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“O ELDORADO DOS NATURALISTAS”. Discurso científico e linguagem literária nos ensaios amazônicos de Raimundo Morais

“The El Dorado of the naturalists” - Scientific discourse and literary language in the Amazonian essays by Raimundo Morais

Resumo

Esse artigo analisa os ensaios de temática científica do escritor paraense Raimundo Morais, buscando compreender a convergência entre o discurso literário e a difusão de conhecimento, e ao mesmo tempo verificar os mecanismos empregados por ele para promover a autenticação de sua obra no meio intelectual brasileiro. Foi realizada uma leitura analítica e crítica dos textos e identificados os principais eixos da construção de um discurso de legitimação social: a relativização do saber científico e a defesa do papel do leigo no sistema de produção do conhecimento.

Palavras-chaves:
história da ciência; Amazônia; literatura brasileira

Abstract

This article examines the science-themed essays by writer Raimundo Morais, from Pará, Brazil, in order to understand the convergence between the literary discourse and the conveying of knowledge. At the same time, it aims at identifying methods he used in order to authenticate his work among Brazilian intelligentsia. Analytical and critical reading of his texts identified the following thematic axes: relativize scientific knowledge and defense the secularity of its production system.

Keywords:
history of science; Amazonia; Brazilian literature

O plasma literário deste volume pode não conter, como realmente sucede, a partícula aluvionária do ouro, mas contém a partícula glebária do estudo, matéria que solda as restingas intelectivas, as várzeas da pesquisa, a terra em ser do pensamento. Raimundo Morais, Alluvião, 1937MORAES, Raymundo. Alluvião. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1937.

O escritor paraense Raimundo Morais1 1 Em seus livros, o nome do escritor aparece grafado na forma original, Raymundo Moraes, e na forma atualizada, Raimundo Morais, havendo, contudo, outras variantes. Optamos, nesse artigo, por utilizar apenas a forma atualizada, exceto nas referências bibliográficas, que serão feitas em conformidade com a grafia constante na edição consultada. As citações diretas serão também atualizadas, para fins de uniformização da ortografia, e as referências no corpo do texto, em caso de reedições, conterão a data da edição citada, seguida da data da primeira edição. (1872-1941) é hoje pouco lembrado, mas deixou uma vasta obra literária, composta, sobretudo, de artigos ensaísticos e romances voltados para a representação da realidade amazônica e o debate de temas relacionados a ela, em seus aspectos sociais, culturais e naturais. Neste artigo, analisaremos os ensaios do escritor na perspectiva da interação entre a ciência e a linguagem literária, buscando compreender os instrumentos utilizados por ele para legitimar seu status como interlocutor autêntico no debate entre os estudiosos da região. Para a historiografia intelectual e cultural brasileira da primeira metade do século XX, o estudo da obra de Raimundo Morais exemplifica a convergência de linguagens - literatura de ficção, ensaio, informação científica e jornalismo - na produção de uma bibliografia sobre o território amazônico que atendia aos anseios nacionalistas de promoção do conhecimento do país em sua totalidade. O escritor forjou um modo de elocução em que elementos tradicionais da cultura letrada brasileira, como os relatos de viajantes, a erudição livresca, a descrição de cenários naturais, a linguagem literária profusa e os propósitos realistas e documentais dividem espaço com a informação científica, a lógica dedutiva e a observação empírica.

Uma fiel e formosa obra reveladora do grande vale equatorial

As décadas de 1920 e 1930, período em que Raymundo Morais produziu mais intensamente, foram períodos de expansão das pesquisas no campo da biologia no Brasil, realizadas em instituições científicas como o Museu Nacional e a Escola Superior de Agricultura e Medicina Veterinária, no Rio de Janeiro, o Museu Paraense Emílio Goeldi, em Belém, e o Museu Paulista de História Natural, em São Paulo. Entretanto, em plena “era da biologia” os interesses de Morais mantinham-se direcionados para a história natural, campo bem mais indefinido e eclético, e mais afeito à exploração dos recursos da linguagem literária. Voltada à descrição visual e à classificação dos seres, a história natural não estava ausente, entretanto, de ambientes institucionalizados de pesquisa como o Museu Nacional, onde se desenvolviam ainda estudos na intercessão entre diversas áreas do conhecimento e em diálogo com linguagens artísticas e processos técnicos. A ascensão da biologia induzia, por outro lado, a uma delimitação mais específica dos objetos de estudo, ao passo que a demanda pelo estudo de espécies naturais relacionadas à agricultura comercial e à exploração extrativa2 2 Por volta de 1932, a contribuição da Amazônia para a oferta de borracha no mercado mundial era da ordem de 1%. Em função dos processos de industrialização no Brasil e de outros países da América do Sul, a demanda do látex era, no entanto, crescente. No final da década, com a eclosão da II Guerra Mundial, e o iminente comprometimento do acesso dos Estados Unidos à produção asiática, a intensificação da produção amazônica mostra-se imperativa, o que deu origem a novos esforços de aprimoramento da extração e mesmo do plantio de seringueiras, em direção a um novo boom da borracha na região (DEAN, 1989, p. 131-154, GARFIELD, 2013, p. 23-26) aproximavam as ciências biológicas dos anseios nacionalistas de promoção do progresso social e melhoria das condições de saúde da população, mão de obra para o progresso socioeconômico (DUARTE, 2010DUARTE, Regina Horta. A biologia militante: o Museu Nacional, especialização científica, divulgação do conhecimento e práticas políticas no Brasil. 1926-1945. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010., p. 27-43).

Além disso, a institucionalização do conhecimento nos campos das ciências naturais e da geografia, nos quais atua o escritor, era um processo em curso. Na segunda metade dos anos 1930 destacavam-se, por um lado, as instituições relacionadas à produção do conhecimento na área da biologia, ainda em diálogo com a história natural, acima citadas. Por outro lado, a pesquisa em geografia ganhava novo impulso, deslocando-se de entidades associativas e órgãos militares como o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838) e a Sociedade Brasileira de Geografia (1926) em direção ao estudo acadêmico e profissional, em recém-criadas instituições superiores como a Universidade de São Paulo (1934) e a Universidade do Distrito Federal (1935, convertida, em 1937, em Universidade do Brasil), em busca do estabelecimento de um padrão mais científico de pesquisa e ensino. Seguiu-se a criação de um órgão de coordenação da área, o Conselho Nacional de Geografia, incorporado no ano seguinte ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A formação do sistema universitário significaria, forçosamente, um deslocamento das instituições museológicas, apresentando uma nova perspectiva de formação profissional nas áreas científicas, e acentuando a tendência à maior especialização do saber (GARFIELD, 2013GARFIELD, Seth. In search of the Amazon. Brazil, de United States, and the nature of a region. Durham (EUA): 2013., p. 39-41). Nesse contexto, a produção de Raimundo Morais corre paralela a esse processo de institucionalização, em intenso diálogo com o conhecimento produzido sobre a Amazônia - tanto histórica quanto contemporaneamente - e com a produção literária sobre a região.

Do ponto de vista teórico-metodológico, esse estudo sobre a produção não ficcional de Raimundo Morais pode ser definido como uma leitura de suas leituras, uma vez que o recorte que operamos busca compreender sua obra como espaço de difusão e crítica do conhecimento. Acreditamos que seu trabalho representou também a busca de criar um espaço legítimo de enunciação no meio intelectual brasileiro, de modo a se impor simultaneamente nos campos político, literário e científico. A aquisição de um espaço de atuação no regime varguista parece demonstrar o sucesso dessa estratégia, ao menos no terreno da representatividade social.

Seguindo Pierre Bourdieu, atentamos para o fato de que, ao apresentar os livros e autores dos quais se apropriou, Morais busca impor uma interpretação que representa uma aquisição de poder sobre o universo de leitores aos quais se dirige, como participante de uma luta política em torno da significação dos problemas científicos dos quais se ocupa - o que implica na valoração de obras e autores, na recensão de teorias, na prescrição de valores, no estabelecimento de diálogos virtuais com outros autores, na apresentação de polêmicas e no consequente posicionamento em face delas. Se bem-sucedido, sua leitura constituiria o “senso comum” para o público geral e, particularmente, para os que viriam a consumir seus livros durante sua formação escolar (BOURDIEU, 2004BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. Tradução Cássia R. da Silveira e Denise Moreno Pegorim. São Paulo: Brasiliense, 2004., p. 136-137).

Portanto, cabe investigar o discurso do autor em sua busca de conquistar um espaço no campo da produção de bens simbólicos, marcado por relações, funções, hierarquias, instâncias de consagração e de manutenção de posições (BOURDIEU, 1974BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. Tradução Sérgio Miceli et al. São Paulo: Perspectiva, 1974., p. 99-181). Nesse caso específico, o fato de escrever uma obra literária de cunho científico sem possuir formação acadêmica para tanto e nem fazer parte das instituições de produção de conhecimento desafiava o processo esperado de crescente especialização do conhecimento e tornava peculiar a posição do escritor no campo intelectual brasileiro. Complexificam-se, assim, as relações entre a produção de conhecimento erudito e sua circulação entre pares, por um lado, e a produção bibliográfica destinada ao público não especializado, por outro.

Este trabalho busca entender as obras de Morais não a partir de seu modus operatum, como obras finalizadas, mas como rastros objetivos de ações a serem objeto de questionamento e de elaboração de conjeturas, ou seja, como modus operandi (BOURDIEU, 2009BOURDIEU, Pierre. O senso prático. Tradução Oraci Luiz Coradini, Maria Ferreira. Petrópolis: Vozes, 2009., p. 87). Buscamos observar a construção de seu discurso através da avaliação do universo de possibilidades identificadas pelo autor, de sua percepção a respeito de seu posicionamento no meio intelectual e de seu potencial de inclusão. A esses elementos, socialmente condicionados, soma-se a observação de sua presença objetiva no contexto social e das relações estabelecidas pelo autor dentro do sistema de produção e difusão de bens simbólicos, fundamentalmente dividido entre os eruditos que produzem para seus pares e os divulgadores que se lançam à indústria cultural, dedicando-se ao público não produtor de conhecimento (BOURDIEU, 1974BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. Tradução Sérgio Miceli et al. São Paulo: Perspectiva, 1974., p. 104). Esse artigo se volta, especificamente, para a leitura da obra de um estudioso desprovido de formação acadêmica, em busca de se afirmar como lídimo participante do debate intelectual e, se bem-sucedido, como autoridade no campo dos estudos amazônicos.

Para tal, buscaremos descrever as estratégias do escritor, sem compreendê-las como resultantes de intervenções conscientes e racionalizadas, nem tampouco como frutos de atos inconscientes, e sim como produtos do sentido prático do jogo social, historicamente estabelecido e aprendido, em um processo contínuo de criação para adaptação às situações dadas (BOURDIEU, 2004BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. Tradução Cássia R. da Silveira e Denise Moreno Pegorim. São Paulo: Brasiliense, 2004., p. 81). Pressupomos, assim, que as manifestações do escritor em sua escrita literário-científica representam uma prática dotada de significações que respondem ao meio intelectual em que ele se move e a seus objetivos de inclusão e reconhecimento, sendo possível definir seu trabalho como a busca da construção de um capital simbólico no campo intelectual brasileiro - o que pode ser observado através do esboço biográfico que será apresentado em seguida -, mas que dependeu também das estratégias textuais desenvolvidas por ele ao criar uma literatura de inspiração científica.

Como lidamos aqui com uma produção limitada ao campo da escrita, lembramos que

[a] cultura letrada, erudita, define-se pela referência; ela consiste no permanente jogo de referências que dizem respeito mutuamente umas às outras; ela não é nada mais do que esse universo de referências que são indissoluvelmente diferenças e reverências, distanciamentos e atenções (BOURDIEU, 2004BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. Tradução Cássia R. da Silveira e Denise Moreno Pegorim. São Paulo: Brasiliense, 2004., p. 144-145).

É justamente desse contínuo “jogo de referências” que trataremos aqui, uma vez que nos voltamos, sobretudo, para a construção textual - histórica, literária e científica - operada pelo escritor ao manipular um extenso conjunto de informações, no sentido de atribuir posições relativas, apresentar debates polêmicos e disputas históricas, escolher balizas intelectuais, abrir e manter um espaço para si no meio letrado. Seus instrumentos são esquemas de percepção e apreciação estabelecidos pela linguagem escrita e potencialmente capazes de afiançar uma posição de influência, habilitando-o a ditar e consagrar juízos.

Por outro lado, não sendo possível advogar uma condição de autonomia da produção erudita no Brasil da época, seja pelo caráter incipiente do mercado e do sistema acadêmico (compreendendo os museus científicos), seja em função das restrições impostas pelo sistema político e pelo atrelamento da produção intelectual ao Estado, podemos observar, a princípio, que a posição a ser ocupada por Raimundo Morais no sistema de produção e difusão de bens simbólicos encontrava-se ainda em disputa. A princípio, dentro do sistema de consagração ligado à produção erudita, o autor estava destinado a ocupar uma posição hierárquica inferior, equivalente à sua condição de divulgador, no contexto do que pode ser definido como um sistema intelectual médio (BOURDIEU, 1974BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. Tradução Sérgio Miceli et al. São Paulo: Perspectiva, 1974., p. 139-140). No contexto da obra de Morais, entretanto, esse aspecto deve ser analisado mais de perto, de modo a observar sua interação com os demais produtores e os aspectos programáticos de seu discurso.

