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Parentela, mercado de terras e os registros paroquiais de terras de Araraquara, São Paulo, 1855-1866

Kinship, land market and the parish land registers, Araraquara, São Paulo, Brazil, 1850 - 1866

RESUMO

Os objetivos deste artigo são três. Em primeiro lugar, apresentar os resultados da investigação sobre as potencialidades da fonte manuscrita intitulada Registros Paroquiais de Terras (RPT), referente à antiga paróquia da vila de São Bento de Araraquara a qual foi produzida entre os anos de 1850 e 1866. Em segundo, estabelecer comparações com outras pesquisas que usaram esse mesmo tipo de fonte na medida em que apresentam categorias analíticas semelhantes. E por último, estabelecer conclusões a respeito da ocupação territorial e da constituição da estrutura fundiária dessa região. O resultado da pesquisa mostra que quando os RPT de Araraquara, Campinas e Ubatuba foram comparados, um significativo mercado de terras esteve presente na região antes da lei de 1850. Tal mercado apresentou-se mais dinâmico do que o da região de Campinas e Ubatuba. Por fim, a região de Araraquara possuía uma maior frequência de RPT com maiores dimensões, o que a caracterizava como zona típica de fronteira. Por outro lado, as terras herdadas tiveram a área média maior do que as compradas, o que demonstra uma linha de continuidade da manutenção da hierarquia social baseada no mercado de terras de parentes.

Palavras-chave:
parentela; mercado de terras; ocupação territorial; Araraquara, São Paulo; Século XIX

ABSTRACT

The aims of this article are three. First, to present results of the potentialities of the historical source called parish registers of land. This source is related to the village of Araraquara, province of São Paulo, Brazil. They were produced during the years of 1850 to 1866. Second, make comparison of the results to others researches which used the same analytical categories and source. Third, present the analytical conclusions about the territorial settlement at this specific region. This market shows more dynamic than the one of Campinas and Ubatuba, even though, the traditional historiography has pointed that it was more solid in older settlement. Also, the frequency’s transmission of the biggest land size of inherited ones was proporcionally larger than the purchased ones. So, it characterizes this zone as a frontier and as a kinship market.

Keywords:
kinship; land market; territorial settlement; Araraquara, São Paulo; Nineteenth Century

O objetivo deste artigo é, em primeiro lugar, apresentar os resultados da investigação sobre as potencialidades da fonte manuscrita intitulada Registros Paroquiais de Terras, referente à antiga paróquia da vila de São Bento de Araraquara, os quais foram produzidos entre os anos de 1850 e 1866. Em segundo, estabelecer comparações com outras pesquisas que usaram esse mesmo tipo de fonte na medida em que apresentem categorias analíticas semelhantes.1 1 É importante esclarecer que a composição e o conteúdo dos registros paroquiais de terras podem variar de paróquia a paróquia, o que pode às vezes impossibilitar comparações rigorosas. Tais características de documentos manuscritos eram muito comuns nos séculos XVIII e XIX. E, por último, estabelecer conclusões a respeito da ocupação territorial e da constituição da estrutura fundiária da então freguesia da vila de São Bento de Araraquara. A metodologia usada será, portanto, exploratória, quantitativa e sistemática.

Examinar-se-á o debate sobre as formas de acesso às terras neste artigo. Lígia Osório da Silva (1996SILVA, Lígia Osório da. Terras devolutas e latifúndio: efeitos da lei de 1850. Campinas: Editora Unicamp, 1996. 373p.) e uma certa historiografia tem asseverado que o mercado de terras teria surgido após a implantação da Lei de Terras de 1850, quando o governo imperial promulgou e proibiu o acesso às devolutas que não fosse pela via da compra e venda. Contudo, como Petrone (1968PETRONE, Maria Thereza Schorer. A lavoura canavieira em São Paulo. São Paulo: Difel, 1968.) já havia demonstrado, tal mercado já estava presente no século XIX. Outro estudo mais recente constatou que ele já existia de modo informal e o que a lei fez foi apenas legitimá-lo (LOPES; GUTIERREZ, 2007LOPES, Maria Aparecida de Souza; GUTIERREZ, Horácio. Legislación agrária y tenência de la tierra en el Brasil decimonónico. In: ORTELLI, Sara; HERNANDES SILVA, Hector Cuauhtémoc (org.). America em la Época de Juarez: la consolidación del liberalismo - processos políticos, sociales y econômicos (1854-1872). México: Universidad Autonoma Benito Juarez de Oaxaca/Universidad Autonoma Metropolitana, 2007. p. 321-350.). O resultado desta pesquisa mostra que quando os Registros Paroquiais de Terras de Araraquara, Campinas e Ubatuba foram comparados, um significativo mercado de terras esteve presente na região antes da lei de 1850, o qual apresentou-se mais dinâmico do que o da região de Campinas e Ubatuba, muito embora a assertiva da historiografia tradicional tenha afirmado que esse mercado seria mais sólido nas regiões de povoamento mais antigo. A região de Araraquara possuía unidades agrárias com maiores dimensões em média, o que a caracterizava como zona típica de fronteira. Por outro lado, as terras herdadas ainda tiveram a área média maior do que as compradas, o que demonstra uma linha de continuidade da manutenção da hierarquia social baseada no parentesco.

