços, da criação de novas profissões, como as de maquinista e telegrafista (ocupações diretamente relacionadas à estrada de ferro).

O mercado de trabalho paulistano era precário se comparado ao de outras capitais, como Salvador e Rio de Janeiro, sem diversificação profissional tão ampla (MOURA, 2005MOURA, Denise Soares de. Sociedade movediça: economia, cultura e relações sociais em São Paulo (1808-1850). São Paulo: Editora Unesp, 2005., p. 75). A identificação de novos ofícios, nas atas maçônicas a partir de 1874, refletia o crescimento e o surgimento de novas ocupações no local, muitas delas associadas à construção das estradas de ferro.

A expansão econômica da cidade acompanhou o crescimento maçônico na década de 1870. O aumento do número de lojas significou a ampliação da demanda por novos membros e levou a organização a aceitar candidatos provenientes das camadas sociais menos abastadas.

Enquanto no primeiro período as atas da loja Piratininga registravam 24 ocupações, no segundo (1874-1888), o número de ofícios elevou-se para 33 dos quais 9 eram novos (ver Tabelas 1 e 2) revelando, assim o aumento expressivo de registros de novas profissões.

Entre as novas ocupações, estavam as de tintureiro, lavrador, pintor, dourador, carpinteiro, empreiteiro de obra, maquinista, cobrador, marceneiro e empregado da companhia de ferro. Ocupações braçais normalmente associadas a homens livres pobres, libertos e, até mesmo, aos escravizados. As novas profissões identificadas nas atas revelavam uma sensível mudança no perfil maçônico, se comparada com o primeiro período, ainda que essas novas ocupações não superassem numericamente as profissões tradicionais urbanas (advogado, negociante, estudantes etc.).

Outro aspecto a ser considerado foi a diminuição da iniciação de estudantes no quadro maçônico da loja Piratininga entre o primeiro e o segundo período. O número de ingressantes que se declararam estudantes no primeiro intervalo de tempo alcançou a marca de 121, caindo significativamente no segundo período para apenas seis registros em ata, enquanto o número de negociantes praticamente não sofreu alteração.

No primeiro período, a loja Piratininga iniciou 32 negociantes e, no segundo 31. Apenas sete iniciados no primeiro período se declararam artistas, ao passo que, no segundo, o número alcançou a marca de 22 membros. A quantidade de Irmãos que, em seu testemunho se declarou empregado na estrada de ferro também variou significativamente: no primeiro período, foram quatro iniciados e, no segundo, 14, como se observa na Tabelas 1 e 2.

Tabela 2:
Ocupação dos maçons da Loja Piratininga (1874-1888) e da Loja América (1874-1888)

Na Loja América também foi perceptível a diversificação das ocupações dos iniciados. Enquanto no primeiro período (1868-1870) foram registradas 18 categorias profissionais, no segundo (1873-1888) o número aumentou para 27 ocupações, com nove ofícios novos. As tradicionais profissões liberais, como negociante, artista, professor, empregado público e advogado, continuaram sendo representadas no quadro da loja, no entanto, no segundo período, outras ocupações, normalmente associadas às camadas sociais menos abastadas, começaram a emergir no círculo maçônico, como se vê na Tabela 2.

Embora se tenha observado a ocorrência de uma ampla diversificação das ocupações desempenhadas pelos membros iniciados no segundo período, é importante destacar os aspectos específicos de cada obediência, o que gerou diferenças no quadro das lojas. Entre os elementos de distinção entre as ordens maçônicas estava o fato de a obediência do Grande Oriente Unido, do vale dos Beneditinos, chefiada por Saldanha Marinho, determinar a todas as lojas vinculadas a ela que permitissem a iniciação de libertos.

O afrouxamento dos critérios de iniciação instituído por Saldanha Marinho fez com que sua ordem se distinguisse da obediência do Grande Oriente do Brasil, do vale do Lavradio, não apenas por conceber uma agenda politizada e socialmente intervencionista, mas também por reunir um perfil socioeconômico distinto e aparentemente mais democrático7 7 Pertencente à obediência dos Beneditinos, não foi encontrado nenhuma pista na documentação da Loja América consultada, que deixasse evidenciado a iniciação de um liberto na loja, embora não signifique que isso não tenha ocorrido de fato. Afinal, como destacado, anteriormente, as atas não refletiram integralmente todos os passos dos irmãos nas sessões. Muitas informações escaparam da pena do secretário. .

As profissões braçais, como carpinteiro, pintor, escultor, dourador e lavrador, não eram ocupações que possuíam o mesmo prestígio social que as profissões de advogado, médico e jornalista8 8 Outras profissões como as de sapateiro, tintureiro, pedreiro, calafate, armador, músico, cocheiro eram desempenhadas também por escravizados, libertos e homens livres pobres. (ver Tabela 2). José Maria Soares, iniciado na loja América, em 15 de agosto de 1875, representava a nova tendência do perfil de ingressantes na maçonaria depois da década de 1870. Em seu testemunho, Soares declarou-se carpinteiro.9 9 Ata da Loja Piratininga. 15 de agosto de 1875. Arquivo Privado da Loja Maçônica Piratininga. Na loja Piratininga, em 1879, ingressava no templo João Bernardino de Oliveira, também carpinteiro, que declarou ainda idade (35 anos), estado conjugal (casado) e nacionalidade (brasileiro). A loja, no segundo período, em 10 de setembro de 1876, registrou também a iniciação do lavrador Francisco Antonio Nogueira.10 10 Ata da Loja Piratininga. 10 de setembro de 1876. Arquivo Privado da Loja Maçônica Piratininga.

A profissão de lavrador, conforme Hebe Mattos, na segunda metade do século XIX, era desempenhada, principalmente, por libertos, homens livres pobres brancos ou descendentes de escravos e, em menor incidência, por escravizados. Ser lavrador, segundo a autora, não significava necessariamente que o indivíduo era proprietário de um lote de terra, ele provavelmente trabalhava em propriedade alheia, arrendando um pedaço de terra, e, nela, produzindo e dividindo apenas os lucros da venda do produto com o dono do local (MATTOS, 2013MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista. Campinas, São Paulo: Editora da Unicamp, 2013., p. 50-51).

Embora muitas profissões não possuíssem marcadores sociais muito bem definidos, provavelmente não seriam encontradas pessoas com maiores recursos empregadas em atividades manuais. De acordo com Maria Cristina Wissenbach,

(...) o mercado de trabalho da cidade da época era, de fato, pouco seletivo. Abrigava em espaços similares trabalhadores escravos e livres, lançando mão igualmente de formas intermediárias que consubstanciavam mão-de-obra barata para as pequenas manufaturas, estabelecimentos comerciais, obras etc.; escravos fugidos, africanos livres utilizados por particulares ou instituições públicas, órfãos tutelados, libertos ingênuos (...) Ao que parece, na perspectiva dos empregadores não havia predileção nítida na escolha de trabalhadores livres e escravos. (WISSENBACH, 1998WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Sonhos africanos, vivências ladinas: escravos e forros em São Paulo (1850-1880). São Paulo: Hucitec, 1998., p. 228).

