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Por um mapa das dissidências: os estudos de gênero nas teses e dissertações em comunicação do Brasil (1972-2015)

Un mapa de los disidentes: los estudios de género en tesis y disertaciones en comunicación de Brasil (1972-2015)

Resumo

O artigo tem por objetivo realizar um mapeamento das interfaces entre os estudos de gênero e as investigações de mestrado e doutorado em comunicação do Brasil defendidas no período de 1972 a 2015. Ao todo, no período analisado, foram produzidas 13.265 investigações de mestrado e doutorado em comunicação. Desse número total, 316 pesquisas realizam interface com os estudos de gênero. Essas investigações foram vislumbradas por meio de suas problematizações e eixos teóricos principais, entre eles, os estudos feministas, os estudos LGBT e/ou queer e os estudos das masculinidades. Na análise, foi possível notar que a incorporação dos estudos de gênero ainda é incipiente no campo, exigindo o deslocamento e dedicação desses mestres e doutores, fato que indica a necessidade de investir em novas problematizações.

Palavras-chave
Pesquisa em comunicação; Estudos de gênero; Teses e Dissertações

Resumen

El artículo tiene por objetivo realizar un mapeamiento de las interfaces entre los estudios de género y las investigaciones de maestría y doctorado en comunicación de Brasil producidas en el período de 1972 a 2015. En total, en el período analizado, se produjeron 13.265 investigaciones de maestría y doctorado en comunicación. De ese número total, 316 investigaciones realizan interfaz con los estudios de género. Estas investigaciones fueron vislumbradas por medio de sus problematizaciones y ejes teóricos principales, entre ellos, los estudios feministas, los estudios LGBT y/o queer y los estudios de las masculinidades. En el análisis, fue posible notar que la incorporación de los estudios de género todavía es incipiente en el campo exigiendo el desplazamiento y dedicación de estos maestros y doctores, hecho que indica la necesidad de invertir en nuevas problemáticas.

Palabras clave
Investigación en comunicación; Estudios de género; Tesis y Disertaciones

Abstract

The objective of this paper is to map the interfaces between the gender studies and the master’s and doctoral studies in communication from Brazil defended in the period from 1972 to 2015. Altogether, in the analyzed period, 13,265 master’s and doctoral studies were produced in Communication. Of this total, 316 researches interface with gender studies. These investigations were glimpsed through their problematizations and main theoretical axes, among them, feminist studies, LGBT and/or queer studies and the masculinities studies. In the analysis, it was possible to note that the incorporation of gender studies is still incipient in the field, requiring the displacement and dedication of these masters and doctors, a fact that indicates the need to invest in new problematizations.

Keywords
Communication research; Gender studies; Theses and Dissertations

Introduzindo uma problemática de gênero às pesquisas em comunicação: da crítica a discriminação para as políticas teóricas

Este artigo tem o intuito de realizar um mapeamento das interfaces entre os estudos de gênero e as pesquisas em comunicação. Para a produção desse mapa, toma-se como recorte investigativo as pesquisas de pós-graduação – teses e dissertações – que abarcam perspectivas sobre os estudos de gênero na área da Comunicação no período de 1972 a 2015. Entende-se, assim, que um olhar sobre essas práticas investigativas se faz necessário para compreender as relações entre as problemáticas comunicacionais produzidas em um contexto de formação de pesquisadores e as construções de gênero no contexto de nossos objetos de conhecimento. Na esteira desse processo de pensamento, definir esses enredos científicos não é tarefa fácil. O campo da Comunicação possui uma construção diversa e interlocutora de saberes advindos de diferentes campos disciplinares, além disso, é estruturado pela complexidade e espraiamento dos fenômenos comunicacionais. É um campo constituído por laços heterogêneos em termos de estruturas concretas (instituições e organizações acadêmicas); de condições de produção de conhecimento (nas universidades); de sujeitos produtores de conhecimento e de saberes constituintes (pesquisadores, teorias, métodos e objetos).

