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Um imenso presunto chamado Brasil: alegoria e política nas crônicas barretianas

An huge ham called Brazil: allegory and policy in barretianas chronicles

Resumo

Este artigo tem como objetivo compreender alguns acontecimentos políticos da Primeira República pelo olhar literário de Lima Barreto. Numa relação entre alegoria e história, buscamos entender como o escritor trabalha o mundo político a partir do figurado, da sátira e de temas clássicos da literatura universal, como o banquete. A crônica mestra que será analisada é Coisas do Jambon, publicada na revista Careta, em 1921. Por meio de seus rastros alegóricos, iremos descortinar outros testemunhos e apreender os fios que costuram a particularidade da história brasileira. Dois episódios históricos se cruzam nas imagens alegorizadas tecidas pelo autor: a vinda de Alberto I, rei da Bélgica, ao Brasil, em 1920; e a disputa presidencial entre Artur Bernardes e Nilo Peçanha, em 1921.

Palavras-chave:
alegoria; história; política; República; Lima Barreto

Abstract

This article aims to understand some political events of the First Republic through the literary gaze of Lima Barreto. In a relationship between allegory and history, we seek to understand how the writer works the political world from the figurative, satire and classic themes of universal literature such as the banquet. The master chronicle that will be analyzed here is Coisas do Jambon, also published in the Careta magazine in 1921. Through its allegorical traces, we will unveil other testimonies and apprehend the threads that sew the particularity of Brazilian history. Two historical episodes intersect in the allegorized images made by the author: The arrival of Albert I, king of Belgium, to Brazil, in 1920; and the presidential dispute between Artur Bernardes and Nilo Peçanha, in 1921.

Keywords:
allegory; history; policy; Republic; Lima Barreto

No ano de 1920 um grande acontecimento mobilizou a rotina da República brasileira, em especial, da então capital do Brasil, o Rio de Janeiro. Foi a chegada do Rei Alberto I e da Rainha Elisabeth, da Bélgica. Eles foram os primeiros monarcas europeus a visitar a América do Sul e a sua vinda serviu de emblema da grandeza nacional. Durante meses, os grandes jornais da cidade cobriram em detalhe os preparativos e os gastos públicos para a recepção das realezas. A fim de provocar uma boa impressão, o paraibano Epitácio Pessoa (1865-1942), nessa ocasião presidente do país, mandou reformar a cidade carioca, que sofreu um novo surto de reformas, lembrando os tempos da remodelação do prefeito Pereira Passos1 1 Uma análise sobre o período da belle époque, que marcou o processo de modernização e racionalização do capitalismo no Brasil, nas primeiras décadas iniciais da República, pode ser encontrada em clássicos como: SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Companhia das Letras, 2003; ROCHA, Oswaldo Porto. A era das demolições: cidade do Rio de Janeiro 1870-1920. Rio de Janeiro: Secretária Municipal de Cultura, 1995; NEEDELL, Jeffrey. Belle époque tropical: sociedade e cultura de elite no Rio de Janeiro na virada do século. Tradução de Celso Nogueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993; BENCHIMOL, Jaime, Pereira Passos: um Haussmann tropical. A renovação urbana da cidade do Rio de Janeiro no início do século XX. Rio de Janeiro: Biblioteca Carioca, 1992. Estudo recente sobre o tema é apresentado em: SANTOS, Poliana dos. O povo e o paraíso dos abastados - Rio de Janeiro, 1900/1920 (crônicas e outros escritos de Lima Barreto e João do Rio). Tese (Doutorado em História Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018. . Novamente, as “picaretas civilizatórias” foram postas em ação, e a caça aos mendigos retomou o fôlego de outrora, no intento de “limpar” as ruas de indigentes. Conforme O PaizO PAIZ. A cara da cidade. Rio de Janeiro, 05 ago. 1920, p. 3. Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/178691_05/2653.
http://memoria.bn.br/docreader/178691_05...
, em 5 de agosto de 1920:

Para receber o rei Alberto a cidade está, evidentemente, lavando a cara...

Pinta-se aqui, melhora-se ali, retoca-se um pouco mais adiante. O serviço geral da limpeza pública, apesar das deficiências de material e de pessoal, tem melhorado e muito (...).

Entre as coisas curiosas que estão sendo preparadas para a real recepção acham-se os lampiões que guarnecem as calçadas da Avenida. Porque são de gás, mas irão brilhar com lâmpadas incandescentes. E não se diga que é pequena a maravilha do combustor de gás que funciona a eletricidade...

Os ilustres hóspedes aportaram em terras brasílicas no dia 19 de setembro de 1920, sendo recebidos com estrondo de canhões, bandeirolas nas ruas e uma grande multidão, que olhava curiosa os viajantes reais. A cidade, toda em festa, parava com o préstito que seguia o rei e a rainha. E, à noite, um enorme banquete foi realizado no palácio do Catete. Para a celebração, o edifício foi decorado de modo especial: lâmpadas coloridas, plantas e flores raras, algumas importadas do México. No cardápio, os pratos eram servidos num linguajar afrancesado (GAZETA DE NOTÍCIAS, 1920aGAZETA DE NOTÍCIAS. O dia dos reis da Bélgica. Rio de Janeiro, 21 set. 1920a, p. 7. Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/103730_05/2275.
http://memoria.bn.br/docreader/103730_05...
, p. 7).

Porém, nem tudo era alegria! A vinda do rei belga trouxe igualmente muitas críticas à gestão de Epitácio Pessoa. Sua administração foi vista como governo dos desperdícios e das inutilidades, pois a preocupação com os preparativos para chegada de Alberto I ia desde os tapetes do palácio Monroe até os vestidos das esposas de diplomatas. O fato não passou despercebido pela pena de Lima Barreto, que dedicou várias crônicas ao ocorrido e à política do momento. O autor confeccionou diversas imagens do país a datar do episódio. Entre elas, está a do banquete, no qual o Brasil é representado como o prato principal, servido para a vasta comilança de políticos e interesseiros.

Este artigo analisa os recursos alegóricos utilizados por Lima Barreto para descrever a política brasileira e o evento da chegada das realezas belgas. Para tanto, dividimos a análise em três tópicos: 1) História e alegoria, em que mostramos a relação entre saber histórico e narrativas alegóricas; 2) Uma República de vatapás e carurus, no qual focamos a analogia entre o Brasil e o banquete; 3) Entre sultão e paxás: os roedores, no qual observamos as personagens representadas na ficção, revelando suas identidades verdadeiras e os acontecimentos retratados.

História e alegoria

No artigo História como alegoria, Peter Burke (1995BURKE, Peter. História como Alegoria. Estudos avançados, São Paulo, v. 9, n. 25, p. 197-212, 1995., p. 197) explica como é recorrente na “história da escrita da História” a “representação de um evento ou de um indivíduo do passado em forma de outro evento ou outro indivíduo”. É uma prática antiga de escritores, políticos e religiosos tecerem comentários do que se passou para retratar o momento vivido. A iconografia e os textos literários estão repletos de personalidades poderosas, que se destacaram no campo de batalha e na vida política da Antiguidade, mas que não representavam a si mesmas, remetendo a individualidades do tempo presente que buscavam se afirmar no jogo do poder, espelhando-se em glórias outras. Exemplar é a pintura dos papas Leão III e Leão IV e de Carlos Magno, na série de afrescos de Rafael, no Vaticano, para aludir às relações de Leão X e o Imperador Carlos V com o Império Otomano.

Todavia, nem sempre a alegoria é usada para erguer um monumento ao poder. Além da lisonja e da justificativa, ela serve também para advertir e criticar pessoas ou acontecimentos. Em 1953, o dramaturgo Arthur Miller (2009MILLER, Arthur. As bruxas de Salém. In: MILLER, Arthur. A morte de um caixeiro-viajante e outras quatro peças. São Paulo: Companhia das Letras , 2009.) utilizou um episódio histórico, ocorrido em 1692 nos Estados Unidos - o julgamento de Salém -, para retratar a perseguição e a intolerância do macarthismo. Em 1669, na peça Britannicus, de Jean Baptiste Racine, Luís XIV foi alegorizado como Nero, numa espécie de censura ao exibicionismo do rei nos palcos (BURKE, 1995BURKE, Peter. História como Alegoria. Estudos avançados, São Paulo, v. 9, n. 25, p. 197-212, 1995., p. 199).

A visão histórica do mundo é mediada, não raro, por narrativas alegóricas, baseadas em modelos passados para representar uma determinada ordem ou moral vigente. E isso não ocorre apenas no aspecto político. A vida religiosa é marcadamente representada por padrões míticos e alegóricos. Durante a Idade Média, católicos interpretavam a sua contemporaneidade a partir da estrutura simbólica cristã, principalmente, em termos de juízo final. Acontecimentos reais prefigurariam eventos futuros. Sintomático é o quadro A batalha de Alexandre (1529), do pintor alemão Albrecht Altdorfer, que narra o conflito de Issus no ano 333 a. C., combate no qual Alexandre Magno conseguiu uma importante vitória contra o rei persa, Dario III. É significativo que nessa obra o pintor compôs uma dupla alegoria, de valor histórico e religioso. No plano terreno, o quadro remete a um episódio coevo ao artista: Maximiliano e as hordas de Lansquenetes contra os turcos. No plano místico, a pintura tinha um caráter escatológico, em que as forças cósmicas eram simbolizadas pelo sol e pela lua, significando a luminosidade de Alexandre e a escuridão de Dario. O confronto entre os dois reis foi prenunciado como um arquétipo do combate entre Cristo e o Anticristo, tão esperado pelos contemporâneos de Altdorfer (KOSELLECK, 2006KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto Editora, 2006. , p. 22-24).

Nessa perspectiva, podemos evidenciar dois tipos de alegorias históricas: 1) pragmática, usada para criticar ou glorificar os costumes, a sociedade e os poderosos. Ela é de ordem mimética e se constrói por meio da linguagem; e 2) metafísica, em que a semelhança entre dois eventos é vista como parte de uma conexão oculta ou invisível, como se tivesse sido escrita por Deus (BURKE, 1995BURKE, Peter. História como Alegoria. Estudos avançados, São Paulo, v. 9, n. 25, p. 197-212, 1995., p. 201). Em tal caso, o futuro e os acontecimentos do presente já estariam circunscritos no passado, a exemplo da batalha de Issus. Hansen (2006HANSEN, João Adolfo. Alegoria: construção e interpretação da metáfora. São Paulo: Editora da Unicamp, 2006., p. 8) explica que esse último tipo alegórico ficou conhecido como “alegoria dos teólogos”, não significando “um modo de expressão verbal retórico-poética, mas de interpretação religiosa de coisas, homens e eventos figurados em textos sagrados”. Ele é da ordem da decifração.

Devemos dizer que os recursos alegóricos utilizados por Lima Barreto tinham o caráter pragmático, objetivando provocar o ridículo e o rebaixamento dos seus adversários. Seu intuito era expressar de maneira saliente uma crítica à política republicana. A alegoria, como mostrou Hansen, desde o período greco-romano, constitui uma modalidade da elocução, fazendo parte de um conjunto de preceitos técnicos que ornamenta o discurso, a ponto de a palavra se distinguir do sentido. É uma construção formal de metáforas continuadas, funcionando por representação e semelhança. O tropo como expressão artística é de caráter intencional e advém das qualidades criativas do autor: “uma maneira de falar e escrever” (HANSEN, 2006HANSEN, João Adolfo. Alegoria: construção e interpretação da metáfora. São Paulo: Editora da Unicamp, 2006., p. 8).

A literatura é rica na utilização de procedimentos alegóricos para criticar os homens de estado e as suas práticas políticas. O livro As viagens de Gulliver, escrito por Jonathan Swift em 1726, é uma alegoria à Inglaterra do século XVIII. Na primeira excursão do protagonista, o médico Lemuel Gulliver, seu navio sofre um naufrágio e ele amanhece num país estranho, Liliput, onde reinava um rei absolutista e habitavam homens pequeninos. Nesse mundo novo, havia dois partidos em disputa, o ostramecksan, que defendia o uso de sapatos com salto; e o slamescksan, que propugnava o porte de sapatos baixos. Com isso, Swift buscou alegorizar a sociedade inglesa de seu tempo e os dois grupos políticos do período: os Whigs (liberais) e os Tories (conservadores), expondo a charlatanice dos governantes (GUERRA, 2012GUERRA, Leandro José Cesar de Mattos. Viagens de Gulliver: recepção (história) e interpretação (crítica). Dissertação (Mestrado em História Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012., p. 47-49).

