Em Livreiros do Novo Mundo, Jean-Jacques Bompard aborda a tradição mercantil livresca de alguns indivíduos do Município de Briançon, no sudoeste da França. No decorrer do livro, o autor esboça alguns detalhes geográficos, históricos e sociais dessa região dos Alpes franceses, muito próxima da divisa com a Itália, e que apresenta caracteres de relevo que a inseriam em estratégicas rotas militares e comerciais ao largo do tempo.
Em sua escrita, Jean-Jacques Bompard busca certa reminiscência histórica da região de seus antepassados para transmitir aos seus leitores algumas impressões a respeito de características de quem vivia entre as montanhas quase sempre nevadas daqueles vales. No livro ele destaca também algumas possibilidades referentes à história de Briançon, como as modalidades de trabalho mais típicas e propícias à região e vicissitudes que poderiam direcionar parte de seus naturais a outro estilo de vida: a mercancia.
De acordo com Bompard, a natureza naquela região montanhosa é áspera e dura, reservando aos moradores poucas atividades laborais com chances de enriquecimento. Situação que talvez se fizesse mais verossímil no recorte temporal que o autor propõe em sua obra. Assim sendo, com as peculiaridades das condições naturais de tal local, desde muitos séculos atrás que se buscava dar uma boa instrução escolar às crianças da região.
Como um desafio às condições de vida precárias e penosas, a instrução era uma prioridade no seio de cada comunidade do Briançonnais. Organizada sob a responsabilidade dos cônsules, sem distinção nem privilégio entre as famílias, ela assegurava, antes de tudo, uma formação em leitura, escrita e cálculo, e posteriormente em outras disciplinas.
Desde 1343, a criação dos escartons [uma federação das comunidades da região] havia suscitado, em cada vila, a criação de uma organização autônoma e original de instrução das crianças. Quando, a partir do início do século XVI, se desenvolveu o movimento da Reforma, os protestantes, cujo apreço pela instrução era estimulado pelo uso dos textos religiosos na vida cotidiana, levaram consigo, para as localidades onde se instalaram, sua contribuição a esse sistema de educação [...] Preparados pela formação e pela educação a uma emigração temporária [...], esses jovens compartilhavam tal situação com a de colegas que, dispondo de uma mesma bagagem intelectual inicial, passaram a se dedicar a alguma atividade no comércio. (BOMPARD, 2021BOMPARD, Jean-Jacques. Livreiros no Novo Mundo: de Briançon ao Rio de Janeiro. Campinas: Editora da Unicamp, 2021., p. 29-30).
Assim, ao que parece, os briançonnais possuíam um nível de instrução que os distinguia da maioria das pessoas de outras regiões francesas, circunstância que, se for associada a uma vida deveras pacata em seus vilarejos e cidades, levava alguns deles a buscarem um tipo de vida mais dinâmico, e em um ramo comercial que demandava certa preparação, conhecimento e aptidão: aquele ligado à venda de escritos. Esse ramo mercantil possibilitaria a alguns deles a saída da região, em movimentos migratórios em que se buscava novas possibilidades de vida. Dessa feita, como se demonstra no correr da narrativa, tem-se notícias de briançonnais que emigrariam para Paris, Nápoles, Turim, Lisboa, e até mesmo para o Rio de Janeiro.
Esse movimento migratório tinha relação direta com o aumento referente à produção e comercialização de escritos no continente europeu - e até além dele. A partir dessa particularidade (e se pensando em Portugal, um dos destinos dos briançonnais, de um modo geral), a prática do comércio de livros, assim como a sua produção e/ou a importação de impressos, ensejaria a formação de uma corporação de ofício dos livreiros: o Ofício do Livro. Os cuidados desses profissionais concernentemente ao seu ramo deveriam ter relação com a criação de instâncias censoras, que remontam ao ano de 1536 (BOMPARD, 2021BOMPARD, Jean-Jacques. Livreiros no Novo Mundo: de Briançon ao Rio de Janeiro. Campinas: Editora da Unicamp, 2021.). À guisa de exemplo para fins de comparação relativamente à França, no mundo dos negócios livrescos havia os comerciantes que eram legalizados, mas também aqueles que estavam à margem de tais relações comerciais. “Para operar legalmente, um livreiro tinha de ser membro de uma guilda ou pelo menos ter obtido um certificado, chamado brevet de librairie” (DARNTON, 2016DARNTON, Robert. Censores em ação: como os Estados influenciaram a literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2016., p. 65-66). As corporações de ofício em Portugal, nas quais se incluiriam o Ofício do Livro, deveriam ter regulamentações similares à supramencionada, e congênere, francesa.