Essa região foi considerada pela historiografia como dedicada ao estudo da expansão do café, que fazia parte do novo Oeste paulista a partir da segunda metade do século XIX, quando essa lavoura passou a constituir a paisagem hegemônica na região. Notam-se designações que abarcavam lugares do Município de Rio Claro, passando pelo de São Carlos, Araraquara, Jaboticabal, e chegando bem próximo ao de Ribeirão Preto. Nas primeiras décadas do século XIX era conhecido como “os campos de Aracoara”. Esses campos começavam à margem direita dos rios Piracicaba e Tietê, estendendo-se até o rio Grande, em Minas Gerais e o rio Paraná, nas divisas de Mato Grosso. Estava subordinado administrativamente à Vila de Constituição, antiga denominação da Vila de Piracicaba. A primeira capela de Araraquara foi erguida em 22 de agosto de 1817, data em que foi criada a freguesia de São Bento e estava subordinada ao arcebispado da Vila de Itu (CORRÊA, 2008CORRÊA, Ana Maria Martinez. Araraquara, 1720 - 1930: um capítulo da história do café em São Paulo. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2008. 320 p.; TELAROLLI, 2003TELAROLLI, Rodolpho. Para uma história de Araraquara, 1800-2000. Araraquara: Laboratório Editorial, 2003. 229 p.). A vila de Araraquara formava um entreposto para as tropas que iam explorar pedras preciosas dos sertões dos Goyazes. Sua população foi sendo formada por entrantes mineiros após o declínio da extração das pedras preciosas e foi crescendo nas fronteiras da província de Minas Gerais com a de São Paulo (BACELLAR, 1999BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Uma rede fundiária em transição. In: BACELLAR, Carlos de Almeida Prado; BRIOSCHI, Lucila Reis. Na estrada do Anhanguera: uma visão regional da história paulista. São Paulo: Humanitas/FFLCH/ USP, 1999. p. 91-116. ). No censo de 1854, a população de Araraquara chegava a 7.842 indivíduos, sendo 6.254 livres e 1.588 escravizados, possuindo uma razão geral de sexo de 111,15. Os jovens perfaziam 54,2% da população, os adultos, 44,9% e os idosos, 0,80% (BASSANEZZI, 1998BASSANEZZI, Maria Sílvia Beozzo (org.). São Paulo do passado: dados demográficos, 1854. Campinas: NEPO/UNICAMP, 1998. Disponível em: https://www.nepo.unicamp.br/publicacao/sao-paulo-do-passado-dados-demograficos-1836-1920/ . Acesso em: 5 jan. 2021.
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). Essa região faz parte da zona central da província de São Paulo e seus solos são caracterizados como arenosos e basálticos, intercalando os de terra roxa. Sua composição diversificada possibilitou desde o cultivo do café até alimentos e a criação de animais, uma vez que as correntes de água eram abundantes. A agricultura desenvolveu-se a partir de cultivos de cana de açúcar, milho, feijão, arroz e mais tarde, no final do século, o café. A criação animal se estendia desde o gado suíno, equino, bovino e aves. Parte da produção era destinada ao consumo local e outra parte exportada para a vila de Piracicaba, que funcionava como entreposto comercial à época.

A importância deste estudo vincula-se a uma tendência relativamente recente na historiografia brasileira, especialmente a partir da década de 80 do século XX, na qual se procura compreender as características diversificadas da estrutura produtiva e social da economia de abastecimento e dos segmentos sociais intermediários os quais não se colocavam nos pólos da sociedade colonial e imperial. Por pólos sociais compreendem-se as extremidades da pirâmide social, estando acima os senhores de engenho, os grandes cafeicultores, os grandes lavradores, e abaixo os escravos, os jornaleiros, os assalariados, os colonos, os pobres livres de modo geral.2 2 Ver o estudo pioneiro que buscou focalizar o grupo de homens pobres livres foi Maria Sílvia Carvalho Franco. Homens Pobres Livres na Ordem Escravocrata. São Paulo: Ciências Humanas, 1978. Sem pretender esgotar as principais obras foram: Hebe Maria Mattos de Castro com Ao Sul da História. São Paulo: Brasiliense, 1984. P. L. Eisenberg, Homens Esquecidos. Campinas: Edunicamp, 1989. B. J. Barickman. Um contraponto baiano. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. Por segmentos intermediários entendem-se aqueles agricultores que cultivavam alimentos e criavam gado, às vezes se constituíam em proprietários de terra possuidores ou não de pequenos plantéis de cativos os quais não se enquadravam nas extremidades da pirâmide social. A historiografia clássica passou a designar esse setor de “subsistência,” “desclassificados”, “gente miúda”, “pobres livres”, “agregados”, “moradores” e outras denominações.

A documentação: os registros paroquiais

Os registros paroquiais constituem documentos produzidos motivados pela existência do regulamento de 1854, que normatizou o procedimento para implementação do registro de terras nos cartórios. Tal regulamento definia os prazos para a medição e a demarcação das propriedades (SILVA, 1996SILVA, Lígia Osório da. Terras devolutas e latifúndio: efeitos da lei de 1850. Campinas: Editora Unicamp, 1996. 373p.).

O conteúdo dessa documentação diz respeito às declarações de posse constituídas a partir de formas originárias ou primárias, isto é, quando o declarante anunciava ter tomado posse de forma “mansa e pacífica”. A forma secundária se dava por meio daquelas derivadas do direito sucessório, presentes nas partilhas dos inventários post-mortem, ou ainda, via mecanismo de compra e venda. Esse acervo com o qual trabalhamos foi constituído durante os anos de 1855 e 1866, período a partir do qual correspondeu a vigência do regulamento que normatizava a Lei de Terras, está disponível no Arquivo do Estado de São Paulo e compõe-se de 641 registros paroquiais manuscritos, sendo que 638 foram confeccionados na Vila de São Bento de Araraquara pelo padre-escrivão Joaquim Cypriano de Camargo. Os três últimos registros dessa coleção foram produzidos na Repartição das Terras Públicas e Colonização, na cidade de São Paulo, conforme declaração lavrada na própria documentação. Entretanto, dentre todos os registros transcritos pelo padre Joaquim, apenas dois encontram-se invalidados por ele próprio, perfazendo um total de 639 registros oficiais os quais contém as declarações de posses bem como suas formas de aquisição.

Em seguida, apresentaremos em que contexto esse tipo de documentação histórica apareceu na vida política do Brasil.

As reformas liberais e o fim da escravidão

Eram chamados de “registros do vigário” por serem elaborados e custodiados por cada vigário responsável pela paróquia. Constituíram num subproduto legal decorrente de um amplo debate que se deu no parlamento brasileiro em meados do século XIX. As elites brasileiras estavam preocupadas com o fim da escravidão que se aproximava e começaram a desenvolver estratégias de como assegurar a mão-de-obra necessária ao cultivo de suas lavouras destinadas à exportação. O disciplinamento do acesso a terra dever-se-ia acontecer por meio de leis que dificultassem o acesso da população livre nacional e dos imigrantes para que as lavouras de exportação tivessem garantido seus estoques de trabalhadores agrícolas (STOLCKE, 1986STOLCKE, Verena. Cafeicultura: homens, mulheres e capital (1850-1980). São Paulo: Brasiliense , 1986. 410 p.).