O trabalho braçal era preterido e visto como atividade desprezível. Conforme Mattos, “ser livre numa ordem escravista seria basicamente “não trabalhar” ou, mais especificamente, viver de renda” (MATTOS, 2013MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista. Campinas, São Paulo: Editora da Unicamp, 2013., p. 44). Certamente os trabalhadores braçais (carpinteiro, alfaiate, lavrador, tintureiro e pintor) não possuíam vínculos diretos com grandes fazendeiros, como era comum haver entre esses últimos e os profissionais liberais (advogados, médicos, jornalistas e funcionários públicos). Richard Graham afirma que “as pessoas do século XIX não faziam tanta distinção entre determinadas ocupações ou fontes de renda - advogado ou médico, comerciante ou fazendeiro quando o faziam, era em relação à principal divisão entre ricos e pobres” (GRAHAM, 1997GRAHAM, Richard. Clientelismo e política no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1997. , p. 53).

Os profissionais liberais, de modo geral, representavam um braço do campo na cidade; muitos deles eram também proprietários de terra e defendiam interesses agrários locais, como a manutenção do sistema escravista. Era comum que os fazendeiros enviassem seus herdeiros para as Faculdades de Direito na expectativa de que construíssem uma rede clientelar capaz de catapultá-los a colocações importantes, especialmente em funções nos órgãos públicos.

O candidato ao cargo de juiz municipal, por exemplo, era escolhido pelo ministro da Justiça e o interessado em ocupar a vaga, por sua vez, tinha obrigatoriamente que ser formado em Direito (GRAHAM, 1997GRAHAM, Richard. Clientelismo e política no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1997. , p. 53). A função de chefe de polícia também era muito desejada por homens abastados, pois, afinal, ocupar esses cargos lhes afiançava poder e legitimidade sobre a comunidade local em que viviam.

Em suma, a maioria dos estudantes almejava no futuro ocupar os cargos de promotor, juiz, delegado e advogado para defenderem os interesses e a manutenção do poder de seus familiares e amigos. Dessas relações, surgiam os promotores e juízes que acobertavam os abusos praticados pelos senhores contra seus escravos, fazendo, muitas vezes, vista grossa em casos em que os excessos de castigos culminavam com a morte dos cativos. Conforme Richard Graham, “embora, a prática do clientelismo encontrasse terreno fértil para sua atuação no sistema fundiário, essas mesmas relações se generalizavam e se projetaram no espaço urbano” (GRAHAM, 1997GRAHAM, Richard. Clientelismo e política no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1997. , p. 40).

Nesse sentido, não havia uma fronteira delineada que distinguisse claramente o grupo formado pelos profissionais liberais que tinham interesses no campo e aqueles que não tinham. O fato é que o predomínio de profissionais liberais não se reproduziu com a mesma força no segundo período, como se verifica na Tabela 2.

A configuração maçônica ganharia novos contornos e nuances com a iniciação de indivíduos destacados das camadas menos prestigiadas da sociedade. As lojas, evidentemente, continuaram a iniciar profissionais liberais, mas a presença de outras ocupações sinalizava a diversificação do espaço ao mesmo tempo em que simbolizava a perda de status da organização maçônica que, desde a sua introdução no país, havia se caracterizado como espaço de sociabilidade masculina, dedicado a um pequeno grupo de pessoas influentes da sociedade.

Nesse contexto em que a sociedade paulistana experimentava amplas transformações socioeconômicas, é válido destacar a presença cada vez mais expressiva da população imigrante, em geral pessoas também sem posses.11 11 As levas de imigrantes vindos ao Brasil aumentaram progressivamente na segunda metade do século XIX, e a partir de 1886, o crescimento da presença de imigrantes ampliou-se ainda mais, porque houve o incentivo integral do governo da província de São Paulo, que passou a financiar integralmente as passagens dos imigrantes. Ou seja, os imigrantes que chegavam, em sua maioria, não possuíam recursos para investir em negócios próprios. Segundo Azis Simão “juntando-se os imigrantes que permaneciam nas cidades aos que vinham do campo, crescia expressamente a população estrangeira urbana, particularmente em São Paulo. Estimava-se que aí, em 1885, havia mais de 40 mil habitantes, dos quais uns 20% eram alienígenas” (SIMÃO, 1966SIMÃO, Azis. Sindicato e Estado: suas relações na formação do proletariado de São Paulo. São Paulo: Editora Dominus, 1966., p. 29). O ingresso de imigrantes na província de São Paulo gerou grande impacto sobre a economia e a vida social da capital, pois muitos imigrantes que deveriam permanecer no campo para substituir os escravizados, em razão da incompatibilidade com as condições de trabalho e de vida nas fazendas de café, acabavam deslocando-se para as cidades (AZEVEDO, 1999AZEVEDO, Elciene. Orfeu de carapinha: trajetória de Luiz Gama na Imperial cidade de São Paulo. Campinas, São Paulo: Editora da Unicamp, 1999., p. 107). Embora muitos parlamentares criticassem o comportamento desses imigrantes, tidos como “perturbadores da ordem pública”, continuaram acreditando que a mão de obra europeia era a melhor saída para o progresso da nação.

A Lei de Terras, de 1850, sancionada 14 dias após a proibição do tráfico internacional de escravizados, tinha o propósito de impedir o acesso de lotes de terras devolutas aos imigrantes e libertos. De acordo com Horacio Gutiérrez e Maria Aparecida Lopes, na região sudeste, onde prevaleceu a economia cafeeira e onde a demanda por mão de obra era grande, pretendia-se assegurar a permanência dos imigrantes, substituindo os escravizados nas fazendas de café (LOPES et al., 2008, p. 321-350LOPES, Maria Aparecida; GUTIÉRREZ, Horacio; FLORENTINO, Manolo. Trabalho compulsório e trabalho livre na história do Brasil. São Paulo: Editora da UNESP, 2008).

Ao longo de todo o período analisado, observa-se a presença de imigrantes nas lojas maçônicas. Contudo, no primeiro período a presença de estrangeiros foi pouco representativa na loja Piratininga. Entre os candidatos que declararam o país de origem, apenas 12, ou seja, 5,2 %, eram estrangeiros: seis eram ingleses; quatro portugueses e dois uruguaios, como se verifica na Tabela 3.