Em um percurso intelectual de sucesso e progressiva conquista de reconhecimento no meio intelectual brasileiro, entre 1908 e 1941, Raimundo Morais publicou dezoito livros3 3 A maior parte da produção de Raimundo Morais em livro pode ser classificada nas categorias “artigos e ensaios” e “romance”. Dentre seus textos não ficcionais, a maior parte versa sobre temas científicos, embora as coletâneas do escritor discutam também temas políticos e de crítica literária e cultural. Sua obra completa inclui coletâneas de ensaios: Traços a esmo (1908); Notas dum jornalista (1924); Na planície amazônica (1926); Cartas da floresta (1927); País das pedras verdes (1930); Anfiteatro amazônico (1936); Aluvião (1937); Notas sobre o Eldorado (1939); À margem do livro de Agassiz (1939); O homem do Pacoval (1939); Cosmorama (1940); Dicionário: O meu dicionário de cousas da Amazônia (2 v. 1931); Romances: Ressuscitados (1936); Os Igaraúnas (1938); O mirante do Baixo Amazonas (1939). Biografias: Machado de Assis (1939); Um eleito das graças (1941). Fábulas: Histórias silvestres do tempo em que animais e vegetais falavam na Amazônia (1939). Reedições recentes de sua obra: Na Planície amazônica (Senado Federal, 2002); O Homem do pacoval (Governo do estado do Amazonas, 2001); À margem do livro de Agassiz (idem, idem); Histórias silvestres (1986) e Os Igaraúnas (São Paulo, 1985, ed. Roswitha Kempf, São Paulo). , além de ter colaborado com diversos jornais, revistas literárias e de variedades4 4 Entre as revistas que publicaram textos de Raimundo Morais encontram-se Amazonida, Guajarina, Equador e Redemção, de âmbito regional, e, em âmbito nacional, A.B.C., Boletim de Ariel, Vida Literária, Fon-fon, A Cigarra e Seiva. Foi também prefaciador de obras como a História do Rio Amazonas, lançada em 1926, de Henrique Santa Rosa. . A trajetória do escritor no contexto intelectual, político e institucional em que circulava permite compreender os recursos mobilizados por ele para se afirmar, ao longo de décadas, como um escritor de prestígio em nível regional e nacional, por meio do fortalecimento de suas redes de intercâmbio e da ocupação de posições nos espaços culturais disponíveis. Considerando a tradição bacharelesca brasileira, em que os títulos acadêmicos possuíam considerável peso na inserção dos letrados nos reduzidos espaços disponíveis, a ascensão de Raimundo Morais pode ser definida como um feito excepcional, uma vez que ele recebeu apenas formação escolar primária. Observe-se que, como não podia contar com títulos acadêmicos capazes de converter automaticamente seu capital cultural em oportunidades no mercado de trabalho intelectual, nos termos definidos por Sérgio Miceli, tinha que contar com a diversidade de seus interesses e com os contatos políticos para situar-se no serviço público e na imprensa como crítico e difusor de ideias (MICELI, 2001MICELI, Sérgio. Intelectuais à brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.).

Desde os 18 anos de idade, e durante cerca de três décadas, Raimundo Morais atuou como prático e comandante de embarcações fluviais, o que lhe rendeu um conhecimento aprofundado do cotidiano amazônico. Sua experiência na navegação fluvial foi abordada em alguns artigos de crítica literária como um dos aspectos mais atraentes de sua figura, e tida como uma parcela decisiva do seu sucesso literário. Em artigo publicado em 1926, por exemplo, Alves de Souza escreveu que ele “teve a rara lucidez de não repudiar, por inepto desdém, aquilo que da sua profissão de navegante lhe oferecia inestimável cabedal de experiência documentária.” Na visão do resenhista, o conhecimento objetivo da realidade regional atuava para coibir os excessos imaginativos tão comuns na literatura sobre a região (SOUZA, 1926SOUZA, Alves de. O paraiso verde. Jornal do Commercio. Manaus, 8 ago. 1926, p. 6.). Observa-se, assim, uma percepção de que a carreira na navegação somou ao saber erudito adquirido como autodidata os componentes do testemunho e da observação, facultando a ele a elaboração de um panorama ampliado da região amazônica, vista desde dentro. Mesmo com uma posição já consolidada no jornalismo, a imprensa do Pará e do Amazonas continuou a se referir a ele como comandante.

A publicação em jornais teve, sem dúvida, uma importância central para o ingresso do autor no campo letrado, conferindo-lhe espaço para apresentar suas ideias sem a exigência de títulos acadêmicos. Escrevendo inicialmente para A Província do Pará, muitas vezes adotou como tema a navegação, como atestam os capítulos de seu primeiro livro, Traços a esmo, de 1908, uma coletânea dos artigos publicados naquele periódico. Nas “Palavras necessárias” que introduzem o livro, Morais define seus escritos como “fragmentos, observações esparsas, impressões diversas”, não visando “absolutamente o mínimo relevo no que concerne a sucesso literário”, posto que “[u]m dos fins desta obra, certamente desvaliosa, é render a homenagem do meu reconhecimento e do meu afeto à PROVÍNCIA, representada no seu eminente Redator-chefe, senador Antonio Lemos, grande amigo de minha classe, e nos meus prezados amigos e distintos confrades (...). À habitual retórica da modéstia segue-se a homenagem ao “patrono” de sua carreira na imprensa e aos colegas jornalistas, nominalmente citados, o que evidencia um intento de consolidação de seus contatos e de suas lealdades políticas. (MORAES, 1908MORAES, Raymundo. Traços a esmo. Belém: Typographia Elzeviriana, 1908., p. 10-11).

Mais tarde, em 1917, Morais chega a participar da fundação de um jornal, A Razão, que se apresenta ao público como um “matutino de informações gerais, de linguagem sempre elevada e insuspeitável imparcialidade, como é mister que esta se compreenda e se pratique, sem paixão e sem predileções exageradas” (Varias...VARIAS noticias. Estado do Pará, Belém, ?? jan. 1917, p. 1.). O fato é que, apesar de propostas como essas, a imprensa regional possuía à época um caráter nitidamente partidário, o que se evidencia por ocasião da Reação Republicana. Reverberando os conflitos oligárquicos que marcavam a política brasileira naquela quadra, o movimento de apoio à candidatura dissidente de Nilo Peçanha à presidência da República encontrou em Raimundo Morais um militante exaltado, como se pode observar em artigos como “Vai sair à francesaMORAES, Raymundo. Vae sair á franceza. Estado do Pará, 19 out. 1921, p. 1.”, publicado no jornal OEstado do ParáESTADO do Pará, Belém, 30 abr. 1921. p. 1., libelo contra os arranjos de lideranças e a manipulação do sistema eleitoral característicos da República Velha (MORAIS, 1921MORAES, Raymundo. Vae sair á franceza. Estado do Pará, 19 out. 1921, p. 1.).

Quando da visita de Nilo Peçanha aos estados do Norte, o candidato tomou conhecimento do livro de Raimundo Morais sobre a Amazônia, e o citou no discurso pronunciado na Academia Amazonense de LetrasACADEMIA Amazonense de Letras. O Estado do Pará, Belém, 8 out. 1921. p. 1., fazendo referência a seu “dizer elegante” (Estado..., 8 out. 1921ACADEMIA Amazonense de Letras. O Estado do Pará, Belém, 8 out. 1921. p. 1.). Isso abriu um canal de diálogo entre o intelectual e o político. A campanha da Reação Republicana alimentou uma mobilização maciça da opinião pública, e levou a uma radicalização dos entusiasmos partidários que teve consequências importantes para a carreira de Raimundo Morais. Alguns meses depois do pleito que elegeu Artur Bernardes, um confronto no interior de um bonde levou o escritor a matar a tiros o jornalista Heráclito Ferreira, da facção oposta. A edição de 21 de agosto de 1922 do Jornal do Comércio, de Manaus, alinhado com os dissidentes, relata ter sido o comandante atacado pelos adversários, e “[v]endo que seus agressores avançavam para ele, no propósito de assassiná-lo, puxou do revólver, detonando tiros a esmo”. O ataque teria sido antecipado pelo jornal Estado do ParáESTADO do Pará, Belém, 14 out. 1921, p. 2., segundo a reportagem, que difunde uma versão simpática a Morais, tratado como vítima de uma emboscada (Os Estados...OS ESTADOS. Pará. Jornal do Commercio, Manaus, 21 ago. 1922, p. 1.). Interpretação completamente diversa foi divulgada, em nível nacional, pelo jornal carioca O País, alinhado à candidatura oficial, que narra a história em perspectiva favorável ao jornalista morto, que teria sido perseguido e atacado por Morais (O assassinio...O ASSASSINIO do jornalista Heráclito Ferreira, em Belém. O Paiz, Rio de Janeiro, 12 ago. 1922, p. 5.).

Imediatamente recolhido à prisão, Raimundo Morais foi, no entanto, isentado da acusação de assassinato e beneficiado por um alvará de soltura, decidindo mudar-se para Manaus, onde, a partir de 5 de dezembro de 1922, passou a exercer o cargo de diretor da Biblioteca, da Imprensa e do Arquivo públicos, após nomeação do governador do Amazonas. Aliado de seu grupo paraense, o político lhe confiou também a direção do jornal A Gazeta da Tarde, ligado ao situacionismo. Em 1924, com a emissão de uma carta precatória que questionava a decisão de sua soltura pela justiça paraense e a eclosão em Manaus do movimento de contestação que depôs o governador César do Rêgo Monteiro, o escritor se refugiou na Bolívia, retornando à capital amazonense no ano seguinte, quando voltou a exercer o mesmo cargo (LARÊDO, 2007LARÊDO, Salomão. Raymundo Moraes na planície do esquecimento. (dissertação de mestrado em Letras, Universidade Federal do Pará), 2007. Disponível em: Disponível em: http://repositorio.ufpa.br/jspui/handle/2011/1723 . Acesso em 01/02/2018.
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, p. 32, 34). Em janeiro de 1931, o Tribunal de Justiça do Estado do Pará concedeu um habeas-corpus a favor do escritor, restabelecendo a sentença que o havia absolvido do homicídio por legítima defesa. (O homicidio...O HOMICIDIO foi praticado em legitima defesa. O Jornal, Rio de Janeiro, 18 jan. 1931, p. 7.) Com isso, ele voltou a residir em Belém, onde, em 1933, foi nomeado pelo governo provisório inspetor federal do ensino secundário, em uma conjuntura de fortalecimento dos sistemas burocráticos de organização, controle e planificação social. (Actos...ACTOS do chefe do governo provisorio. Correio da manhã, Rio de Janeiro, 8 mar. 1933, p. 4.). Naquele Estado, foi também diretor da biblioteca pública e escreveu no jornal A crítica.

No período em que residiu em Manaus, sua carreira foi impulsionada pela publicação de uma série de coletâneas de ensaios majoritariamente voltados para temas amazônicos. A primeira delas foi Notas dum jornalista, de 1924, que novamente reunia artigos que já haviam sido publicados em jornais. O livro recebeu a atenção de alguns resenhistas do Rio de Janeiro, merecendo críticas favoráveis como a do Correio da Manhã, ainda que sem maior destaque no conjunto da imprensa (VELLOSO, 1924VELLOSO, Antonio Leão. Notas dum jornalista. Correio da manhã. Rio de Janeiro, 27 ago. 1924, p. 4.).

Com a publicação de Na planície amazônica, em 1926, a trajetória de Raimundo Morais experimenta por um ponto de inflexão decisivo, o que pode ser em grande parte atribuído a sua conexão com a política. Em julho daquele ano, em viagem ao Amazonas, o presidente eleito Washington Luís declarou sua admiração pelo livro, travando contato pessoal com seu autor. O jornal O País registrou seus efusivos elogios ao volume, “que S. Exa. considera uma fiel e formosa obra reveladora do grande vale equatorial.” (O presidente...O PRESIDENTE eleito em visita ao Amazonas. O Paiz, Rio de Janeiro, 24 jul. 1926, p. 2.). Alguns dias depois, o periódico publica na íntegra o discurso pronunciado pelo político durante sua recepção no Teatro Amazonas, acompanhado de um texto em que a história do livro de Morais é comparada à do Urupês, de Monteiro Lobato, que adquiriu popularidade ao ser incorporado ao discurso do candidato à presidência Rui Barbosa, em 1919, no contexto da Campanha Civilista (A Consagração...A CONSAGRAÇÃO de um livro. O Dr. Washington Luis e a lenda da Boiúna. O Paiz, Rio de Janeiro, 26 ago. 1926, p. 4.) De fato, a partir desse momento, o livro de Raymundo Moraes passa a receber menções cada vez mais numerosas da imprensa brasileira, em artigos voltados para temas amazônicos, e ele se torna colaborador do jornal carioca O País. Em novembro de 1927, recebe a maior consagração de sua carreira com a conquista do prêmio de erudição da Academia Brasileira de Letras, o que representava o reconhecimento de sua obra em um terreno particularmente valoroso onde se mesclavam a literatura e a ciência. Na planície amazônica teve cinco edições de 25 mil exemplares, tendo sido adotada pela Instrução Pública do Pará, Amazonas e do município de Manaus. Foi posteriormente incorporada à prestigiosa coleção Documentos brasileiros, garantindo a longevidade de sua publicação e sua difusão por todo o país. Mais tarde, País das pedras verdes tornou-se também material didático (LARÊDO, 2007LARÊDO, Salomão. Raymundo Moraes na planície do esquecimento. (dissertação de mestrado em Letras, Universidade Federal do Pará), 2007. Disponível em: Disponível em: http://repositorio.ufpa.br/jspui/handle/2011/1723 . Acesso em 01/02/2018.
http://repositorio.ufpa.br/jspui/handle/...
).