O que importa destacar da lei para fins desta pesquisa é que esta proibia a aquisição de terras devolutas por outro meio que não fosse o da compra e venda e definia o conceito de terras devolutas. A partir daí a historiografia argumentou que essa lei tinha um caráter burguês e era voltada para favorecer a elite agrária imperial, impedindo o acesso à terra dos imigrantes pobres para garantir mão-de-obra à grande lavoura (COSTA, 1979COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à República: momentos decisivos. São Paulo: Ciências Humanas, 1979. 524 p.). Nenhum relato historiográfico aponta a presença de pequenos e médios proprietários e de posseiros nos debates promovidos para a implantação da lei, uma vez que esse grupo não se organizou enquanto força política para tomar parte e influenciar as decisões parlamentares. No entanto, como aponta Nozoe (2005NOZOE, Nelson. Sesmarias e apossamento de terras no Brasil Colonial. In: Encontro da ANPEC 2005. Anais [...]. Natal, 2005. Disponível em: http://www.anpec.org.br/revista/vol7/vol7n3p587_605.pdf . Acesso em: 5 jan. 2021.
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), os pequenos produtores apropriaram-se de terras devolutas mediante simples ocupação, denominada de posse.

O governo imperial, ao proibir a posse primária de terras, decidiu antes identificar as terras públicas que estavam na situação de posse efetiva com habitação construída, com plantio regular de lavoura e com criação de gado, uma vez que este conceito de posse já estava presente no código filipino.

É importante esclarecer que, no período colonial, a cessão de terras era uma atribuição da coroa por meio do instituto das sesmarias. Um pouco antes da Independência, o regime imperial relaxou essa atribuição de cessão e passou a permitir que as pessoas tomassem posse de qualquer terra que não tivesse sido apropriada por outrem no passado. Embora na proposta original da nova Lei de Terras de 1850 a simples posse primária ficasse proibida, isso não ocorreu de fato.

Para proceder à identificação das terras públicas, o “registro de terras” passou a se constituir em referência importante para se saber quais terras estavam em mãos dos proprietários particulares e quais ainda estavam em domínio público. Desta forma, as pessoas que tivessem recebido terras através da Coroa, ou seja, as sesmarias, ou tivessem recebido ‘datas’ através das Câmaras Municipais, ou ainda, tivessem simplesmente se apossado de terras devolutas, deveriam se dirigir à paróquia local a qual pertencia e declará-las para que o governo imperial pudesse identificar as que ainda estavam na condição de devoluta.

Em pareceres oficiais de conselheiros do Império, como o de Lafayette Rodrigues Pereira (1956PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Direito das cousas. 6. ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Livraria Freitas Bastos, 1956. 573 p.), ressaltava-se a opinião de que os portadores do registro do vigário não constituíam a categoria de proprietários.

Silva (1996SILVA, Lígia Osório da. Terras devolutas e latifúndio: efeitos da lei de 1850. Campinas: Editora Unicamp, 1996. 373p.) destacou duas outras opiniões de juristas estudiosos desta lei, a de Messias Junqueira, na qual para ele:

O registro paroquial foi uma simples tentativa de obter do governo do Império a relação sistemática de todos os possuidores de terras do país. Não teve a intenção de cadastro, nem outro objetivo que não fosse o simples conhecimento estatístico das terras na propriedade ou na posse privada, conhecimento este de alcance prático manifesto. (SILVA, 1996SILVA, Lígia Osório da. Terras devolutas e latifúndio: efeitos da lei de 1850. Campinas: Editora Unicamp, 1996. 373p., p. 167-184).

E a de Manuel Linhares Lacerda (1960LACERDA, Manuel Linhares de. Tratado das terras do Brasil. Rio de Janeiro: Alba, 1960. 2 v.), que também segue aquela direção:

[...] Dizia-se, então, que o registro assim feito, [...] valia como prova de propriedade. Engano, pois o que valia como prova de propriedade, não era o registro em si, mas o título de propriedade existente em separado. “Quando, porém, o possuidor não tinha título, nem a Lei lhe houvesse por disposição especial, dispensado de título, aí então o Registro do Vigário, não tinha e não tem até agora, absolutamente nenhum valor como título de domínio, ou prova de domínio” [...] Dizer-se que o registro de uma posse, havida em 1840 ou antes, em qualquer época anterior à Lei de 1850, vale como título é heresia. (LACERDA, 1960LACERDA, Manuel Linhares de. Tratado das terras do Brasil. Rio de Janeiro: Alba, 1960. 2 v., p. 179).

No entanto, a autora reconhece, ao lado do jurista Altair de Souza Maia (1978MAIA, Altair de Souza. Arrecadação de terras públicas. In: Encontros da UNB. Brasília: EDUNB, 1978.), que, na prática, tais registros se tornaram:

Fonte perene de perplexidade para nossos Tribunais e instituto por excelência para a perpetuação dos famosos grilos de terra que têm tumultuado os trabalhos da União e dos Estados, na apuração do seu patrimônio devoluto. (MAIA, 1978MAIA, Altair de Souza. Arrecadação de terras públicas. In: Encontros da UNB. Brasília: EDUNB, 1978., p. 24).

A estrutura fundiária de Araraquara

Com o objetivo de caracterizar as formas de posses da estrutura fundiária no alvorecer da ocupação de Araraquara, apresentamos os resultados sistematizados das informações contidas nessa documentação.

Na tabela 1 apresentamos a quantidade de posses declaradas em cada registro paroquial. Alguns assentamentos apresentam mais de uma posse, como se pode verificar a seguir.

Tabela 1 -
Quantidade de posses declaradas, por Registro.

Uma maioria expressiva de registros (93%) declarou apenas uma posse, enquanto uma pequena parcela (5,6%) declarou duas. Cinco casos, na proporção de 0,8%, declararam três. E, finalmente, um caso declara cinco e outro sete. Ao todo, essa coleção apresenta um rol de 639 registros, correspondendo a 695 declarações de posse.

Alguns esclarecimentos ainda se fazem necessários a respeito das características singulares dessa documentação, isto é, refiro aqui à crítica interna ao documento.