Então, no desenvolvimento de sua escrita, Jean-Jacques Bompard destaca a importância dos comerciantes livreiros da região do Briançon na disseminação de variados tipos de impressos em alguns sítios ocidentais, inclusive em partes do Império Luso-brasileiro. Dessa feita, e atinente à veiculação de escritos por esse império, a preocupação mais relevante com a circulação e com a leitura de livros, bem como um acurado exame referente a quem os fosse possuir vinha pelo menos desde as Ordenações Filipinas - resquício da União Ibérica: 1580-1640.
Durante certo período, no reino português, a censura possuía um regime tripartite de averiguação de escritos, sendo sua incumbência repartida entre a Coroa, a Inquisição e o Bispado lisboeta. Com esse aparato, um dos grandes focos da política censora portuguesa eram seus domínios ultramarinos, e não obstante a América portuguesa tivesse um público leitor bastante reduzido se comparado a outros locais, havia um fluxo constante de escritos que ali chegava legalmente, isso “sem falar, é claro, no dos livros proibidos, que entraram continuamente durante todo o período colonial” (ALGRANTI, 2004ALGRANTI, Leila Mezan. Livros de devoção, atos de censura: ensaios de história do livro e da leitura na América portuguesa (1750-1821). São Paulo: Hucitec Fapesp , 2004. , p. 166). Situação similar a essa também é referida por Oliveira Lima, que diz que os livros estrangeiros eram perseguidos pelos censores desde Lisboa, mas que
no Brasil eram tão iludidas as interdições opostas às idéias impressas importadas de fora que, Luccock é quem o afirma, ao tempo da residência da corte portuguesa eram muito lidos Voltaire e Rousseau, a saber, os emancipadores do pensamento latino, e não eram desconhecidos nas traduções os autores ingleses e alemães, Shakespeare e Pope, Gessner e Klopstock. (LIMA, 2006LIMA, Oliveira. D. João VI no Brasil. 4. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 2006., p. 166).
Nos portos lusoamericanos havia um controle duplo de censura relativamente à chegada de quaisquer tipos de escritos, e de sua entrada. Esse procedimento ocorria primeiramente em Lisboa, “onde se fiscalizavam as remessas dos livreiros e de particulares, e depois na Colônia, quando a Mesa do Desembargo do Paço conferia os livros que vinham de outros países e vistoriava, pela segunda vez, os enviados de Portugal” (ALGRANTI, 2004ALGRANTI, Leila Mezan. Livros de devoção, atos de censura: ensaios de história do livro e da leitura na América portuguesa (1750-1821). São Paulo: Hucitec Fapesp , 2004. , p. 156).
Esses livros que chegavam legalmente à América precisavam aguardar nas alfândegas, pois lá se produziriam as listas com seus títulos e autores, e que seriam enviadas aos censores da Mesa do Desembargo do Paço. Se tudo estivesse correto com os títulos constantes nas listas (e com os autores), os livros eram liberados e então poderiam ser requisitados pelos importadores. Porém, se houvesse alguma dúvida ou problema relativamente a um ou mais dos títulos/autores das referidas listas, o fruto da incerteza era requisitado para inspeção mais apurada por um ou mais dos censores. Sendo aprovado nessa análise, o material poderia ser requerido por seu comprador. Mas se o problema relativo à obra ou ao autor persistisse após sua leitura pelos censores, sua liberação ou não seguiria para a decisão final de Sua Majestade Fidelíssima (ALGRANTI, 2004ALGRANTI, Leila Mezan. Livros de devoção, atos de censura: ensaios de história do livro e da leitura na América portuguesa (1750-1821). São Paulo: Hucitec Fapesp , 2004. ).
Com uma escrita bastante estruturada em importantes historiadores, Jean-Jacques Bompard vai ao encontro desses vestígios das inspeções pelas quais os escritos eram submetidos, tanto na saída de Lisboa quanto na chegada à América. Ele também demonstra que as análises das listas de livros remetidas das alfândegas à Mesa do Desembargo do Paço poderia gerar muito trabalho aos censores, um trabalho tido como extra e que iria além do que apenas ler algumas séries de trechos e/ou da obra inteira e sob as quais pairasse algum tipo de suspeição.