Ao longo de sua trajetória, são numerosos os registros na imprensa de iniciativas abraçadas por Raimundo Morais para a promoção de espaços de convívio entre intelectuais. Um deles foi sua presença em sodalícios e associações profissionais. Em 1913, fez parte da reorganização da Academia Paraense de Letras, que havia sido criada em 1900, tendo sido o fundador e primeiro ocupante da cadeira n. 15 (AZEVEDO, 1943AZEVEDO, J. Eustachio. Literatura paraense. 2. ed. aumentada. Belém: Oficinas Gráficas do Instituto Lauro Sodré, 1943., p. 102). Em 1935, assumiu a presidência da diretoria da Associação Paraense de Imprensa, que ele havia trabalhado para reativar (Reaparece...REAPARECE a Associação de Imprensa Paraense. Jornal do Brasil, 4 jan. 1935, p. 12.). Além disso, assumiu o protagonismo de iniciativas de promoção de eventos festivos que visavam o congraçamento dos letrados regionais com celebridades nacionais, organizando festas em homenagem a Oliveira LimaHOMENAGEM a Oliveira Lima. Estado do Pará, Belém, 19 maio 1920, p. 1., em 1920, e a Gastão Cruls, em 1928 (Estado..., A Amazonia...A AMAZONIA mysteriosa. Jornal do Commercio, Manaus, 9 set. 1928, p. 1.). Extrapolando o terreno estritamente literário, o escritor foi incorporado como um especialista em assuntos amazônicos ao “Comitê de defesa da borracha silvestre”, que reuniu membros da elite social e econômica do Amazonas em 1929 (Houve...HOUVE hontem a primeira reunião do comité pró defesa da borracha sylvestre. Jornal do Commercio, Manaus, 17 maio 1929, p. 1.). Como recíproca, com a consagração de Na planície amazônica, ele emprestou seu prestígio à Sociedade Literária dos Novos, de Manaus, da qual foi patrono (Varias, 22 jan. 1930VIDA literaria. Jornal do Commercio, Manaus, 24 set. 1930, p. 2.).

Nesse quesito, seu empreendimento mais ambicioso foi a apresentação de sua candidatura à Academia Brasileira de Letras, em 1931. Precedida de uma longa estadia no Rio de Janeiro, marcada por reuniões sociais e visitas à redação de jornais, anunciadas em notas espalhadas pela imprensa, o escritor acabou por renunciar a essa pretensão, juntamente com outros candidatos, em prol do nome de Santos Dumont, que foi eleito mas morreu antes de tomar posse (Raymundo...RAYMUNDO Moraes. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 26 fev. 1931, p. 12., As desistênciasAS DESISTÊNCIAS. O Jornal, Rio de Janeiro, 5 jun. 1931, p. 1.).

Uma das estratégias mais evidentes do escritor para consolidar seu nome no meio intelectual foi a utilização da imprensa para divulgar sua correspondência com personagens de renome, conferindo publicidade a seu capital relacional. Nos jornais em que o escritor trabalhou é possível encontrar referências, citações e transcrições de contatos travados por ele com homens de prestígio político e intelectual como o general Nilo Peçanha, Washington Luis, Mário de Andrade e Oliveira Viana, além de intelectuais estrangeiros que o procuravam para expressar sua admiração por Na planície amazônica e mesmo solicitar sua autorização para a tradução do livro para o espanhol, o inglês e o japonês, o que não veio a se efetivar (Na planície...NA PLANICIE Amazonica. O Paiz, Rio de Janeiro, 13 fev. 1927, p. 4., Nossa literatura...NOSSA literatura no Japão. O Paiz, Rio de Janeiro, 10 maio 1927, p. 2.). Na folha de rosto de seus livros publicados após 1930 ele passou a difundir sua condição de membro da Societé des Américanistes de Paris5 5 Sociedade etnográfica fundada em 1895 por Léon de Rosny, a partir da Société d’Etnographie Américaine et Orientale. De acordo com Christine Laurière, a instituição buscou atender ao programa de sábios que desejavam promover o estudo das populações ameríndias contemporâneas, de acordo com as bases científicas estabelecidas de acordo com o recente progresso da arqueologia e das ciências naturais, contra a tradição letrada clássica (2009). O Journal de la Societé des Américanistes publica, desde 1895, artigos científicos voltados ao estudo das sociedades ameríndias, nas áreas de arqueologia, linguística, sociologia, história, linguística e etnologia. , para a qual foi eleito como sócio em 1928.

Apesar da consagração intelectual obtida a partir de Na planície amazônica, os desafetos políticos do escritor continuaram a lhe dirigir diatribes, como a exigência de sua demissão do cargo de diretor da Biblioteca Pública do Pará por um grupo de partidários radicais da Revolução de 1930, que criticavam sua posição política tida como moderada, e a difusão da notícia falsa de sua morte, que chegou à grande imprensa em 1937 (Brutalidades... BRUTALIDADES contra a imprensa. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 16 abr. 1932, p. 1., Morreu...MORREU o chronista da Amazonia. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 14 dez. 1937, p. 3.). Esses eventos demonstram o radicalismo político do ambiente regional, embora o escritor tenha conservado o prestígio adquirido ao longo das décadas junto aos poderes dominantes, na forma da nomeação para cargos burocráticos e de concessões como a publicação de seu livro Machado de Assis nas oficinas gráficas do governo do Estado por ordem do interventor federal, em 1939 (O centenario...O CENTENARIO de Machado de Assis. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 4 jun. 1939, p. 3.). No ano seguinte, gravemente enfermo, foi visitado pelo presidente Getúlio Vargas, sinal evidente de sua elevada reputação entre a elite política do país. O escritor faleceu poucos meses depois (Tocantins, 2000TOCANTINS, Leandro. Um escritor nativista. In: MORAIS, Raimundo. Na planície amazônica. 7. Ed. Brasília: Senado Federal, 2000. p. XI-XXVIII., p. XX).

Levando em conta essa breve narrativa do percurso de Raimundo Morais no meio intelectual regional e nacional, caracterizado pela progressiva conquista de um capital simbólico capaz de instituí-lo como uma voz abalizada no debate sobre a realidade amazônica, buscaremos em seguida compreender a elaboração, em sua obra, de uma linguagem de autolegitimação que franqueasse a ele um espaço prestigioso entre os letrados do país a partir do contexto amazônico. Para tal, analisaremos a totalidade das obras não ficcionais de Morais produzidas de 1908 a 1941, de modo a observar possíveis mudanças de posição e readequações em seu discurso, sobretudo no que diz respeito ao diálogo com seus pares e suas fontes intelectuais.

Porque os sábios também sonham, e com que ronco, meu Deus!

O trabalho de Raimundo Morais, localizado à margem das instituições de pesquisa e do incipiente sistema universitário brasileiro, poderia ser hoje definido, em sua maior parte, como uma espécie de literatura de divulgação científica, haja vista seu esforço de compilação de conhecimentos variados relativos ao ambiente natural da Amazônia, ao longo de suas páginas ensaísticas e ficcionais. São obras de exploradores, viajantes, acadêmicos, cientistas, aventureiros, numerosas referências sobrepostas em descrições, narrativas e análises circunstanciadas, submetidas a um trabalho de seleção e síntese e ao olhar judicativo de um escritor que ostenta sua condição de leitor. Surgem daí debates específicos a partir do confronto de informações sobre temas de estudo tidos como mais relevantes ou mais polêmicos.

O escritor construiu uma obra posicionada em uma fronteira sutil entre o conhecimento científico e a literatura, sendo sua produção não ficcional aqui definida como ensaio. O termo é compreendido de acordo com o conceito cunhado por Massaud Moisés: gênero em prosa, de cunho didático, caracterizado pelo desenvolvimento de uma argumentação, evitando recorrer a fontes externas de autoridade. Elaborado com o objetivo de tornar algo inteligível, o texto ensaístico opera uma tomada racional de decisões sobre dado tema, e seria assim caracterizado, de acordo com a sua definição moderna elaborada por Michel de Montaigne: “a) o autoexercício das faculdades; b) a liberdade pessoal; o esforço constante para pensar original”. A conceituação do gênero inclui também sua valorização daquilo que se apreendeu a partir da experiência, e sua natureza essencialmente crítica (MOISÉS, 2004MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. Ed. revista e ampliada. São Paulo: Cultrix, 2004., p. 146-147).

Ao mesmo tempo, a literariedade - ou seja, “o que faz de uma determinada obra uma obra literária” (COMPAGNON, 2010COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria. Literatura e senso comum. Tradução Cleonice Paes Barreto Mourão, Consuelo Santiago. Belo Horizonte: UFMG, 2012., p. 40) - de seus ensaios científicos pode ser avaliada a partir dos expedientes estéticos mobilizados por ele. Seus textos são permeados por figuras de linguagem, citações da tradição culta, associações metafóricas, preciosismos estilísticos, analogias conceituais, visões retrospectivas, descritivismo paisagístico, simulação de experiências, evocações poéticas. Da mesma forma como seus ensaios científicos não abrem mão de recursos literários, tampouco seus romances abandonam o propósito da informação científica.

Para além disso, sua intenção declarada era a de ser um literato, mesmo que o componente artístico fosse declaradamente secundário em seus textos, posição paradoxal, mas compreensível tendo em vista o caráter não-formal de sua educação científica, e a existência de pelo menos um precedente na incorporação do discurso científico pela tradição literária brasileira - notavelmente, Euclides da Cunha, ao qual voltaremos mais adiante. Como ele escreveu na apresentação de uma de suas coletâneas, “[o] plasma literário deste volume pode não conter, como realmente sucede, a partícula aluvionária do ouro, mas contém a partícula glebária do estudo, matéria que solda as restingas intelectivas, as várzeas da pesquisa, a terra em ser do pensamento” (MORAES, 1937MORAES, Raymundo. Alluvião. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1937., p. 8).

O curto trecho citado demonstra que, para o escritor, embora a substância do saber estivesse na ciência, a literatura era a linguagem capaz de dar suporte a suas ambições dentro do campo intelectual brasileiro. Apesar da temática científica, seus recursos expressivos não mimetizavam a objetividade da teoria e da informação. Pelo contrário, são comuns em seus ensaios os efeitos de estilo, o acúmulo de palavras, o vocabulário precioso, que fazem com que sua escrita se aproxime muitas vezes daquela adotada pelos letrados brasileiros do início do século XX. José Guilherme Merquior os definiu como “self-made men”, intelectuais de origem social remediada ou modesta, para os quais o uso de uma linguagem pouco acessível traduzia uma capacidade intelectual superior, enquanto o sucesso nas letras equivalia a uma espécie de ascensão social (MERQUIOR, 1979MERQUIOR, José Guilherme. De Anchieta a Euclides: breve história da literatura brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979.). Nada muito distante do perfil de Raimundo Morais, sem dúvida, situação que se radicalizava pelo autodidatismo de sua formação e por sua atuação independente, divulgada por meio de jornais e obras voltadas para o público geral.

Apesar do peso da informação especializada e da escrita aparatosa, em algumas passagens de seus livros ensaísticos o emprego da técnica literária chega a ser bastante eficiente, como no trecho em que, ao considerar a origem adventícia dos povos que ocuparam a ilha de Marajó, o narrador fantasia sobre as primeiras impressões do aborígene em contato com o ambiente amazônico, reproduzindo a multiplicidade de estímulos sensoriais que os espécimes da mata apresentavam ao recém-chegado. Segue-se um curto trecho:

Teve o primeiro sinal da vida das abelhas na esplanada por um raio que, abrindo de alto a baixo uma piranheira, deixou expostos vários cortiços da jandaíra. Dos himenópteros melíferos do vale é ela o mais perfeito, produzindo um néctar louro, fresco e tão perfumado, que poderia figurar também nas Geórgicas, de Virgílio. Toda a colmeia em alvoroço dispersou assustada ao golpe daquela espada de fogo celeste, que deixava à vista os morenos favos de cera cheios de mel. Percebeu o íncola, naquele instante, a grandeza desses insetos dourados e trigueiros, que fabricavam, no mistério de um oco de pau, a bebida dos deuses. Desvendou-se-lhe o gineceu, a rainha, as obreiras e o voo nupcial das virgens; constatou aí o papel ridículo dos machos; verificou, em suma, a organização da sociedade apiária em todos os seus pormenores, concluindo por enxergar nas abelhas as verdadeiras amazonas aladas, pois que o todo o trabalho da colmeia resultava do labor feminino (MORAES, 1939cMORAES, Raymundo. O homem do pacoval. São Paulo: Melhoramentos , 1939c.: 49).