Tabela 3:
Nacionalidade dos maçons da Loja Piratininga (1850-1873) e da Loja América (1868-1870)

Comparativamente, no primeiro período, a loja América reuniu grupo mais diversificado com candidatos de oito nacionalidades, ao passo que a loja Piratininga registrou apenas a iniciação de três nacionalidades. (ver Tabelas 3 e 4).

Tabela 4:
Nacionalidade dos maçons da Loja Piratininga (1874-1888) e Loja América (1874-1888)

No segundo período, no entanto, a loja Piratininga iniciou um número expressivo de estrangeiros: 71 maçons declararam-se imigrantes, o que equivalia a 14% do total, com representantes de oito nacionalidades distintas, como Brasil, Itália, Portugal, Alemanha, França, Hungria, Espanha e Estados Unidos. Do total de 305 iniciados, 33 eram italianos; 17 portugueses; seis alemães; seis franceses; três espanhóis; três húngaros e três norte-americanos (ver Tabela 4).

Na loja América, no primeiro período (1868-1870), o número de estrangeiros alcançou a marca de 18 iniciações, ou seja, 15 %, dos quais seis eram franceses, cinco italianos, cinco portugueses, dois alemães, dois espanhóis, um africano12 12 O maçom Vicente Rodrigues, iniciado na Loja Piratininga, em seu depoimento, declarou ser português, mas na ocasião de sua filiação na Loja América, em seu segundo testemunho, aparece como de nacionalidade africana. É possível conjecturar que talvez o maçom responsável por colher os dados do novo iniciado tenha se confundido. , um belga e um suíço-francês. No segundo período, no entanto, o número foi bem menor: apenas 15 candidatos, isto é, 10,5%, dos iniciados se declararam estrangeiros em seus testemunhos: dez portugueses; quatro italianos; e um francês (ver Tabelas 3 e 4). Supõe-se que a loja tenha priorizado a iniciação de nacionais.

A justificativa para a presença de imigrantes nas lojas maçônicas, contudo, não poderia ser explicada, evidentemente, apenas por sua expressiva presença na cidade. O fato é que muitos imigrantes que chegavam ao Brasil já tinham tido algum tipo de experiência com a maçonaria, ou conheciam seus fundamentos e preceitos elementares: a ajuda mútua, a filantropia, os sinais, os ritos, as hierarquias e as tradições. Para além desses princípios, a organização construiu um sentido próprio de irmandade, que implicava a ação e a interação entre os irmãos espalhados em diferentes continentes e países, por meio de troca de informações através de lojas e obediências.

O caráter cosmopolita e fraternal da organização despertou o interesse de muitos imigrantes que se mudaram para países, cuja cultura e língua eram distintas. Pertencer à maçonaria poderia facilitar a inserção social e a construção de laços de solidariedade no novo país. Como avaliou Azevedo, o cosmopolitismo era uma das principais características da maçonaria “com suas conexões organizativas e migrações culturais entre cidades, países e continentes” e a “utopia da fraternidade como impulso à organização entrelaçada de lojas maçônicas em níveis nacional e internacional” (AZEVEDO, 1996-1997, p. 178-189AZEVEDO, Célia Maria Marinho. Maçonaria: história e historiografia. Revista USP, São Paulo, n. 32, p.178-189, 1996/1997.).

Muitos imigrantes que desembarcaram no Brasil tinham ouvido falar, conheciam ou já tinham sido iniciados em organizações secretas, como a carbonária e a maçonaria. Na Europa, essas organizações eram muito conhecidas. O maçom italiano Ignácio Emílio Achiles Betholdi é um exemplo ilustrativo de imigrante que conhecia a natureza das sociedades secretas de perto. Betholdi era membro da carbonária, sociedade secreta revolucionária de ideias liberais, de origem franco-maçônica, que atuou em diversos países, como Itália, França e Espanha, na primeira metade do século XIX.

Formado na Universidade Imperial e Real de Paiva, em Bolonha, o médico Ignácio Betholdi mudou-se com a família para o Brasil em 1831. Desembarcou em Santa Catarina, seguiu mais tarde para o Rio de Janeiro. Mudou-se para a província de São Paulo, passando por Campinas, até finalmente instalar-se na cidade de São Paulo, em 1864, onde fixou residência até seu falecimento, em 20 de março de 1886.13 13 http://www.academiamedicinasaopaulo.org.br/biografia. Disponível em 2 de setembro de 2015.

No tempo em que viveu em Campinas (1853-1859), Betholdi colaborou com a folha Aurora Campineira14 14 O jornal Aurora Campineira, de propriedade dos irmãos tipógrafos João Teodoro e Francisco Teodoro de Siqueira e Silva, fundado em 4 de abril de 1858, circulava semanalmente, aos domingos. Ver: FARIA, Alberto. Imprensa em Campinas. Revista do Centro de Sciencias, Letras e Artes de Campinas, Campinas, v. 15, n. 2, p. 4-41, 1916. e frequentou a loja maçônica Independência. Em cada cidade em que residia, manteve-se vinculado a uma loja maçônica. Quando se mudou para São Paulo, Betholdi filiou-se a loja América. Na cidade, o maçom se tornou membro de outras organizações. Ao lado de alguns compatriotas, fundou a Sociedade Italiana de Beneficência, em 20 de janeiro de 1878. Compor o quadro de irmandades ou organizações de ajuda mútua era uma prática comum adotada por aqueles que pretendiam construir uma rede de apoio.

Marco Morel, atento à importância de se compreender a sociabilidade maçônica, afirma que essas organizações travaram um amplo debate com o mundo externo, dialogando, ao mesmo tempo, com outras instituições, propondo a seus membros participação simultânea em diversos espaços. Para o autor, essas associações não tinham um único fim, e, concomitantemente, apresentavam uma “dimensão econômica, filantrópica, pedagógica, corporativa, política e cultural” (MOREL, 2001, p. 11). Essas ações levaram um número significativo de imigrantes recém-chegados a almejar o ingresso nessas associações, de um modo geral, e na maçonaria, em particular.

O português Albino Soares Bairão, iniciado na loja América, no segundo período (1873-1888), seguiu os mesmos passos do médico italiano Ignácio Emílio Achiles Betholdi. Após estabelecer-se na cidade, Bairão tratou de construir sua rede clientelar, a fim de facilitar sua inserção na sociedade paulistana. Sócio de uma chapelaria, atuou em ações de liberdade, como advogado provisionado, ao lado de Luiz Gama.

Bairão tornou-se membro da maçonaria e de outras organizações, como a Sociedade Clube Flor dos Alpes, a Caixa de Socorro Dona Maria Pia e a Sociedade Emancipacionista Caixa Luiz Gama. A presença de estrangeiros na cidade influenciou a ampliação do número de membros nas lojas maçônicas de São Paulo. De acordo com o estudo de Florestan Fernandes, o número de imigrantes na cidade alcançou a marca expressiva de 37.481, em 1884 (FERNANDES, 2007, p. 133FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos. 2. ed. São Paulo: Editora Global, 2007.).