Nesse sentido, o desafio corrente busca pensar a intersecção entre dois campos de pensamento interdisciplinares por si, os estudos de gênero e os estudos em comunicação. Ao considerar essa relação, torna-se evidente a importância de refletir as questões de gênero nas diferentes áreas do conhecimento humano devido a sua particular constituição como um problema cultural. Nossos gêneros são dimensões que ocupam espaço central nas relações sociais. Sobretudo, como uma arena de tensões a respeito de questões basilares da vida humana: diz respeito à identidade, à justiça, ao simples fato de existir e, até mesmo, poder sobreviver nessa existência. Os dados sobre as violências de gênero no Brasil são alarmantes. Segundo o Dossiê Violência contra as Mulheres1 1 Disponível em: http://www.agenciapatriciagalvao.org.br/dossie/o-dossie/. Acesso em: 25 jun. 2018. , produzido pelo instituto Patrícia Galvão, a taxa de feminicídios no Brasil é de 4,8 para 100 mil mulheres, a quinta maior no mundo, de acordo com os dados da Organização Mundial da Saúde (OMS). Conforme o Mapa da Violência 2015:

Dos 4.762 assassinatos de mulheres registrados em 2013 no Brasil, 50,3% foram cometidos por familiares, sendo que em 33,2% destes casos, o crime foi praticado pelo parceiro ou ex. Essas quase 5 mil mortes representam 13 homicídios femininos diários em 2013.O Mapa da Violência 2015 revela ainda que, entre 1980 e 2013, 106.093 brasileiras foram vítimas de assassinato. De 2003 a 2013, o número de vítimas do sexo feminino cresceu de 3.937 para 4.762, ou seja, mais de 21% na década

(AGÊNCIA PATRÍCIA GALVÃO, 2016)2 2 Disponível em: http://agenciapatriciagalvao.org.br/violencia/dados-e-pesquisas-violencia/dados-e-fatos-sobre-violencia-contra-as-mulheres/. Acesso em: 25 jun. 2018. .

Ainda, conforme o relatório produzido pelo Grupo Gay da Bahia (GGB), 343 LGBTs (lésbicas, gays, bissexuais e transexuais) foram assassinados no Brasil em 2016:

A cada 25 horas um LGBT é barbaramente assassinado vítima da “LGBTfobia”, o que faz do Brasil o campeão mundial de crimes contra as minorias sexuais. Matam-se mais homossexuais aqui do que nos 13 países do Oriente e África onde há pena de morte contra os LGBT. Tais mortes crescem assustadoramente: de 130 homicídios em 2000, saltou para 260 em 2010 e para 343 em 2016

(MOTT; MICHELS, 2016MOTT, L.; MICHELS, E. Relatório 2016: Assassinatos de LGBT no Brasil. Salvador: Grupo Gay da Bahia, 2016. Disponível em: https://homofobiamata.files.wordpress.com/2017/01/relatc3b3rio-2016-ps.pdf. Acesso em: 27 jun. 2018.
https://homofobiamata.files.wordpress.co...
, p. 1).

De acordo com os dados da Rede Trans Brasil3 3 Disponível em: http://redetransbrasil.org/dossiecirc2016.html. Acesso em: 26 jun. 2018. , o Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais no mundo. Em 2016, foram reportados 144 casos de assassinatos. Segundo os dados da rede europeia Transgender Europe (TGEU):

de um total de 295 casos de assassinatos registrados de pessoas trans e gênero-diversas entre 1 de outubro de 2015 e 30 de setembro de 2016 em 33 países ao longo dos últimos 12 meses, com a maioria no Brasil (123), México (52), EUA (23), Colômbia (14) e Venezuela (14). Na Ásia, a maioria dos casos registrados estão na Índia (6) e Paquistão (5), e na Europa, na Itália (5) e Turquia (5)

(NOGUEIRA; AQUINO; CABRAL, 2017NOGUEIRA, S. N. B.; AQUINO, T. A.; CABRAL, E. A. Dossiê: A Geografia dos Corpos das Pessoas Trans. Rio de Janeiro: Rede Trans Brasil, 2017. Disponível em: http://redetransbrasil.org/dossiecirc2016.html. Acesso em: 27 jun. 2018.
http://redetransbrasil.org/dossiecirc201...
, p. 49).