O procedimento do escritor tem um sentido essencialmente etnocêntrico, uma vez que nossa percepção dos fenômenos naturais não pode ser utilizada como parâmetro para definir a de outras culturas, se desconsiderados os componentes míticos, simbólicos e sagrados essenciais para a significação do mundo. (ESPINOSA, 2012ESPINOSA, Daniel. Metodología para el estudio de la percepción. In: MENTZ, Brígida von (org). La relación-hombre-naturaleza. Reflexiones desde distintas perspectivas disciplinarias. México: Siglo XXI, 2012.). De fato, ao idealizar o que se passava na mente de um índio, o escritor transfere a ele seu próprio olhar em direção à Amazônia, perpassado pela visada científica e produtivista. Em um ensaio dessa natureza, entretanto, a criatividade literária apresenta a possibilidade de explorar os horizontes da associação de ideias e do imaginário, e adiciona um componente insuspeitado à descrição do mundo físico, ao simular o primeiro contato com a floresta equatorial e suas sugestões sensoriais, artifício da linguagem conotativa através do qual o ambiente amazônico é imaginado a partir do impacto do mundo material sobre a sensibilidade, transferido ao leitor, também um estranho àquele universo físico, por meio da linguagem escrita.

Assim, o texto de Morais inscreve a fantasia no processo de difusão literária do conhecimento. Em outro nível, radicaliza esse procedimento ao explicitar a intercessão entre imaginação e ciência e defender a presença da primeira na construção da segunda. Nas páginas de suas coletâneas de ensaios, o melhor exemplo da identificação do componente criativo na concepção de uma hipótese científica é sua recapitulação da polêmica em torno da teoria das geleiras do naturalista suíço Louis Agassiz, episódio lembrado em vários momentos da obra do escritor paraense. Acreditamos que isso se deva tanto ao fato de que o debate envolveu a Amazônia, quanto por sua exemplaridade na discussão sobre a criatividade, a obsolescência e o erro na produção científica.

Agassiz havia adquirido notoriedade e prestígio acadêmico a partir da década de 1830, quando apresentou sua teoria das glaciações, que explicavam a formação dos Alpes Suíços como resultado da remoção de camadas maciças de terra operada pelas geleiras durante o Pleistoceno. Para isso, o autor lançou mão do conceito de drift, que faz referência a camadas superficiais de solo desprovidas de relação geológica com as camadas subjacentes, o que só poderia ser o resultado do deslocamento de materiais de outras formações por forças descomunais como as exercidas por maciças camadas de gelo. A ambição da Expedição Thayer, liderada por ele, era demonstrar a ocorrência do fenômeno também no Hemisfério Sul e, particularmente, na linha do Equador, o que justificou a viagem do naturalista ao Brasil, entre 1865 e 1866 (FREITAS, 2002FREITAS, Marcus Vinicius de. Charles Frederick Hartt: um naturalista no império de Pedro II. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002., p. 74).

Por outro lado, a Expedição Thayer reagia à ascensão da teoria darwiniana e à consequente realização de diversos trabalhos de pesquisa ao redor do mundo em busca de elementos para sua comprovação. O contexto envolvia um debate científico bem mais amplo que a teoria das glaciações, pois, para além de um tema específico, entravam em choque duas concepções de ciência. Como demonstrou Marcos Vinicius de Freitas, Agassiz mostrava-se preso a uma concepção idealista, teológica e finalista da natureza, embasada em um sistema metafísico que apelava à vontade divina como princípio explicativo do ordenamento do mundo físico, conforme um plano imutável. O evolucionismo darwiniano, ao contrário, descrevia a trajetória dos seres do planeta a partir de uma noção de historicidade total, pois mudanças se davam em função das necessidades de adaptação ao ambiente. Ao mesmo tempo, dotada de uma racionalidade científica mais estrita, a teoria de Darwin não buscava elementos explicativos da dinâmica das espécies fora das leis da própria natureza. Contrapostas as duas perspectivas, comprovar a validade de sua teoria na América do Sul, justamente onde Darwin havia realizado muitas de suas pesquisas, tornara-se para Agassiz um ponto de honra (FREITAS, 2002FREITAS, Marcus Vinicius de. Charles Frederick Hartt: um naturalista no império de Pedro II. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002., p. 62-69).

Em um livro dedicado justamente ao comentário da Viagem ao Brasil, de Elisabeth e Louis Agassiz, republicado em 1938 pela coleção Brasiliana, Raimundo Morais faz referência ao que seria o aspecto imaginoso da obra do naturalista, que, através de uma “estrondosa caraminhola”, teria dado impulso aos estudos amazônicos:

Foi Agassiz, com sua imaginação irrequieta, cheia de sonhos e pesadelos, de miragens e realidades que começou a meter, pelos ouvidos e pelos olhos dos sábios, fenômenos que só ele pressentira. Entre esses fenômenos avulta o mirabolante e estrondoso Período Glacial do Equador Brasileiro. Errado, não há dúvida, porém sensacional. Colhido na fantasia, é certo, mas roncante e dramático. Verdadeira novela científica, quase à moda interessante de Flammarion, trazia os pormenores curiosos que Agassiz propalara. Parecia um Eleito do Senhor conduzindo a chama esclarecedora de todas as sombras, de todas as penumbras, de todos os crepúsculos da nossa geologia (MORAIS, 1939aMORAES, Raymundo. À margem do livro de Agassiz. São Paulo: Melhoramentos , 1939a.: XX).

É o próprio Morais, no entanto, que narra a polêmica como uma “verdadeira novela científica”, modelada a partir de ferramentas literárias que narram o fiasco do naturalista, até então o mais célebre de sua época. Sua figura opõe-se à do jovem cientista, James Orton, apoiado pelos evolucionistas Darwin e Haeckel, que abre o caminho para o desmentido da teoria de Agassiz, por meio de um trabalho de campo mais amplo e minucioso que os anteriores, de modo a expandir os limites geográficos da pesquisa na região amazônica. Assim, Orton logra coletar provas contrárias à ocorrência de drifts no Brasil equatorial: “Coube a James Orton o grito de alarme a respeito da geografia física da Amazônia. Antes disso, a fantasia descritiva, mesmo dos grandes vultos que por aqui andaram, deleitava-se com visões cosmográficas” (1936, p. 216).

O termo “visões cosmográficas” remete aqui à “cosmografia antiga” discutida pelo autor em um artigo que atentou para o caráter místico e mítico da produção do saber geográfico no início da era moderna, em que as terras lendárias marcavam, “num tom vago e misterioso, os mapas mais positivos”, cujos traços eram invariavelmente delineados pela fábula6 6 Na definição de Carmen Lícia Palazzo-Almeida, o termo cosmografia correspondia a uma “referência de ordem geográfico-descritiva que remetia tanto ao real quanto ao imaginário, não se constituindo em documento de uso prático imediato, mas em fonte de referência ampla e abrangente” (2002, p.60). (MORAES, 1937MORAES, Raymundo. Alluvião. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1937., p. 47). “Cosmografia”, “fantasia descritiva” e “concepção imaginosa” são alguns dos termos utilizados por Morais para definir a teoria de Agassiz nesse contexto em que era posta em xeque, de maneira que o naturalista acaba por ser convertido na figura algo patética de um obcecado, que “enxerga sempre o drift em qualquer painel colorido das margens amazônicas” (MORAIS, 1939aMORAES, Raymundo. À margem do livro de Agassiz. São Paulo: Melhoramentos , 1939a.: 174).

Segue-se a narrativa dos sucessos da Expedição Morgan, dedicada a colher novos elementos para o estudo da geografia amazônica que conduzissem a uma comprovação ou refutação da teoria de Agassiz. Essa nova expedição, que viria de fato jogar por terra a teoria das glaciações no Hemisfério Sul, é escrita a partir de uma sucessão rápida de eventos igualmente dotada de superlativos e valorizada pelo componente espetacular da inovação dos métodos de pesquisa e da incorporação de cientistas partidários de novas tendências de investigação e de exegese de dados. Opõem-se, aqui, uma postura científica movida pela imaginação e outra embasada pela empiria:

Os processos modernos de estratigrafia e paleontologia abriram horizontes sensacionais, não somente na classificação da plaga, como também no fenômeno das geleiras, que se ventilava. O gênio de Elias Beaumont, aperfeiçoando as ideias de Horton, pai da nova geologia, guiou assim os investigadores do Baixo Amazonas, cujas dobras de chão, barrancas, refegos, pregas, plissuras, nas sinclinais e anticlinais, pelos montes, tabuleiros e baixadas, mexidos e remexidos, revelaram cousas imprevistas, e, sobretudo, contra a teoria do período glacial no Equador, de Agassiz. A documentação paleontológica auxiliou a reconstruir, através da carapaça, do coral, da alga e do graptolito a velha fisionomia pré-histórica da terra amazônica (MORAES, 1936MORAES, Raymundo. Na planície amazônica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 1936. 1. ed. 1926., p. 217).

Essa interferência da fantasia na história da ciência não é tratada por ele como uma excepcionalidade, apenas como seu caso mais retumbante, dada a “inteligência teatral” do cientista. Entre os sábios, ele escreve, “[a] imaginação, em determinados casos, sobrepõe-se-lhes aos problemas reais da rebusca em que moirejam” (1939cMORAES, Raymundo. O homem do pacoval. São Paulo: Melhoramentos , 1939c.: 9). Além disso, a ciência amazônica sofria, na visão do escritor, o peso da tradição textual desenvolvida desde o momento em que se iniciou a exploração da região, e que a sobrecarregava de mistificações, já que mesmo os naturalistas de formação científica do século XIX teriam, segundo ele, chegado ao Brasil “sob o império de leituras fantásticas, de notícias sensacionais, publicadas e divulgadas por naturalistas, exploradores, piratas, navegantes, catequistas” (MORAES, 1930MORAES, Raymundo. Paiz das pedras verdes. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 1930., p. 297). O autor refere-se aqui à construção mitológica da Amazônia a partir de um longo patrimônio textual que foi sendo criado desde o início do século XVI, e que, na visão do dele, comprometia ainda a construção de conhecimento sobre a região, no Brasil e no mundo (GONDIN, 1994GONDIN, Neide. A invenção da Amazônia. São Paulo: Marco Zero, 1994.).

O Amazonas, por exemplo, era uma “pérfida fonte de ficção”, teria dito Frederick Hartt (MORAIS, 1936/1926MORAES, Raymundo. Na planície amazônica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 1936. 1. ed. 1926., p. 55). Para Morais, a superposição da imaginação aos temas objetivos na história da ciência amazônica é um dado importante para a avaliação da bibliografia sobre a região: a “novela” criada por La Condamine a respeito da tribo das Amazonas; a atribuição, por Martius, do nome da ninfa Náiades à região amazônica, ao dividir o Brasil em províncias botânicas; o componente estético maciçamente mobilizado pelo próprio Hartt ao descrever a cachoeira das Guaribas, uma vez que “socorre-se de tanta nota comparativa de beleza que o seu painel transmuda-se numa tela de esteta” (MORAIS, 1939aMORAES, Raymundo. À margem do livro de Agassiz. São Paulo: Melhoramentos , 1939a.: 41). De fato, o naturalista canadense é atualmente tido como um autor de transição entre o espírito romântico e o cientificismo estritamente racional e desencantado da produção de conhecimento nas ciências naturais, estabelecendo uma conexão entre a tradição paisagística e os relatos de viajantes, por um lado, e a produção de conhecimento objetivo através do método científico, por outro (FREITAS, 2002FREITAS, Marcus Vinicius de. Charles Frederick Hartt: um naturalista no império de Pedro II. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002., p. 38).

Apesar dessa contraposição entre uma ciência romântica e uma ciência positiva, a imaginação segue sendo vista por Morais como ingrediente inseparável da produção de conhecimento geográfico. Friedrich Kätzer, por exemplo, escreve ele, “[i]maginoso, convincente e grave”, elaborou a hipótese do continente Guiano-brasílico, defendendo que não haveria quebra no território brasileiro, na altura do Equador, durante o período terciário. A força sugestiva de sua descrição era tanta que “o leitor via a aldrava de pedra barrando a calha majestosa do Amazonas”. A hipótese de Kätzer, escreve Morais, conduzia ao vislumbre de um continente que se estendia do golfo de Darien às serras cearenses. “A lenda e a fábula científicas reforçavam estes surtos cosmográficos. A Lemúria e a Atlântida criavam a Gondwana” (1939cMORAES, Raymundo. O homem do pacoval. São Paulo: Melhoramentos , 1939c.: 10).

Ou seja, a imaginação sobre as terras lendárias teria tido participação ativa na formulação de teorias sobre o passado da Terra, como aquela da Gondwana, supercontinente formado pela separação da Pangeia, englobando as terras que formaram o atual Hemisfério Sul (ALLABY, 2013ALLABY, Michael. A dictionary of geology and Earth sciences. 4. ed. Oxford: Oxford University Press, 2013.). Como observa Umberto Eco, nada há de absurdo na suposição da existência de terras submersas que em algum momento estiveram acima do nível do mar, como a Atlântida e a Lemúria, dada a teoria da deriva dos continentes, elaborada por Alfred Weneger em 1915, e a acima citada teoria da formação dos continentes pela divisão da Pangeia (ECO, 2013ECO, Umberto. História das terras e lugares lendários. Tradução Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2013., p. 182). A nós interessa, particularmente, a vinculação da história da ciência à mitologia operada por Morais, elemento de estetização que coopera com sua visão literária do conhecimento.