Muitos outros exemplos podem ser mencionados, inclusive aqueles que fogem das figurações humanas e entram no reino da fábula e do grotesco. Em Pantagruel, publicado em 1532, Rabelais (2009RABELAIS, François. Gargântua e Pantagruel. São Paulo: Itatiaia, 2009.) conta a história de uma comunidade humana que vivia na boca de um gigante. Dentro da cavidade digestiva existiam cidades, campos, montanhas, vendedores, assaltantes, epidemias etc. Auerbach (1971AUERBACH, Erich. O mundo na boca de Pantagruel. In: AUERBACH, Erich. Mimeses. São Paulo, Perspectiva, 1971., p. 230) comenta que esse novo mundo é semelhante à sociedade francesa; e explica que o surto epidêmico, que se alastrou na boca da personagem, referia-se à peste grassada nas cidades do norte da França no século XV. Outra obra alegórica, que permeia o fantástico, é A revolução dos bichos, de George Orwell (2007ORWELL, George. A revolução dos bichos. São Paulo: Companhia das Letras , 2007.). Lançada em 1945, o enredo narra a revolta liderada pelos porcos Napoleão e Bola de Neve, que expulsaram os proprietários da Granja onde viviam, implantando um regime de governo chamado animalismo. A fábula mimetiza o autoritarismo stalinista, com Napoleão figurando Stalin e Trotsky na imagem de Bola de Neve.

A relação entre alegoria e história possui diversas camadas. Pode ser vista como uma leitura que os homens fazem de sua época. Por exemplo, na Idade Média, a realidade era experimentada em termos apocalípticos e da simbologia bíblica. As doenças, guerras e crises sociais eram compreendidas como índices da volta de Cristo. Assim, tomado como forma de ver, pensar e sentir o mundo, o tropo pode se converter em fonte valiosa para a pesquisa histórica. O alegórico também pode contribuir para a escrita da história, sendo um bom artifício para narrar determinados acontecimentos, tornando-os mais evidentes; ou mesmo para pensar a disciplina. Ele é um modo narrativo potencialmente cognitivo, pois fornece visibilidade e uma leitura mais inteligível ao processo de investigação do historiador. Marc Bloch usava de metáforas continuadas do cinema para explicar o seu “método regressivo”. Neste, as épocas seriam lidas para trás, como num filme, no qual surgem imagens descontínuas e móveis, que vão se desenrolando ao contrário e com lacerações (GINZBURG, 2002GINZBURG, Carlo. Relações de força: história, retórica, prova. São Paulo: Companhia das Letras , 2002. , p. 115). A alegoria pode, igualmente, ter outra função, atuando como operação metodológica, que pretende reaver um sentido que estava oculto. Ela é um método de interpretação de texto, que busca significados escondidos em formas figuradas. É muito usada na iconologia para decifrar os sentidos intrínseco de uma imagem. Em suma, o historiador da cultura tem em seu campo uma categoria literária de múltiplas dobras, quer estéticas, quer sociais. E esses vincos podem se revelar numa experiência de tempo, em uma forma narrativa, um método e um documento.

Carlo Ginzburg (2001GINZBURG, Carlo. Olhos de madeira: nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Companhia das Letras , 2001.) explica como o uso de técnicas literárias pode ser eficaz para o profissional da história, no modo observar e analisar o seu objeto de estudo. Um desses procedimentos seria o estranhamento, em que o processo narrativo é contado pelo revés, superando a mera aparência e mergulhando numa realidade profunda. A partir do estranho, o mundo e a sociedade passam a ser vistos com “olhos distantes, estranhados, críticos” (GINZBURG, 2001GINZBURG, Carlo. Olhos de madeira: nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Companhia das Letras , 2001., p. 28). Tal recurso coloca em espanto um acontecimento que foi amortecido pelo cotidiano, anulando a naturalidade com que as coisas são percebidas. É, portanto, um método produtivo contra o risco que todos nós temos de banalizar o real.

Não obstante, Ginzburg expõe que o incomum é alcançado por diversos artifícios e pode chegar a diferentes resultados. O autor apresenta duas focagens distintas de estranhamento. A primeira está relacionada a uma tradição literária específica, admirada por Tolstói, que vai de Marco Aurélio aos iluministas. Nessa perspectiva, o uso do estranho tem uma força corrosiva, deslegitimando qualquer autoridade, seja no nível político, social ou religioso. Trata-se de um meio de superar a aparência a fim de penetrar no interior de uma representação, fazendo emergir sua “verdadeira natureza”. O segundo ponto de vista é o de Proust, que oferece uma noção oposta de estranhamento. Diferente de Tolstói, o escritor francês não buscava um princípio causal no íntimo de nossas percepções. Ele não tinha o desígnio de fazer uma crítica moral, mas de proteger a vivacidade das aparências contra explicações causais. O literato não pretendia enxergar as motivações ocultas por meio do pouco habitual, mas alcançar as impressões imediatas. Com este efeito, Proust procurava mostrar que nem tudo é dado a ver. No interior das aparências, há muito de ambiguidade e de fragmentos contraditórios (GINZBURG, 2001GINZBURG, Carlo. Olhos de madeira: nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Companhia das Letras , 2001., p. 28-37).

Posto isto, Lima Barreto também utiliza do estranhamento como procedimento artístico, tomando, para isso, o dispositivo alegórico. Como vimos, o tropo apresenta um sentido que diverge da palavra, resultando num componente figurado e numa significação literal e implícita. Nesse jogo, “há uma transposição semântica de um signo em presença para um signo em ausência” (HANSEN, 2006HANSEN, João Adolfo. Alegoria: construção e interpretação da metáfora. São Paulo: Editora da Unicamp, 2006., p. 30). Em outras palavras, um elemento estranho é empregado e correlacionado a uma expressão verbal. Há uma mensagem subterrânea e oculta que vai sendo apresentada ao leitor à medida que este lê o texto e recolhe as pistas deixadas pelo autor. Esse recurso torna a obra literária mais vivaz, porque é uma maneira de criar assombro, desnudando um contexto que estava distante e estranhado.

É importante destacar que o escritor misturou frequentemente em seus textos dois tropos: a alegoria e a ironia, reverberando numa linguagem de fogo contra a classe política: presidentes, governadores, deputados, senadores etc. Essa junção entre o figurado e a ironia dará à escrita barretiana o efeito estético que gravita entre o escárnio e a denúncia. Assim como a alegoria, o irônico pretende dizer uma coisa para significar outra, porém, sem objetivar construir uma analogia como o primeiro tropo. Em outras palavras: os dois elementos referentes não se assemelham ou formam uma identidade para alcançar uma mensagem, eles se anulam (FLORES, 2011FLORES, Eiliko L. P. Alegoria e ironia: confrontos e convergências.Revista Água Viva, Brasília, n. 1, v. 1, p. 1-17, 2011.). Na ironia existe uma incongruidade proposital entre o texto e o contexto, cuja intenção é a negação daquilo que é enunciado. A literatura pode potencializar a mensagem combinando os dois tropos. Nesse aspecto, um indivíduo e uma situação podem ser alegorizados para criar um contraste que informe e exponha um embuste. Nesse jogo, são criados dois movimentos: o primeiro de identificação e o segundo de diferenciação e distanciamento. Com efeito, a finalidade que se pretende atingir é a crítica, a provocação do riso e do caricato. Muecke (2008MUECKE, D. C. Ironia e o irônico. São Paulo: Perspectiva, 2008. , p. 84) chama essa combinação de ironia por analogia ou alegorias satíricas.

Lima Barreto (2004BARRETO, Lima. Toda crônica - volume I. Rio de Janeiro, 2004a.b, p. 21), em Negócio de maximalismo, explica a sua escolha formal. Ele busca desvendar as ações duvidosas de homens públicos usando como arma o satírico, numa relação de semelhança e diferença: “nada de violências, nem barbaridades. Troça e simplesmente troça para que tudo caia no ridículo”. A alegoria satírica barretiana provoca o riso de zombaria, com vista a revelar os defeitos da sociedade e das elites brasileiras. Como veremos, o autor quer desmascarar a aparência, pondo a nu os princípios mesquinhos, o servilismo e a estupidez da burguesia nacional. Nesse sentido, o uso do estranhamento, pelo escritor, partilha daquela tradição a que pertence Tolstói. Leitor deste e dos iluministas, como Rousseau e Voltaire, Lima Barreto aposta numa literatura com forte senso de justiça, denunciando as dores dos mais pobres e desnudando os seus algozes.

Ginzburg (2001GINZBURG, Carlo. Olhos de madeira: nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Companhia das Letras , 2001., p. 34) escreve que Tolstói pretendia, por meio do estranho, atingir “as coisas mesmas” até perceber claramente a sua “verdadeira natureza”. No literato brasileiro, essa procura é expressa no seu interesse em alcançar um pensamento sincero. No seu Diário íntimoBARRETO, Lima. Diário íntimo. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000066.pdf > Acesso em: 09/07/2021.
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, em 5 de janeiro de 1908, anotou: “sempre achei a condição para obra superior a mais cega e mais absoluta sinceridade. O jacto interior que a determina é irresistível e o poder de comunicação que transmite à palavra morta é de vivificar”. Para ele, era essa sinceridade que tornava a literatura imperecível e contribuía para felicidade da comunhão humana. Era tal lisura que dava vida à linguagem. O estranhamento em Lima Barreto visa, portanto, despertar as ideias adormecidas, revelar o oculto, a fim de que os homens, cientes de seus males, estivessem unidos em torno de um bem maior. A isso ele chama de “virtude da forma” (BARRETO, 2010BARRETO, Lima. Contos completos. São Paulo: Companhia das Letras , 2010., p. 58). Seu conselho aos jovens escritores manifesta esse ideário: “escreva muito, a todo o momento, narre as suas emoções, os seus pensamentos, descubra a alma dos outros, tente ver as cousas, o ar, as árvores e o mar, de modo pessoal, procure o invisível no visível” (BARRETO, 2004aBARRETO, Lima. Toda crônica - volume I. Rio de Janeiro, 2004a., p. 69).

Esse princípio da “virtude da forma” está internalizado em todos os escritos do autor, inclusive na crônica. Texto curto e mais leve, essa modalidade de escrita mistura o jornalístico e o literário, entrelaçando o humor com assuntos sérios. Narrativa da experiência cotidiana, o gênero registra as mudanças temporais, apresentando-se em uma relação íntima com a história. Sem tantas exigências formais, a crônica pode representar o tempo vivido de maneira mais crua, fazendo da observação irônica do real a pitada de sal que torna o escrito mais saboroso. Pode igualmente ser confeccionada com grande finura estética. Ademais, a sua qualidade heterogênea ajuda a intensificar os elementos contrastantes entre determinado episódio e a sua aparência, deixando mais nítida a intenção do cronista, que é desmascarar o mundo social. Nesse sentido, o gênero não é nem um pouco descompromissado ou simples entretenimento, como em regra foi definido (CANDIDO, 1992CANDIDO, Antonio (org.). A crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. São Paulo: Unicamp, 1992.).

No caso barretiano, o texto não se torna mais leve pela dose de humor que carrega, uma vez que a sua comicidade tem a função de desagradar mais do que divertir. Ou melhor: a escrita de Lima Barreto desagrada divertindo ou diverte desagradando, porque é um modo de protesto. Muitas de suas crônicas são concisas, rápidas e diretas; outras são compostas de um riso alegórico, estranho ao leitor atual, mas que vai sendo descarnado durante o ato da leitura. O tipo de riso que o escritor produz é aquele dos zombadores, que percebe a fragilidade e absurdidade dos atos e dos sujeitos políticos, com suas mentiras e ilusões. Como explica Eagleton (2020EAGLETON, Terry. Humor: o papel fundamental do riso na cultura. São Paulo: Record, 2020., p. 16), “o riso nem sempre é motivo de riso”, sendo uma arena de conflito simbólico que pode adquirir múltiplos significados: agradar e subverter, solidarizar e criticar, aliviar e infligir sofrimento.