A expansão maçônica acompanhou o crescimento econômico de São Paulo, como salientou Luaê Calegari Ribeiro. Conforme Barata, até 1890, São Paulo foi “o núcleo maçônico mais desenvolvido, possuindo cerca de 35% das lojas maçônicas em funcionamento de todo o país” (BARATA, 1999, p.128BARATA, Alexandre Mansur. Luzes e sombras: a ação da maçonaria brasileira (1870-1920). Campinas, São Paulo: Editora Unicamp, 1999.). Antes da cisão maçônica, a província de São Paulo possuía 17 lojas. Entre 1863 e 1872, período correspondente à cisão do oriente, criaram-se mais 13. No breve período em que as obediências se mantiveram unidas a fim de combater um inimigo comum, a Igreja Católica, foram criadas apenas quatro lojas. Entre 1872 e 1883, foram fundadas outras 35 (RIBEIRO, 2011RIBEIRO, Luaê Carregari Carneiro. Uma América em São Paulo: a Maçonaria e o Partido Republicano. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011., p. 127). Nesse último período de crescimento maçônico, até 1888, observa-se uma sensível mudança no perfil das lojas maçônicas Piratininga e América, legitimada pelas próprias obediências.

Em 1877, o Grande Oriente dos Beneditinos, ordem dirigida por Saldanha Marinho, sugeria valores reduzidos na cobrança de joias à iniciação, regularização, filiação, assim como nos custos correspondentes aos graus capitulares do rito escocês15 15 Os valores já reduzidos foram estipulados: iniciação (50 mil); regularização (50 mil); filiação do maçom pertencente ao círculo (20 mil); graus simbólicos dos diferentes ritos (6 mil); companheiro: (6 mil); mestre (10 mil); graus capitulares no rito escocês: graus de 4º ao 9º (12 mil); graus 10º a 14º (16 mil); graus 15º a 17º (20 mil); graus 18º (21 mil); Graus 19º a 22º (4 mil); graus 23º a 27º (10 mil); graus 28º e 29º (16 mil); graus 30º (12 mil); grau 31º (27 mil); grau 32º (35 mil) e grau 33º (100 mil)Ver: Leis e Rituais do Grande Oriente Unido e Supremo Conselho do Brazil. Rio de Janeiro: Typographia do Grande Oriente Unido e Supremo Conselho do Brazil, 1877. .

A redução dos valores colaborou com a ampliação da obediência de Saldanha Marinho ao final da década de 1870, alargando, consequentemente, o número de lojas e membros, como observado no perfil do segundo período (1874-1888) na loja América. O mesmo movimento foi percebido no Grande Oriente do Brasil, do vale do Lavradio, e na loja Piratininga, no segundo período analisado (1874 a 1888). Mas, comparativamente, os valores estabelecidos pela loja América eram inferiores aos propostos pela Piratininga, permitindo que candidatos menos abastados optassem pela obediência do Grande Oriente Unido e Supremo Conselho.

A Loja Piratininga registrou, em ata no ano de 1873,16 16 Ata da Loja Piratininga. 26 de novembro de 1873. Arquivo Privado da Loja Maçônica Piratininga. os valores correspondentes aos graus maçônicos. Para ser iniciado na condição de aprendiz, o maçom pagaria 32 mil réis, mais o valor de 3 mil réis, correspondente a um mês adiantado. Na época, o valor equiparava-se ao de um imóvel, uma casa térrea pequena de “três cômodos, velha, de porta e janela, com cozinha atrás” (OLIVEIRA, 2005OLIVEIRA, Maria Luiza Ferreira de. Entre a casa e os armazéns: relações sociais e experiência da urbanização em São Paulo, 1850-1900. São Paulo: Alameda, 2005. , p. 126).

Um maçom que desejasse regularizar sua situação na loja deveria pagar 55 mil, dos quais 46 mil seriam referentes ao grau de mestre, mais 6 mil para a carta de grau e mais 3 mil adiantados. Para a filiação, ou seja, a transferência de um maçom para outra loja, em qualquer grau, o Irmão pagaria 12 mil, além dos mais 3 mil adiantados, totalizando 15 mil.17 17 Ata da Loja Piratininga. 26 de novembro de 1873. Arquivo Privado da Loja Maçônica Piratininga.

A inadimplência foi um problema recorrente nas lojas ao longo de todo o período analisado. O Irmão orador Pires Garcia, da loja Piratininga, pediu, em sessão de 21 de outubro de 1851, explicações aos devedores18 18 Ata da Loja Piratininga. 21 de outubro de 1851. Arquivo Privado da Loja Maçônica Piratininga. . Muitos pedreiros livres tentavam desvencilhar-se de algumas obrigações, entre as quais, a contribuição indispensável ao tronco beneficente, doação exigida ao fim de cada sessão. Para evitarem o pagamento do tronco beneficente, muitos assinavam o livro de presença e se retiravam antes do encerramento da sessão. A estratégia, adotada por muitos, acabou sendo denunciada e a queixa encaminhada ao venerável Joaquim Ignácio Ramalho. Em resposta ao problema, Ramalho asseverou aos maçons que a adimplência aos valores estipulados era uma prática costumeira que todo Irmão deveria seguir19 19 Ata da Loja Piratininga. 05 de setembro de 1851. Arquivo Privado da Loja Maçônica Piratininga. .

Muitos chegaram a ser expulsos por deixarem de pagar as taxas estabelecidas. A loja Filantropia, por exemplo, determinou a eliminação de 154 Irmãos inadimplentes de uma única vez, em sessão, por não terem pagado as taxas.20 20 Ata da Loja Piratininga. 21 de outubro de1851. Arquivo Privado da Loja Maçônica Piratininga. Em 21 de junho de 1878, o maçom Jesuíno Antonio de Castro, da Loja América, pediu a palavra para solicitar a criação de uma comissão para punir os Irmãos devedores.21 21 Ata da Loja América. 21 de junho de 1878. Arquivo Privado da Loja Maçônica América. Essa medida havia sido proposta dois anos depois da aprovação do decreto nº 39 de 25 de agosto de 1876, no qual Saldanha Marinho determinava que todas as lojas de sua obediência aceitassem a iniciação de professores sem recursos.