A averiguação das listas de obras autorizadas a circular no reino e em suas colônias representava uma tarefa que os censores cumpriam com mais ou menos dificuldades, conforme [...] testemunho do censor João Guilherme Muller. Com efeito, muitas vezes os censores se irritavam com a maneira pela qual eram redigidas as listas de livros [...] já que em alvará de 30 de junho de 1795 ordenara que tais listas fossem formuladas com ‘clareza e exatidão’, o que implicava indicar onde e quando os livros tinham sido editados e apresentar por extenso os nomes dos autores. Reprovaram Paul Martin [neste caso se trata do pai de Paulo Martin] por não respeitar essas instruções e complicar o trabalho dos censores, obrigados assim a efetuar investigações complementares antes de chegar à verdade.
No entanto, esse livreiro e seus confrades sabiam se mostrar atentos ao respeito das regras em vigor. (BOMPARD, 2021BOMPARD, Jean-Jacques. Livreiros no Novo Mundo: de Briançon ao Rio de Janeiro. Campinas: Editora da Unicamp, 2021., p. 62-63).
Ainda que com a vigência das tentativas oficiais de entraves à entrada e à veiculação de toda sorte de escritos no Império Luso-brasileiro, especialmente em período anterior ao do estabelecimento da sede da monarquia no Rio de Janeiro, muitos papéis adentravam nas colônias americanas de Portugal. Porém, entre 1808 e 1821 (ano em que a censura prévia era drasticamente diminuída em decorrência da Revolução do Porto, mas não extinta), passava a haver um fluxo ainda maior de livros, de jornais e de panfletos, enfim, de escritos não obstante o aparato censor (SLEMIAN, 2006SLEMIAN, Andréa. Vida política em tempo de crise: Rio de Janeiro (1808-1824). São Paulo: HUCITEC, 2006.).
De tal sorte que, após traçar um breve panorama acerca do interesse dos luso-brasileiros por escritos, expediente que se vê aguçado entre as décadas finais do século XVIII e as iniciais do século XIX, é importante considerar a finalidade de Jean-Jacques Bompard em delinear alguns dos rastros deixados por Jean-Baptiste Bompard (1797-1890), um ascendente seu, e revelar nele o tradicional desejo que vicejava em parte dos briançonnais em deixar a região em busca de novas e boas possibilidades de vida. O autor dá destaque a alguns ramos familiares do Briançon que tomariam caminhos similares. Dessa maneira, ele enumera alguns sobrenomes da região (Bompard, Borel, Martin, Rey, Bertrand) e comenta que alguns membros daquelas famílias deixavam a região com o mesmo intuito, o de se estabelecer como comerciantes no mundo das letras em outras cidades. Jean-Jacques Bompard diz, ainda, que essas famílias tinham o costume de formar teias de relações variadas entre si, que iam desde as mercantis e nas quais se auxiliavam mutuamente com a aprendizagem de parentes etc., até as que envolviam amizade e casamentos.
Por ter como principal foco a recuperação de parte da história de um ancestral, as pesquisas e a escrita se concentram mais nos briançonnais que rumavam para Portugal. Isso se explica porque Jean-Baptiste Bompard incialmente seguiria para esse país em 1817, e ulteriormente tentaria a sorte na América: 1818. Dentre os briançonnais que acorriam para Portugal, um dos mais importantes era Paul Martin (1749-1813), que por volta do ano de 1767 se mudaria para Lisboa a fim de se estabelecer como livreiro em parceria com o conterrâneo Joseph-Augustin Borel. Ali, Paul Martin passaria grande parte de sua vida, construiria importante negócio no ramo livresco e formaria família. Dos seus cinco filhos, os quatro homens se tornariam livreiros; e sua filha se casaria com um comerciante ligado aos impressos (BOMPARD, 2021BOMPARD, Jean-Jacques. Livreiros no Novo Mundo: de Briançon ao Rio de Janeiro. Campinas: Editora da Unicamp, 2021.). Dentre a prole de Paul Martin, Bompard dá destaque para Paulo Agostinho Martin (1779-1824), que posteriormente desembarcaria no Rio de Janeiro.