Uma República de vatapás e carurus

O texto Coisas do Jambon foi publicado por Lima Barreto na revista Careta, em julho de 19212 2 Os trechos citados desta crônica foram retirados da coletânea organizada por Beatriz Rezende e Rachel Valença (BARRETO, 2004). . Nele, o narrador conta a história de um reino que possui a forma de um presunto e relata o funcionamento do seu governo, as intrigas políticas e a questão da sucessão imperial. O texto, que lembra a fábula, é uma alegoria do Brasil e narra as tensões políticas da vida republicana. O autor estava escrevendo sobre o seu tempo presente, numa crítica aos excessos da República, aos desperdícios e embustes de seus governantes. À primeira vista, não é fácil identificar as personagens e o evento tratado, mas o escritor vai deixando pistas ao longo de sua narrativa. Alguns rastros são encontrados em outras crônicas, o que possibilitou a montagem do “quebra-cabeça” literário. Mas antes de tratarmos das figuras verdadeiras que subjazem à escrita barretiana, vamos discorrer sobre a arte dos banquetes, um tema recorrente em Lima Barreto e na literatura mundial.

A narrativa começa com uma breve descrição geográfica do reino e uma explicação alusiva do seu curioso nome - Jambon é uma palavra francesa que significa presunto. Ironicamente, o narrador demonstra que o reinado não possui apenas a forma de um pedaço de carne, ele também serviria de alimento para alguns vorazes habitantes e forasteiros. Aqui, a composição da troça não se constrói pela diferença entre o aparecer e o ser. A incongruência se realiza pelo espelhamento, por uma inesperada identidade: o estranho país não teria apenas o desenho geográfico de uma perna de porco, ele também seria comido, ou melhor, roído.

O reino do Jambon é assim chamado porque afeta, mais ou menos, a forma de um presunto. Até aqui, não tem sido comido; mas tem sido muito roído. Roem-no os de fora; roem os de dentro; mas não há meio, quer uns, quer outros de o deglutirem completamente. O diabo da perna de porco resiste à voracidade externa e interna de uma maneira perfeitamente milagrosa. (BARRETO, 2004BARRETO, Lima. Toda crônica - volume I. Rio de Janeiro, 2004a.b, p. 392).

A alegoria está na metáfora continuada da comida, que se mantém em toda a crônica. O reino é tomado como um banquete, no qual se alimentam nacionais e estrangeiros. E apesar da glutonaria destes, a “perna de porco” sobrevive milagrosamente. É expressivo que o país não seja comido totalmente, mas devorado aos bocadinhos. Tal ação remete ao tipo dos comedores. Eles eram da espécie de roedores - mamíferos com incisivos especializados para triturar os alimentos, podendo alguns portar doenças. Assim, a primeira imagem que o narrador constrói dos poderosos de Jambon é a de sua nocividade.

Na literatura, a imagem da comida e da abundância já faz parte de uma tradição clássica, que vem desde O banquete, de Platão, escrito por volta de 380 a. C., passando pelos renascentistas do século XVI, com as refeições festivas de Gargântua, de Rabelais (2009RABELAIS, François. Gargântua e Pantagruel. São Paulo: Itatiaia, 2009.), Ceia das cinzas, de Giordano Bruno (2012BRUNO, Giordano. A ceia de Cinzas. São Paulo: Edusc, 2012.) e Os ensaios, de Montaigne (2010MONTAIGNE, Michel de. Os ensaios. São Paulo: Penguin & Companhia, 2010.). Tais festins são caracterizados pela fartura e pela beberagem, em comemoração a uma vitória na guerra, ao êxito pessoal, ao nascimento etc. Em Lima Barreto, a arte de comer toma um outro sentido. Não são os heróis ou os filósofos que estão a banquetear para celebrar batalhas ou discursar sobre os grandes temas humanos, mas personagens desonestas e sem escrúpulos, que usam do poder público para se beneficiar. O banquete, nesse sentido, é uma metáfora da extorsão política e da espoliação das riquezas nacionais.

Em Coisas do Jambon, a ironia ocorre por analogia: o prato servido é o próprio Brasil. Num primeiro movimento, notamos uma identificação - o país é semelhante a um repasto, simbolizando a fartura e a alegria. Logo em seguida ocorre um segundo movimento, o de distanciamento ou diferenciação - o reino tem sido muito roído. Nesse sentido, temos duas representações espaciais que formam um processo dialético: território da abastança e lugar em ruína. As evidências levam a interpretar que Lima Barreto está tratando da extravagância do governo de Epitácio Pessoa, que dirigiu o país entre 1919 e 1922. Entre os seus dispêndios estaria o convite ao rei Alberto I para conhecer o país. Não é fortuita a afirmação de que o reino em forma de presunto resiste à avidez interna e externa. Nesse tópico daremos relevo a esta última.

Para receber a majestade, o governo brasileiro obteve crédito ilimitado do congresso para os gastos com transporte, recepção e hospedagem, inclusive para cobrir os custos dos vestidos das damas que serviriam de companhia à rainha (GAZETA DE NOTÍCIAS, 1920bGAZETA DE NOTÍCIAS. O governo da despesa. Rio de Janeiro, 30 jun. 1920b, p. 1. Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/103730_05/1507.
http://memoria.bn.br/docreader/103730_05...
-cGAZETA DE NOTÍCIAS. O ideal do presidente. Rio de Janeiro, 28 de jun. 1920c, p. 1. Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/103730_05/1491.
http://memoria.bn.br/docreader/103730_05...
, p. 1). Seguindo o roteiro dessa expedição, o encouraçado “São Paulo”, da marinha de guerra, foi enviado para o porto de Antuérpia para buscar os monarcas. No comboio, além de comandantes, capitães, tenentes e médicos, viajaram 40 mecânicos, 400 marinheiros, 388 foguistas, um contingente do Batalhão Naval de 50 praças, bem como mestre, contramestres e suboficiais. Com a intenção de assegurar o máximo de conforto à personalidade régia, a Central do Brasil mandou construir 18 carros de luxo para o trem que abrigaria a comitiva do rei, nos seus passeios a São Paulo e a Minas Gerais. Cinco desses vagões foram feitos com materiais importados da América do Norte, significando um verdadeiro fausto com dormitório, salão e área para fumantes. O mobiliário era luxuoso, havendo guarda-roupas, poltronas com forros caprichados, belos espelhos, tapeçarias e finas pinturas (GAZETA DE NOTÍCIAS, 1920dGAZETA DE NOTÍCIAS. 1920. A viagem do rei da Bélgica. Rio de Janeiro, 27 jul. 1920d, p. 1. Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/103730_05/1745.
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/eGAZETA DE NOTÍCIAS. A visita do rei da Bélgica: os preparativos da Central do Brasil. Rio de Janeiro, 29 jul. 1920e, p. 3. Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/103730_05/1765.
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, p. 1 e 3).

A vinda da realeza mobilizou também o debate em torno da questão racial. Segundo O PaizO PAIZ. Igualdade das cores. Rio de Janeiro, 19 jul. 1920, p. 3. Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/178691_05/2459.
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, em 19 de julho de 1920, foi cogitado que para a segurança do rei fossem escolhidos homens brancos e robustos. Embora a informação seja apresentada como possível boato, o periódico comenta que era uma prática comum evitar que os marinheiros negros embarcassem para o estrangeiro. Em todo caso, não é falso que o episódio levou a um processo de depuração na cidade carioca, com a regeneração de algumas partes da área urbana e a expulsão de pessoas consideradas indesejadas: mendigos, prostitutas, trabalhadores de rua e desempregados3 3 Aliás, as elites republicanas sempre procuraram esconder e excluir as suas origens africanas, selecionando profissionais em função de sua cor para assumir determinados cargos no Estado. Caso conhecido era o Barão do Rio Branco, ministro das Relações Exteriores entre 1902 e 1914, que escolhia homens brancos e de aparência pujante para ocupar o Itamaraty. A obra de Lima Barreto é uma resposta na forma de uma literatura militante contra o racismo e o preconceito das elites nacionais e da sociedade brasileira em geral. O escritor utilizou várias modalidades de escrita (contos, crônicas, romances) para denunciar o discurso e as práticas racistas da ciência da época, das políticas governamentais, dos intelectuais liberais e de seus pares, expondo as desigualdades e injustiças geradas por modelos sociais pautados numa ideia de hierarquia racial. Diferente da produção literária do período, em que o negro era caraterizado de forma animalizada e degradante, o literato carioca vai destacar personagens negras intelectualizadas, honestas, sempre asseadas e de conduta digna, e que são constantemente afligidas dentro de um contexto social racista. Como anota Schwarcz (2017), Lima Barreto não irá esconder as cores de seus seres fictícios, escrevendo em detalhes as variações da “cor escura”, bem como as relações desiguais entre bancos e negros de condição econômica parecida. Expressivo é o romance Clara dos Anjos (2018), cujo enredo se passa no subúrbio carioca e relata as fronteiras simbólicas, amorosas e espaciais criadas a partir da categoria de raça. Para um melhor aprofundamento da questão ver SCHWARCZ, Lilia. Lima Barreto: triste visionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. .

Houve melhoramentos em várias ruas da Capital Federal e nos seus pontos centrais: instalação de novas lâmpadas nos postes da Avenida Rio Branco, serviços no trecho do mercado público e substituição do calçamento na ladeira do Barroso, no morro da Favela. A Praça Mauá, do mesmo modo, passou por diversas reformas para o desembarque real, com a construção de uma estação reservada a carros e outros meios de transporte. O palácio da Guanabara, local onde residiria as majestades, recebeu uma reforma de embelezamento com a compra de mobílias imperiais, ajardinamento e nova iluminação. O preparo dos festejos militares ficou a cargo do ministro da guerra, Pandiá Calógeras, que organizou uma grande parada militar e renovou os uniformes dos soldados. Uma brigada com mais de mil praças foi arranjada para a chegada dos belgas (GAZETA DE NOTÍCIAS, 1920fGAZETA DE NOTÍCIAS. A vinda do rei da Bélgica ao Brasil: as festas militares. Rio de Janeiro, 2 jun. 1920f, p. 1. Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/103730_05/1263.
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, p. 1).

Nem a Câmara do Deputados, que ficava no edifício Monroe, passou despercebida do olhar reformador e espetacular de Epitácio Pessoa, que cismou com os tapetes do recinto e pediu para trocá-los. A compra das tapeçarias foi tão escandalosa, que vale a pena citar alguns trechos de uma matéria da Gazeta de NotíciasGAZETA DE NOTÍCIAS. A excursão de ontem do Sr. Prefeito. Rio de Janeiro, 21 jul. 1920, p. 3. Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/103730_05/1695.
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, lançada em 17 de setembro de 1920:

Tão desproporcional é o preço pelo qual foram adquiridos os tais tapetes que nós próprios nos envergonhamos em contar ao público a história completa, integral desse caso, que nenhuma importância tem, ao lado de muitos outros, surgidos na administração do Sr. Epitácio Pessoa, sobretudo depois que se inventou a visita ao nosso país dos soberanos belgas.

(...)

Diversas firmas concorreram ao gordo negócio, tendo afinal, uma delas obtido a preferência. Por motivos imprevistos, porém, foi forçada a desistir do fornecimento que daria lugar a lucros fabulosos.

Que fez, à vista disso, o governo?

Simplesmente o seguinte: ao invés de aceitar a proposta imediata como lhe cumpria fazer, anulou a concorrência e contratou com a casa Royal Store, da rua do Ouvidor, o fornecimento de mil e duzentos tapetes, à razão de setenta mil reis o metro.

O jornal fará, depois, uma ressalva, afirmando que o custo dos tapetes foi muito maior do que o anunciado: 87.500 réis o metro. A aquisição da peça causou indignação, porque além de uma aquisição supérflua, o seu valor antes do contrato com a Royal Store estava cotado a 25 mil réis o metro. Em Os grandes tapeceiros, Lima Barreto fará ácidos comentários sobre o episódio das peças superfaturadas. O autor ironiza a preocupação do chefe republicano pelos artefatos têxteis, comparando-o com figuras de príncipes e tiranos que apreciavam os apetrechos. Essa analogia funciona no mesmo jogo de semelhança e diferença. Há uma identificação entre o político paraibano e certos monarcas (a exemplo do poderoso assírio Senaquerib) e, ao mesmo tempo, existe uma negação (presidência não é um título supremo de nobreza). Toda a crônica se constrói nessa dinâmica.

Não é, portanto, de admirar que o Senhor Epitácio Pessoa, nosso presidente da República e transitoriamente nosso imperador, tenha, ao visitar a Câmara dos Deputados, a fim de preparar o Monroe e ensaiar o parlamento para recepção do Rei Alberto; não é de admirar, dizia, ter Sua Excelência se preocupado com tapetes. (BARRETO, 2004BARRETO, Lima. Toda crônica - volume I. Rio de Janeiro, 2004a.b, p. 214).