Louva e recomenda a deliberação adoptada pela Loja Zur Eintracht, relativa aos professores. Nós, conselheiro Dr. Joaquim Saldanha Marinho, soberano grão-mestre grande comendador da Ordem maçônica no Brasil: Fazemos saber a todas as oficinas e maçons do círculo que o Grande Oriente Unido do Brasil, em sessão extraordinária de 24 de agosto, resolveu aprovar com louvor e recomendar a todas as lojas da jurisdição a deliberação, adoptada pela Zur Eintracht, ao Oriente de Porto Alegre, de franquear aos professores pobres, porém dignos de pertencerem à Ordem por sua vida e bons costumes a iniciação e filiação, sem a contribuição da joia e das mensalidades, sujeitos em tudo o mais às formalidades das leis, estatutos e rituais da Ordem; não se estendendo esta disposição aos professores que notoriamente possuírem os meios necessários para realizarem as contribuições pecuniárias, sem grande ônus para si ou seus famílias.22 22 Boletim do Grande Oriente Unido e Supremo Conselho do Brasil. Rio de Janeiro, 1876. Agosto, p.421.

O pagamento do tronco beneficente era apenas um entre muitos outros custos e obrigações que um maçom tinha que despender de seus recursos para manter-se vinculado à ordem. Os gastos com as taxas maçônicas eram muitos, começando pelo processo de iniciação, visto que todos os custos com o ritual deveriam ser pagos pelo próprio iniciado e não pela loja. Para um candidato de poucos recursos, isso poderia representar um obstáculo a sua iniciação. Todavia, as atas também revelavam que, em certos casos, as iniciações sucederam sem as cobranças obrigatórias. Situações como essas ocorriam quando o Irmão possuía boas relações no quadro maçônico. Luiz Gama, venerável da loja América, em 3 maio de 1877, requereu, em sessão, que seu filho Benedito Graco Pinto da Gama fosse iniciado na loja sem efetuar o pagamento de joia de iniciação, então obrigatório.

Propondo para ser iniciado em nosso quadro o profano Benedicto Graco Pinto da Gama, de 18 anos de idade, solteiro, estudante, filho do nosso respeitável e estimado Irmão Venerável. Nesta proposta, pedia-se que, atendendo-se aos elevadíssimos serviços prestados a esta loja: pelo nosso Irmão Venerável serviços estes que estão na consciência de todos, e particularmente na dos obreiros que compõe o [...] quadro da loja América, fosse aquele profano admitido em nosso seio independente do pagamento de joia de iniciação, nesta proposta que veio assignada, pedia-se urgência, a qual foi concedida.23 23 Ata da Loja América. 03 de maio de 1877. Arquivo Privado da Loja Maçônica América.

O pedido de iniciação feito por Luiz Gama em benefício de seu filho demonstrava não haver rigidez em relação à obrigatoriedade do pagamento de joia de iniciação, mesmo havendo problemas com inadimplência. Assim como fez Gama, outros maçons, provavelmente, solicitaram isenção das taxas de iniciação e de mensalidades em benefício próprio ou de filhos e amigos.

Enquanto alguns pedreiros livres conseguiam desvencilhar-se do pagamento de joias e de outras taxas, outros Irmãos desistiam, solicitando o desligamento por não possuírem recursos suficientes para arcar com todas as despesas obrigatórias. Francisco Ignácio dos Santos Cruz, por exemplo, acabou solicitando seu desligamento do quadro da loja Piratininga, em 1854, “porque estava impossibilitado de cumprir com seus deveres”.24 24 Ata da Loja Piratininga. 06 de setembro de 1854. Arquivo Privado da Loja Maçônica Piratininga. O número de Irmãos solicitando o rompimento com o círculo maçônico era expressivo. Nas lojas Piratininga e América, no segundo período analisado (1874-1888), tornou-se cada vez mais recorrente o número de queixas e reclamações contra maçons que se ausentavam das sessões e que se furtavam do pagamento das taxas. Conforme sublinhou Luaê Carregari Carneiro Ribeiro, muitos entendiam que a simples iniciação à maçonaria lhes afiançaria boas relações nos planos social e econômico, de modo que, muitos abandonavam a organização pouco depois da iniciação (RIBEIRO, 2011RIBEIRO, Luaê Carregari Carneiro. Uma América em São Paulo: a Maçonaria e o Partido Republicano. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011., p.20).

Como nota-se na Tabela 2, foi no segundo período (1874-1888) que as lojas maçônicas Piratininga e América passaram a recrutar membros das camadas remediadas e pobres da sociedade. O interesse em ampliar o quadro maçônico, segundo Alexandre Barata, era uma tentativa das duas obediências (Grande Oriente do Brasil, do vale do Lavradio, e o Grande Oriente Unido, do vale dos Beneditinos) de ampliar seus campos de influência e hegemonia maçônica em todos os pontos do país. A intenção de superar a obediência rival levaria ao crescimento substancial da obediência chefiada por Saldanha Marinho, no período de 1863 a 1882 (BARATA, 1999BARATA, Alexandre Mansur. Os maçons e o movimento republicano. História Ciência, Saúde, Manguinhos. Rio de Janeiro, p.78-99, 1994., p. 73). Tais estratégias, contudo, não seriam bem aceitas por todos os irmãos, especialmente pelos maçons mais abastados que compunham a organização.

Em 1873, um grupo formado por maçons, que se apresentava como dissidente do Grande Oriente do Brasil, do vale do Lavradio, colocou em circulação o periódico A Semana Maçônica, com o intuito de manifestar seu descontentamento ante as iniciações, que consideravam sistemáticas, de indivíduos oriundos das camadas menos abastada da sociedade.

O jornal, criado pelo grupo dissidente em 1873, apresentava-se como folha dedicada a opor-se ao Boletim do Grande Oriente do Brasil, jornal oficial da obediência do Lavradio, o qual o grupo julgava não atender a seus interesses. Formado por maçons da cidade do Rio de Janeiro, A Semana Maçônica tinha o propósito de discutir o futuro da instituição perante a iniciação descontrolada de novos membros na organização, com base no artigo intitulado Causas da decadência da maçonaria no Brasil:

Uma das principais causas da decadência da Maçonaria no Brasil é a grande quantidade de membros que conta esta. A primeira vista é isso um paradoxo insustentável, pois em regra geral uma associação parece que será tanto mais forte e capaz de preencher os seus fins quanto mais números for. Quão longe está desse tipo a Maçonaria Brasileira, graças a irreflexão, ou antes a falta de educação maçônica de seus membros em geral. Para que a Maçonaria Brasileira pudesse estar colocada em sua verdadeira altura, para que pudesse ser a expressão real do maçonismo, para que ela pudesse conseguir os fins de uma associação digna desse nome, era mister que compreendesse que uma das principais condições necessárias seria ser cada um de seus membros o mais independente e o menos necessitado possível. Daí a precisa escolha de obreiro que fossem não somente homens honestos etc., mas que ao mesmo tempo preenchessem as condições que acabamos de apontar. Admitir, porém, salvo caso muitíssimo excepcional, homens aliás dignos dos maiores elogios por suas virtudes etc., mas carentes de quem os proteja de mais um modo, ou pelo menos incapazes de menor proteção é certamente desnaturar o espírito maçônico [...] E como negar agora que é isto devido a grande quantidade de obreiro que ela conta? No momento em que todos os homens sejam maçons deixa de existir Maçonaria e cae-se novamente no mundo profano; portanto, quanto maior for o número de seus membros mais ela se aproxima desse resultado.25 25 A Semana Maçônica: Jornal Hebdomadário, Rio de Janeiro, Anno I. nº 4, 24 de setembro de 1873.