Segundo o escritor, a mera intercessão com o imaginário não tiraria dessas teorias sua cientificidade, comprovada pelos trabalhos de uma “multidão de sábios” que, segundo o escritor, apresentavam dados favoráveis à hipótese de Kätzer, bastando que nos reportássemos, escreve Morais, em um de seus habituais torneios de erudição:

(...) aos indutivos comentários de Gerber, às deduções de Benjamin Miller, às afirmativas de Brenner, aos raciocínios do conde de Castelnau, às observações de Derby, aos confrontos de Wappaeus, às análises de Henrique Santa Rosa, às digressões de Smith, às descobertas de Orton, aos balanços de Gibbon, aos planos de Eugênio Hussak, às cartas do Barão Homem de Melo, ao sentido de Cândido Mendes, ao julgamentos de Cunha Matos, às retificações de Luís Cruls, às descritivas de Saint-Hilaire, ao reconhecimento de Goeldi, ao exame de Rondon, às críticas de Humboldt (MORAIS, 1939cMORAES, Raymundo. O homem do pacoval. São Paulo: Melhoramentos , 1939c.: 10).

A própria sucessão de nomes pode ser lida como uma ferramenta literária que realça a erudição do escritor, aquele “efeito de lista” que opera o “extremo da objetivação”, identificado por Flora Süssekind nos relatos de viagem dos românticos brasileiros (SÜSSEKIND, 1996SÜSSEKIND, Flora. Palavras loucas, orelhas moucas. Os relatos de viagem dos românticos brasileiros. Revista USP, São Paulo, n. 30, 1996.: 97). A listagem, comum também nos trechos descritivos da obra de Morais, transfere-se aqui da identificação dos elementos da natureza para a exibição de seu enciclopedismo, por meio de uma nomeação em que a familiaridade do narrador com os onomásticos evocados e seus atributos intelectuais exacerba a reverência esperada da maior parte dos leitores.

Vimos acima que Morais não recusa definitivamente o valor da imaginação na construção do saber, mas, ao mesmo tempo em que a toma como uma fonte de inspiração legítima para a criação de hipóteses sobre o passado da Terra, não deixa de ver nela uma potencial ameaça à racionalidade científica, de que dá exemplo o comportamento obstinado de Agassiz em sua ânsia de ver comprovado seu vislumbre de uma imagem retrospectiva do passado geológico do planeta, que é também fruto do desejo de manter-se à dianteira da pesquisa científica nos novos tempos pós-Darwin. O espírito imaginativo e obstinado o predispõe ao erro, mas o que de fato condena sua teoria é sua contradição com as novas informações disponíveis. Invalidado pela pesquisa de campo mais avançada, o relato de viagem do naturalista havia se tornado, definitivamente, apenas uma obra literária, e sua leitura, naquele final dos anos 1930, só se justificava se feita “à semelhança duma novela, tão inventada como um drama, tão maravilhosa como um sonho, tão inquietante quanto um pesadelo” (MORAIS, 1939aMORAES, Raymundo. À margem do livro de Agassiz. São Paulo: Melhoramentos , 1939a.: 175). Considerando que apenas dois anos depois de sua viagem ao Brasil sua teoria já havia sido desautorizada, após três décadas de contínua inovação científica uma obra como a de Agassiz só poderia sobreviver por seu valor estético ou histórico.

No campo de interesse de Raimundo Morais, os assuntos amazônicos, o problema da objetividade científica parecia a ele ser ainda mais grave, não apenas pela tradição mitológica como porque, na segunda metade da década de 1930, a região era ainda pouco explorada, o que explica que formulações aparentemente seguras sobre sua geografia se reduzam, de fato, a conjeturas. “A confusão, como se vê, é evidente. Os sábios contradizem-se. Os letrados perturbam-se. Além de todas essas provas bambas, mais ou menos contraditórias, desdobram-se ainda teorias atrevidas sobre este rincão patrício” (MORAIS, 1936MORAES, Raymundo. Amphiteatro amazonico. São Paulo: Melhoramentos, 1936., p. 14). A mesma ideia estende-se à etnografia amazônica: “É tal a quantidade de grupos dispersos e constatados no panorama indígena do anfiteatro, que os etnógrafos se atrapalham, se perturbam, se contradizem” (MORAIS, 1936MORAES, Raymundo. Amphiteatro amazonico. São Paulo: Melhoramentos, 1936., p. 40).

Por outro lado, o escritor reconhece que os instrumentos de construção do conhecimento científico transformavam-se, ampliando o peso da evidência material em relação aos modelos baseados na abstração. Ele anota a tendência de reforma profunda nos fundamentos das ciências físicas, com base, sobretudo, na paleontologia, nos achados arqueológicos e em novas técnicas de tratamento das evidências materiais encontradas. A obtenção de respostas seguras para determinados problemas científicos curva-se, portanto, à historicidade do próprio conhecimento, que à medida que avançava abria novos caminhos e obscurecia os anteriores. Por exemplo, ao tratar da origem do caudal do rio Amazonas e da localização de sua foz, Morais expõe a resposta oferecida por alguns autores para em seguida denunciar a existência de diversos outros que contrariam seu argumento (1936, p. 6-12). O principal problema seria, nesse caso, justamente o surgimento de novos indícios que invalidavam as explanações até então aceitas e obrigavam os estudiosos a persistir na formulação de novas hipóteses, constatação que apontava para um revisionismo constante da teoria científica à medida da atualização dos dados empíricos que davam suporte a ela, e particularmente, para a contínua evolução das técnicas de tratamento das evidências concretas. A tessitura desse argumento parte, entretanto, da reafirmação do componente fantasioso do saber científico, que novos dados objetivos reposicionavam, mas não anulavam:

O que se vai descobrindo nos montes e nas baixadas, na pedra e na areia, no menir e no dólmã, reforma por completo a teoria, a doutrina, a visada e até o sonho entrevisto. Porque os sábios também sonham, e com que ronco, Meu Deus! Daí a marcha constante dos conhecimentos, das novas revelações, das descobertas nas grutas, nos páramos, nas encostas, nos abismos. Os fósseis têm concorrido na matéria para uma verdadeira revolução geognóstica. Cada dente, escama, unha, chifre, osso, coral achado nas dobras do chão, representa um deslumbramento palentológico para o analista dos refolhos das anticlinais e sinclinais. Abrem-se, então, com essas descobertas, horizontes novos sobre a geografia física, alterada por documentos irrefutáveis que desenham não somente a fisionomia pré-histórica da gleba, mas, o que é tudo: quem vivia nela, as árvores que a povoavam, as águas que a regavam (MORAIS, 1937MORAES, Raymundo. Alluvião. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1937., p. 55).

Em que pese a inovação dos métodos de pesquisa, para aquele que buscava respostas para as incógnitas da Amazônia o “sherlockismo científico” conduzia a frustrações e demonstrava o caráter provisório do saber. Essa perspectiva é criada a partir da observação das condições sociais de produção de conhecimento, pois “a iniciativa das observações se restringe ao particular, senão aos institutos científicos estrangeiros. Estudos que dependem do exame de vários anos, demandam muito tempo e dinheiro” (1936, p. 113, 181). Para ele, em seu fundo imaginativo e sua sucessão de novidades, o conhecimento científico não parecia ser um terreno totalmente firme, menos ainda no Brasil, que dava os primeiros passos na pesquisa científica e na formação de um sistema universitário.

Em tal contexto, as ideias de Morais enfatizam - e, quiçá, exageram - o caráter subjetivo, passional e inconstante do conhecimento, remetendo-nos ao debate conduzido por Bruno Latour em Jamais fomos modernos. Podemos observar que os contrassensos da história do saber científico sobre a Amazônia apontados pelo escritor paraense giram em torno da observação do que, na elaboração de Latour, seriam as intercessões entre três dos repertórios, teoricamente incompatíveis, elaborados pelos modernos na busca de controlar os chamados quase-objetos, ou seja, os fenômenos simultaneamente naturais e sociais. O primeiro deles diz respeito à natureza, dimensão idealmente intocada pelos desejos e paixões humanos. Vemos que a narrativa do caso Agassiz ao longo da obra de Morais é organizada justamente através de uma constatação do que seria a interferência das vaidades e obsessões do cientista na construção de sua teoria, que perde assim a objetividade necessária à observação de uma realidade alheia ao homem. Um segundo repertório, relativo aos vínculos sociais e ao estabelecimento de relações entre seres humanos movidos por sentimentos e emoções, e que encarnam as estruturas da sociedade, vê-se envolvido no debate de Morais à medida que as condições sociais da produção de conhecimento comprometeriam, segundo ele, a factibilidade de um saber estável e durável, em que pese a observação pelo autor de novos métodos, mais científicos, na produção de ciência. Há ainda um outro repertório mobilizado pelo escritor para acusar a inconfiabilidade do conhecimento acumulado sobre a região amazônica: o domínio do discurso, a escrita do saber sobre a Amazônia segundo fórmulas culturalmente consagradas, resultado da contaminação da linguagem narrativa lendária e romanesca no modo de enunciação empregado pelos sábios, ao contrário de uma ideal redução da linguagem científica à tarefa de mera transmissão de conteúdos (LATOUR, 2009).

Através de uma construção discursiva que embaralha os repertórios identificados por Latour, teoricamente incompatíveis entre si, Morais aponta para a instabilidade e a não confiabilidade da ciência produzida sobre a Amazônia, o que não significa desconsiderá-la, e sim induzir à aceitação de sua própria obra como forma legítima de difusão de conhecimento. Nesse ponto, o escritor, que abraçou a escrita literária e fez uso também da ficção, naturaliza sua inclusão no debate científico ao inserir o conhecimento acumulado sobre a Amazônia na ordem da literatura, das paixões e do condicionamento social. Seu discurso sobre a ciência desempenha, portanto, um papel relevante na legitimação de seu status no meio intelectual brasileiro, fundamentalmente o de um literato, mas também um conhecedor daquela realidade, em grande parte ainda alheia à maior parte do país. Mas há outro elemento a ser incluído nessa discussão: Raimundo Morais tampouco abre mão de ser reconhecido como revisor e produtor de saber.

A ciência não é mais privativa dos especialistas

Na introdução de um de seus livros, Morais define a flora amazônica como um teatro de lutas, hibridizações, transformações, conflitos, “que assombram e perturbam a alma de quantos palmilham a floresta”: “Esses fenômenos botânicos, vistos com alarme, transformam o curioso em naturalista, do mesmo passo talvez que a folha se modificando em flor, transforma o naturalista em poeta” (MORAES, 1927MORAES, Raymundo. Cartas da floresta. Manaus: Clássica, 1927., p. 13). O olhar de naturalista seria, portanto, inspirado pela própria natureza, de maneira que Morais via-se no direito, como observador informado, de considerar-se como tal e participar do debate, emitir opiniões e mesmo formular suas próprias teorias. Observe-se que sua concepção de trabalho científico se mantém fiel ao paradigma da história natural, a “nomeação do visível”, na definição de Michel Foucault, prática aparentemente simples, ingênua e imediata de identificação das estruturas que compõem um organismo vivo por meio do uso sistemático do sentido da visão para descrever essas partes e sua articulação no todo (FOUCAULT, 2000FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Uma arqueologia das ciências humanas. Tradução Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2000., p. 181-190).

Na obra de Morais, aquela desconfiança em relação à positividade da ciência de que falávamos acima encontra sua contrapartida na autoatribuição de uma autoridade adquirida por meio dos impressos científicos, mas referendada pela experiência do contato visual com a natureza. Segundo o escritor paraense, com a ampla difusão do conhecimento científico produzido internacionalmente por meio da imprensa e do livro, “a ciência não é mais privativa dos especialistas” (1939aMORAES, Raymundo. À margem do livro de Agassiz. São Paulo: Melhoramentos , 1939a.: 175). Acompanhar a produção do saber científico não seria apenas um direito, mas um dever do leitor-observador, já que “[o] naturalista tem que ser policiado pelo curioso”, capaz de verificar o acerto de uma descrição científica através da verificação imediata (2001/1924, p. 6). O escritor autorizava-se, assim, a participar do processo de produção do conhecimento científico:

Somente quem tenha um largo contato com o golfam [sic] que se arqueia entre Macapá e Salinas, abrangendo o escoadouro de vários rios, e estejam [sic] portanto, no conhecimento geológico das suas barrancas, das suas campinas, dos seus taludes, do volume das suas águas, do trabalho telúrico dos seus rios, do regime fluvial, do fluxo e refluxo da maré atlântica, aqui, acolá, pelo montante, pelo juzante das ilhas, das penínsulas -, pode fazer uma ideia aproximada da verdade, desde que jogue com as observações colhidas in loco, na faina de cruzar todos os quadrantes da rosa, e o cabedal recolhido cientificamente na cultura do gabinete (MORAES, 2001/1924MORAES, Raymundo. Notas dum jornalista. Fac-similado. Manaus: Governo do Estado do Amazonas, 2001. 1. ed. 1924., p. 91-92).

Esses são os procedimentos essenciais da atuação do escritor no campo da “indecisa e falível” geografia: o confronto entre a leitura de obras científicas de diversas áreas da pesquisa com realidades que conhecia como observador. Isso o conduz, em alguns pontos, a considerar a experiência de navegador suficiente para referendar seus posicionamentos nas polêmicas científicas em curso, como naquela a respeito do rio Tapajós, que alguns consideravam afluente do Amazonas, mas outros não. Como prático e depois comandante, Morais acreditava ter adquirido, graças ao hábito de percorrer a foz do Amazonas, o poder de mirar a geografia do lugar retrospectivamente, como se tivesse desenvolvido a capacidade de retroceder a imagem dos movimentos das correntes fluviais, de maneira que o passado “imemorial” se revelasse a ele:

Os navegantes, como eu, que subiram cem, duzentas e trezentas vezes pelo golfo equinocial que se escancara para o Atlântico, comprovam que o Tocantins, em tempos imemoriais, quando ainda pelo oeste de Marajó não existiam os estreitos de Breves - era afluente do Amazonas (MORAIS, 1939cMORAES, Raymundo. O homem do pacoval. São Paulo: Melhoramentos , 1939c., p. 27-28).