Todos os registros apresentam um número manuscrito em grafia arábica, seguida da forma escrita por extenso, apresentando-se sempre logo no início de todos os assentamentos. Vejamos um exemplo: a coleção começa com o número um e termina com o número 641. Mais adiante, há dois registros referentes ao de número cinco, no entanto, nenhum deles foi invalidado pelo padre. Examinando seu conteúdo, vimos que se trata de dois documentos de conteúdo idêntico, o que nos levou a considerar apenas um como válido. Uma página adiante, seguindo o registro de número 413, aparece o de número 413A. Na sequência vem o 414, e, depois, o 414A. Essas repetições numéricas, corrigidas na época pelo padre, constituem declarações distintas.

A informação sobre a data surge logo depois da ordem numérica dos registros e aparece escrita por extenso

Aos dezenove de Maio de mil oito centos, e cincoenta, e seis nesta Villa de São Bento de Araraquara, por Manoel Joaquim Dores do Espírito Santo, me foi apprezentado uns títulos de terras de theor e forma seguinte” (veja o Reg. n. 379, anexo Anexo Transcrição de um registro paroquial N.º 379 - Numero trezentos, e setenta, e nove. Aos dezenove de Maio de mil oito centos, e cincoenta, e seis, nesta Villa de São Bento de Araraquara, por Manoel Joaquim Dores do Espirito Santo, digo Apostolico, me foi apprezentado ûns titulos de terras do theor e forma seguinte. = Exemplar para se registrar na Paroquia de Araraquara. O Vigario Manoel Joaquim Dores do Espirito Apostolico, morador na Freguezia de São Simão, possue neste destricto de São Bento de Araraquara, huma fazenda denominada Barra Mansa, que houve por compra de Manoel Francisco de Avila, e sua mulher, de que lhes passarão [sic] pertence, nos titulos que tinhão, no valor de quatro centos, e cincoenta mil reis, em mil oito centos, e quarenta, e nove, cuja fazenda devide, com os mais socios, herdeiros do finado Sarico, e outros pelo Jacaré Pupillo, pela Boa Esperança, com Jozé de Castro, com Manoel Joaquim do Prado, e outros, e entre os socios está por dividir-se, sua extenção será mais, ou menos treis legoas de cumprimento, e duas de largura; e desta maneira dou por feita minha declaração, indo em dupplicado. São Simão cinco de Maio de mil oito centos, e cincoenta, e seis. O Vigario Manoel Joaquim Dores do Espirito Apostolico. Joaquim Cypriano de Camargo ).

Naquela ocasião, o Regulamento de 1854 conclamava os donos de terras ou seus representantes legais a se deslocarem à paróquia e darem entrada na petição. Geralmente eles apresentavam um título anterior, de caráter particular, no qual dois indivíduos tinham realizado uma suposta transação comercial, ou ainda, uma doação, uma permuta, ou, simplesmente, declaravam que haviam realizado uma posse primária ou que estavam recebendo aquela “parte de terras”, decorrente de um processo sucessório sem mencionar mais detalhes sobre a origem de tal posse primária. Havia ainda a possibilidade de o posseiro se dirigir a um juiz e declarar oralmente a existência de sua posse e de lá sair com uma escritura particular a qual apresentaria ao padre com a finalidade de registro.

O nome do possuidor é uma informação que aparece em todos os registros e, na maioria das vezes, diz respeito ao próprio declarante, ou seja, à pessoa que fez a declaração. Vejamos o que nos diz a tabela 2 abaixo a respeito desta informação:

Tabela 2 -
Declarantes de posses de terras

Nos casos em que a declaração foi feita por um tutor ou procurador como representantes legais, os nomes desses e do proprietário aparecem obrigatoriamente no registro. Como pudemos notar, a grande maioria dos declarantes era residente e não eram proprietários absenteístas. Tal modelo de ocupação residente relaciona-se àquele referido nos estudos clássicos de José de Souza Martins (1973MARTINS, José de Souza. A imigração e a crise do Brasil agrário. São Paulo: Pioneira, 1973., 1996MARTINS, José de Souza. O tempo da fronteira: retorno à controvérsia sobre o tempo histórico da frente de expansão e da frente pioneira.Tempo Social - Revista de Sociologia da USP, v. 8, n. 1, p. 25-70, maio 1996.). Dito de outro modo, havia posseiros com moradia habitual e culturas efetivas as quais davam sustentação alimentar e econômica a tais populações e às circunvizinhanças. A existência de agricultores foreiros não pode ser aferida, pois não constatamos a existência de qualquer informação que subsidiasse esse tema.

No tocante ao nome da propriedade pode ser muito útil quando apresentam nomes específicos e quando são associados às designações topográficas e hidrográficas, podem nos fornecer uma ideia da originária formação de bairros rurais (QUEIROZ, 1973QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O campesinato brasileiro. Rio de Janeiro: Vozes, 1973. 242 p.).

Poucas vezes as declarações aludem à designação da unidade produtiva ou indicam o nome do local no qual se encontrava aquela determinada posse. O local, às vezes, referia-se ao nome de uma sesmaria, de uma fazenda, de um sítio, de um rio, de uma topografia peculiar, ou de uma espécie singular da flora ou fauna regional.

Veja a tabela 3, a seguir:

Tabela 3 -
Posses que apresentam designações topográfica

Eis aqui a lista de alguns nomes das unidades agrárias apresentadas: Lagoinha, Fazenda Jacutinga, Fazenda Três Barras, Roseiras, Jataí, Fazenda Anhuma, Sesmaria Araras, Sesmaria do Ouro, Sítio Chibarro, Sesmaria Laranjal, Fazenda Pinhal, Sesmaria Boa Esperança, Monjolinho, Quilombo, Sesmaria do Jacaré, Sesmaria Vargem, entre outros. É possível que as posses que não apresentavam nomes específicos, se encontrassem em estado muito inicial ou constituídas de unidades produtivas de mera produção de subsistência ou de pouco excedente comercializável.

As informações sobre os tipos de posse de terra apresentam uma diversidade de referências às quais não dizem respeito apenas às formas de acesso, como por exemplo, sesmaria, data de terras, mas também às formas de uso tais como chácara, sítio, terreno, etc.