Os articulistas do periódico A Semana Maçônica, quando criticavam a iniciação de indivíduos menos favorecidos socialmente na maçonaria, não temiam apenas que os recursos da organização diminuíssem ou houvesse o risco de inadimplência. O grupo estava, efetivamente, preocupado com a perda de prestígio ostentada pela organização. Para eles, a vulgarização da maçonaria traria também a perda do seu status.

Esses homens não desejavam que a maçonaria ampliasse seu quadro, que se transformasse num espaço de todos. Para muitos pedreiros livres, a maçonaria tinha seu valor apenas quando caracterizada como espaço de sociabilidade, compartilhado por um pequeno grupo de pessoas pertencentes a camadas sociais semelhantes.

A percepção dos articulistas da folha, A Semana Maçônica, demonstra como as lojas maçônicas recebiam as orientações provenientes das obediências. Embora não tivesse sido encontrado nenhum registro nas atas das lojas Piratininga e América que evidenciasse algum tipo de rejeição aos novos membros, isso não significa que os Irmãos não tivessem reagido às determinações propostas pelas respectivas obediências.

A expansão das lojas e a ampliação do número de membros não alterariam, contudo, a dinâmica interna administrativa da organização. Os maçons mais antigos de casa recorreram a determinadas estratégias a fim de impedir que as decisões importantes a serem tomadas nas lojas caíssem nas mãos dos novos membros. Os Irmãos mais antigos das Lojas Piratininga e América se mantiveram à frente dos principais cargos.

Na loja América, as funções maçônicas mais importantes foram recorrentemente ocupadas pelos mesmos Irmãos que alternavam as funções entre si. Luiz Gama ocupou o posto de segundo vigilante (1871, 1872, 1874, 1875) e, na sequência, ocupou o de venerável (1876 a 1880). Américo de Campos, por diversos anos, exerceu o cargo de orador (1874, 1876, 1877, 1878) e de primeiro vigilante (1875 e 1887).

Na sessão de 13 de dezembro de 1874, Américo de Campos assumiu o lugar do venerável então ausente.26 26 Ata da Loja América. Livro 2. 13 de dezembro de 1874. Arquivo Privado da Loja Maçônica América. Além de Américo de Campos, surgiu o nome de Jesuíno Antonio de Castro como primeiro vigilante (1877, 1878, 1879), de João Fernandes da Silva Júnior, ocupando a vaga de primeiro vigilante, em 1875, de segundo vigilante, nos anos de 1877, 1878 e 1879. No período de 1883 a 1885, João Fernandes da Silva Júnior ocupou o posto de venerável.

Na Loja Piratininga, os cargos maçônicos tinham configuração semelhante Joaquim Ignácio Ramalho manteve-se no de venerável por 45 anos consecutivos. Para os de primeiro e segundo vigilantes, nos anos de 1865 e 1866, destacaram-se, respectivamente, os Irmãos Manuel Dias de Toledo e Carlos Martins. Em 1867, Vicente Rodrigues da Silva ocupou o cargo de segundo vigilante e José Couto de Magalhães o de orador, em 1864. Em suma, os mesmos Irmãos se alternaram à frente dos mesmos cargos. As atas da Loja Piratininga revelam que os maçons iniciados depois da década de 1870, em geral, não desempenharam posições de destaque nas lojas.

A faixa etária dos membros das lojas maçônicas é outro importante quesito desta análise uma vez que, tendo o perfil etário dos maçons também sofreu alterações entre um período e outro. Na Tabela 5, nota-se que a faixa etária da maioria dos iniciados, no primeiro período da Loja Piratininga concentrava-se na faixa etária entre 21 e 30 anos.

Tabela 5.
Idade dos maçons da Loja Piratininga (1850-1873) e da Loja América (1868-1870)

No segundo período da loja Piratininga (Tabela 6), o percentual se manteve na faixa etária, contabilizando o montante de 123 iniciados, isto é, 24,8%. O que chamou a atenção, contudo, foi o ingresso de candidatos mais velhos. Enquanto no primeiro período (Tabela 5) registrou-se a iniciação de apenas seis maçons na faixa etária entre 31 e 40 anos, ou seja, 2,7%, no segundo período (Tabela 6) foi identificada a iniciação de 48 maçons com essa idade, isto é, 9,7%. Na faixa etária compreendida entre 41 e 50 anos no primeiro período, foram iniciados cinco maçons, correspondente a 2,2%, e, no segundo, 15, ou seja, 3,0%. Outro dado relevante para esse quesito observa-se na faixa etária de 51 a 60 anos. Para o primeiro período, registrou-se a iniciação de apenas um maçom, isto é, 0,4%, ao passo que, no segundo, foram nove, ou seja, 1,8%. Somente no segundo período observa-se na loja Piratininga o surgimento de uma nova faixa etária, de 61 a 70 anos, que não aparece no primeiro período. Nessa faixa etária, que surge somente no segundo período, foram iniciados quatro maçons, isto é, 0,8% (Tabela 6).

Na loja América, no primeiro período, predominariam iniciados na faixa etária entre 21 e 30 anos, assim como na loja Piratininga, como se verifica nas Tabelas 5 e 6. Pode-se afirmar, portanto, que o perfil dos maçons da loja Piratininga, no segundo período, envelheceu se comparado com o primeiro. Já a loja América percorreu o caminho contrário.

No primeiro período na loja América (Tabela 5), observa-se que, na faixa etária entre 21 e 30, foram iniciados 74 maçons, ou seja, 53,6%; nessa mesma faixa etária, no segundo período (Tabela 6), o número foi inferior, 24, isto é, 17,5%. Na faixa de 31 a 40, no primeiro período, foram iniciados 40 Irmãos, ou seja, 20,0%; na faixa etária entre 41 e 50, no primeiro período, houve 18 iniciados, isto é, 13,0%, ao passo que, no segundo, apenas um, ou seja, 0,7 (Tabela 6). A faixa etária entre 51 e 60 anos, no primeiro período, identifica-se a iniciação de quatro Irmãos, ou seja, 2,9% e, por fim, na faixa de 61 a 70, no primeiro período, registraram-se apenas dois iniciados, isto é, 1,5%, (Tabela 5), sendo que, no segundo período, não houve registro nessa faixa etária.