Esses fatos revelam uma dinâmica social que, em maior ou menor grau, consente e até mesmo justifica essas violências de acordo com a cultura. Por essa razão, problematizar as interfaces entre gênero e comunicação têm relação com a relevância sociopolítica de pensar as instituições midiáticas e comunicacionais da sociedade como importantes canais de produção de saberes sobre as relações culturais generificadas. Isso significa atentar-se também para as potencialidades de propagação de outros discursos, representações, identidades e experiências possíveis que podem ser formuladas para contribuir com a redução das violências e das assimetrias sancionadas nos corpos marginalizados pelos ditames culturais (mulheres, gays, lésbicas, travestis, transexuais, não-binários...).

Inspirado em Pelúcio (2014)PELÚCIO, L. “Traduções e torções ou o que se quer dizer quando dizemos queer no Brasil?”. Revista Acadêmica Periódicus, v. 1, n. 1, 2014. e Bento (2017)BENTO, B. Transviad@s: gênero, sexualidade e direitos humanos. Salvador: EDUFBA, 2017., considero os estudos de gênero como constituintes de saberes subalternos e dissidentes, sobretudo porque este é um campo formado por pessoas que estiveram historicamente excluídas dos bancos “respeitáveis” da academia. As problemáticas de gênero e sexualidade propuseram, ao longo da história das ciências sociais e humanas, rupturas importantes a respeito dos paradigmas científicos canônicos e suas interpretações sobre a realidade concreta. Por sua própria condição epistemológica, na ponte entre o ativismo e a academia, os movimentos insurgentes de gênero e sexualidade que formularam esse campo de estudos trouxeram para a arena acadêmica estratégias de embate para desestabilizar a racionalidade científica, forjando ferramentas teóricas que propunham novas análises a respeito de todas as dimensões sociais.

Nesse aspecto, muito mais do que um arcabouço conceitual, as teorias de gênero tiveram que romper com os sistemas de verdade dos saberes científicos hegemônicos. Para escapar das armadilhas de hierarquização do conhecimento, esse descompasso exigiu que pensadoras e pensadores feministas, queer, lésbicas, gays e transexuais, tivessem que substancialmente revisar os saberes cânones com certo teor de inconformismo. Como disse Bento (2017)BENTO, B. Transviad@s: gênero, sexualidade e direitos humanos. Salvador: EDUFBA, 2017., um corpo teórico é uma máquina de guerra, é justamente nesse ponto em que se pode afirmar que os estudos de gênero constituem-se de teorias dissidentes e saberes subalternos, pois é necessário que essas teorias sejam contraditórias, divergentes, inconformadas com a hegemonia dominante, com as relações de poder que estabelecem assimetrias naturalizadas, com as práticas de saber que geram verdades infalíveis sobre os corpos, com as instituições que normatizam as marginalidades e as violências, com as leis e com a cultura heterocentrada. Isto porque a condição marginal e subalterna desses sujeitxs e sujeitas está também atrelada ao modo com que a ciência e os saberes passaram a pensá-los e, portanto, a insurreição de outras formas de conhecimento exigiu a criação de uma nova epistemologia, um olhar outro que põe em prática o reconhecimento das fissuras, das particularidades e da produção de saberes engajados e politicamente responsáveis por suas escolhas e formulações.

Portanto, é estratégico do ponto vista epistemológico afirmar que essas teorias são dissidentes, assim como é também importante pensá-las como saberes inconformados com a realidade social excludente que viola as diferenças. Aceitando o risco de incompreensões, para pensar e refletir esses saberes, em meio a práticas acadêmicas, é preciso estar disposto a reconhecer-se na margem sem aspirar o centro, e fazer das margens desses saberes um continuum de transformação social concreta.

O desafio corrente encaminha a refletir os limites entre os domínios, as fronteiras e as estruturas que solidificam o pensamento científico. O olhar aqui traçado refere-se às possibilidades de pensar os conhecimentos estabelecidos em um campo científico, tensionando suas linhas de força, campos estes formatados por um discurso hegemônico e androgênico de ciência, com objetividades localizadas e corporificadas, como bem situa Haraway (1995)HARAWAY, D. Saberes Localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu. n. 5, p. 7-41, 1995.. Nossos objetos não existem sob condições naturais, eles são formulados em processos muito específicos de espaço-tempo e querem dizer sobre o que e de que maneiras escolhemos falar sobre determinadas realidades concretas.