Sobre tipos de posse declarados é importante fazer alguns esclarecimentos. A literatura acadêmica que trata desse tema no que diz respeito a designações de época tem utilizado os termos sesmaria, fazenda ou engenho como referências a grandes unidades. As terminologias data, sítio, parte ou posse têm sido genericamente usadas para se referir às proporções menores de terra em contraposição às posses dos grandes proprietários. Contudo, as pesquisas não têm dado ainda um tratamento especificamente filológico a essa problemática. Muito menos a relação da filologia com a história social nesse campo específico. Não pretendemos aprofundar essa vertente do conhecimento, mas vale ressaltar a importância e a lacuna existente nesse âmbito da pesquisa acadêmica. Por outro lado, é importante assinalar que a designação “sorte de terras”, a qual aparece em 25 casos e constitui referência de época presente nos estudos sobre história agrária no norte de Portugal. Tal terminologia relaciona-se a um processo sucessório no qual o fator sorte entra como elemento decisivo no momento de definição do quinhão hereditário.

Veja a tabela 4, a seguir.

Tabela 4 -
tipos de posse declarados

As informações sobre a localização das propriedades aparecem nos registros e aludem às posses declaradas como pertencentes à freguesia de São Bento da Vila de Araraquara. Outras vezes, ao nome de um bairro, de um rio ou de outra referência geográfica que permite uma melhor aproximação da localização da propriedade, porém, sem muita precisão.

As formas de aquisição de terras expressam o modo pelo qual a terra foi adquirida. Cabe destacar a pergunta sobre quais causas levariam à constituição de um mercado de terras em Araraquara do ponto de vista proporcional tão ou mais significativo do que o da região de Campinas, que na ocasião já se constituía em região fortemente agroexportadora. Veja a tabela 5, a seguir.

Uma certa historiografia tem trabalhado com a hipótese de que as regiões de povoamento mais antigo no litoral brasileiro teriam tido a possibilidade de constituir um mercado de terras mais sólido ao longo do tempo, pois as dificuldades de interiorização da ocupação e do transporte da produção agrícola por um lado e a aproximação de mercados regionais dos portos para exportação por outro, tenderiam a que os núcleos populacionais mais densos próximos ao litoral sobrevalorizassem tais terras.

A região de Campinas tinha um preço por hectare mais elevado do que o da região de Araraquara. Uma hipótese explicativa seria a maior aproximação com o porto de Santos e a existência de terras apropriadas ao cultivo do café.

Ora, se levarmos em consideração Monbeig (1984), que entende a valorização da terra no Oeste paulista como decorrência da expansão cafeeira, é plausível a formulação da indagação: por que tantas pessoas compraram terras nessa região ainda na primeira metade do século XIX? Naquela época, havia em Araraquara a presença de uma agropecuária integrada ao mercado interno, segundo os apontamentos de Costa (2008COSTA, Dora Isabel Paiva da. Fronteira, mercado interno e crescimento da riqueza no Brasil, século XIX. Anuário IEHS, Argentina, n. 23, p. 285-303, 2008.)? Ou tal ocupação representou uma franja marginal como apontado por Martins (1973MARTINS, José de Souza. A imigração e a crise do Brasil agrário. São Paulo: Pioneira, 1973.)? Veja a tabela 5, a seguir.

Dora Costa (2008COSTA, Dora Isabel Paiva da. Fronteira, mercado interno e crescimento da riqueza no Brasil, século XIX. Anuário IEHS, Argentina, n. 23, p. 285-303, 2008.), ao estudar essa região em período anterior à expansão da produção de café, estabeleceu uma periodização que propôs analisar a ocupação e o povoamento e chegou a conclusão de que os produtos agrícolas e pecuários, voltados ao mercado interno, possibilitaram o aumento do nível geral de riqueza agrária, em especial dos proprietários de escravarias de tamanho médio, e que a população animal cresceu mais do que a humana, assim como seus preços médios apresentaram uma alta significativa de 258%, traduzindo uma demanda ascendente representada pelo mercado interno regional.

Tabela 5 -
Formas de acesso À terra

Algumas centenas de quilômetros no sentido do litoral, percorrendo a serra do mar abaixo, as terras da região de Ubatuba, naquela ocasião, já apresentavam uma ocupação efetivada por uma população caiçara a qual se dedicava às atividades de pesca, pequenas lavouras e pecuária de reduzida proporção (MARCILIO, 1986MARCÍLIO, Maria Luiza. Caiçara: terra e população. São Paulo: Paulinas, 1986. 274 p.). Nessa região, constatou-se que a forma de acesso à terra mais significativa ainda era a tradicional posse (30%), seguida pela herança (29%) e, depois, pela compra (27%).

A grande maioria das declarações presentes nos Registros Paroquiais de Terras de Araraquara, 45%, vinculam-se à forma relacionada à compra e venda. Em Campinas esse segmento atinge um patamar de 37%, e em Ubatuba, 27%. Warren Dean (1977DEAN, Warren. Rio Claro: um sistema brasileiro de grande lavoura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. 205 p.) não indica percentuais de compra para o Rio Claro, no entanto, afirma que 20% das declarações tiveram origem na herança ou doação, e 1/3 na posse. Tal percentual indicador da forma de acesso à terra por meio do mecanismo de posse, apenas se assemelha ao caso de Ubatuba, e se distancia muito do caso de Campinas, com 1,9% e Araraquara, com 4,6%. Vale destacar a observação de que Campinas estava atravessando uma conjuntura econômica de crescimento da agro exportação e de diferenciação da estrutura social (COSTA, 2004COSTA, Dora Isabel Paiva da. Formação de famílias proprietárias e redistribuição de riqueza em área de fronteira: Campinas, São Paulo, 1795-1850. História Econômica & História de Empresas, v. 2, n. 2, p. 7-35, 2004.). Contudo, nota-se que a região mais dinâmica no tocante ao mercado de terras estava em Araraquara quando comparada à de Campinas e Ubatuba. Em estudo clássico, Petrone (1968PETRONE, Maria Thereza Schorer. A lavoura canavieira em São Paulo. São Paulo: Difel, 1968.) aponta que a grande maioria das terras declaradas foram transferidas pelo mecanismo de compra nas regiões de Itu, Jundiaí e Piracicaba.