Devemos enfatizar que os arroubos presidenciais exigiram mudanças até no vestuário feminino. Foi ordenado que, durante as solenidades, as esposas dos embaixadores e dos funcionários de altos cargos do governo usassem vestidos com soutien-gorges e com decotes específicos. O Ministro das Relações Exteriores concedeu 40 contos para que as senhoras, acompanhantes da rainha, comprassem os seus vestuários (CARETA, 1920CARETA. Sobre a visita do rei. Rio de Janeiro, 3 jul. 1920. p. 13. Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/083712/23732.
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, p. 13). O presidente também pediu que os mendigos fossem recolhidos das ruas. Iniciou-se, então, a caça aos pedintes, que eram levados para a cadeia, uma vez que não havia asilos suficientes para todos (GAZETA DE NOTÍCIAS, 1920gGAZETA DE NOTÍCIAS. Sem título. Rio de Janeiro, 10 set. 1920g, p. 1. Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/103730_05/2165.
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, p. 1).

Os hóspedes reais foram recebidos por uma multidão e com estampido de canhões. Ao desembarcar no cais Mauá, seguiram em cortejo pelas ruas. A cidade estava enfeitada com as bandeiras de todos os países; e as senhoras ricas, do alto de suas sacadas, atiravam flores no préstito. Pelo ar, vários aeroplanos faziam ariscadas manobras. É expressivo que Epitácio Pessoa e sua esposa foram ao encontro dos soberanos numa embarcação antiga, o galeão “D. João VI”. Em O rei e a galeota, Lima Barreto (2004BARRETO, Lima. Toda crônica - volume I. Rio de Janeiro, 2004a.b, p. 223) explica o significado simbólico da postura do presidente: “os chefes republicanos que nos dirigem sonham-se herdeiros de Dom João VI e, por isso, desenterram-lhe a galeota do seu túmulo da ilha das Cobras e dela se servem nas suas próprias festas”. Em Vocações, ele ainda declara que a vinda do rei mostrou o quanto a democracia brasileira tem profundos temperamentos aristocráticos, ao mesmo tempo que se caracteriza por um extremo servilismo (BARRETO, 2004BARRETO, Lima. Toda crônica - volume I. Rio de Janeiro, 2004a.b, p. 200).

O literato destaca os laços culturais que o Brasil República ainda mantinha com o Brasil Império, explicando que de um regime para o outro pouco havia mudado. O arrivismo, a vaidade política, o descompromisso com o dinheiro público, o desprezo para com os pobres, enfim, tudo isso tinha recrudescido com o novo regime. Pouco havia de democrático nas atitudes das elites republicanas. Embora o escritor tenha razão, é preciso compreender os significados históricos do culto à exterioridade, intensificado com a vinda de Alberto I. A valorização do supérfluo e os comportamentos exagerados não são mera celebração da aparência. Por meio dessas performances, as camadas políticas e abastadas da capital tentavam transmitir uma imagem de segurança e poder, a fim de representarem a si mesmas como expoentes de uma nova civilização, tão grandiosa quanto os reinados da Europa. Era preciso mostrar aos olhos estrangeiros que o país tinha um futuro, que a corrente civilizatória há muito tinha aportado em terras brasileiras.

Peter Burke (1992BURKE, Peter. O mundo como teatro: estudos de antropologia histórica. Lisboa: Difel, 1992., p. 153) escreve que o “consumo ostentatório” dos grupos privilegiados teria a finalidade de construir uma imagem pública, significando não somente a representação e o controle do eu, mas também do grupo a que se pertence. Para tanto, era importante manter certa compostura (expressão, modo de andar e gestos) e consumir determinados artigos (roupas, edifícios e estátuas, dentre outros). A eficácia desses arranjos e comportamentos dependeria do artifício da “fachada”, a bem dizer, de um conjunto de elementos que remeta ao teatro.

Assim, os gastos em palacetes, indumentárias e objetos inúteis possuíam uma racionalidade latente para as elites cariocas. Além de elaborar um retrato que os abastados desejavam para si, era uma maneira de atrair investimento de fora. Nesse sentido, a exibição da riqueza, o talhe seguro, as reformas da urbe, os tapetes do Monroe, as flores mexicanas, os numerosos automóveis, os banquetes, as festas cívicas e o garbo militar podiam criar a impressão de que o Brasil era uma nação promissora, que marchava inexoravelmente para frente. A vinda do rei belga ao país atendia a esse objetivo.

À medida que se esgotar o programa oficial, os nossos hóspedes irão vendo coisas, que lhes darão a certeza de que esta grande nação americana atingiu um grau de desenvolvimento e de cultura, que a torna digna do respeito dos povos de além-mar. Sem jactância e sem vaidade, podemos dizer que o rei da Bélgica verá muita coisa que o impressionará agradavelmente e que excederá, talvez, a sua expectativa. As manifestações mentais da nossa cultura e as formas materiais do nosso progresso darão ao rei Alberto a convicção de que a amizade do Brasil vale, como um elemento de força e de grandeza, que a sua majestade, certamente, apreciará. (O PAIZ, 1920aO PAIZ. O edifício do Foro. Rio de Janeiro, 12 set. 1920a, p. 3. Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/178691_05/3079.
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, p. 3).

Epitácio Pessoa tinha a intenção de que o rei europeu anunciasse em seu retorno a Bélgica a altivez da nação brasileira e os progressos das elites nacionais. Ele seria a testemunha ocular da grandeza do Brasil. Além do mais, a sua presença tinha objetivos igualmente econômicos, visando ao desenvolvimento de laços comerciais. Em novembro, como resultado da visita real foi firmado um convênio entre os dois países, no qual o Brasil abriria um crédito de 100 mil contos de réis, por intermédio do Banco do Brasil, para a exportação de produtos primários (cereais, carnes congeladas, banha, café, borracha, cacau, algodão, açúcar) em troca de algumas mercadorias manufaturadas (GAZETA DE NOTÍCIAS, 1920hGAZETA DE NOTÍCIAS. Convênio entre o Brasil e a Bélgica. Rio de Janeiro, 14 nov. 1920h, p. 2. Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/103730_05/2658.
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, p. 2).

Outro motivo econômico importante estava ligado aos recursos minerais do país, com as atenções em torno das imensas reservas de ferro de Minas Gerais. A visita oficial do rei Alberto I estava relacionada ao plano do Estado em expandir a siderurgia, que teve um grande avanço nos anos de 1920. Quando o monarca esteve em Minas, ele não fora somente a passeio. Lá travou conversas com o governador, na ocasião Arthur Bernardes, para investir capital belga na produção de ferro-gusa e aço. Desse encontro resultou a associação entre a Companhia Siderúrgica Mineira e o grupo belgo-luxemburguesa Aciéries Réunies de Burbach-Eich-Dudelange (ARBED), que viria a se tornar a mais importante empresa na produção de siderotecnia do país. Já em 1921, a empresa adquiriu a jazida de Monlevade, no rio Piracicaba, bem como a jazida Segredo, em Sabará, com o projeto de ampliação e instalação de forno Martin na região; estabelecimento de uma fundição de primeira e segunda fusões; edificação de uma usina moderna, bem como reflorestamento na área. O acordo foi visto pelo governo brasileiro como uma enorme vantagem para o progresso nacional, porque a ARBED, diferente de outras indústrias, não estava direcionada para a exportação, mas para a demanda interna, fazendo uso de matéria-prima local, a exemplo do carvão vegetal (BARROS, 2011BARROS, Gustavo de. O problema siderúrgico nacional na Primeira República. Tese (Doutorado em Economia) - Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011.).

Deixado claro o interesse econômico por trás da estadia da nobreza belga, vale destacar que a aprovação de gastos sem limite para recepcionar Alberto I trouxe sérios problemas para as finanças nacionais, provocando uma intensa discussão na imprensa e no congresso. A imagem de progresso era obtida com grande sacrifício. Nesse período, o país ainda não tinha se recuperado das consequências da Primeira Guerra Mundial e sofria com os preços inflacionados dos gêneros alimentares. O reclame era constante contra o déficit orçamentário, a política de emissões de moeda, o aumento de impostos, a miséria crescente e a postura intransigente do presidente.

Lima Barreto vai tratar de todos esses acontecimentos em várias de suas crônicas, sublinhando os fatos mais espalhafatosos desse encontro entre a elite brasileira e as majestades europeias. Para tanto, fará amiúdo uma analogia entre os gastos do governo e a comida. Em seu texto Banquetes, o autor satiriza os jantares fornecidos ao rei, fingindo preocupação com o abandono da “pasta culinária”, ministério inventado ficcionalmente para denunciar a administração pública do país, voltada para gastos improfícuos e a lisonja do monarca. Mas a ironia barretiana não para por aí, continuando sob a forma do elogio antifrástico no lugar da crítica direta. Assim, o autor simula certa concordância com a absurdidade do desperdício, discorrendo sobre os feitos de Epitácio Pessoa e dando conselhos de receitas caudalosas para aprimorar o regalo alimentar dos hóspedes reais.

Numa época, tal a qual atravessamos, de festas, bródios, carnavais, corrida e futebol, pouca atenção se há dado à arte culinária.

Toda a atenção dos governantes, inclusive a do presidente, tem se encaminhado para a indumentária masculina e feminina, para o mobiliário e cousas anexas e para outras menores que não mereciam o especial carinho com que estão sendo tratadas por pessoas tão conspícuas.

O uso do fraque já foi decretado; o emprego de tal calça de fantasia já foi regulamentado.

A extensão do decote das senhoras foi calculada, sem erro de milímetro, e o ministro da justiça expediu um aviso-circular a todas as nossas casas de modas, determinando a sua obrigatoriedade nos vestidos de alto bordo, sob pena de cair os rigores das leis sobre os infratores, assim como sobre os costureiros que os fabricarem em desobediência ao estabelecido.

Entretanto, enquanto se procede em tal meticulosidade para vestuário, para tapetes, etc., a pasta culinária das festanças ao rei fica abandonada ou entregue ao arbítrio de chefes de cozinha sem nenhuma cultura literária, a artística e filosófica. (BARRETO, 2004BARRETO, Lima. Toda crônica - volume I. Rio de Janeiro, 2004a.b, p. 216).

Em outro escrito, Sobre a arte culinária, o escritor indicou diversas iguarias registradas no livro denominado o Cozinheiro imperial, obra comprada unicamente para ajudar no banquete das realezas. Entre as recomendações estavam: “sopa dourada”, “ovos reais”, “lombos de cássis”, “perus de salsa real” (BARRETO, 2004BARRETO, Lima. Toda crônica - volume I. Rio de Janeiro, 2004a.b, p. 220). Com a blague, Lima Barreto atacava o governo, censurando o exotismo dos políticos brasileiros. As sugestões de pratos sofisticados para os chefes republicanos e o rei da Bélgica expõem as contradições da República, que se consolidou defendendo a parcimônia do dinheiro público contra os luxos do poder imperial, mas era dirigida por gente que tinha pretensão a fidalguia.

Para o autor, no Brasil, presidentes e reis podiam se assemelhar, pois seriam graus privilegiados de riqueza, adquirida com a opressão dos mais humildes. Na crônica Arte de Vatel, a analogia entre comida e o (des)mando da administração de Epitácio Pessoa fica mais evidente: “o que seria o ilustre Epitácio sem banquetes, bródios e outras cousas insignificantes? Nada. O atual presidente não é gente, senão pelo que a arte culinária faz”. Em outro trecho, escreve: “não há maior verdade do que esta quando se observa o senhor Epitácio. Ele sabe comer. Não há motivos para censuras nessa sua atitude. Comer e culinária sempre foram as preocupações dos governantes” (BARRETO, 2004BARRETO, Lima. Toda crônica - volume I. Rio de Janeiro, 2004a.b, p. 226). Já na crônica Arte culinária, o literato eleva o tom sarcástico: “um governo desta nossa atual República é um governo de vatapás, carurus e outras cousas agradáveis ao paladar. O senhor Epitácio Pessoa continuou o governo dos banquetes” (BARRETO, 2004bBARRETO, Lima. Toda crônica - volume II. Rio de Janeiro, 2004b., p. 229).

O mal funcionamento digestivo também pode se configurar numa alegorização da política. Isto aparece no romance satírico Numa e a ninfa, de 1915, que trata da sucessão presidencial de Afonso Pena. Os seres fictícios, diante de uma novidade parlamentar ou de fatos políticos inesperados, manifestam reações gastroesofágicas. Suas sensações, medos e inseguranças são expressos por meio de um golfo que pode ou não ser expelido. Foi uma espécie de refluxo que as personagens Edgarda e Numa Pompílio experimentaram, durante a hora do almoço, ao receber informações sobre a guerra eleitoral para eleger um novo presidente. “Sentiam a proximidade do imprevisto e esse sentimento se engolfava, avolumava-se, crescia neles, perturbava-lhes as sensações e as ideias” (BARRETO, 2018BARRETO, Lima. Numa e a Ninfa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018. v. 1., p. 445).