Projeções para a formulação do mapa: aspectos metodológicos

Para a constituição do mapa aqui proposto, primeiramente realizou-se a consulta no banco de teses e dissertações da Capes4 4 Disponível em: http://bancodeteses.capes.gov.br/banco-teses/ , a partir de palavras-chave que buscassem dimensionar a amplitude e heterogeneidade dos estudos de gênero, entre elas: feminilidade; masculinidade; homossexualidade; transexualidade; bissexualidade; feminismo; gênero; relações de gênero; estudos de gênero; estudos queer. Esse empreendimento contou, ainda, com a pesquisa simultânea nas bibliotecas e repositórios das universidades. Além disso, utilizei como fontes para completar a produção total de 43 anos de pós-graduação em comunicação no Brasil, as pesquisas de estado da arte de autoras brasileiras como Escosteguy (2008)ESCOSTEGUY, A. C. (org.). Comunicação e gênero: a aventura da pesquisa. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2008.; Jacks, Menezes e Piedras (2008)JACKS, N.; MENEZES, D.; PIEDRAS, E. Meios e audiências: a emergência dos estudos de recepção no Brasil. Porto Alegre: Sulina, 2008.; Jacks et al. (2014)JACKS, N. et al. (org.). Meios e audiências 2: A consolidação dos estudos de recepção no Brasil. Porto Alegre: Sulina, 2014. e Jacks et al. (2017)JACKS, N. et al. Meios e audiências 3: reconfigurações dos estudos de recepção e consumo midiático no Brasil. Porto Alegre: Sulina, 2017.. Para além dos dois volumes organizados por Lopes (2003)LOPES, M. I. V. Diversidade & Interdisciplinaridade - teses e dissertações: Ciências da Comunicação. ECA-USP, 1972-2002. São Paulo, Nupem, 2003. do livro “Diversidade & interdisciplinaridade: teses e dissertações Ciências da Comunicação: ECA-USP, 1972-2002” e a pesquisa de Romancini (2006)ROMANCINI, R. O campo científico da Comunicação no Brasil: institucionalização e capital científico. São Paulo, 2006. Tese (Doutorado) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, 2006. para os números gerais de teses e dissertações em comunicação defendidas.

Como esses dados estão dispersos e possuem seus limites, é importante considerar, também, os limites dessa investigação em relação aos números totais de investigações produzidas nesses anos, como também o número de pesquisas de gênero e comunicação que constituem esse mapa a partir de palavras-chave5 5 Considera-se especial atenção para as pesquisas defendidas nos primeiros 14 anos de pós-graduação em comunicação (1972-1986), pois os dados que correspondem a catalogação dessas investigações são escassos e de difícil acesso, portanto, algumas investigações poderão não constar nessa análise. . Outra questão que pode afetar essa análise é que, por diversos motivos6 6 Não obtive acesso a integralidade de algumas pesquisas, principalmente com as investigações das décadas de 1970, 1980 e início dos anos 1990. De fato, as teses e dissertações não estão disponíveis em sites ou bibliotecas online. , não obtive acesso integral às pesquisas de 1972-2009, apenas aos seus títulos e resumos, ao contrário das investigações produzidas entre 2010-2015. Dessa busca, ao todo, foram encontradas 316 pesquisas que realizam algum tipo de incorporação dos estudos gênero.

A partir disso, as investigações foram lidas e catalogadas por período7 7 Considerou-se, primeiramente, leitura dos resumos e das introduções. A partir disso, as investigações foram lidas em sua totalidade de acordo com a sua disponibilidade integral. É importante, contudo, ponderar algumas distinções nessas leituras. Como as investigações produzidas entre as décadas de 1970-1990 não estão, em sua maioria, disponíveis em sua completude, elas foram analisadas a partir de seus resumos. Já as investigações produzidas entre 2000 e 2015 foram analisadas integralmente. . Assim, através da caracterização das pesquisas, alguns critérios para a constituição do conjunto formador do cenário do mapa passaram a ser levados em consideração. Primeiro, as pesquisas deveriam possuir em seu mote uma dimensão de interface entre comunicação e gênero, essa dimensão pode estar inclusa na problematização do objeto empírico, no encaminhamento teórico-conceitual, na ênfase metodológica (objetivos gerais e específicos). Assim, da introdução passou-se para a leitura completa das pesquisas com o intuito de verificar a constituição de capítulos que elaboram a relação entre comunicação e estudos de gênero.