Ele não se dedica, portanto, apenas a compilar a informação científica existente, como a interferir na discussão entre sábios e difundir sua própria posição a respeito dos fenômenos da ciência, problematizando e colocando à prova aquilo que lia a partir do que havia visto. Sua vivência no ambiente amazônico torna-se, em sua obra, um fator relevante para endossar ou não informações recolhidas nos livros. Assim, embora não possuísse a formação acadêmica necessária a dar suporte a um trabalho original de pesquisa, o escritor acreditava-se possuidor de um conhecimento in loco que o autorizava a dialogar com os autores que lia e confrontá-los, caso identificasse discrepâncias.

“Uma característica de todos os índios que tiveram contato comigo, na Amazônia, é falar baixo”, escreve ele, a propósito da identificação dos traços comuns entre as diferentes etnias amazônicas, informação citada para fortalecer seus argumentos a respeito da origem desses nativos - argumentos que não foram formulados por ele, mas frente aos quais se posicionou, buscando elementos comprobatórios em experiências vividas, ainda que assistemáticas e circunstanciais. A origem dos indígenas amazônicos, em particular daqueles que povoaram a ilha de Marajó, foi um dos principais debates apresentados em seus estudos amazônicos. Tratando-se de uma questão em aberto, o escritor procurou demonstrar o processo a partir do qual formou sua posição, que apresenta acréscimos consideráveis ao longo de sua obra, o que implicava em incorporar novos estudos e rever posições:

Eu mesmo já pensei que os primitivos marajoaras proviessem duma caminhada imemorial do norte para o sul, ao fio do espinhaço das três Américas. Examinando melhor, meditando sobre cada tribo errante ao longo do vale equinocial, verificando bem o grau de civilização em que esta ou aquela permanece, retifico as anteriores ideias: o índio amazônico veio do largo, trepado na grimpa encarneirada da onda azul, e vai agora subindo a planície (MORAES, 1927MORAES, Raymundo. Cartas da floresta. Manaus: Clássica, 1927., p. 23-24).

São várias as teorias apresentadas pelo escritor ao defender a ascendência adventícia do indígena, e que englobam problemas de geologia, antropologia, arqueologia e etnologia. Em torno da cerâmica marajoara, por exemplo, diversos temas específicos recebem sua atenção, pois o autor se mostra disposto a encontrar suas próprias respostas a partir do estudo da bibliografia especializada. Exemplo disso é a investigação que realiza sobre possíveis similares à tanga de louça encontrada nas escavações arqueológicas da ilha de Marajó: “aventurei-me a examinar, num exaustivo trabalho de gabinete, a louça de vários povos colombinos a fim de surpreender-lhes, na cerâmica, a figura triangular de argilas, o folium-vitis7 7 Folim vitis: folha de parreira. de barro” (MORAIS, 1939cMORAES, Raymundo. O homem do pacoval. São Paulo: Melhoramentos , 1939c.: 159). Através de procedimentos como esse, Raimundo Morais acreditava-se participante ativo da prática científica no país.

No mesmo sentido, no livro de comentário à Viagem ao Brasil, dos Agassiz, o escritor recusa uma informação porque não acredita na possibilidade de desconhecê-la, buscando apoio em outros moradores da região para referendar a informação adquirida pela experiência pessoal e recusar a informação científica.

É com o maior escândalo que confesso ignorar a existência do peixe chamado anajás. Navegador da rede hidrográfica da Amazônia desde a marema atlântica, na foz do Rio-mar, até o pongo de Manseriche, último desfiladeiro andino, derradeiro colete de pedra alpestre da maravilhosa artéria de água doce, sem contar os inúmeros tributários que naveguei - jamais ouvi falar de um peixe anajás. Com esse nome conheço um rio ilhéu marajoara, um município, uma cidade, uma banana e uma palmeira, estas duas últimas quase sempre escritas com I. Inajá palma foi classificada por Martius como Maximiliana Regia. Não me limitei, porém, nesse caso, à minha memória. Fiz uma espécie de enquête verbal entre amigos. Ninguém conhece o peixe anajás. Fui além. Abri vários tomos especializados na matéria e não encontrei o peixe referido pela redatora do Diário (Grifos do autor. MORAIS, 1939aMORAES, Raymundo. À margem do livro de Agassiz. São Paulo: Melhoramentos , 1939a., p. 129-130).)

Lembre-se que a ictiologia era a especialidade de Louis Agassiz como pesquisador. No entanto, Raimundo Morais busca afirmar-se como algo mais do que um mero consumidor e divulgador de informação científica e não reconhece nos cientistas consagrados uma autoridade absoluta. Seus estudos sobre a Amazônia poderiam ser definidos, também, como estudos sobre a bibliografia amazônica, pois cada volume é posto em diálogo com outras fontes de dados disponíveis, que podem ser livros e artigos, sua memória e o depoimento de testemunhas de seu universo de referência, sendo uma demonstração explícita daquela dinâmica entre aproximações e afastamentos em relação às obras de referência a que se refere Bourdieu ao definir o trabalho erudito (1974, p. 144-145). No ilustrativo caso citado acima, o escritor termina por recusar a informação impressa, concluindo que se tratava de um erro na grafia do nome do peixe ou de um equívoco do tradutor.

Levando em conta sua condição de leigo e de autodidata, o escritor não parece ter se preocupado em ferir susceptibilidades, em que pese sua posição intermediária entre o sistema erudito e o mercado de livros, como produtor de um bem simbólico com valor mercantil, mas cujo conteúdo é tomado de empréstimo à produção erudita (BOURDIEU, 1974BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. Tradução Sérgio Miceli et al. São Paulo: Perspectiva, 1974., p. 137-138). Em sua primeira obra, publicada em 1908, o escritor compila artigos publicados por ele no jornal A Província do Pará sobre a temática da navegação, à qual se dedicava profissionalmente. Nesse livro, escrito quando ainda não havia se estabelecido como intelectual, não se intimida em apontar os erros que teriam sido cometidos por Jacques Hüber, então diretor do Museu Emilio Goeldi, em artigo no Boletim do Museu8 8 O museu foi criado em 1871 como Museu Paraense de História Natural e Etnografia. A partir de 1900, passou a ser denominado Museu Emílio Goeldi e, a partir de 1931, Museu Paraense Emílio Goeldi. . Além de citar obras de vários autores e comparar suas posições a respeito dos temas tratados, discorda do cientista na descrição e classificação de aspectos da topografia da região dos Estreitos de Breves, apresentando suas próprias definições a partir de sua observação pessoal (MORAES, 1908MORAES, Raymundo. Traços a esmo. Belém: Typographia Elzeviriana, 1908., p. 51-55).

Em meados da década de 1920, depois que havia já abandonado a navegação e passara a se dividir entre a política e a vida intelectual, Morais aprofundou e ampliou o escopo de seus estudos amazônicos, passando a tratar de temas bem mais diversificados. Já no primeiro livro publicado nessa fase, Cartas dum jornalista, apresentou sua tese da futura incorporação da ilha de Marajó às terras do continente. Segundo ele, enquanto as ondas do mar desgastavam o litoral das ilhas do estuário amazônico, a leste, o rio, a oeste, aumentava o perfil dessas, depositando nelas sedimentos que tendiam a ampliar seu território. Em Marajó, as proporções entre esses processos de desgaste e acumulação seriam maciças, de modo que a ilha vinha se “deslocando” em direção à terra firme do vale amazônico, vindo a ser, no futuro, agregada ao continente (MORAES, 1924, p. 5-13).

A defesa dessa tese acaba convergindo com o enfrentamento da figura de Euclides da Cunha, que parecia ser um grande desafio para a inserção do escritor paraense no meio letrado brasileiro. É certo que isto se deva, principalmente, à semelhança entre as obras dos dois autores - ensaios literários de temática geográfica repletos de informação científica -, à posição de referência no nacionalismo brasileiro alcançada por Euclides desde o lançamento de Os sertões, em 1902, e, particularmente, aos livros escritos por ele com artigos sobre a Amazônia. Contrastes e Confrontos (1907) e À margem da história (1909) haviam ligado seu nome tanto à região amazônica quanto ao sertão, o que explica que ele seja o principal autor literário do qual Morais ocupa-se em seus livros.

Os elogios ao estilo euclidiano distribuem-se generosamente nos textos em que Morais aborda sua obra, pois caminham pari passu com os equívocos de conteúdo nela identificados. Inicialmente, consideram-se as dificuldades que a própria grandiosidade do Amazonas impunha ao estudioso, o que explicaria “os erros literários nas empenachadas narrativas dos eleitos do Senhor”. A geografia, diz ele, não era mais descritiva e sim explicativa, e naquele momento dependia de números, pois “[n]estes torneios positivos, o estilo arrebatado e a própria sonoridade estética têm que ceder o passo ao rude chavão da matemática. Cem milhas para dentro duma zona cheia de bancos e coroas é o naufrágio, pelo menos o encalhe, da beleza e da arte”. Não havia beleza possível, portanto, se o saber geográfico falhava - aqui, Euclides é atacado em seu próprio campo, a excelência estilística, invalidada pelo erro técnico, devido, nesse caso específico, à amplitude da embocadura do Amazonas. Devia-se, também, à displicência do viajante, “mais ou menos apressado”, que deixava de recorrer às estimativas geodésicas (MORAES, 1936MORAES, Raymundo. Na planície amazônica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 1936. 1. ed. 1926., p. 5-6). Apontando o erro de Euclides, Morais evoca sua posição privilegiada de navegador, afeito aos números e aos dados objetivos.

A reação a essa identificação imediata de sua obra com a de Euclides da Cunha mostrou-se ainda mais inflamada e maliciosa quando a obra deles foi imediatamente associada no campo científico. Em um artigo do arqueólogo Raimundo Lopes, publicado no volume VII do Boletim do Museu Nacional em 1931, a teoria da futura incorporação da ilha de Marajó ao continente, citada acima, foi simultaneamente associada à teoria das glaciações de Agassiz e à obra euclidiana. Lopes havia escrito:

O escritor Raimundo Morais, valendo-se de sua experiência de piloto do rio-mar, amplia a tese, não só mostrando fatos, observações que comprovam a sedimentação do provável futuro istmo de Breves, como traçando a marcha da ilha de Marajó, corroída a N. e L., e dilatada a S. e O., atravessando o vale. É verdade que esse observador parece ainda influenciado pela noção das barragens glaciárias de Agassiz, hoje virtualmente abandonada pela ciência e que a sua imaginação se compraz na visão desse caminhar de terras à qual Euclides da Cunha já dera página sugestiva; em todo o caso sua contribuição para a tese é sugestiva (LOPES, 1931LOPES, Raimundo. Entre a Amazonia e o sertão. Boletim do Museu Nacional, v. VII, n. 3, Rio de Janeiro, 1931, p. 159-185., p. 161. Destaques do autor).

Em sua resposta ao artigo, Morais ignora o reconhecimento de sua contribuição pelo cientista, e trata de afastar-se das duas figuras então associadas a ele, Agassiz e Euclides da Cunha. Em primeiro lugar, professa ter sido sempre contrário à tese do naturalista suíço - e, de fato, quando ele começou a escrever para jornais e publicar em livro, essa já havia sido há muito desautorizada. Quanto a Euclides, Morais nega ter sofrido dele qualquer influência, afirmando que os mananciais de onde retirava seu conhecimento eram a observação imediata da natureza e os livros científicos.

Se eu tivesse pois de me dessedentar nalguma fonte alheia àquela em que bebo diretamente, não iria à de Euclides, mas à dos samaritanos científicos que se chamam Hartt, Derby, Herndon, Martius, Ladario, Branner, Maximiliano da Prússia, Eherenreich, Katzer, Rathbun, Goeldi, Huber, Klarke, Ferreira Penna, Bates, Wallace, La Condamine, Herbert Smith e tantos outros que viram paciente e demoradamente a natureza dentro da qual naveguei e habito (MORAES, 1936MORAES, Raymundo. Na planície amazônica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 1936. 1. ed. 1926., p. 80).

Vemos que os dezoito nomes de naturalistas listados acima pretendem autenticar o fundamento científico dos livros de Morais, mas não são isolados da experiência profissional (“naveguei”) e do convívio cotidiano com o meio (“habito”), aspectos inseparáveis, como vimos, na prática intelectual forjada pelo autor (MORAES, 1936MORAES, Raymundo. Na planície amazônica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 1936. 1. ed. 1926., p. 80). Além disso, continua Morais, o escritor fluminense havia conhecido apenas uma área muito restrita da Amazônia, limitada à rota da expedição de reconhecimento que chefiara, da qual transmitiu “uma notícia impressionante, mais literária que científica” (MORAES, 1936MORAES, Raymundo. Amphiteatro amazonico. São Paulo: Melhoramentos, 1936., p. 83).