Enquanto essas figuras de poder mantêm ocultas as matérias de suas entranhas, outra personagem, o capanga e valentão Lucrécio, apelidado de Barba-de-Bode, expele seus detritos estomacais em plena festa em homenagem ao senador Neves Cogominho. Na pândega, regada a muita oratória, comida e chopp, Lucrécio - negro, pobre, carpinteiro de profissão, morador da Cidade Nova -, parecia destoar daquele mundo de abundância. Mas a sua presença na festividade era garantida, porque ele compunha a vida pública sustando os fundos indecorosos das atas falsas, das agressões e ameaças aos antagonistas. Ele era o modo como as classes políticas se aproximavam das camadas populares, e a sua violência mantinha o funcionamento do poder oligárquico.

Marcos Silva (2011SILVA, Marcos. Detritos Federais: o vômito e o silenciamento de Lucrécio Barba-de-Bode. In: Silva, Armando Malheiro et al (coords.). República, republicanismo e republicanos: Brasil - Portugal - Itália. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2011. , p. 302-303) chama atenção para o vômito de Barba-de-Bode, que simboliza o seu não pertencimento àquele mundo de gente rica. Depois de sorver vários copos de cerveja, o capanga tenta fazer um discurso em tributo ao poderoso senador Macieira, porém, em vez das palavras necessárias, ele lança sobre o peitilho do famoso político um forte golfo, despejando tudo o que tinha no estômago. Esse mal-estar físico remete à incapacidade da personagem de se igualar aos finos oradores do evento, ao mesmo tempo em que mostra a sua inferiorização, expresso no impedimento de sua fala. A palavra, conforme destaca o historiador, trata-se de um instrumento de convencer e exibir saberes, sendo um atestado de direito e poder; e Lucrécio fazendo o serviço “sujo” da política, estava relegado a animalidade. Não é sem intenção que o seu apelido é formado por um nome de animal - Bode. Com efeito, o gesto de expelir suas entranhas contrasta com a ação de Edgarda e Numa que suportam o conteúdo que excede no estômago. O ato de engolfar representa o esforço de manter a ordem de uma sociedade que parecia estar ruindo. “Era a catástrofe próxima, a catástrofe jamais esperada” relata o narrador, em discurso indireto, ao descrever a cena do almoço burguês (BARRETO, 2018BARRETO, Lima. Clara dos Anjos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira , 2018. v. 1, p. 445).

Vale destacar que a alegoria do Brasil na forma de um banquete, ou correlacionado à comida, expressa-se com mais veemência nas crônicas, principalmente nos textos cuja produção se realiza durante o governo de Epitácio Pessoa. Podemos, porém, observar essas analogias referentes a governos anteriores, a exemplo do processo de sucessão de Afonso Pena (sintomas gastroesofágicos no romance citado) e da gestão de Venceslau Brás, entre 1914 e 1918. Na crônica A polícia republicana, publicada pelo autor carioca na revista A.B.C., em outubro deste último ano, o país é metaforizado como uma refeição, estando exposto a diversos tipos de comedores.

Ninguém quer discutir; ninguém quer agitar ideias; ninguém que dar a emoção íntima que tem da vida e das coisas. Todos querem “comer”.

“Comem” os juristas, “comem” os filósofos, “comem” os médicos, “comem” os advogados, “comem” os poetas, “comem” os romancistas, “comem” os engenheiros, “comem” os jornalistas: o Brasil é uma vasta “comilança”. (BARRETO, 2004aBARRETO, Lima. Toda crônica - volume II. Rio de Janeiro, 2004b., p. 393).

Numa visão mais ampliada do modelo figurado, o escritor pretende mostrar que a usurpação das riquezas nacionais não é um problema característico de uma administração ou período particular, apesar de algumas figuras públicas explorarem/roerem o país/a comida mais do que outras, caso dos dispêndios do presidente paraibano. Devemos sublinhar que a palavra “comilança” não se refere apenas ao ato de comer muito, alcançando outro sentido aceito pelos dicionários: ladroeira. A complexidade da questão está no fato de o autor perceber que o mal é sistêmico, nascendo com a República: “esse aspecto da nossa terra para quem analisa o seu estado atual, com toda a independência de espírito, nasceu-lhe depois da república”. E continua: “foi o novo regímen que lhe deu tão nojenta feição para os seus homens públicos de todos os matizes” (BARRETO, 2004bBARRETO, Lima. Toda crônica - volume I. Rio de Janeiro, 2004a., p. 393).

Posto isso, Lima Barreto se apropria de imagens rabelaisianas para fins satíricos. Nessa perspectiva, Bakhtin (2003BAKHTIN, Mikhail. A cultura na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. 8. ed. São Paulo: Hucitec Editora, 2003., p. 54-55) explica que o substrato material e corporal do aspecto grotesco (a abundância, a festa, o alimento, a bebida, o corpo) se desloca para um sentido moral, fazendo com que o exagero se transforme então numa caricatura. Em face disso, o hiperbolismo do comer e do beber, que nos festins populares e carnavalescos teria um caráter positivo, adquire sentido reprovador, com objetivo de ridicularizar e expor o desregramento dos poderosos. O escritor carioca elabora um significado negativo para a refeição copiosa, que ganha valor simbólico de uma dupla censura: em sentido restrito: as gestões do chefe de Estado, em especial de Epitácio Pessoa; no sentido amplo: a forma do governo republicano.

Em Rabelais, o rito do banquete está associado ao divertimento popular, à conversação sábia, significando sempre uma celebração da vida, do renascimento e do triunfo de uma guerra. Esta ligação entre a comida e a palavra é uma marca especial do realismo grotesco, possibilitando o diálogo franco, seguido de brincadeira e riso. “Os temas e imagens das ‘conversações à mesa’ são sempre as ‘altas matérias’ e ‘ciências profundas’, mas, sob uma forma ou outra, elas são destronadas e renovadas no plano material e corporal” (BAKHTIN, 2003BAKHTIN, Mikhail. A cultura na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. 8. ed. São Paulo: Hucitec Editora, 2003., p. 249-250). A inversão de Lima Barreto está no fato de que o banquete das classes políticas e burguesas não é uma comemoração à vida, mas uma convenção do cinismo, da bajulação, do egoísmo e da vaidade. Em Numa e a ninfa (2018), durante a manifestação feita a Neves Cogominho, não há uma palavra sábia que seja proferida. Mesmo aquelas personagens habilitadas à oratória são caracterizadas por uma comunicação onomatopeica, o que conota para uma falta de conteúdo. Todo o discurso dos convidados é rebaixado ao burlesco, com os oradores da patuscada (Inácio Costa e Canto Ribeiro) berrando, mugindo e rugindo em vez de usar uma fala racional; ou no caso de Lucrécio, incapacitado de se expressar por causa do vômito.

O literato brasileiro era leitor de Rabelais e é sob a influência desse autor renascentista que elabora outras significações para a arte de comer e de beber. Isso fica evidente na crônica Sobre a arte culinária (2004bBARRETO, Lima. Toda crônica - volume II. Rio de Janeiro, 2004b.), em que ironiza a festança ao rei belga.

Antes do mais, o livro se ocupa, e com muita razão, da arte de trinchar. Rabelais esqueceu-se disso e Brillat-Savarin também. Pode-se dizer que as suas obras tinham outros intuitos. Vá lá! Passemos às sopas, de que o Cozinheiro Imperial dá inúmera receitas. Não posso transcrever todas aqui, mas podia dar-lhe muito títulos delas, pelas quais o leitor iria logo ficar com água na boca. (BARRETO, 2004bBARRETO, Lima. Toda crônica - volume II. Rio de Janeiro, 2004b., p. 220).

Voltando aos domínios do Jambon, Lima Barreto emprega o grotesco, ultrapassando os limites da realidade, que é deslocada para o fantástico e o terrível. A representação do Brasil como um grande presunto, lugar de fartura, atinge dimensões do monstruoso, despertando o leitor para os possíveis comedores: “roem-nos os de fora; roem-nos os de dentro” (BARRETO, 2004bBARRETO, Lima. Toda crônica - volume I. Rio de Janeiro, 2004a., p. 392). Assim, é criada uma incongruidade entre a grandeza do prato e a pequenez e a animalidade dos seus glutões. Ao fazer uso da estética do grotesco, o escritor expõe a absurdidade das práticas políticas republicanas. A vida política brasileira é alegorizada, estranhada e distanciada com o fim de comunicar, na maneira de uma revelação ou de uma adivinha, os males sociais e as tragédias nacionais.

Alberto I estaria na condição de roedor de fora. Segundo o jornal Gazeta de NotíciasGAZETA DE NOTÍCIAS. Mais um melhoramento para a cidade: graças ao rei Alberto, da Bélgica. Rio de Janeiro, 15 jun. 1920, p. 2. Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/103730_05/1376.
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, de 16 de abril de 1921GAZETA DE NOTÍCIAS. O caso dos tapetes. Rio de Janeiro, 17 set. 1920, p. 1. Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/103730_05/2227.
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, a pagodeira para hospedar o rei e a rainha custou ao Tesouro Federal as cifras de 11.420:542$262 contos, sem contar os gastos não oficiais e as despesas que não foram mencionadas pelo governo. A resposta de Lima Barreto ao descalabro aparece também numa crônica, cuja titulação escancara os números do prejuízo: 12252:637$871 - só?! O texto mostra que os custos foram maiores do que aqueles estipulados pelo periódico, mas apesar disso, os valores mantêm uma proximidade. Vale dizer que o preço do dispêndio foi fornecido pelo próprio governo depois de muita pressão por parte da oposição, e que provavelmente sua notificação foi menor do que os gastos reais. No próximo tópico, analisaremos os roedores de dentro.

Entre sultão e paxás: os roedores

Jambon é uma espécie de sultanato à brasileira, em que seus líderes tomam posse do Estado não por via hereditária, mas por meio de eleição. Monarquia absoluta, em que o chefe é escolhido pela maioria, esse vasto presunto se torna ainda mais confuso pelos títulos nobiliárquicos que carrega, misturando nobreza do Oriente Médio e da Europa: príncipes, paxás, marechais e condes. Por meio dessas incongruidades (jogo de semelhança e diferença), Lima Barreto expõe o lado antidemocrático das elites políticas nacionais, seu comportamento ditatorial e aristocrático, ainda que se afirme no poder como governo do/para o povo. Símbolo dessa discordância na experiência histórica é, como vimos, o presidente Epitácio Pessoa usando como meio de transporte o galeão de D. João VI.

Marcos Silva (2020SILVA, Marcos. Brasil, de ditadura em ditadura: as exceções foram democracias (fins do século XIX/começo do século XXI). In: LEONIDIO, Adalmir et al. (org.). 2016 Golpe & democracia no Brasil. São Paulo: Hucitec, 2020. p. 37-72.) fez recentemente um apanhado histórico sobre as tradições golpistas e autoritárias na História Brasileira, mostrando como a cultura democrática é um artigo raro nos ambientes elitizados. Golpes e ditaduras surgiram ao longo do regime republicano, voltando-se contra os grupos populares e suas reivindicações por mais direito e dignidade. Nessa res publica, que marca as primeiras décadas do século XX, a ironia está no fundamento: os negros e os mulatos eram tratados como raças inferiores; as mulheres não tinham direito ao voto; e as questões sociais eram respondidas a baionetas, à bala de canhão e com o degredo, vide o que aconteceu com os marinheiros da Revolta da Chibata (1910), em sua maioria pobres e negros. É dessa perspectiva histórica que Lima Barreto escreve sobre o Brasil, denunciando como a nata do republicanismo brasileiro se valeu constantemente da força e do despotismo para monopolizar o poder. O reino fantástico criado pelo autor não estava longe da realidade, na qual chefes do Estado se viam e eram vistos como nobres esclarecidos.

Na crônica, a transposição semântica do sentido figurado para o sentido literal não é transparente ou direta, como ocorre no texto A polícia republicana (2004a, p. 393), quando é dito que “o Brasil é uma vasta ‘comilança’”. Na análise em questão, o significado próprio é alcançado durante a leitura do enredo por sinais de comparação, nas passagens em que são contadas as artimanhas políticas dos governantes. É na decifração dos roedores de dentro que o leitor opera num salto comparativo, aproximando o reino em forma de presunto do Estado brasileiro.