Os estudos de gênero e comunicação 1972-2015: aspectos quantitativos

Entre 1972 e 2015 foram produzidas 13.265 pesquisas de mestrado e doutorado em comunicação, dessas, de acordo com as palavras-chave utilizadas, 316 realizam algum tipo de interface com os estudos de gênero. Esse número representa 2,36% da produção total de pesquisas em um período de 43 anos de pós-graduação em comunicação. Devido às múltiplas subáreas de investigação empreendidas no campo da Comunicação, não é possível afirmar se esse percentual representa uma escassez ou uma grande produção de pesquisas de gênero em nossa área. Contudo, torna-se possível pontuar alguns elementos, essas 316 investigações estão distribuídas em 28 dos 44 Programas de Pós-Graduação em comunicação que tiveram defesas de mestrado e doutorado entre 1972 e 20158 8 Segundo o documento da área na Capes (2018) possuímos 50 cursos de pós-graduação credenciados (24 doutorados e 26 mestrados). , ou seja, mais da metade dos PPG’s, 65,9%, possui alguma pesquisa relativa às questões de gênero. No gráfico abaixo, é possível observar as universidades e suas respectivas produções:

Gráfico 1
Universidades versus teses e dissertações em comunicação com pesquisas de gênero (1972-2015)

Existe uma grande disparidade sobre a produção de pesquisas nas regiões do país. As regiões Sudeste e Sul são as que mais produziram: 66% e 19% das pesquisas respectivamente. Em seguida, as regiões Centro-Oeste com 8%, Nordeste, com 6% e Norte com apenas 1% pesquisas:

Gráfico 2
Distribuição das pesquisas por região do Brasil

Contudo, essa assimetria na produção de investigações deve também ser pensada em relação a assimetria de programas de cada região do país. As regiões Sul e Sudeste são as que mais possuem PPGs em comunicação, além disso, foi na região Sudeste que se instauraram os primeiros PPG’s da área. Quanto aos anos em que as pesquisas foram defendidas, de acordo com os dados que obtive acesso, a primeira investigação sobre a temática foi produzida no ano de 1977: a dissertação Personagens femininas da telenovela em suas relações com o trabalho, de Dulce Monteiro, defendida no PPG da UFRJ, sendo a única pesquisa sobre a temática de gênero da década de 1970. A partir daí, entre os anos 1980-1990 há certa linearidade no número de investigações sendo realizadas, cerca de uma a cinco pesquisas até os anos 2000, quando esse número sofre um tímido aumento, de três a sete pesquisas por ano até 2009.

Um significativo aumento nessa produção ocorrerá somente a partir do ano de 2010, com 11 pesquisas. Mas é possível considerar 2015 como ano ápice, com cerca de 35 pesquisas de gênero e comunicação defendidas, praticamente o dobro de investigações em relação aos anos de 2013, com 18 e 2014 com 16:

Gráfico 3
Produção de teses e dissertações em comunicação e gênero por ano de defesa (1977-2015)

A partir de 2010, a temática de gênero parece sofrer uma exponencial preocupação nas reflexões em comunicação. Os fatores para essa expansão podem ser variados: em relação aos temas e objetos de pesquisa do período, por exemplo, ao que tudo indica, as manifestações de múltiplos fenômenos e movimentos sociais midiatizados e em rede contribuíram para o desenvolvimento das problemáticas de gênero e comunicação. Em 2015, inclusive, pela primeira vez em cinco anos, a Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação (Compós)9 9 Link para acessar as teses e dissertações premiadas a partir de 2011: http://www.compos.org.br/premios.php. Acesso em: 27 jun. 2018. , premiou uma dissertação cuja temática envolvia as relações de gênero a partir dos estudos queer10 10 A dissertação: Documentário queer no Sul do Brasil (2000-2014): narrativas contrassexuais e contradisciplinares nas representações das personagens LGBT, de Dieison Marconi Pereira, produzida no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). .