Mais adiante, a ofensiva continua, à medida que Morais revela um entendimento próprio e, no fundo, sarcástico, da escrita euclidiana: ele teria de fato lido muitos autores, e incorporado suas ideias, de maneira que não se teria dado conta de que replicava o conteúdo produzido por outros, ao qual conferia seu característico colorido: “A larga cultura de Euclides deixava-lhe por certo na memória resíduos de leitura que o subconsciente corporificava depois como dele em letra e forma, e que só o acaso nos leva a descobrir no confronto diuturno dos livros”. Seguem-se citações de obras de Orville Derby, Charles Darwin e Charles Hartt, intercaladas com trechos em que, segundo Morais, Euclides reproduz “irrefletida e floridamente” suas ideias, para demonstrar a semelhança e exemplificar o que seria essa apropriação involuntária do trabalho alheio, que ele, também involuntariamente, constatara em suas leituras científicas. Ficaria evidente “a traição da retentiva prodigiosa do autor de Peru versus Bolívia”, aquilo que “o extraordinário autor d’Os sertões, sem dizer donde tirara, dava como seu” (MORAES, 1936MORAES, Raymundo. Na planície amazônica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 1936. 1. ed. 1926., p. 80-81).

Além disso, Euclides da Cunha teria errado também na escolha de suas fontes científicas. Morais identificava a origem de um dos grandes equívocos dele na obra de Elisée Reclus, geógrafo reconhecido que atuava como compilador, baseando suas sínteses em pesquisas monográficas alheias. No entanto, apesar de apelar para própria sua condição de “testemunha visual dos fenômenos amazônicos”, a posição do escritor a respeito da necessidade da produção do saber a partir da pesquisa in loco não é coerente ao longo de sua obra (MORAIS, 1937MORAES, Raymundo. Alluvião. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1937., p. 159). No caso de Reclus, o fato de não ter desenvolvido sua teoria a partir da observação direta tirava dela, diz Morais em texto publicado em 1926, muito de seu prestígio (1936/1926, p. 48). Em outros trechos de seus livros - tanto anteriores quanto posteriores a 1926 - ele louva e homenageia Reclus, “o próprio gênio francês em geografia” (1939cMORAES, Raymundo. O homem do pacoval. São Paulo: Melhoramentos , 1939c.: 51), salientando que, apesar de não ter tido seu trabalho baseado na observação dos fenômenos naturais em pesquisa de campo, ele escrevia “como se os tivesse visto”, “aparentando antes a segurança do observador direto” (2002/1924, p. 100). O valor e a capacidade de permanência de uma obra, diz ele, não poderia ser avaliado apenas em função da pesquisa própria, pois “[é] fato que as melhores geografias da Amazônia pertencem a dois sábios que nunca botaram o pé nestas plagas, Élisée Reclus e J.E. Wappaeus” (1940, p. 59). Ao que parece, a reverência ao geógrafo francês somente foi suspensa para fins polêmicos. Nos demais casos, o elogio a Reclus é caloroso e bastante compreensível, uma vez que o próprio trabalho de Morais foi realizado com base no estudo e na síntese comparativa de monografias especializadas, mas não da pesquisa de campo sistemática, embora o escritor acreditasse contar com o privilégio da observação direta. Esse elemento ilustra o componente combativo de sua obra, a nosso ver induzido pelos seus esforços de aceitação e abertura de oportunidades no meio intelectual.

Em sua crítica a Euclides da Cunha, Morais nega, assim, a teoria de que as terras do delta do Amazonas seriam constantemente arrastadas pelas correntes equatoriais que rumavam para o Norte, depositando-se na costa norte-americana. A partir de Reclus criou-se, assim, escreve Morais, “[e]sta linda ficção, de um território em marcha”, verdadeira “lenda” que, segundo ele, conduzia à estigmatização do Amazonas, ao atribuir ao rio ação antipatriótica (MORAIS, 1936/1926MORAES, Raymundo. Na planície amazônica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 1936. 1. ed. 1926., p. 49). Nas palavras de Euclides:

Naqueles lugares o brasileiro salta: é estrangeiro, e está pisando terras brasileiras. Antolha-se-lhe um contrassenso pasmoso: à ficção de direito estabelecendo por vezes a extraterritorialidade, que é a pátria sem terra, contrapõe-se uma outra: a terra sem pátria. É o efeito maravilhoso de uma espécie de imigração telúrica. A terra abandona o homem. Vai em busca de outras latitudes (CUNHA, 1909/1913CUNHA, Euclydes da. À marjem da historia. 2. ed. Porto: Imprensa Moderna, 1913 (1. ed. 1909)., p. 14).

A metáfora esposada pelo autor d’Os sertões - e pelo jurista Carvalho de Mendonça, também alvo da crítica de Morais9 9 Carvalho de Mendonça repete a indignação nacionalista contra o Amazonas, em sua obra clássica sobre o direito das águas, publicada pela primeira vez em 1909: A razão do fenômeno observado no Amazonas, é precisamente o ímpeto da corrente do rio, combinado com o das correntes oceânicas. Logo que aquela atira ao Atlântico a poderosa massa de detritos, este a arrasta pelo litoral das Guianas, a leva ao mar dos Caraíbos [sic], e ao Golfo do México, ao longo das Pequenas Antilhas e Ilhas Bahamas, e só o depõe definitivamente no litoral da Geórgia e das Carolinas. Estranho espetáculo que só apresentam os fenômenos naturais do nosso Brasil: o delta do Amazonas é situado nos Estados Unidos! (MENDONÇA, 1939, p. 49). - ajustava-se bem ao pessimismo naturalista característico de seu tempo, mas não agradava aos entusiasmados ouvidos nacionalistas de Raimundo Morais, em pleno Estado Novo, do qual foi apoiador e beneficiário. Compreende-se, portanto, que o escritor paraense acabe repetindo a metáfora, mas com sinal invertido, ao defender que a terra amazônica não era solapada pela água do rio e conduzida ao oceano. A ação do rio seria, pelo contrário, de remover terras da montanha da qual se originava, agregando-as à planície amazônica, ou seja, movendo a terra de um país estrangeiro para o interior do território nacional.

A volumosa artéria, que é o rio-mar transporta, não há dúvida, um desmedido território em marcha, mas patrioticamente furtado ao hinterland dos nossos vizinhos do Anfiteatro. Nessas condições, a massa aluvial que reponta na gigantesca província deltaica da área caçula do globo, é, antes, um trabalho cívico do poderoso e barrento rio” (MORAIS, 1941MORAES, Raymundo. Um eleito das graças (José Júlio de Andrade). Belém: Oficinas Gráficas do Instituto Lauro Sodré , 1941., p. 51).

A obra de Morais demonstra, assim, o potencial de incorporação de inflexões político-ideológicas ao conhecimento geográfico, à medida que se atribuem significados aos elementos da natureza, convertidos em sujeitos da realidade social. Nesse caso, o rio exerce o papel de agente histórico, suscetível, portanto, ao julgamento de suas ações. Sendo o orgulho da grandiosidade natural do país um dos grandes temas de exaltação patriótica no Brasil desde o Romantismo, não menos valorizado pelo regime varguista, a salvaguarda ideológica do rio Amazonas contribui para que o autor, em um único movimento, sobreponha-se a Euclides da Cunha e se alinhe ao discurso do regime.10 10 Como atentou Marco Aurélio Coelho de Paiva, a falência da política oligárquica tornou obrigatório o realinhamento da atividade intelectual do país e deu impulso revisões dos modelos de representação da nacionalidade, conduzindo a uma maior valorização de escritas voltadas para veicular aspectos objetivos e documentais das realidades regionais, vistas sob nova perspectiva. É nesse contexto que Morais publica seus três romances, resultado do consórcio entre a tradição ensaística que abrigava o discurso científico e o romance social em voga na década de 1930 (PAIVA, 2016). Na produção discursiva do regime, veja-se, particularmente, o chamado Discurso do rio Amazonas, pronunciado por Getúlio Vargas em 10 de outubro de 1940, que gira em torno da submissão da natureza da região aos propósitos de promoção do desenvolvimento socioeconômico, articulados à centralização política e ao fortalecimento da burocracia estatal (VARGAS, 1941).

No caso de Raimundo Morais, estava em jogo a imposição de sua autoridade intelectual sobre a herança euclidiana, sem negar valor a seu trabalho literário, mas reduzindo-o a isto, ao apontar a necessidade de uma leitura científica mais qualificada de seus escritos. Em um contexto de ascensão do conhecimento acadêmico e da pesquisa especializada, sua produção de cunho ensaístico elaborada com apoio de recursos retóricos e estilísticos buscava referendo na erudição do “trabalho de gabinete” e na experiência pessoal. A condição de literato definia, portanto, uma forma alternativa de inserção no meio intelectual nesse contexto, ainda que Morais não renunciasse ao reconhecimento de sua expertise científica - o que explica, a nosso ver, suas diatribes contra a figura de Euclides da Cunha.

De fato, os estudos amazônicos eram, no início da década de 1940, uma área sensível em termos políticos, pois intensificavam-se os investimentos na promoção do conhecimento sobre a região e na adoção de iniciativas voltadas para sua incorporação ao sistema produtivo nacional. Exemplos disso são a promoção da pesquisa epidemiológica, através, por exemplo, do Serviço de Estudos de Grandes Endemias (1940), e dos levantamentos geográficos, no contexto da delimitação das fronteiras setentrionais do país, sob a responsabilidade das Forças Armadas, e da criação de instituições que traduziam a ampliação da ação estatal sobre a região, como o Instituto Agronômico do Norte (1939). Tais programas articulavam-se ainda à chamada Marcha para Oeste¸ plano de colonização e povoamento lançado em 1937, que visava à ocupação efetiva dos territórios das atuais regiões Centro-oeste e Norte do país. Assim, acreditava-se que, sob a égide da ciência e do planejamento estatal, a Amazônia haveria de ser efetivamente integrada ao país, em uma conjuntura de complexificação da máquina burocrática, domínio do poder executivo autoritário e controle estatal sobre a sociedade (GARFIELD, 2013GARFIELD, Seth. In search of the Amazon. Brazil, de United States, and the nature of a region. Durham (EUA): 2013., p. 9-48).

O latifúndio amazônico

A obra de Raimundo Morais pode, enfim, ser definida como uma colagem de linguagem literária, conteúdo científico e narrativas experienciais. Também pela hibridez de sua linguagem, seus livros localizam-se na fronteira entre diferentes campos dentro do campo intelectual brasileiro: o literário, o científico e o jornalístico. Vimos acima como, apesar de afirmar a condição de literato, desejava ser reconhecido também como homem de ciência, mesmo destituído de formação e vínculo institucional. Ao mesmo tempo, ocupar uma posição no campo literário abria-lhe possibilidades consideráveis dentro do mercado de bens simbólicos no Brasil. Suas críticas a Euclides da Cunha demonstram a dubiedade de sua posição, uma vez que pretendia demarcar sua diferença em relação ao autor d’Os sertões ao advogar para si uma superioridade no domínio dos conteúdos científicos.

Em sua maior parte, seus textos possuem uma substância didática embalada em retórica prolixa, que sobrecarrega o leitor com dados continuamente postos em confronto. O efeito dessa prática literária é, não raramente, rebarbativo, uma vez que o autor parece contar com a familiaridade do leitor com as teorias, conceitos e debates especializados que desfilam ao longo de seus livros, não raro acompanhados de citações literais e de termos técnicos. Embora escrevesse para o público não especializado, o escritor parece também mirar seu reconhecimento entre os demais intelectuais, ao contrário do que seria esperado de um divulgador. Além disso, não se furta a criticar abertamente o conteúdo científico produzido, não apenas identificando erros, como também atribuindo ao pensamento científico uma elevada dose de subjetivismo, uma certa “contaminação” pela tradição cultural e uma inerente instabilidade. Em sua relação com os pesquisadores dotados do selo da inserção institucional, certamente apresenta-se algo daquele mal-estar entre produtores de conhecimento e divulgadores ao qual se refere Bourdieu, ao mesmo tempo em que o escritor paraense parecia resistir à rigidez das distinções entre os dois grupos e ao distanciamento entre eles, ao polemizar diretamente com os especialistas (BOURDIEU, 1974BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. Tradução Sérgio Miceli et al. São Paulo: Perspectiva, 1974., p. 155-157).

Vimos como a argumentação de Raimundo Morais opera uma espécie de retórica eclética, intercambiando os significados e a linguagem de literatura e ciência, imaginação e teorização, pesquisa empírica e experiência, informação livresca e testemunho, saber erudito e memória. Se, por um lado, essa escrita inova ao expandir as fronteiras dos campos científico e literário de seu tempo e apostar na imposição de um sistema de valoração intelectual a princípio desprovido de um selo institucional, por outro lado sua própria visão da pesquisa científica é a de um letrado que ingressa como outsider na disputa com os especialistas para impor sua autoridade simultaneamente nos campos literário e científico, depois de ingressar na carreira intelectual em um campo mais aberto de difusão do saber, o jornalístico.