Em síntese, “mandava” em Jambon um “principezinho vaidoso” chamado Tupita I, que tinha como comandante do exército, o também presunçoso e mandão marechal Kalogheras. Havia igualmente no reino um antigo servidor da pátria, o conde Milaky, que desgostoso com a escolha do condestável, caiu no ostracismo. Tudo ia muito bem no império, com as vicissitudes e arengas políticas de sempre, quando de repente surgiu uma crise sucessória, ainda que o príncipe estivesse em pleno mandato e não apresentasse nenhuma doença. Um paxá obscuro, de nome Ar-ben-Mudes, tramou com outros para que Tupita I o reconhecesse como sucessor. A manobra gerou descontentamento de governantes de certos paxaliques, que lançaram outro candidato para o trono, o paxá Nil-cer-Thenza, e exigiram, por igual, o apoio do soberano. Para escapar do imbróglio, o príncipe aprovou as duas nomeações. Os paxás dissidentes também buscaram a adesão de Milaky, que preferiu o candidato situacionista.

Para destrinçar esse enredo é preciso trazer o contexto político da época e os seus principais atores. O conteúdo da crônica aparece como um dos índices de comparação. Devemos adiantar, no entanto, que a intriga orna, por meio de uma linguagem alegórica, a campanha sucessória de Epitácio Pessoa, na qual concorreram o governador Artur Bernardes, com legenda em Minas Gerais, e o senador fluminense Nilo Peçanha, com representação no Rio de Janeiro. Nesse duelo, outros elementos vieram balançar o pêndulo político: as forças armadas e a mobilização dos setores urbanos.

Esta disputa teve início quando as oligarquias dominantes não conseguiram escolher um nome de consenso para a presidência. Assim, Minas Gerais articulou um poderoso acordo com São Paulo e o Catete para lançar a candidatura bernardista, não levando em conta os interesses de tradicionais agentes políticos. O apoio dos paulistas foi obtido com a promessa de assegurar a defesa do café e a garantia de um projeto de criação de banco emissor. Já a aliança com Epitácio Pessoa foi selada com o compromisso de o novo presidente incorporar na sua administração programas que beneficiassem as regiões Norte e Nordeste, e o direito de indicar o nome do vice-presidente. A exclusão de outros grupos oligárquicos na indicação do chefe de Estado, bem como o fato de Bernardes não pertencer à seara dos republicanos históricos, levou o Rio Grande do Sul, sob a liderança do gaúcho Borges de Medeiros, à oposição (VISCARDI, 2019VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro. O teatro das oligarquias: uma revisão da “política do café com leite”. Belo Horizonte: Fino Traço, 2019.).

A escolha do maranhense Urbano dos Santos para compor a vice-presidência na chapa situacionista aprofundou ainda mais a crise, uma vez que José Bezerra e J. J. Seabra, representantes de Pernambuco e da Bahia respectivamente, também disputavam o cargo. Os dois Estados passaram, então, a contestação, recusando-se a comparecer à Convenção Nacional do Partido Republicano para homologar a vaga presidencial, que ocorreria em meados de 1921. Soma-se ao grupo dos descontentes o Rio de Janeiro, na figura de Nilo Peçanha, que já estava sendo cotado como um candidato rival à pretensão mineira. Com essa cisão intraoligárquica, estava formada uma dissidência que foi chamada de Reação Republicana, e lançou a candidatura nilista, com Seabra no lugar de vice-presidente.

Esse movimento não significou uma ruptura com os paradigmas oligárquicos vigentes, mas uma proposta alternativa de poder com o objetivo de ampliar a participação de outros setores da oligarquia, insatisfeitos com o domínio de Minas e de São Paulo4 4 A ideia de uma aliança entre Minas Gerais e São Paulo durante as primeiras décadas da República, conhecida como política do “café com leite”, tem passado por uma revisão historiográfica, que vem chamando a atenção para a instabilidade e os conflitos entre os dois estados. A historiadora Viscardi (2019), por exemplo, mostra que os mineiros e os paulistas realizaram acordos conjunturais, havendo momentos de aproximação, desconfiança e oposição veemente. Nesse sentido, a autora defende que a Reação Republicana surge, de modo ocasional, como eixo alternativo contra as relações também circunstanciais entre Minas e São Paulo. . Para cooptar elementos divergentes da campanha oficial, buscou-se igualmente novos parceiros, apelando para as massas urbanas e segmentos militares. O candidato fluminense, atento às demandas das agitações grevistas de 1917 e 1919, procurou conquistar o operariado, propugnando o direito do trabalho e a liberdade do pensamento operário (FERREIRA; PINTO, p. 2018FERREIRA, Marieta de Morais; PINTO, Surama Conde Sá. A crise dos anos 1920 e a Revolução de 1930. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (org.). O Brasil Republicano: o tempo do liberalismo oligárquico (1889-1930). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018 p. 373-401., p. 378-382). A Reação Republicana divulgou na imprensa um manifesto contendo todas essas promessas. Nele se afirmava que a política econômica do país estava reduzida aos acordos mineiros e paulistas, deixando no abandono a economia do Norte e do Nordeste. Do mesmo modo, criticava-se a valorização do café, expondo a necessidade de saneamento financeiro. Era também questionado o autoritarismo dos Estados centrais, cobrando-se maior autonomia para o Legislativo. No que tange à força a armada foi defendido mais prestígio e reconhecimento aos militares (CORREIO DA MANHÃ, 1921aCORREIO DA MANHÃ. A reação contra a candidatura Arthur Bernardes. Rio de Janeiro, 25 jun. 1921a. p. 3. Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/089842_03/6715.
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, p. 2). É significativo que, apesar do caráter progressista dessas propostas, nenhuma medida de maior democratização foi apresentada, a exemplo do voto secreto, que já era uma reivindicação das camadas médias urbanas (FERREIRA; PINTO, 2018FERREIRA, Marieta de Morais; PINTO, Surama Conde Sá. A crise dos anos 1920 e a Revolução de 1930. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (org.). O Brasil Republicano: o tempo do liberalismo oligárquico (1889-1930). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018 p. 373-401., p. 380).

Um dos momentos nevrálgicos dessa guerra eleitoral foi as famosas “cartas falsas” atribuídas a Arthur Bernardes, cujo conteúdo afrontava o exército e Hermes da Fonseca. A divulgação dessas epístolas insuflou ainda mais a insatisfação dos militares, que rejeitaram a candidatura mineira, sob a ameaça de que caso Bernardes fosse eleito, ele não seria empossado. A despeito de todas essas agitações, em 1º de março de 1922 ocorreu a eleição para presidente, saindo vitoriosa a candidatura oficial. A chapa de Nilo Peçanha não aceitou a derrota, exigindo a criação de um Tribunal de Honra para averiguar a legitimidade do processo eleitoral, mas esta apuração não chegou a se concretizar. A temperatura política aumentou, quando pró-bernardistas e pró-nilistas, que disputavam o governo de Pernambuco, declararam-se ambos os vencedores, iniciando uma luta armada. Para conter os ânimos, Epitácio Pessoa enviou tropas federais para Recife, sendo duramente criticado por Hermes da Fonseca, por meio de telegrama endereçado aos tenentes locais. Em face do agravo, o marechal é preso e o Clube Militar é fechado. Tal contexto resultará em vários óbices para o governo de Arthur Bernardes, que assumirá a presidência sob o estado de sítio, fazendo uso constante desse instrumento político para conter as forças contrárias à sua gestão. Esse também foi o momento no qual se deu início aos primeiros levantes tenentistas, cujo evento representativo ficou conhecido como os 18 do Forte de Copacabana.

Essa conjuntura estará presente em Lima Barreto de distintas formas estilísticas. Em algumas crônicas os acontecimentos são tratados de modo mais jornalístico, com uma linguagem direta e ácida. Já em textos curtos de maior artifício ficcional os eventos políticos são representados de maneira tracejada, alegórica, zombeteira e sem muitos detalhes históricos. Aí a sua escrita lembra um croqui ou um esboço em que apenas se delineiam os fatos, e são oferecidos ao leitor pequenos sinais para ser descobertos e provocar o riso. Nessa perspectiva, o cômico surge como uma das maneiras mais apropriadas de representar a República brasileira, que criou uma cidadania cariada, na qual a esfera privada e a pública se apresentam embaralhadas. As incongruidades, o jogo entre o formal e o informal, a mudança brusca de expectativas e outras dimensões estéticas do cômico parecem se acomodar melhor como crítica a um regime que se inaugurou na defesa do novo, mas se serviu de estruturas sociais injustas e desiguais, tal como de um processo de modernização conservadora (SALIBA, 1998SALIBA, Elias Thomé. A dimensão cômica da vida privada. In: SEVCENKO, Nicolau (org.). História da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. v. 3. p. 290-365.).

Vale sublinhar que o ponto de vista do cronista carioca é cruzado de muitas faces, na condição de alguém que viveu os acontecimentos numa posição de marginalidade, que observou os paradoxos da política nacional e os interpretou à luz da literatura. Sevcenko (2003SEVCENKO. Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Companhia das Letras , 2003., p. 197-198) comenta que o literato empregou a troça como elemento ficcional privilegiado para tratar da República, explorando como recurso linguístico essencial a ironia e a caricatura, oscilando entre a simples malícia e o humor profundo. Este último, também podemos acrescentar, foi atingido por intermédio do figurado ou da alegoria satírica.

No enredo de Coisas do Jambon, a vida pública com suas personalidades eminentes é desenhada, portanto, na forma do rascunho. As personagens não possuem características profundas, elas são marcadas pelos seus contornos, pela dureza e firmeza das linhas com que são definidas. Esse estilo garante o efeito caricatural das figuras fictícias. Na intriga, Tupita I é o presidente Epitácio Pessoa, que será caracterizado como um líder imperioso e festivo, imagem adquirida na passagem do rei belga ao Brasil. Diz o narrador: “a sua preocupação mais sincera eram bailes, rega-bofes, chás-dançantes, teatros, comidas, automóveis e quejandos” (BARRETO, 2004bBARRETO, Lima. Toda crônica - volume I. Rio de Janeiro, 2004a., p. 392). Aqui, o índice de significação implícita se localiza nos predicados do príncipe. A crítica política ao presidente também aparece por meio da personagem Kalogheras, comandante que nunca portou arma, mas foi colocado num alto posto de Jambon. Esta figura faz referência ao Ministro da Guerra, Pandiá Calógeras, um civil escolhido para assumir a pasta militar, sem nenhuma experiência técnica no assunto. Nessa passagem, o sinal de comparação se realiza por dois meios: entre o discurso e o fato; e por meio do nome do ministro, que na ficção sofreu uma transliteração, mantendo, porém, a semelhança fônica.

Vale dizer que tal escolha desagradou também as forças armadas, uma vez que se rompia com a tradição de nomear oficiais para o ministério. Epitácio Pessoa criava um obstáculo aos interesses dos militares, que aspiravam a um maior destaque no centro do poder. Pandiá Calógeras se tornou um político indesejável tanto por civis quanto por militares, pois não atendia aos requisitos necessários para o cargo. E o ressentimento só crescia, pois no começo do mandato, o presidente tentou retirar do Senado um projeto de aumento salarial proposto pelas altas patentes do Exército e da Marinha (FORJAZ, 1976FORJAZ, Maria Cecilia Spina. A crise da República Oligárquica no Brasil: as primeiras manifestações tenentistas. RAE-Revista de Administração de Empresas, São Paulo, v. 16, n. 6, p. 61-69, 1976. ). Durante a época sucessória, Nilo Peçanha procurou aproveitar-se dessa tensão e buscou aproximar-se de Hermes da Fonseca na tentativa de atrair mais adesões do Exército para a sua chapa, contudo, o marechal se recusou a apoiá-lo. Epitácio Pessoa foi igualmente sondado pelo senador fluminense, porém, o líder do Catete já estava compromissado com a principal base política que sustentava o seu governo, isto é, Minas Gerais.

Na crônica, esses encontros e conchavos são bordados com os seguintes traços: Tupita I é procurado pelos dois concorrentes: Ar-ben-Mudes (Artur Bernardes) e Nil-cer-Thenza (Nilo Peçanha), mas tenta espertamente se esquivar das brigas entre os paxás, preferindo se dedicar às regalias de seu mandato, mais preocupado com banquetes e festividades. Embora as evidências históricas mostrem que o presidente estivesse do lado do candidato oficial, muito se especulou na imprensa sobre a sua neutralidade. Talvez esta seja a razão por que o narrador ressaltou a isenção do príncipe. Não obstante, é mais provável que Lima Barreto estivesse caricaturando a imagem de gastador do político paraibano, destacando em linhas satíricas que ele estava mais interessado em pândegas do que em seu processo sucessório ou no país.