As informações contidas nessa documentação apontam para a existência de posseiros num período anterior ao da promulgação da lei. Tais posseiros teriam passado a titularidade àqueles que se apresentaram como proprietários por meio de escrituras inter-vivos, sendo possível, portanto, realizar uma pesquisa genealógica de posses primárias. Uma riqueza de caminhos para futuros cruzamentos com nossos bancos de dados compostos por inventários post-mortem e listas nominativas dos domicílios rurais. Essa complexa rede interrelacionada de dados poderia configurar as características de um mercado delineado por laços familiares e de parentesco, como aponta Giovanni Levi (2000LEVI, Giovanni. Herança imaterial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.) em seu estudo sobre a região do Piemonte na Itália do século XVII.

Os dados sobre os nomes dos posseiros variam de registro para registro, podendo se referir ao vendedor (nos casos em que o acesso se deu por meio da compra e venda), ou ao inventariado (nos casos em que a forma de acesso se deu por meio da transmissão de herança), ou ainda, ao permutador, em se tratando de troca, ou ao doador, no caso de doação, dádiva ou dote.

As informações relativas aos nomes de antigos posseiros permitem ter acesso ao nome do primeiro possuidor de determinadas terras e alude à pessoa que a vendeu, a transmitiu, a doou ou a trocou com outra a qual encontra-se declarada no registro paroquial como proprietário coevo. Esse procedimento metodológico de pesquisa permite ter acesso à informação a respeito dos posseiros que exerceram efetivamente a titularidade primária sobre as terras. Veja a tabela 6, a seguir.

Tabela 6 -
Posses que indicam a forma de aquisição anterior

A informação sobre os preços das posses revela o valor da transação, nos casos de compra e venda ou o valor declarado nos processos de inventários post-mortem nos momentos de transmissão de herança. Veja a tabela 7, a seguir.

Tabela 7 -
Posses com Preços

A informação atinente a preço e associada à dimensão da posse ser-nos-ia bastante útil e possibilitaria o conhecimento do preço por hectare, se a posse tivesse sido demarcada. Apenas uma pequena parte das declarações apresentou o preço das terras a despeito do mecanismo de compra e venda ter sido bastante comum do ponto de vista estatístico, 45%, conforme apontamos acima. Cerca de 10% declararam o preço em mil réis, enquanto outros 89% não declarou preço algum, fosse em mil réis ou em ouro, como era ainda uma prática comum da época. O conjunto das terras declaradas compradas perfaz a soma de 346 unidades, das quais 50 (14,5%) apresentaram preços e 296 (85,5%) não os apresentaram. O conjunto das terras declaradas herdadas perfaz a soma de 154, das quais 11 (7%) apresentaram preços e 143 (89%) não os apresentaram. Vale sublinhar que a grande maioria das posses não declarou tal informação, apresentando lacunas na documentação.

As informações sobre as dimensões das posses não eram muito comuns em povoamentos recentes. No entanto, em áreas de ocupação mais antigas, no vale do rio Paraíba do Sul, no município de Capivari, na província fluminense, Hebe de Castro (1987CASTRO, Hebe Maria Mattos de. Ao Sul da História. São Paulo: Brasiliense, 1987. 190 p.) encontrou uma grande proporção de registros com dimensões declaradas.

Em geral, a dimensão da posse é apresentada em léguas, alqueires e braças. Essas medidas foram convertidas em hectares para que pudéssemos comparar com outros estudos existentes. Vejamos o exemplo que segue: “...sua extenção será mais, ou menos treis legoas de cumprimento, e duas de largura...” (Registro número 379, anexo Anexo Transcrição de um registro paroquial N.º 379 - Numero trezentos, e setenta, e nove. Aos dezenove de Maio de mil oito centos, e cincoenta, e seis, nesta Villa de São Bento de Araraquara, por Manoel Joaquim Dores do Espirito Santo, digo Apostolico, me foi apprezentado ûns titulos de terras do theor e forma seguinte. = Exemplar para se registrar na Paroquia de Araraquara. O Vigario Manoel Joaquim Dores do Espirito Apostolico, morador na Freguezia de São Simão, possue neste destricto de São Bento de Araraquara, huma fazenda denominada Barra Mansa, que houve por compra de Manoel Francisco de Avila, e sua mulher, de que lhes passarão [sic] pertence, nos titulos que tinhão, no valor de quatro centos, e cincoenta mil reis, em mil oito centos, e quarenta, e nove, cuja fazenda devide, com os mais socios, herdeiros do finado Sarico, e outros pelo Jacaré Pupillo, pela Boa Esperança, com Jozé de Castro, com Manoel Joaquim do Prado, e outros, e entre os socios está por dividir-se, sua extenção será mais, ou menos treis legoas de cumprimento, e duas de largura; e desta maneira dou por feita minha declaração, indo em dupplicado. São Simão cinco de Maio de mil oito centos, e cincoenta, e seis. O Vigario Manoel Joaquim Dores do Espirito Apostolico. Joaquim Cypriano de Camargo ). Veja a tabela 8, a seguir.

Tabela 8 -
Tamanhos das posses em Araraquara e Campinas

Quando extraímos, para efeito de comparação, os tamanhos das posses de terras e os organizamos por classes (grandes agrupamentos de dados), encontramos o seguinte resultado para Araraquara e Campinas, respectivamente: na grande faixa que vai dos 50 a mil hectares, 12,66% e 27,3% das declarações correspondiam ao grupo dos proprietários das menores porções de terras. Na faixa de 1.001 a 10.000 hectares, encontramos 17,9% e 18,6%, temos aí os proprietários donos de posses de tamanho médio. Finalmente, acima de 10.000 hectares, tivemos 4,75% em Araraquara e 0% em Campinas. Destacam-se as proporcionalidades semelhantes para as duas regiões no agrupamento médio. Já no grande grupo dos maiores proprietários, observa-se o que foi apontado por Bacellar (1997BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Os senhores da terra: família e sistema sucessório entre os senhores de engenho, 1765-1855. Campinas: Centro de Memória, Unicamp, 1997. 219 p.) em seu estudo sobre as terras dos engenhos do Oeste paulista. Esse afirmou que as dimensões das mais recentes eram maiores do que aquelas de povoamento mais antigo, por exemplo, as que estavam situados no vale do Paraíba do Sul, na região vicentina. Segundo ele, os efeitos dos processos de herança teriam ao longo do tempo fragmentado tais propriedades. Numa visão de conjunto, destaca-se que a região de Araraquara possuía uma maior frequência de porções maiores de terras, o que a caracteriza como área típica de fronteira.