É interessante que Jean-Jacques Bompard entrelaça a história de seus antepassados com a de Paul Martin, e essas histórias se conectam diretamente ao desenvolvimento do movimento livreiro entre Portugal e suas colônias americanas (que doravante se transformariam no Brasil).* * Ainda que seja mais didático, Portugal não possuía uma colônia na América, o Brasil, mas sim algumas colônias, tratadas alhures como os Brasis. Grosso modo, o início da colonização portuguesa na América se iniciaria em meados do século XVI, quando a Coroa faria concessões de terras no dito continente a parte da nobreza, em um processo de ocupação territorial cujos sítios seriam denominados Capitanias Hereditárias. Com o fracasso quase completo desse sistema, a Coroa retomaria aqueles territórios e os administraria por meio da nomeação de governadores capitães-generais para cada uma das novas Capitanias, submetendo-as (em tese) ao governador-geral estabelecido em Salvador (1549-1763). Não havia coesão prática entre a maioria daquelas Capitanias, muitas delas nem se reportava a Salvador, voltando-se a Lisboa por questões de logística. Uma união político-territorial incipiente entre as Capitanias só se daria em dezembro de 1815, quando o Estado do Brasil (ao Sul) e o Estado do Grão-Pará e Maranhão (ao Norte) se tornariam um com uma manobra política no Congresso de Viena: a elevação a Reino. No período de 1808 a 1828 ainda haveria duas anexações ao extenso território: da Guiana Francesa e da Banda Oriental (Cisplatina). Então, em linhas gerais, Bompard narra que, inicialmente, Paul Martin faria uma solicitação às autoridades portuguesas para que seu filho português, Paulo Agostinho Martin, seguisse para o Rio de Janeiro como funcionário de sua livraria, estabelecida em Lisboa. Tendo o passaporte liberado para partir para o Rio, lá ele deveria se manter como ajudante de Jean-Robert Bourgeois, “negociante naquela cidade, e ali aprender o comércio” (BOMPARD, 2021BOMPARD, Jean-Jacques. Livreiros no Novo Mundo: de Briançon ao Rio de Janeiro. Campinas: Editora da Unicamp, 2021., p. 71).
Paulo Agostinho Martin chegaria ao Rio de Janeiro em 1800. Nos primeiros dois anos em que passara naquela cidade, o número de remessas de livros oriundos da livraria de seu pai, e enviadas para ali, cresceriam substancialmente, bem como as de outra livraria, Viúva Bertrand & Filhos, que recrudesceria até pelo menos 1805. Com os seguidos aumentos nos volumes de livros enviados de Lisboa para o Rio de Janeiro, Paul Martin finalmente decidiria abrir ali uma livraria, e ela seria administrada por seu filho porque ele já estaria ambientado ao cotidiano da cidade (BOMPARD, 2021BOMPARD, Jean-Jacques. Livreiros no Novo Mundo: de Briançon ao Rio de Janeiro. Campinas: Editora da Unicamp, 2021.).
Desse modo, mostrando o interesse dos portugueses (europeus e americanos) por escritos de teor variado, especialmente a partir da segunda metade do século XVIII, Jean-Jacques Bompard desenvolve seu trabalho no intuito de demonstrar a adaptação de Paulo Agostinho Martin e de Jean-Baptiste Bompard às circunstâncias culturais da América portuguesa, muito parecidas às de Portugal (onde também haviam residido). Após a morte de Paul Martin em Portugal, em 1813, sua livraria no Rio de Janeiro passaria para Paulo Agostinho Martin, e em dado momento ela estaria estabelecida no nº 33 da Rua da Quitanda. Com as demandas por escritos em alta, Paulo Agostinho Martin precisaria recorrer à tradição do Briançon de incorporar um parente como aprendiz em seu negócio. Portanto, em 2 de dezembro de 1818, o seu primo Jean-Baptiste Bompard chegaria para ajudá-lo na dita livraria. O empreendimento de Paulo Martin era de reconhecida importância, levando-o a ser considerado o livreiro mais reputado do Rio de Janeiro. Ele inclusive enviava remessas de livros a outras partes da América portuguesa (BOMPARD, 2021BOMPARD, Jean-Jacques. Livreiros no Novo Mundo: de Briançon ao Rio de Janeiro. Campinas: Editora da Unicamp, 2021.).
Estabelecidos e ambientados na Corte do Império Luso-brasileiro, Martin e Bompard se valiam da imprensa local para divulgar o material vendido na Livraria Martin. Utilizavam o espaço dos anúncios da Gazeta do Rio de Janeiro e do Diário do Rio de Janeiro para expor os livros à venda aos possíveis interessados. Ali se mostrava também a variedade de produtos vendidos na livraria, como bilhetes de loteria, ingressos para o teatro e até remédios. A propósito desses dois periódicos, eles também tinham seus números vendidos na livraria, assim como ali se procedia à subscrição para quem os quisesse adquirir.