É significativo que as personagens podem igualmente ser decifradas pelas suas denominações. Estas, do mesmo modo, são criações alegorizadas, tornando-se passíveis de serem interpretadas. Os nomes se apresentam como marcas lexicais, que ajudam o leitor a dar sentido ao texto. Alguns são compostos por transliteração, caso de Kalogheras; outros em linguagem macarrônica; e há aqueles elaborados por fusão satírica, em que se mistura a alcunha verdadeira e o apelido. Com efeito, os nomes passam por um processo de estranhamento, que só ganha acepção dentro de uma transposição semântica. Para alcançar o seu significado literal, no entanto, é necessário levar em consideração o conjunto da narrativa: as descrições dos seres fictícios, as tramas e conflitos, a construção sintática e o conteúdo da obra.

SalibaSALIBA, Elias Thomé. Crocodilos, satíricos e humoristas involuntários: ensaios de história cultural do humor. São Paulo: Intermeios, 2018. (2018SALIBA, Elias Thomé. O povo e o paraíso dos abastados - Rio de Janeiro, 1900/1920 (crônicas e outros escritos de Lima Barreto e João do Rio). Tese (Doutorado em História Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018., p. 71) explica que o literato carioca sempre teve grande “habilidade na substituição cômica de nomes notáveis por apelidos hilários, quase sempre reconhecíveis pelos leitores da época”. Entretanto, vale sublinhar que muitas dessas nomeações chistosas não eram uma invenção do autor, pois já eram de uso comum nas rodas de jornalistas e humoristas, sendo introduzidas no texto barretiano como provocação direta, a exemplo do senador Augusto de Vasconcelos (conhecido por seus adversários como Rapadura), Hermes da Fonseca (o famoso Dudu das marchinhas de carnaval) e seu irmão Fonseca Hermes (alcunhado por seus inimigos de Jangote).

A designação do príncipe de Jambon possui uma característica peculiar, sendo uma combinação entre o pronome “tu” e o apelido “Pita”, como era conhecido Epitácio Pessoa. O escritor usou uma conjugação parecida no texto 1225:637$871 - só?!, em que o presidente é sempre tratado na segunda pessoa do singular: “Pita, tu, em certas ocasiões, fumas; entretanto, leva dias e dias que não te vejo fumar” (BARRETO, 2016BARRETO, Lima. Sátira e outras subversões. São Paulo, Penguin, 2016., p. 436). Com o tratamento na segunda pessoa, o cronista buscou rebaixar o retrato do presidente como homem ilustre e de poder, pondo-o numa condição de indivíduo comum, de gente como a gente, sujeito às mesmas regras democráticas. Em vez do pronome formal “vós”, que indica vínculos assimétricos de dominância e de subalternidade, o “tu” considera as relações sociais a partir do princípio de igualdade. Foi por essa mesma razão que durante a Revolução Francesa se aprovou uma resolução na qual se abolia a palavra vous da língua, que passou a ser substituída pelo toi, modo como se deveria expressar um cidadão livre (DARNTON, 1990DARNTON, Robert. O beijo de Lamourette. São Paulo: Companhia das Letras, 1990., p. 26-27). A elaboração sintática de Lima Barreto para descrever a sua personagem revela a força e o cuidado da sua criação ficcional, pondo em questionamento a percepção de alguns críticos que caracterizam o literato por uma escrita descuidada e meramente panfletária (BARBOSA, 1988BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto: 1881-1922. Belo Horizonte: Itatiaia, 1988., p. 201-202).

O nome Ar-ben-Mudes também é elaborado na forma de cifras que remetem a Artur Bernardes. Numa língua macarrônica árabe-brasileira, o epíteto da personagem é a junção das iniciais do seu nome, “Ar”, com a forma incompleta de seu apelido, “Mudes”, que vem de Bermudes. Esta designação aparece também no texto Transatlantismo: “Toda a nossa ânsia está em ir para a Europa de qualquer forma, como diz Altino Arantes, Bermudes ou Vertenza” (BARRETO, 2004bBARRETO, Lima. Toda crônica - volume I. Rio de Janeiro, 2004a., p. 533). Como veremos, VertenzaDON QUIXOTE. Vertenza?! Rio de Janeiro, 14 nov. 1985, p. 7. Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/714178/319.
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é uma alusão debochada a Nilo Peçanha. A crítica aos dois candidatos, que enxergariam o país com o olhar para fora, é reforçada na crônica Dissidências: “está aí, em que consiste a política do Brasil; Bernardes briga com Vertenza, soltam ambos belas palavras, pelos seus jornais e pelos seus oradores, os bobos tomam partido, levam chanfalhadas da polícia, vão para o xadrez... e os chefes embarcam para a Europa. Viva a política!” (BARRETO, 2004bBARRETO, Lima. Toda crônica - volume II. Rio de Janeiro, 2004b., p. 578).

Ainda no que tange ao governador mineiro, parece que o nome Bermudes remete a uma sátira do humorista Bastos Tigre - Um funcionário exemplar -, publicada no Correio da Manhã, em 28 de abril de 1921TIGRE, Basto. Um funcionário exemplar. Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 28 abr. 1921, p. 2. Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/089842_03/6037.
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. No texto, a personagem Bermudes, um bacharel sem muita fama e que tinha mergulhado no funcionalismo público, encontra com o narrador, por ocasião do enterro de Holanda, um célebre servidor público. É iniciada uma conversa, em que são narradas as aventuras políticas do falecido. Aqui, Bastos Tigre troça com o fato de Artur Bernardes ser incógnito na política nacional e de manter relações de apadrinhamento com o também mineiro e ex-presidente Delfim Moreira, que morreu em julho de 1920. Tigre era um crítico mordaz da candidatura bernardista. Em sua coluna Pingos & Respingos, do mesmo periódico, o escritor lançava quadrinhas e comentários cáusticos contra a pretensão de Bernardes.

Ar-ben-Mudes é igualmente um político desconhecido, que trama com outros figurões para se tornar o novo imperador. “Um belo dia, sem que Tupita esperasse, recebe a intimação de quase todos os paxás para reconhecer Ar-ben-Mudes como sucessor. Ele se surpreendeu, pois não estava em extrema velhice, nem o minava a moléstia que o ameaçasse de morte próxima” (BARRETO, 2004bBARRETO, Lima. Toda crônica - volume I. Rio de Janeiro, 2004a., p. 393). A urdidura política de que trata Lima Barreto diz respeito, como vimos, às alianças entre o Catete, São Paulo e Minas Gerais para firmar o seu substituto. Por meio da ação dos mineiros Raul Soares e Bueno Brandão e do paulista Carlos Campos, articulou-se para que a convenção do Partido Republicano fosse antecipada, a fim de homologar a apresentação de Artur Bernardes. Sua candidatura foi praticamente infligida a Epitácio Pessoa, que pressionado terminou por aceitar o governador mineiro como sucessor, desde que pudesse interferir na escolha do vice-presidente (CORREIO DA MANHÃ, 1921bCORREIO DA MANHÃ. A traição desmascarada. Rio de Janeiro, 7 jun. 1921b. p. 2. Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/089842_03/6498.
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, p. 3; VISCARDI, 2019VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro. O teatro das oligarquias: uma revisão da “política do café com leite”. Belo Horizonte: Fino Traço, 2019.). Uma das críticas a Bernardes era o fato dele ser praticamente anônimo na política nacional, com apenas uma passagem pela Câmara como deputado federal.

Já Nilo Peçanha era um político popular, tendo sido deputado federal, momento em que participou da constituinte de 1891, além de governador do Rio de Janeiro por duas vezes e presidente da República com a morte de Afonso Pena em 1909 (FERREIRA, 2014 FERREIRA, Marieta de Moraes. Nilo Peçanha. In: ABREU, Alzira Alves de; PAULA, Chistiane Jalles de (org.). Dicionário da política republicana do Rio de Janeiro. 1 ed. Rio de Janeiro: FGV, 2014, v. 1, p. 988-993.). Sua personalidade notória e o seu protagonismo no rompimento oligárquico, em 1921, é esboçado na crônica em poucas linhas:

Iam as coisas assim muito bem, quando aparece um certo número de paxás descontentes que não querem Ar-ben-Mudes para chefe, e escolhem, para sucessor de Tupita, o paxá sem governo Nil-cer-Thenza. Era este, homem conhecido no país, ladino e jeitoso. Sabia simular e dissimular; mas era estimado e popular. (BARRETO, 2004bBARRETO, Lima. Toda crônica - volume I. Rio de Janeiro, 2004a., p. 393).

Na época da convenção, Peçanha era senador e tinha acabado de chegar da Europa, sendo recebido no Brasil sob o grande aplauso de seus pares e de populares. É expressivo que a alcunha da personagem, Nil-cer-Thenza, é também carregada de sentido, sendo uma abreviação do primeiro nome do senador “Nil” com a semelhança fônica do seu apelido: Vertenza. A palavra é italiana e significa litígio. A origem do apelido é antiga e surgiu quando Peçanha era deputado entre 1891 e 1902.

O termo faz referência a um acontecimento histórico que agitou os anos iniciais da República: os Protocolos italianos. Estes foram os acordos diplomáticos realizados entre o Brasil e a Itália para solucionar as reclamações de italianos que moravam no país. As reivindicações eram de naturezas distintas: rompimento contratual do governo com empresas, quebra de contrato de trabalho por parte da Administração Pública, danos em propriedades de colonos, naturalização indesejada, agressões e expulsão de imigrantes (SILVA, 2018SILVA, Marcos Rafael. Os protocolos italianos (1892-1898). 2018. Tese (Doutorado em História Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018., p. 16).

Entre 1895 e 1896, foram firmados dois protocolos pelo ministro das Relações Exteriores do Brasil, Carlos de Carvalho, e Roberto Magliano, Ministro Plenipotenciário da Itália. A negociação previa indenização aos reclamantes e os litígios seriam submetidos a arbitramento. Entretanto, para serem aprovados, os acordos deveriam passar pelo congresso. Neste, as discussões foram bastante acaloradas, com grupos de parlamentares se colocando radicalmente contrários à aprovação dos protocolos. Entre os deputados adversos estava Nilo Peçanha. Para ele, o projeto atentava contra a integridade política do país, sendo uma desonra à soberania nacional. Também criticava a submissão das negociações ao arbítrio de uma terceira potência, o que considerava como algo humilhante à nação. Em um de seus discursos contra o acordo, o deputado pediu uma informação subscrita sobre a empresa Caminada & Cia, responsável pela construção da Estrada de Ferro Metropolitana. A concessionária exigia o arbitramento porque uma parte do seu trabalho foi interrompida pela Intendência Municipal. Um equívoco no requerimento de Peçanha irá fazer dele motivo de algazarra nacional:

Requeiro ao poder executivo, por intermédio da mesa, a seguinte informação: se entre as reclamações italianas que diz a imprensa diária de hoje foram entregues a arbitramento do governo norte-americano, está incluída a que se referes a Vertenza, Caminada & Cia., concessionários da estrada de ferro Metropolitana do Rio de Janeiro. (GAZETA DE NOTÍCIA, 1895GAZETA DE NOTÍCIAS. Sem título. Rio de Janeiro, 05 dez. 1895, p. 1. Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/103730_03/13169.
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, p. 1).

A confusão se explica pelo fato de não existir nenhuma concessionária chamada Vertenza. O termo italiano remetia à disputa processual entre a empresa Caminada e o governo federal. Os opositores de Peçanha não perdoaram o engano, que foi visto como sinal de ignorância. A solicitação, publicada na imprensa, virou chacota política, a exemplo do poema Vertenza!? publicado na revista Dom Quixote e assinada por Til, em 14 de novembro de 1895:

São duas horas de uma tarde amena, Corre serena toda discussão, Mas de repente se destampa um piano E um vulto ufano deita falação: Requeiro e quero que o congresso queira, De tal maneira que a qualquer convença, Que história é essa d’um arbitramento, Muito mofento em que entra um tal Vertenza. Oh! Que vergonha! Que terrível fiasco! Oh! Quanto chasco o pobre Nilo apanha! Vertenza é homem? Que é Vertenza, oh! Nilo? Vertenza é aquilo que tu és, Peçanha?!