Quando comparamos as terras declaradas compradas com as herdadas, nota-se os seguintes resultados para as compradas: aquelas que apresentaram preço e tamanho se constituíram em nove (2,6%); aquelas que apresentaram tamanho sem preço declarado, 80 (23,1%); aquelas com preço sem tamanho, 267 (77,2%), e, por fim, sem preço e sem dimensão, 198 (57%). Como se vê, os subconjuntos resultantes ficaram muito fracionados, o que não permite tirar conclusões históricas significativas e consistentes.

Em relação às terras declaradas herdadas, os subconjuntos resultantes da aplicação da mesma metodologia, resultou em maior fracionamento do que em relação àquelas compradas, tendo em vista o tamanho menor da amostra. Por isso, não há possibilidade de tirar conclusões históricas significativas e consistentes também.

O tamanho da área média transacionada foi de 2.224,65 hectares entre as que foram compradas na região de Araraquara, por outro lado, o tamanho médio das herdadas foi de 3.946,88 hectares. Esse resultado significa que a demanda pela compra foi maior em termos de frequência, mas menor em relação ao tamanho médio das unidades herdadas. Essas últimas possuíam um ciclo biológico e histórico próprio da condução de sucessores dos patrimônios familiares, uma vez que demandava maior tempo para sua efetivação por meio dos mecanismos de transmissão de herança (COSTA, 2004COSTA, Dora Isabel Paiva da. Formação de famílias proprietárias e redistribuição de riqueza em área de fronteira: Campinas, São Paulo, 1795-1850. História Econômica & História de Empresas, v. 2, n. 2, p. 7-35, 2004.). E, por outro lado, permitia realizar a manutenção da reprodução social a qual conduzia à preservação da hierarquia social por meio da linha sucessória vinculada ao parentesco.

As informações sobre benfeitorias também influenciavam os níveis de preços, mas, em geral eram apresentadas de modos bastante rústicos. Há referências genéricas sobre “melhorias” realizadas na propriedade, como exemplo da declaração da existência de casa com monjolo. Ou, ainda, da situação de posse quando estava preparada para o cultivo ou a existência de um pequeno plantel de animais que pastava no terreno.

Tal informação era muito importante, pois para a revalidação da posse eram necessárias a existência da habitação ou residência usual e o cultivo efetivo da terra, portanto, os posseiros tinham o maior interesse em declará-las. Veja a tabela 9, abaixo.

Constatamos que apenas um terço delas estavam devidamente ocupadas, a julgar pelo conteúdo das declarações. É plausível levantar a hipótese de que o restante das declarações, (68%), que não apresentou benfeitorias, estavam sendo usadas como possibilidade de especulação comercial, garantia de hipoteca para empréstimos voltados para a produção agrícola e acomodação de futuros sucessores dentro do sistema sucessório vinculado ao parentesco.

Tabela 9 -
Posses que declaram benfeitorias

As informações sobre a situação jurídica da posse possibilitam algumas inferências. Francisco Carlos Teixeira da Silva (1981SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. A formação social da miséria: camponeses e criadores no sertão do São Francisco. 1981. 256 f. Dissertação (Mestrado em História) ‒ Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1981.) caracterizou a região de Porto da Folha, correspondente, grosso modo, ao sertão do São Francisco no final do século XVIII e começo do XIX, como uma economia camponesa, baseada no trabalho familiar e na posse coletiva da terra de forma relativamente autônoma.

Posteriormente, Costa (1992COSTA, Dora Isabel Paiva da. Posse de escravos e produção o agreste paraibano: um estudo sobre bananeiras, 1830-1888. 1992. 289 f. Dissertação (Mestrado em História) ‒ Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1992.), em sua pesquisa de mestrado, encontrou em seu amplo acervo de 789 inventários post-mortem pertencentes à vila de Bananeiras, região agreste da província da Paraíba do Norte, uma presença significativa de terras que estavam declaradas sob a forma pro-indiviso entre os herdeiros. Do ponto de vista jurídico, tais terras estavam em situação de posse comunal, o que indicava posse coletiva e familiar. A transmissão patrimonial se daria por via de parentesco, em primeiro lugar, pois essas terras estavam muitas vezes encravadas no meio de uma posse maior.

Como vemos na tabela 10, abaixo, as designações diversas tais como por “repartir-se”, “em comum”, “em sociedade” ou “em comunhão” reportam ao conceito pro-indiviso, o qual descreve uma situação fundiária na qual um bem é objeto de uso e desfruto de um conjunto de pessoas. Esse conjunto é formado pelos herdeiros cujo fundo patrimonial familiar é constituído por membros que estão vinculados por laços matrimoniais, filiais e de parentesco, mesmo que, às vezes, na forma simbólica, tais como compadres e afilhados.

Ellen Woortmann (1995WOORTMANN, Ellen. Herdeiros, parentes e compadres. São Paulo: Hucitec, 1995. 336 p.), estudando uma comunidade camponesa no Nordeste brasileiro contemporâneo, comentou que o regime pro-indiviso não dizia respeito necessariamente à posse da mesma origem familiar e concluiu que a região conformava um fenômeno identificado por posse e transmissão entre parentes, e que, muitas vezes, ocorria entre irmãos germanos, muito embora o sobrenome não fosse o mesmo.

A posse de terras nesse tipo de regime não é uma peculiaridade histórica do sertão ou de um único segmento social, seja camponês ou senhorial. No caso dos posseiros era uma prática associada a padrões matrimoniais com base em um habitus “naturalizado”, no sentido usado por Bourdieu (1996BOURDIEU, Pierre. As razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996. 224 p.). A terra e as benfeitorias eram vistas como um patrimônio material, cultural e simbólico, não se tratando apenas de um meio de produção.

Tabela 10 -
Situação jurídica das posses de terras

A extração dessas informações traduz que em grande medida as compras e vendas realizadas no mercado local de terras eram compostas muito mais por parentes que se transformaram em sucessores de empreendimentos agrários do que por pessoas que vinham de fora da região, guiadas por interesses ligados à produção agrícola comercial.