Outro fator que deve ser considerado quanto a essa expansão quantitativa diz respeito ao crescimento do número de Programas de Pós-Graduação em comunicação nos últimos anos e consequentemente ao aumento de pesquisas sendo produzidas na área. De acordo com os dados levantados por Jacks et al. (2017)JACKS, N. et al. Meios e audiências 3: reconfigurações dos estudos de recepção e consumo midiático no Brasil. Porto Alegre: Sulina, 2017., entre 2000 e 2009 foram criados 21 PPGs e entre 2010 e 2015 foram criados 11. Ainda de acordo com as autoras, em 2015 foram defendidas 895 teses e dissertações, enquanto em 2010 esse número era de 668 investigações. Nesse sentido, no ano de 2015 as pesquisas de gênero e comunicação representam 3,9% da produção total, enquanto nos outros anos refletiam de 0,6 a 2% das pesquisas defendidas.

Se observarmos no quadro a seguir, veremos o número de investigações defendidas por período e respectivamente a quantidade de pesquisas de gênero e comunicação de cada década:

Quadro 1
Total de teses e dissertações em comunicação versus percentual de estudos de gênero (1972-2015)

Nesse caso, se olharmos os dados por uma perspectiva conjuntural, veremos que o aumento de pesquisas de gênero e comunicação é proporcional ao aumento de teses e dissertações defendidas na área, já que percentualmente essas investigações representam de 1,9 a 2,7% no conjunto total de pesquisas defendidas.

Territorializações: aspectos teóricos, empíricos e metodológicos

Para além dos dados gerais acima tratados, a leitura das teses e dissertações induziu a construção de algumas correlações entre elas. Essas territorializações correspondem às problematizações comuns entre as pesquisas, referentes aos objetos teóricos e empíricos estudados e dizem respeito às linhas de força do campo. É importante esclarecer que esses territórios não estão sendo pensados linearmente em relação aos meios ou gêneros midiáticos estudados nas pesquisas, mas pelas problemáticas nas quais as investigações se sustentam, ou seja, o que epistemologicamente essas pesquisas estudam. Nesse sentido, se há uma possível confusão entre um aspecto e outro desses territórios no que condiz seus recortes, essa miscelânea reflete o próprio estado do campo. Basta observarmos os grupos de trabalho de eventos científicos como Intercom e Compós, que reúnem interesses de pesquisas na área, e veremos que esses territórios refletem exatamente essa conjuntura não linear, nem ao menos estática: ora mais ligada aos meios de comunicação, ora aos gêneros midiáticos, ora aos conceitos, teorias e métodos de pesquisa.

Como é possível notar no gráfico a seguir, a principal questão dos estudos de gênero e comunicação nas pesquisas de pós-graduação é o jornalismo, seja ele como um campo de pensamento ou através de uma relação mais empírica com o jornalismo de revista, impresso ou telejornalismo. A ficção seriada, as telenovelas e os programas de entretenimento, estudados principalmente a partir da televisão, estão em segundo lugar, seguido dos estudos de cinema. Em seguida, aparecem os estudos de internet, apropriação de redes sociais e convergência. Em quinto, estão os estudos teóricos e outros, que são aquelas investigações que se perfazem, em certa medida, por problemas não midiacentrados, com questões mais sociológicas, antropológicas, históricas, e claro, teóricas. Em seguida, aparecem os estudos de publicidade, em diferentes meios. Por fim, os estudos de consumo e apropriação de múltiplas mídias e as pesquisas menos recorrentes que refletem questões ligadas ao rádio, a literatura, a arte e a fotografia.

Gráfico 4
Problematizações comuns entre as pesquisas

Metodologicamente, os empreendimentos orquestrados nas pesquisas nos fornecem alguns dados ligados às principais preocupações dos territórios de pesquisa. Entre as investigações de jornalismo e gênero, por exemplo, é reconhecível uma grande preocupação com os discursos, enquadramentos e com a construção das notícias. Nesse sentido, as perguntas desses trabalhos estão, majoritariamente, voltadas para o texto jornalístico, produzindo interpretações a respeito de suas intenções junto às representações elencadas. As problemáticas dessas pesquisas também são intensamente comuns entre si. A questão de gênero para o campo do jornalismo é basicamente refletida em pesquisas sobre mulheres e/ou de viés feminista11 11 As pesquisas sobre mulheres são aquelas que trabalham com a categoria mulheres como espectro identitário, sem remeter especificamente ao feminismo ou às relações de gênero. Já, as pesquisas de viés feministas trabalham com a categoria mulheres no interior da teoria feminista, ora ligada ao vetor político das questões de gênero, ora situada na desconstrução das relações de poder entre os sexos. , associadas a investigação dos modelos de representação e construção do feminino ou autorrepresentação das mulheres em jornais alternativos. O conceito de gênero, assim, está limitado a uma ênfase identitária e interseccionado às noções de representação e alteridade.