Desde que o Rio de Janeiro se tornara a Corte do Império via-se aumentar em muito o número de livrarias na cidade. Já muito bem reputado por ali, em 1810 Paulo Martin se tornaria o primeiro livreiro-editor do Rio de Janeiro. Além do mais, suas vendas alcançariam mais que a cidade e a sua vizinhança, visto que ele remeteria livros para outras regiões do império, inclusive para Lisboa (BOMPARD, 2021BOMPARD, Jean-Jacques. Livreiros no Novo Mundo: de Briançon ao Rio de Janeiro. Campinas: Editora da Unicamp, 2021.).
Em 1822, o seu ponto comercial sairia da Rua da Quitanda para a Rua dos Pescadores, nº 49. Jean-Jacques Bompard diz acreditar que naquele momento o seu antepassado já tomava parte no negócio. Mas de momento só nos mostra conjecturas acerca disso, pois os vestígios lhe faltam para o comprovar. Porém, é de fato em 1824, com a morte de Paulo Martin, que Jean-Baptiste Bompard assumiria o controle total da livraria do primo (BOMPARD, 2021BOMPARD, Jean-Jacques. Livreiros no Novo Mundo: de Briançon ao Rio de Janeiro. Campinas: Editora da Unicamp, 2021.).
No livro ainda se descreve algumas das alterações políticas do momento, desde a chegada da corte real portuguesa à América, em 1808, passando pela evolução política que se experimentava na América portuguesa, dadas as circunstâncias de se tornar sede do império. Destaca-se também a importância que os escritos (de variados tipos, matrizes e nuances) passavam a adquirir naquela sociedade, com a imprensa em ampla expansão após a fundação da Impressão Régia (13 de maio de 1808). Menciona-se alguns acontecimentos relevantes ao período e ao Império, como a Revolução Pernambucana, de 1817, a Revolução do Porto, de 1820, as Cortes Gerais Extraordinárias e Constituintes da Nação Portuguesa, em Lisboa (1820-1822), e as diversas agitações sociopolíticas dos anos 1821 e 1822.
É importante que se diga que Jean-Jacques Bompard se utiliza de muita pesquisa documental e historiográfica em sua escrita, e isso é de grande mérito para quem não é da área da História. Ele se vale de relevantes consultas a arquivos históricos no Brasil e na França (nos quais demonstra exaustivas buscas em jornais, manuscritos, registros cartoriais etc.), bem como da historiografia luso-brasileira. Ademais, o embasamento historiográfico primevo de sua obra se dá relativamente a alguns escritos (artigos e livros) de Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves, uma das principais historiadoras brasileiras a trabalhar com vestígios escritos, e fontes documentais variadas, no que tange ao Império Luso-brasileiro em período que compreende as décadas finais do Setecentos e as iniciais do Oitocentos. Inclusive, o prefácio do livro é elaborado por essa historiadora, que o enriquece ainda mais.** ** Dentre amplo e rico currículo, a Dr.ª Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves é Professora Titular de História Moderna na UERJ. Ao longo de sua carreira como historiadora, ela participou de importantes projetos de pesquisas com o apoio da Faperj e do CNPq, instituição pela qual ainda coordena algumas pesquisas. Para mais detalhes, ver: http://lattes.cnpq.br/6498404522445333.
Naturalmente que por Jean-Jacques Bompard não ser um historiador de ofício, o seu trabalho não se encaixa, e nem pode ser tido, como de natureza historiográfica. Não obstante, essa particularidade não é um demérito à sua realização, posto que se percebe uma notável qualidade na elaboração de sua obra, proporcionando-nos o contato com uma série de imagens atinentes à temática proposta, em que desde a capa frontal apresenta duas ilustrações significativas à trajetória de seu antepassado: uma pintura de Briançon e outra do Rio de Janeiro. A sua escrita vem traçada através de um sumário cujos capítulos e subtítulos se desenvolvem de modo diacrônico, facilitando a compreensão de parte da história da circulação livresca ocorrida entre França, Portugal e Brasil. Bem como há o mérito de conseguir manter do início ao fim uma escrita agradável, leve e instigadora. Aliás, este é um grande atributo de sua empresa, o de ter condições de atrair leitores de campos variados, inclusive os leigos.*** *** O livro de Jean-Jacques Bompard não vem com o intuito de fazer oposição aos escritos de nossa historiografia. Só à guisa de exemplo, há esplêndidos trabalhos historiográficos do período final do século XVIII e inicial do XIX abordados por: Luiz Carlos Villalta, Isabel Lustosa, Cecília Helena de Salles Oliveira, Marcello Basile, João Paulo G. Pimenta, Marco Morel, Márcia R. Berbel, Luciano Figueiredo, Iris Kantor, Iara Lis Schiavinatto, entre muitos outros.