Considerações finais

Os Registros Paroquiais de Terras demonstraram ser uma documentação muito rica, porém diversificada, dependendo da região onde foi confeccionada pode apresentar diferentes informações. Se aliada a outras fontes como as Listas de População e os Inventários post-mortem, o pesquisador terá um manancial de recursos o qual poderá ser usado para o estudo da história econômica regional, história da população e história política.

Quando comparamos os Registros Paroquiais de Terras de Araraquara, Campinas e Ubatuba observamos um significativo mercado de terras já presente na região antes da lei de 1850. Tal mercado apresentou-se mais dinâmico do que o da região de Campinas, em que pese a assertiva da historiografia tradicional de que as dificuldades da interiorização da produção e do transporte agrícola, assim como a sobrevalorização das terras próximas ao litoral, teriam levado à constituição de um mercado de terras mais sólido nas regiões de povoamento mais antigo.

Nota-se que a região central de Araraquara foi formada por propriedades que se distinguiam daquelas coloniais da Bahia que representavam enormes latifúndios. Portanto, em geral, eram constituídas por tamanhos que perfaziam três léguas por duas ou três léguas por uma. Suas unidades produtivas cafeeiras foram de pequeno e médio portes (MONTEIRO, 2003MONTEIRO, Rosane Carvalho Messias. O cultivo de café nas bocas do sertão paulista: mercado interno e mão de obra no período da transição, 1830-1888. São Paulo: Ed Unesp, 2003. 192 p.). No entanto, sua produção de gado para transporte apresentou uma expansão extraordinária de 258%, traduzindo um pungente crescimento do mercado interno regional (COSTA, 2008COSTA, Dora Isabel Paiva da. Fronteira, mercado interno e crescimento da riqueza no Brasil, século XIX. Anuário IEHS, Argentina, n. 23, p. 285-303, 2008.).

Portanto, a significativa magnitude de acesso à terra por meio da compra confirma os resultados de Petrone (1968PETRONE, Maria Thereza Schorer. A lavoura canavieira em São Paulo. São Paulo: Difel, 1968.). A existência de um maior percentual na ocorrência de compra e venda de terras de maior dimensão em Araraquara do que em Campinas, caracteriza essa região como de fronteira. Por outro lado, sendo a frequência da área média herdada maior do que a da comprada, nos permite concluir que o sistema sucessório baseado no parentesco continuou como um pilar da reprodução social.

Referências

  • BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Os senhores da terra: família e sistema sucessório entre os senhores de engenho, 1765-1855. Campinas: Centro de Memória, Unicamp, 1997. 219 p.
  • BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Uma rede fundiária em transição. In: BACELLAR, Carlos de Almeida Prado; BRIOSCHI, Lucila Reis. Na estrada do Anhanguera: uma visão regional da história paulista. São Paulo: Humanitas/FFLCH/ USP, 1999. p. 91-116.
  • BOURDIEU, Pierre. As razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996. 224 p.
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  • COSTA, Dora Isabel Paiva da. Fronteira, mercado interno e crescimento da riqueza no Brasil, século XIX. Anuário IEHS, Argentina, n. 23, p. 285-303, 2008.
  • COSTA, Dora Isabel Paiva da. Posse de escravos e produção o agreste paraibano: um estudo sobre bananeiras, 1830-1888. 1992. 289 f. Dissertação (Mestrado em História) ‒ Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1992.
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  • WOORTMANN, Ellen. Herdeiros, parentes e compadres São Paulo: Hucitec, 1995. 336 p.

FONTES MANUSCRITAS

  • ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO - APESP- Registros paroquiais de terras de Araraquara, 1856-1866.

FONTES PUBLICADAS

Notas:

  • 1
    É importante esclarecer que a composição e o conteúdo dos registros paroquiais de terras podem variar de paróquia a paróquia, o que pode às vezes impossibilitar comparações rigorosas. Tais características de documentos manuscritos eram muito comuns nos séculos XVIII e XIX.
  • 2
    Ver o estudo pioneiro que buscou focalizar o grupo de homens pobres livres foi Maria Sílvia Carvalho FrancoFRANCO, Maria Silvia de Carvalho. Homens pobres livres na ordem escravocrata. São Paulo: Ciências Humanas , 1978. . Homens Pobres Livres na Ordem Escravocrata. São Paulo: Ciências Humanas, 1978. Sem pretender esgotar as principais obras foram: Hebe Maria Mattos de Castro com Ao Sul da História. São Paulo: Brasiliense, 1984. P. L. Eisenberg, Homens Esquecidos. Campinas: Edunicamp, 1989. B. J. Barickman. Um contraponto baiano. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

Anexo

Transcrição de um registro paroquial

N.º 379 - Numero trezentos, e setenta, e nove. Aos dezenove de Maio de mil oito centos, e cincoenta, e seis, nesta Villa de São Bento de Araraquara, por Manoel Joaquim Dores do Espirito Santo, digo Apostolico, me foi apprezentado ûns titulos de terras do theor e forma seguinte. = Exemplar para se registrar na Paroquia de Araraquara. O Vigario Manoel Joaquim Dores do Espirito Apostolico, morador na Freguezia de São Simão, possue neste destricto de São Bento de Araraquara, huma fazenda denominada Barra Mansa, que houve por compra de Manoel Francisco de Avila, e sua mulher, de que lhes passarão [sic] pertence, nos titulos que tinhão, no valor de quatro centos, e cincoenta mil reis, em mil oito centos, e quarenta, e nove, cuja fazenda devide, com os mais socios, herdeiros do finado Sarico, e outros pelo Jacaré Pupillo, pela Boa Esperança, com Jozé de Castro, com Manoel Joaquim do Prado, e outros, e entre os socios está por dividir-se, sua extenção será mais, ou menos treis legoas de cumprimento, e duas de largura; e desta maneira dou por feita minha declaração, indo em dupplicado. São Simão cinco de Maio de mil oito centos, e cincoenta, e seis. O Vigario Manoel Joaquim Dores do Espirito Apostolico.

Joaquim Cypriano de Camargo

Editado por

Editores:

Karina Anhezini e André Figueiredo Rodrigues

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    17 Mar 2021
  • Aceito
    05 Jul 2021
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