Da mesma forma, as investigações de gênero, telenovela e ficção seriada se concentram nos aspectos identitários que as narrativas e o enredo dos produtos em questão exprimem no contexto social. No entanto, essas pesquisas compreendem um universo de metodologias mais facetados, pois há uma gama de elementos e técnicas apropriados, como as pesquisas com foco na recepção e apropriação, que realizam trabalhos de inspiração etnográfica, e as pesquisas com foco nos textos e na produção, que fazem elaborados mapeamentos e análises que compreendem a especificidade de suas perguntas, com empreendimentos próprios e criativos. Da mesma forma, aqui também ocorre uma subdivisão entre as investigações sobre mulheres e/ou feministas e as investigações de um universo LGBT ou queer. O conceito de gênero é acionado, assim como nos outros territórios, pelo viés da representação, no entanto, há maior ênfase nos processos identitários no sentido de reconhecimento ou politização dos personagens e das narrativas investigadas. A multiplicidade metodológica dessas pesquisas produz também distintas reflexões: de um lado, as investigações de recepção e apropriação das representações de gênero, que buscam entender como as telenovelas produzem sentidos e identificações no cotidiano das pessoas em nível microssocial. E, de outro, as pesquisas que refletem os textos ficcionais e sua produção e procuram compreender os porquês dessas representações em nível mais estrutural. Nesses casos, então, os empreendimentos metodológicos são extremamente importantes, pois levam à configuração dos diagnósticos e das interpretações críticas e/ou descritivas da relação entre esses aparatos midiáticos e as dinâmicas culturais de sexo, gênero, corpo e desejo.

Nas pesquisas de gênero e cinema, não muito diferente, as problematizações estão ancoradas no corpo fílmico, ou seja, em análises que se concentram nos aspectos de construção ética, estética e narrativa do cinema, a fim de entender os processos de constituição dos enredos selecionados e suas representações. No entanto, as problemáticas de gênero que são orquestradas possuem duas vias: de um lado os estudos sobre mulheres e/ou feministas e, de outro, aqueles ligados ao universo LGBT ou queer12 12 São as pesquisas que, no geral, trabalham com as diferenças de gênero e sexualidade de lésbicas, gays, transexuais, bissexuais entre outros. A diferença entre ela está na apropriação das teorias: as investigações LGBT, trabalham com um viés de assimilação ou a incorporação identitária das diversidades de sexo/gênero, já as investigações queer compreendem o viés crítico das normalizações de sexo/gênero no entorno desses processos identitários. . As pesquisas defendem, em sua maioria, uma mirada histórica atrelada às relações entre os marcadores analíticos de sexo/gênero, corpo e sexualidade e as estruturas fílmicas. Por esse motivo, os processos de produção adquirem um protagonismo maior do que nas pesquisas em jornalismo, apesar de, da mesma forma, o conceito de gênero estar atrelado à noção de representação. Contudo, nessas investigações, há uma ênfase ao espectro político desse conceito vinculado a ideia geral de que o cinema produz saberes em processos de fração e escolha de determinados modelos sociais generificados a fim de serem reproduzidos no âmbito midiático.

Já, as pesquisas de gênero, Internet e redes sociais possuem tanto recortes, problemáticas quanto metodologias distintas entre si, ora ligadas à expressão de movimentos sociais e da cidadania nas redes digitais, ora atrelados à convergência de discursos das mídias tradicionais na Internet, ou ainda, ligados às reflexões a respeito da formação de grupos e espaços de discussão, compartilhamento e dinamização sociocultural de sujeitos nos ambientes digitais. Do mesmo modo, essas investigações se segmentam entre os estudos de mulheres e/ou feministas e os estudos LGBT ou queer. No entanto, mesmo com a heterogeneidade de problemáticas e objetos, as pesquisas também giram em torno de processos identitários mas que, aqui, ganham força de fio condutor quando atrelados, principalmente, às noções de reconhecimento, conversação e políticas de visibilidade. Assim, de modo geral, a dinamicidade dos objetos de pesquisa nos ambientes digitais possibilita, ao contrário dos outros territórios acima descritos, uma ênfase na ação dos sujeitos em relação aos usos das tecnologias de comunicação, para revitalizar tanto o debate quando as possíveis práticas identitárias ligadas às relações de gênero, sexualidade, políticas do corpo e do desejo.