O livro é fruto de importantes esforços no sentido de o tornarem viável no Brasil, sendo parte de valoroso trabalho de três editoras públicas vinculadas a universidades estaduais de São Paulo: Unicamp, USP e Unesp.
Com isso, Jean-Jacques Bompard tem o seu livro inserido em um nicho que foca na História, entretanto, por ter uma escrita mais acessível ao leitor não especializado, ele valorosamente se soma e até se sobrepõe (por ser capaz de atingir público mais vasto) à historiografia em importante tarefa de mostrar o avanço dos escritos e da leitura na sociedade luso-brasileira de fins do Setecentos e inícios do Oitocentos. Expediente que proporcionaria uma série de alterações sociais, políticas e econômicas ao longo da história portuguesa e brasileira, pois seria por meio de leituras que uma miríade de ideias seria disseminada entre os indivíduos daquela sociedade, levando-os ao debate, ao embate, e a pensar a sua relação enquanto portugueses e brasileiros.
Referências
- ALGRANTI, Leila Mezan. Livros de devoção, atos de censura: ensaios de história do livro e da leitura na América portuguesa (1750-1821). São Paulo: Hucitec Fapesp , 2004.
- BOMPARD, Jean-Jacques. Livreiros no Novo Mundo: de Briançon ao Rio de Janeiro. Campinas: Editora da Unicamp, 2021.
- DARNTON, Robert. Censores em ação: como os Estados influenciaram a literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
- LIMA, Oliveira. D. João VI no Brasil 4. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 2006.
- SLEMIAN, Andréa. Vida política em tempo de crise: Rio de Janeiro (1808-1824). São Paulo: HUCITEC, 2006.
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Ainda que seja mais didático, Portugal não possuía uma colônia na América, o Brasil, mas sim algumas colônias, tratadas alhures como os Brasis. Grosso modo, o início da colonização portuguesa na América se iniciaria em meados do século XVI, quando a Coroa faria concessões de terras no dito continente a parte da nobreza, em um processo de ocupação territorial cujos sítios seriam denominados Capitanias Hereditárias. Com o fracasso quase completo desse sistema, a Coroa retomaria aqueles territórios e os administraria por meio da nomeação de governadores capitães-generais para cada uma das novas Capitanias, submetendo-as (em tese) ao governador-geral estabelecido em Salvador (1549-1763). Não havia coesão prática entre a maioria daquelas Capitanias, muitas delas nem se reportava a Salvador, voltando-se a Lisboa por questões de logística. Uma união político-territorial incipiente entre as Capitanias só se daria em dezembro de 1815, quando o Estado do Brasil (ao Sul) e o Estado do Grão-Pará e Maranhão (ao Norte) se tornariam um com uma manobra política no Congresso de Viena: a elevação a Reino. No período de 1808 a 1828 ainda haveria duas anexações ao extenso território: da Guiana Francesa e da Banda Oriental (Cisplatina).
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Dentre amplo e rico currículo, a Dr.ª Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves é Professora Titular de História Moderna na UERJ. Ao longo de sua carreira como historiadora, ela participou de importantes projetos de pesquisas com o apoio da Faperj e do CNPq, instituição pela qual ainda coordena algumas pesquisas. Para mais detalhes, ver: http://lattes.cnpq.br/6498404522445333.
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O livro de Jean-Jacques Bompard não vem com o intuito de fazer oposição aos escritos de nossa historiografia. Só à guisa de exemplo, há esplêndidos trabalhos historiográficos do período final do século XVIII e inicial do XIX abordados por: Luiz Carlos Villalta, Isabel Lustosa, Cecília Helena de Salles Oliveira, Marcello Basile, João Paulo G. Pimenta, Marco Morel, Márcia R. Berbel, Luciano Figueiredo, Iris Kantor, Iara Lis Schiavinatto, entre muitos outros.
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Declaração de financiamento:
Esta pesquisa foi financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - n.º do Processo: 88887.514142/2020-00.
Editado por
Editores:
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
29 Maio 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
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Recebido
04 Abr 2022 -
Aceito
01 Jun 2022