Tabela 6.
Idade dos maçons da Loja Piratininga (1874-1888)

Enquanto a loja Piratininga passava por um processo de amadurecimento de seu quadro, a loja América seguiu caminho oposto. Outro quesito importante que permite conhecer o perfil dos maçons das lojas maçônicas são as informações relativas ao estado conjugal. A loja Piratininga, no primeiro período (Tabela 5), de um total de 225 maçons, 84 declararam-se solteiros, 19 casados e apenas dois viúvos.

Tabela 7.
Estado conjugal dos maçons da Loja Piratininga (1850-1873) e da Loja América (1868-1870)

Nesse primeiro intervalo de tempo, parece que o interesse pela iniciação na organização foi maior entre os candidatos solteiros que entre os casados e os viúvos. Os dados relativos à idade e ao estado conjugal devem ser cruzados com o quesito relativo à ocupação. Na Tabela 1, nota-se a ampla presença de estudantes entre os iniciados, refletindo, consequentemente, os altos índices de indivíduos iniciados, frequentadores da Faculdade de Direito, que, em geral, eram solteiros, e cujos recursos para sua manutenção na cidade, na maioria das vezes, eram provenientes de apoio familiar.

Como vimos na Tabela 2, mencionada anteriormente, a Loja América sofreu menos influência da presença de estudantes do que a loja Piratininga. A América atraiu, especialmente, no primeiro período, profissionais liberais (advogados, médicos, jornalistas etc.), em geral, homens maduros e socioeconomicamente estabelecidos.

No primeiro período (1868-1870) na loja América, embora tenha prevalecido a iniciação de homens solteiros, 84, a presença de homens casados era significativa, 51, além dos viúvos, 3, porém de menor quantidade (Tabela 7). O número de maçons casados, no primeiro período (1850-1873), na América, era superior ao da Piratininga.

No segundo período analisado, a Piratininga (1874-1888) apresentou sensível mudança dos iniciados. Enquanto no primeiro intervalo de tempo, o número de solteiros iniciados foi de 102, isto é, 37,3%, no segundo, o ingresso de Irmãos foi de 84, ou seja, 20,6%. Já o número de casados no primeiro intervalo de tempo foi de 19, isto é, 8,5%, e no segundo, registraram-se 80 maçons casados, ou seja, 16,1%. O número de viúvos também aumentou significativamente de 2, isto é, 0,9%, para 9, ou seja, 1,8% (ver Tabelas 7 e 8).

Tabela 8.
Estado conjugal dos maçons da Loja Piratininga (1874-1888) e da Loja América (1874-1888)

Quanto ao estado conjugal, é interessante pontuar que a loja América passou pelo processo contrário ao da Piratininga (ver Tabelas 7 e 8CAMINO, Rizzardo. Dicionário maçônico. São Paulo: Madras, 2010.).

As informações revelam que o número de maçons que se declararam solteiros diminuiu significativamente: enquanto no primeiro período foram registrados 84 solteiros, isto é, 60,9%, no segundo, foram apenas 18, ou seja, 13,1%, entre os casados, de 51, isto é, 37%, no primeiro período, apenas 9 ingressantes, ou seja, 6,6%, e, por fim, o número de viúvos também caiu de 3, ou seja, 2,17% para 2 iniciados, isto é, 1,46%.

Outras categorias como orientação política e religião foram identificadas na documentação, mas não puderam ser avaliadas com a mesma minucia que nos demais quesitos, ou porque poucos iniciados declararam esses dados ou porque eram representativos apenas para uma das lojas analisadas.

Esse é o caso da categoria religião, quesito que pôde ser melhor avaliado somente na loja Piratininga. No primeiro período o templo da Piratininga, registrou em ata, ter iniciado 117 católicos, ou seja, 52%, num total de 225 testemunhos. Para o segundo período a loja registrou número inferior de católicos, apenas 83, correspondendo, a um total de 17%. No segundo intervalo de tempo, além de católicos, os documentos registraram a iniciação de quatro protestantes, que representavam 1% dos iniciados. Embora não fosse representativa a presença desse último grupo, no segundo período, significava que maçons de outra religião frequentaram a loja.

Na América, as informações sobre a religião dos iniciados só puderam ser avaliadas no segundo período, porque os primeiros livros de atas da loja não foram encontrados. Os dados a esse respeito são referentes ao segundo período. Nesse intervalo de tempo registrou-se a opção religiosa de apenas 7 iniciados, seis católicos: Albino Soares Bairão, comerciante, português; Francisco Pedro de Oliveira Junior, católico, iniciado em seis de fevereiro de 1876, 23 anos, São Paulo, tipógrafo, brasileiro, republicano; Manuel José da Cruz Novais, católico, iniciado em seis de fevereiro de 1876, casado, 27 anos, negociante, liberal; Moises Soares de Castro, 37 anos, viúvo, católico, negociante, liberal; Domenico Cousonti, católico, iniciado em oito de maio de 1877, solteiro, 30 anos, artista, italiano; Joaquim Gabriel Coutinho, católico, iniciado em 24 de maio de 1877, solteiro, artista, brasileiro; Joaquim Lopes da Silva, católico, solteiro, 22, professor e liberal. Somente Benecdito Graco Pinto da Gama, filho de Luiz Gama, solteiro, iniciado aos 18 anos, estudante, republicano declarou ser protestante. Os dados sobre religião fornecidos pelos Irmãos iniciados na Loja América não foram suficientes para a avaliação desse quesito. Outra categoria que não pôde ser estudada com profundidade nessa pesquisa foi à orientação política, na Loja América apenas 6 maçons a declararam.

Considerações finais

Embora os registros documentais consultados estejam incompletos é possível conjecturar não apenas sobre o perfil maçônico apresentado em duas das principais lojas presentes na cidade de São Paulo, como também, é possível identificar uma dinâmica interna de disputa e conflitos que revelam desconforto e descontentamento de parte dos Irmãos provenientes das camadas mais abastadas que não viam com bons olhos o ingresso de indivíduos que não possuíam o mesmo status social. Observa-se que ao longo da década de 1870, a maçonaria flexibilizou suas rígidas regras de iniciação com o propósito de ampliar o número de iniciados, medidas identificadas nas duas obediências (Grande Oriente do Lavradio e o Grande Oriente dos Beneditinos). Pode-se, com isso, afirmar que a organização teve um breve período em que o ingresso de indivíduos na organização foi facilitado, favorecendo, portanto, maior diversidade no quadro da maçonaria.