Lima Barreto constrói camadas de histórias, justapondo um acontecimento ao outro, por meio da alegoria e da ironia. O uso desses tropos resulta num estranhamento que acende a imaginação e a inteligibilidade do leitor, o qual é chamado a decifrar o texto. Para tanto, o escritor utiliza de múltiplos instrumentos alegorizantes: a linguagem macarrônica, a fábula, a sátira, o grotesco. A finalidade desse trabalho literário é fazer pensar o momento vivido e atingi-lo com profundidade. Ele visa, ao mesmo tempo, fazer uma crítica mordaz à política brasileira, aos seus arranjos e à exploração a que o país era submetido. O autor escava o tempo e transforma episódios antigos em força literária para agarrar o presente e denunciar o absurdo. E mistura todos esses elementos numa pequena crônica, que trata do real, mas também joga com a fantasia, combinando gêneros e narrativas.

No texto Dissidência, o literato expõe em tom mais jornalístico o duelo Nilo-Bernardes, mostrando que existia pouca diferença entre as duas chapas e que, portanto, não havia uma intenção da Reação Republicana em romper de modo radical com a oligarquia em vigor.

Seja, Bernardes, Seja Vertenza, associados quaisquer deles a “filadelfos” de toda a ordem, o certo é que nenhum deles quer o bem público, nem mesmo o dos seus asseclas.

(...)

Tal história de “reação republicana” começou com tal ímpeto que parecia ser mesmo um movimento de opinião, dirigida com sinceridade por homens de valor e responsabilidade, contra politiqueiros obscuros, cuja única noção de política fosse aquela que se adquire nas lutas eleitorais da roça, onde predomina o assassinato, a compreensão e a fraude.

Entretanto, assim não foi. No momento agudo, quando todos esperavam que tais homens levassem a luta até o último, todos eles, sob este ou aquele pretexto, fugiram dela, deixando os seus adeptos “a ver navios”. (BARRETO, 2004bBARRETO, Lima. Toda crônica - volume I. Rio de Janeiro, 2004a., p. 578).

Por fim, é preciso ainda identificar uma outra personagem, o conde Milaky. Paxá, “sem função de governo”, o nobre político é procurado pelos partidários de Nil-cer-Thenza. É provável que a personagem seja Hermes da Fonseca, que estava afastado de cargos públicos desde o fim de sua gestão presidencial. Talvez a palavra Milaky seja uma brincadeira fônica com a palavra “milica”, que deriva de milico, expressão depreciativa para designar qualquer soldado ou militar. Uma pista também significativa é a característica psicológica atribuída a Milaky: a pouca inteligência. Isabel Lustosa (2008LUSTOSA, Isabel. História de presidentes: a República no Catete. Rio de Janeiro: Agir, 2008.) conta que recaía sobre Hermes da Fonseca a fama de burro.

O marechal manteve uma postura ambígua com respeito à campanha eleitoral, embora se julgasse neutro no duelo Nilo-Bernardes. Na imprensa fez declarações sobre o seu posicionamento: “para mim, todos os candidatos são bons, se os encaro de acordo com os meus princípios, uma vez que eles se mostrem empenhados em fazer bom governo. Não imiscuo em seus atos, não me preocupo com eles” (FONSECA, 1921FONSECA, Hermes. O momento político. O Paiz. Rio de Janeiro, 20 jun. 1921, p. 3. Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/178691_05/6275.
http://memoria.bn.br/docreader/178691_05...
, p. 3). Todavia, como vimos, Fonseca procurou mais tarde interferir na briga eleitoral em Pernambuco, bem como não perdeu a oportunidade nessa entrevista de criticar Epitácio Pessoa pelos gastos governamentais:

O futuro presidente será obrigado a manter rigoroso programa de economia, cortando todas as despesas supérfluas. Isto não foi feito, gastando, pelo contrário, um dinheiro fabuloso com a hospedagem dos reis da Bélgica, como vai gastar muito dinheiro com as festas do centenário! E para que! qual o proveito material ou moral com as despesas feitas por ocasião da visita real? (FONSECA, 1921FONSECA, Hermes. O momento político. O Paiz. Rio de Janeiro, 20 jun. 1921, p. 3. Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/178691_05/6275.
http://memoria.bn.br/docreader/178691_05...
, p. 3).

Voltamos novamente para a viagem dos reis belgas ao Brasil, que cravou na memória nacional a imagem de Epitácio Pessoa como gastador da República. Lima Barreto, na sátira A viagem de sua majestade (2016BARRETO, Lima. Sátira e outras subversões. São Paulo, Penguin, 2016., p. 117), chega a comparar o presidente com um sultão da Turquia, com mania de muito gastar e ostentar, sem ter tradado da instrução, da segurança e da higiene de seus súditos. Na crônica Providências governamentais (2016, p. 86), o político é figurado na personagem Pechisbeque, o grande rei da Pacóvia. Pechisbeque, segundo o Magno dicionário (1995), é uma liga de cobre e zinco que imita ouro; já a palavra “pacóvia” quer dizer ignorância. O autor, com uma linguagem ácida, traduz o Brasil do seu tempo. O chefe do Estado é ouro falso, indivíduo de pouco valor, governando a estupidez. Em Diálogo singular (2016, p. 317), o rebaixamento satírico do político paraibano se mantém pela insistência no tratamento em segunda pessoa. Em uma conversa com o Imperador morto (D. Pedro II), diz o chefe de Estado: “Devo ser tratado por excelência, e vossa majestade teima com o plebeu tu”.

Poderíamos questionar qual o lugar que Lima Barreto ocupa no jogo político dessa República, uma vez que ele se posiciona ferrenhamente contra o sistema partidário vigente, incluindo aí os seus elementos de tensão e dissidência. O literato compreendia que a instabilidade do sistema não resultava em uma mudança em prol da melhoria de vida da população, mas num rearranjo para que outras figuras oligárquicas aumentassem seu poder de ação nas engrenagens do federalismo brasileiro. Sua atitude, portanto, é a do escritor independente, que recusava se definir em rótulos quer de partidos quer literários. Entretanto, sua postura livre não significa dizer que não possuía orientações ideológicas e defesas pertinazes, a exemplo de sua luta contra o racismo, e pela causa operária e a justiça social. Em razão dessas demandas, foi simpático ao movimento anarquista e bolchevique, porém, sem adquirir uma conduta exegética sobre essas vertentes. Como enfatizou Botelho (2002BOTELHO, Denilson. A pátria que eu quisera ter era um mito: o Rio de Janeiro e a militância literária de Lima Barreto. Rio de Janeiro: Secretária Municipal da Cultura, 2002., p. 137), por ser um adversário do capitalismo, o romancista era inclinado a vias alternativas de organização da sociedade mais próximas da esquerda.

Por fim, Lima Barreto escreve sobre o Brasil de seu tempo, mas sua experiência muito nos ensina sobre o Brasil de hoje, que ainda sofre com os rega-bofes e banquetes de seus líderes, com a ignorância a que seu povo é conduzido. Barreto tece fios do falso para falar do verdadeiro, mostrando a tirania dos roedores de dentro e de fora.

Considerações finais

Coisas do Jambon, crônica leve e ligeira, não é descompromissada, feita ao correr da pena. O texto se revela como pensamento elaborado, feito de camadas e camadas de história, ornada de metáforas e ironias. Ele fala de um Brasil passado, de um país vivido e descortina uma nação futura, com os problemas de uma longa duração: corrupção, desperdício com o dinheiro público, dúbios arranjos políticos e despreparo para cargos administrativos.

Lima Barreto teceu os fios e confeccionou uma obra que fala profundamente da política brasileira, tomando como novelo central o governo de Epitácio Pessoa. É a partir dele que a narrativa se desenvolve: a hospedagem do rei belga e o seu banquete; a sucessão presidencial e os seus conchavos; o consumo ostentatório com os bens públicos; e o autoritarismo republicano. O Brasil que é devorado e que se devora está representado na ponta dos dedos do escritor.

A vinda do rei belga é um acontecimento que não escapa aos esquemas de valores e ao complexo cultural das elites políticas da época. Todo o evento - com os gastos inúteis, a reforma na cidade e a expulsão de indigentes das ruas -, mostra como as classes burguesas buscavam configurar o país numa grande civilização; e como isso era feito seletivamente. A pobreza e a nossa formação afro-brasileira eram escondidas para debaixo dos tapetes chiques do Monroe, e apenas requisitada em campanhas eleitorais que determinariam um novo presidente da República.

Referências

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Fontes primárias

NOTAS

  • 1
    Uma análise sobre o período da belle époque, que marcou o processo de modernização e racionalização do capitalismo no Brasil, nas primeiras décadas iniciais da República, pode ser encontrada em clássicos como: SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Companhia das Letras, 2003; ROCHA, Oswaldo PortoROCHA, Oswaldo Porto. A era das demolições: cidade do Rio de Janeiro 1870-1920. Rio de Janeiro: Secretária Municipal de Cultura, 1995. A era das demolições: cidade do Rio de Janeiro 1870-1920. Rio de Janeiro: Secretária Municipal de Cultura, 1995; NEEDELL, JeffreyNEEDELL, Jeffrey. Belle époque tropical: sociedade e cultura de elite no Rio de Janeiro na virada do século. São Paulo: Companhia das Letras , 1993.. Belle époque tropical: sociedade e cultura de elite no Rio de Janeiro na virada do século. Tradução de Celso Nogueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993; BENCHIMOL, JaimeBENCHIMOL, Jaime. Pereira Passos: um Haussmann tropical. A renovação urbana da cidade do Rio de Janeiro no início do século XX. Rio de Janeiro: Biblioteca Carioca, 1992., Pereira Passos: um Haussmann tropical. A renovação urbana da cidade do Rio de Janeiro no início do século XX. Rio de Janeiro: Biblioteca Carioca, 1992. Estudo recente sobre o tema é apresentado em: SANTOS, Poliana dos. O povo e o paraíso dos abastados - Rio de Janeiro, 1900/1920 (crônicas e outros escritos de Lima Barreto e João do Rio). Tese (Doutorado em História Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018.
  • 2
    Os trechos citados desta crônica foram retirados da coletânea organizada por Beatriz Rezende e Rachel Valença (BARRETO, 2004BARRETO, Lima. Toda crônica - volume I. Rio de Janeiro, 2004a.).
  • 3
    Aliás, as elites republicanas sempre procuraram esconder e excluir as suas origens africanas, selecionando profissionais em função de sua cor para assumir determinados cargos no Estado. Caso conhecido era o Barão do Rio Branco, ministro das Relações Exteriores entre 1902 e 1914, que escolhia homens brancos e de aparência pujante para ocupar o Itamaraty. A obra de Lima Barreto é uma resposta na forma de uma literatura militante contra o racismo e o preconceito das elites nacionais e da sociedade brasileira em geral. O escritor utilizou várias modalidades de escrita (contos, crônicas, romances) para denunciar o discurso e as práticas racistas da ciência da época, das políticas governamentais, dos intelectuais liberais e de seus pares, expondo as desigualdades e injustiças geradas por modelos sociais pautados numa ideia de hierarquia racial. Diferente da produção literária do período, em que o negro era caraterizado de forma animalizada e degradante, o literato carioca vai destacar personagens negras intelectualizadas, honestas, sempre asseadas e de conduta digna, e que são constantemente afligidas dentro de um contexto social racista. Como anota Schwarcz (2017SCHWARCZ, Lilia. Lima Barreto: triste visionário. São Paulo: Companhia das Letras , 2017.), Lima Barreto não irá esconder as cores de seus seres fictícios, escrevendo em detalhes as variações da “cor escura”, bem como as relações desiguais entre bancos e negros de condição econômica parecida. Expressivo é o romance Clara dos Anjos (2018), cujo enredo se passa no subúrbio carioca e relata as fronteiras simbólicas, amorosas e espaciais criadas a partir da categoria de raça. Para um melhor aprofundamento da questão ver SCHWARCZ, Lilia. Lima Barreto: triste visionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
  • 4
    A ideia de uma aliança entre Minas Gerais e São Paulo durante as primeiras décadas da República, conhecida como política do “café com leite”, tem passado por uma revisão historiográfica, que vem chamando a atenção para a instabilidade e os conflitos entre os dois estados. A historiadora Viscardi (2019), por exemplo, mostra que os mineiros e os paulistas realizaram acordos conjunturais, havendo momentos de aproximação, desconfiança e oposição veemente. Nesse sentido, a autora defende que a Reação Republicana surge, de modo ocasional, como eixo alternativo contra as relações também circunstanciais entre Minas e São Paulo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    22 Mar 2021
  • Aceito
    13 Set 2021
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