Assim, a sobreposição de nomes de autores e obras e o tom familiar com o qual Morais refere-se aos debates científicos podem dificultar a leitura dos leigos, mas lançam luz sobre suas pretensões de participar do diálogo entre ilustrados, o que dá uma boa dimensão de suas expectativas de reconhecimento e legitimidade, em que pese sua posição hierarquicamente inferior no campo científico. Ao mesmo tempo, a leitura de sua obra aponta para os aspectos relacionais e referenciais inevitavelmente presentes na produção letrada, sobretudo à medida que o escritor claramente chama para si os debates científicos que apresenta, nos quais em alguma medida sempre se inclui, contrapondo autores ou confrontando-os com sua experiência de vida e seu patrimônio livresco adquirido através da leitura e do estudo. A linguagem literária representa, simultaneamente, uma oportunidade de diferenciar-se da escrita científica e ingressar em universo mais criativo, mais pessoal e desprovido de demandas institucionais e educacionais. Para ele, o domínio dos livros e a experiência eram credenciais suficientes para garantir-lhe uma posição legítima no debate, se não pelo seu reconhecimento como autoridade científica, pelo menos no sentido de sua aceitação no meio intelectual como literato erudito e confiável, o que lhe rendia uma inserção profissional no âmbito da região e um “nicho” próprio no campo intelectual nacional. Ou seja, a aparente limitação de sua obra e de sua atuação ao contexto regional mostra-se elemento decisivo para sua inserção no mercado brasileiro de bens simbólicos como conhecedor de “temas amazônicos”, o que define o caráter eclético e generalista de sua produção, à contramão da tendência à especialização e à academização do saber científico. A conquista de uma posição na burocracia estatal era o equivalente político desse esforço de legitimação.

Vimos acima como, na luta por uma posição de prestígio no meio intelectual de sua região e, em seguida, na comunidade nacional, Raimundo Morais desenvolveu uma série de estratégias no sentido da acumulação de um capital simbólico capaz de convertê-lo no enunciante legítimo de um discurso sobre a Amazônia, considerando-se, particularmente, sua formação autodidata e sua atividade profissional na navegação. Essas estratégias envolveram tanto a militância política, através da qual ele conquistou um espaço cativo na imprensa partidária, quanto a promoção de eventos de sociabilidade intelectual, a dedicação a sodalícios, a presença em espaços de consagração, o estabelecimento de contatos pessoais com personagens consagrados e a publicização desses. Por outro lado, na elaboração da escrita literária, em diálogo com o saber erudito, o escritor batalhou para autenticar sua posição no campo, através do enfrentamento da tradição letrada e da cunhagem de uma linguagem própria capaz de abrigar, simultaneamente, a referência científica e a criação literária.

O escritor pode, sem dúvida, ser considerado bem-sucedido nessa empreitada, e não apenas por ter sido capaz de converter seu prestígio intelectual e suas conexões políticas em cargos públicos e posições no sistema de validação da literatura. Mais do que isso, embora hoje sua obra seja pouco lida e sejam raros os estudos sobre ela no meio acadêmico, ao longo de sua carreira Morais consagrou-se como uma das maiores autoridades em assuntos amazônicos entre os literatos do país, senão a maior. Nos dizeres de Leandro Tocantins, a partir da terceira edição, com sua publicação pela editora Civilização Brasileira, o livro Na planície amazônica “iria cumprir seu vitorioso roteiro nacional” e seu autor “ganha no país a fama de fiel intérprete da Amazônia” (2000, p. XXI). Uma demonstração um tanto jocosa disso é o artigo “Os donos dos assuntos”, de Peregrino Jr., publicado na revista Careta em 1936. O narrador afirma que, em conversa com Artur Ramos e Jorge Amado, os escritores haviam concordado em dar início a um trabalho de reação contra “latifundiários intelectuais”, ou seja, contra autores que monopolizavam a autoridade sobre grandes temas. Cabia, assim, à nova geração, reparti-los em lotes, pois “o latifúndio amazônico, que pertencera inicialmente a Euclides da Cunha, passou depois às mãos do sr. Alberto Rangel. Em seguida, veio o sr. Raimundo Morais, que era da terra, e tomou conta dele”. Naquele momento, muitos outros escritores haviam assumido alguns desses lotes - ele cita Gastão Cruls, Ferreira de Castro, Abguar Bastos, Araújo Lima, Raul Bopp, Francisco Galvão, Lauro Palhano e Aurélio Pinheiro -, mas “Morais, de resto, que já estava instalado no lugar, ficou com o melhor lote - o melhor e o maior, com toda justiça.” (PEREGRINO Jr., 1936PEREGRINO Jr. Block-notes. Os donos dos assuntos. Careta, Rio de Janeiro, 7 mar. 1936, p. 34-35.).

Vê-se que, ao longo de uma trajetória pública em que se impôs a duras penas no contexto de ferrenhas disputas políticas, Raimundo Morais conseguiu se converter no porta-voz da Amazônia no contexto brasileiro. Para além dos esforços envidados por ele para se firmar nas redes regionais de sociabilidade e poder, projetando-se a partir daí em âmbito nacional, seu sucesso dependeu de sua capacidade de impor seu discurso sobre a região, através de uma linguagem própria, simultaneamente poética e científica, mas também através de alianças e embates.

Referências

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  • VIDA literaria. Jornal do Commercio, Manaus, 24 set. 1930, p. 2.

Notas

  • 1
    Em seus livros, o nome do escritor aparece grafado na forma original, Raymundo Moraes, e na forma atualizada, Raimundo Morais, havendo, contudo, outras variantes. Optamos, nesse artigo, por utilizar apenas a forma atualizada, exceto nas referências bibliográficas, que serão feitas em conformidade com a grafia constante na edição consultada. As citações diretas serão também atualizadas, para fins de uniformização da ortografia, e as referências no corpo do texto, em caso de reedições, conterão a data da edição citada, seguida da data da primeira edição.
  • 2
    Por volta de 1932, a contribuição da Amazônia para a oferta de borracha no mercado mundial era da ordem de 1%. Em função dos processos de industrialização no Brasil e de outros países da América do Sul, a demanda do látex era, no entanto, crescente. No final da década, com a eclosão da II Guerra Mundial, e o iminente comprometimento do acesso dos Estados Unidos à produção asiática, a intensificação da produção amazônica mostra-se imperativa, o que deu origem a novos esforços de aprimoramento da extração e mesmo do plantio de seringueiras, em direção a um novo boom da borracha na região (DEAN, 1989DEAN, Warren. A luta pela borracha no Brasil: um estudo de história ecológica. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Nobel, 1989., p. 131-154, GARFIELD, 2013GARFIELD, Seth. In search of the Amazon. Brazil, de United States, and the nature of a region. Durham (EUA): 2013., p. 23-26)
  • 3
    A maior parte da produção de Raimundo Morais em livro pode ser classificada nas categorias “artigos e ensaios” e “romance”. Dentre seus textos não ficcionais, a maior parte versa sobre temas científicos, embora as coletâneas do escritor discutam também temas políticos e de crítica literária e cultural. Sua obra completa inclui coletâneas de ensaios: Traços a esmo (1908MORAES, Raymundo. Traços a esmo. Belém: Typographia Elzeviriana, 1908.); Notas dum jornalista (1924MORAES, Raymundo. Notas dum jornalista. Fac-similado. Manaus: Governo do Estado do Amazonas, 2001. 1. ed. 1924.); Na planície amazônica (1926MORAES, Raymundo. Na planície amazônica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 1936. 1. ed. 1926.); Cartas da floresta (1927MORAES, Raymundo. Cartas da floresta. Manaus: Clássica, 1927.); País das pedras verdes (1930MORAES, Raymundo. Paiz das pedras verdes. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 1930.); Anfiteatro amazônico (1936MORAES, Raymundo. Amphiteatro amazonico. São Paulo: Melhoramentos, 1936.); Aluvião (MORAES, Raymundo. Alluvião. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1937.1937); Notas sobre o Eldorado (1939MORAES, Raymundo. Notas sobre o Eldorado (Memória). São Paulo: Melhoramentos , 1939b.); À margem do livro de Agassiz (1939MORAES, Raymundo. À margem do livro de Agassiz. São Paulo: Melhoramentos , 1939a.); O homem do Pacoval (1939MORAES, Raymundo. O homem do pacoval. São Paulo: Melhoramentos , 1939c.); Cosmorama (1940MORAES, Raymundo. Cosmorama. Rio de Janeiro: Pongetti, 1940.); Dicionário: O meu dicionário de cousas da Amazônia (2 v. 1931); Romances: Ressuscitados (1936); Os Igaraúnas (1938); O mirante do Baixo Amazonas (1939). Biografias: Machado de Assis (1939); Um eleito das graças (1941MORAES, Raymundo. Um eleito das graças (José Júlio de Andrade). Belém: Oficinas Gráficas do Instituto Lauro Sodré , 1941.). Fábulas: Histórias silvestres do tempo em que animais e vegetais falavam na Amazônia (1939). Reedições recentes de sua obra: Na Planície amazônica (Senado Federal, 2002); O Homem do pacoval (Governo do estado do Amazonas, 2001); À margem do livro de Agassiz (idem, idem); Histórias silvestres (1986) e Os Igaraúnas (São Paulo, 1985, ed. Roswitha Kempf, São Paulo).
  • 4
    Entre as revistas que publicaram textos de Raimundo Morais encontram-se Amazonida, Guajarina, Equador e Redemção, de âmbito regional, e, em âmbito nacional, A.B.C., Boletim de Ariel, Vida Literária, Fon-fon, A Cigarra e Seiva. Foi também prefaciador de obras como a História do Rio Amazonas, lançada em 1926, de Henrique Santa Rosa.
  • 5
    Sociedade etnográfica fundada em 1895 por Léon de Rosny, a partir da Société d’Etnographie Américaine et Orientale. De acordo com Christine Laurière, a instituição buscou atender ao programa de sábios que desejavam promover o estudo das populações ameríndias contemporâneas, de acordo com as bases científicas estabelecidas de acordo com o recente progresso da arqueologia e das ciências naturais, contra a tradição letrada clássica (2009LAURIÈRE, Christine. La Société des Américanistes de Paris : une société savante au service de l’américanisme. Journal de la Société des Américanistes, n. 95, v. 2, 2009, p. 93-115. Disponível em : Disponível em : https://halshs.archives-ouvertes.fr/halshs-00829047 . Acesso em 01/02/2018
    https://halshs.archives-ouvertes.fr/hals...
    ). O Journal de la Societé des Américanistes publica, desde 1895, artigos científicos voltados ao estudo das sociedades ameríndias, nas áreas de arqueologia, linguística, sociologia, história, linguística e etnologia.
  • 6
    Na definição de Carmen Lícia Palazzo-Almeida, o termo cosmografia correspondia a uma “referência de ordem geográfico-descritiva que remetia tanto ao real quanto ao imaginário, não se constituindo em documento de uso prático imediato, mas em fonte de referência ampla e abrangente” (2002PALAZZO-ALMEIDA, Carmen Lícia. Entre mitos, utopias e razão: os olhares franceses sobre o Brasil (séculos XVI a XVIII). Porto Alegre: Edipucrs, 2002., p.60).
  • 7
    Folim vitis: folha de parreira.
  • 8
    O museu foi criado em 1871 como Museu Paraense de História Natural e Etnografia. A partir de 1900, passou a ser denominado Museu Emílio Goeldi e, a partir de 1931, Museu Paraense Emílio Goeldi.
  • 9
    Carvalho de Mendonça repete a indignação nacionalista contra o Amazonas, em sua obra clássica sobre o direito das águas, publicada pela primeira vez em 1909: A razão do fenômeno observado no Amazonas, é precisamente o ímpeto da corrente do rio, combinado com o das correntes oceânicas. Logo que aquela atira ao Atlântico a poderosa massa de detritos, este a arrasta pelo litoral das Guianas, a leva ao mar dos Caraíbos [sic], e ao Golfo do México, ao longo das Pequenas Antilhas e Ilhas Bahamas, e só o depõe definitivamente no litoral da Geórgia e das Carolinas. Estranho espetáculo que só apresentam os fenômenos naturais do nosso Brasil: o delta do Amazonas é situado nos Estados Unidos! (MENDONÇA, 1939MENDONÇA, Manoel Ignacio Carvalho de. Rios e águas correntes em suas relações jurídicas. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1939. 1. ed. 1909., p. 49).
  • 10
    Como atentou Marco Aurélio Coelho de Paiva, a falência da política oligárquica tornou obrigatório o realinhamento da atividade intelectual do país e deu impulso revisões dos modelos de representação da nacionalidade, conduzindo a uma maior valorização de escritas voltadas para veicular aspectos objetivos e documentais das realidades regionais, vistas sob nova perspectiva. É nesse contexto que Morais publica seus três romances, resultado do consórcio entre a tradição ensaística que abrigava o discurso científico e o romance social em voga na década de 1930 (PAIVA, 2016PAIVA, Marco Aurélio Coelho. Um paraíso selvagem: a Amazônia e os romances regionalistas de Raimundo Moraes. Tempo Social, v. 28, n. 2, p. 229-246, 2016.). Na produção discursiva do regime, veja-se, particularmente, o chamado Discurso do rio Amazonas, pronunciado por Getúlio Vargas em 10 de outubro de 1940, que gira em torno da submissão da natureza da região aos propósitos de promoção do desenvolvimento socioeconômico, articulados à centralização política e ao fortalecimento da burocracia estatal (VARGAS, 1941VARGAS, Getúlio. O Discurso do Rio Amazonas. Cultura Política. Revista de estudos brasileiros, v. 1, n. 8, p. 228-229, 1941.).

Declaração de financiamento

  • A pesquisa que resultou neste artigo contou com financiamento do CNPq (Bolsa de produtividade em pesquisa, Proc. 312852/2018-5 e Chamada Universal MCTIC/CNPq, Proc. 427875/2018-8).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    16 Jul 2019
  • Aceito
    03 Nov 2019
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