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  • WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Sonhos africanos, vivências ladinas: escravos e forros em São Paulo (1850-1880). São Paulo: Hucitec, 1998.
  • 1
    O quesito religião aparece no primeiro período de modo sistemático, uma parcela significativa de iniciados declarou-se católico. Como as informações sobre a religião dos ingressantes aparece apenas com significativa representatividade na Loja Piratininga optou-se por não realizar uma análise comparativa sobre esse quesito na pesquisa.
  • 2
    José Maria de Azevedo Marques foi proprietário do jornal Correio Paulistano e produziu o documento que oferece informações sobre a iniciação e filiação de maçons que haviam ingressado na Loja América no intervalo de 1868 a 1870. Supõe-se que o material tenha sido distribuído entre as lojas maçônicas da cidade, haja vista que o conteúdo foi encontrado no arquivo da Loja Piratininga. Provavelmente se tratava de registro de divulgação da loja.
  • 3
    Na terminologia maçônica o termo “prancha” é o nome utilizado para designar as correspondências que eram trocadas entre as lojas co-irmãs, bem como, com o Grande Oriente. Ver: CAMINO, Rizzardo de. Dicionário maçônico. São Paulo: Madras, 2010. p. 396.
  • 4
    Joaquim Nabuco retomou sua posição como maçom em 1873, após aceitar o convite de Saldanha Marinho para discursar em defesa do anticlericalismo na obediência dos Beneditinos.
  • 5
    “Adormecer em loja” na terminologia maçônica significa que o maçom deixou de frequentar as sessões da loja, mas não se desligou oficialmente dela.
  • 6
    Joaquim Ignácio Ramalho recebeu o título de Barão de Água Branca. Inicialmente, Ramalho não aceitou o título, porque não concordava com o nome, teria o maçom afirmado que somente aceitaria a honraria caso o pudesse adotar o nome de Ramalho, sobrenome de sua esposa. O maçom havia sido acolhido pela família da esposa, após seu pai ter se mudado da cidade de São Paulo. O venerável recebeu em substituição o nome de Barão de Ramalho, como desejava.
  • 7
    Pertencente à obediência dos Beneditinos, não foi encontrado nenhuma pista na documentação da Loja América consultada, que deixasse evidenciado a iniciação de um liberto na loja, embora não signifique que isso não tenha ocorrido de fato. Afinal, como destacado, anteriormente, as atas não refletiram integralmente todos os passos dos irmãos nas sessões. Muitas informações escaparam da pena do secretário.
  • 8
    Outras profissões como as de sapateiro, tintureiro, pedreiro, calafate, armador, músico, cocheiro eram desempenhadas também por escravizados, libertos e homens livres pobres.
  • 9
    Ata da Loja Piratininga. 15 de agosto de 1875. Arquivo Privado da Loja Maçônica Piratininga.
  • 10
    Ata da Loja Piratininga. 10 de setembro de 1876. Arquivo Privado da Loja Maçônica Piratininga.
  • 11
    As levas de imigrantes vindos ao Brasil aumentaram progressivamente na segunda metade do século XIX, e a partir de 1886, o crescimento da presença de imigrantes ampliou-se ainda mais, porque houve o incentivo integral do governo da província de São Paulo, que passou a financiar integralmente as passagens dos imigrantes. Ou seja, os imigrantes que chegavam, em sua maioria, não possuíam recursos para investir em negócios próprios.
  • 12
    O maçom Vicente Rodrigues, iniciado na Loja Piratininga, em seu depoimento, declarou ser português, mas na ocasião de sua filiação na Loja América, em seu segundo testemunho, aparece como de nacionalidade africana. É possível conjecturar que talvez o maçom responsável por colher os dados do novo iniciado tenha se confundido.
  • 13
    http://www.academiamedicinasaopaulo.org.br/biografia. Disponível em 2 de setembro de 2015.
  • 14
    O jornal Aurora Campineira, de propriedade dos irmãos tipógrafos João Teodoro e Francisco Teodoro de Siqueira e Silva, fundado em 4 de abril de 1858, circulava semanalmente, aos domingos. Ver: FARIA, Alberto. Imprensa em Campinas. Revista do Centro de Sciencias, Letras e Artes de Campinas, Campinas, v. 15, n. 2, p. 4-41, 1916.
  • 15
    Os valores já reduzidos foram estipulados: iniciação (50 mil); regularização (50 mil); filiação do maçom pertencente ao círculo (20 mil); graus simbólicos dos diferentes ritos (6 mil); companheiro: (6 mil); mestre (10 mil); graus capitulares no rito escocês: graus de 4º ao 9º (12 mil); graus 10º a 14º (16 mil); graus 15º a 17º (20 mil); graus 18º (21 mil); Graus 19º a 22º (4 mil); graus 23º a 27º (10 mil); graus 28º e 29º (16 mil); graus 30º (12 mil); grau 31º (27 mil); grau 32º (35 mil) e grau 33º (100 mil)Ver: Leis e Rituais do Grande Oriente Unido e Supremo Conselho do Brazil. Rio de Janeiro: Typographia do Grande Oriente Unido e Supremo Conselho do Brazil, 1877.
  • 16
    Ata da Loja Piratininga. 26 de novembro de 1873. Arquivo Privado da Loja Maçônica Piratininga.
  • 17
    Ata da Loja Piratininga. 26 de novembro de 1873. Arquivo Privado da Loja Maçônica Piratininga.
  • 18
    Ata da Loja Piratininga. 21 de outubro de 1851. Arquivo Privado da Loja Maçônica Piratininga.
  • 19
    Ata da Loja Piratininga. 05 de setembro de 1851. Arquivo Privado da Loja Maçônica Piratininga.
  • 20
    Ata da Loja Piratininga. 21 de outubro de1851. Arquivo Privado da Loja Maçônica Piratininga.
  • 21
    Ata da Loja América. 21 de junho de 1878. Arquivo Privado da Loja Maçônica América.
  • 22
    Boletim do Grande Oriente Unido e Supremo Conselho do Brasil. Rio de Janeiro, 1876. Agosto, p.421.
  • 23
    Ata da Loja América. 03 de maio de 1877. Arquivo Privado da Loja Maçônica América.
  • 24
    Ata da Loja Piratininga. 06 de setembro de 1854. Arquivo Privado da Loja Maçônica Piratininga.
  • 25
    A Semana Maçônica: Jornal Hebdomadário, Rio de Janeiro, Anno I. nº 4, 24 de setembro de 1873.
  • 26
    Ata da Loja América. Livro 2. 13 de dezembro de 1874. Arquivo Privado da Loja Maçônica América.
  • Declaração de financiamento:

    A pesquisa que resultou neste artigo contou com financiamento do CNPq (Processo 162395/2014-0, entre os anos de 2014 a 2017).

Editado por

Editores:

Karina Anhezini e André Figueiredo Rodrigues

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    29 Maio 2021
  • Aceito
    27 Out 2021
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