As investigações de gênero e publicidade do período investigado possuem em comum a análise dos estereótipos elegidos nas narrativas publicitárias. Embora com enfoques metodológicos distintos entre si, as discussões dos trabalhos refletem criticamente como a publicidade reproduz padrões limitados sobre as expressões de gênero, alocando a problemática de gênero novamente no espectro das representações que adquirem, aqui, potencial crítico-descritivo por estarem atreladas, na sua maioria, aos próprios enredos publicitários. Como as investigações estão basicamente vinculadas aos produtos publicitários, este cenário nos permite dizer que essas pesquisas estão permeadas em maior ou menor grau pela falta de diversidade na eleição de objetos empíricos e pela escolha por análises voltadas aos discursos, sentidos e a enunciação das mensagens e textos publicitários. Um aspecto interessante encontrado nessas investigações é que, ao contrário dos outros territórios, elas apresentam uma subdivisão distinta em relação às categorias identitárias problematizadas: de um lado, ainda com força, estão as pesquisas sobre mulheres e/ou feministas, e de outro as pesquisas sobre homens e/ou masculinidades, vertente que é praticamente inexpressiva nas outras pesquisas e, aqui, ganha destaque sendo tanto teórica quanto empiricamente incorporada.

As investigações do território gênero e múltiplas mídias, como o próprio nome deixa transparecer, não estão atreladas a um objeto ou temática específica, na medida em que assinalam seus enfoques no entorno dos processos plurais de relação dos sujeitos com os meios, tecnologias, aparatos comunicacionais ou ainda a comunicação interpessoal. Aqui também encontramos as subdivisões entre as pesquisas atreladas aos estudos de mulheres e/ou feministas, aos estudos LGBT ou queer e também, mais uma vez, aos estudos das masculinidades. Com visões muito menos tradicionais das já constituídas nos outros territórios, como cinema e jornalismo, por exemplo, essas pesquisas acionam em suas reflexões os processos comunicacionais e suas múltiplas circulações no que configura, principalmente, as estratégias sociais, políticas e identitárias na dimensão das relações de gênero e sexualidade. Com empreendimentos metodológicos abertos e criativos, as investigações flertam fortemente com outras áreas de estudo como a Educação, as Artes, a Antropologia e a Sociologia. Essa relação profícua, na maioria dos casos, amplia o entendimento de comunicação induzido pelas problemáticas, possibilitando também certa ruptura com os objetos empíricos em si e também certa independência para construir e problematizar as possíveis relações entre gênero e comunicação.

A partir desses territórios, foi possível observar também alguns segmentos e tendências tanto teóricos quanto metodológicos elegidos pelas pesquisas em comunicação e gênero do período estudado. Um elemento importante dessa divisão foi a descoberta de que as questões de gênero produzidas nas investigações correspondem, principalmente, a três vertentes teóricas. A primeira e mais expressiva é a dos estudos de viés feminista e/ou de mulheres, que representam um total de 237 investigações, as quais tendem a realizar reflexões sobre as condições assimétricas de representação, objetificação, violência e emancipação das mulheres e do universo feminino junto aos meios ou processos de comunicação. As questões que impulsionam essas pesquisas estão, em sua grande maioria, vinculadas a desnaturalização das relações de poder que determinam as desigualdades de gênero ou ainda as particularidades da vida e do cotidiano das mulheres, como as relações de maternidade, trabalho e sexualidade. Os estudos feministas estão em todos os territórios investigados e representam 76% do total de estudos do período analisado. São reflexões de extrema importância e, ao que parece, estão se consolidando no campo da Comunicação.

Em uma segunda vertente, estão aqueles estudos que buscam compreender as relações entre a comunicação e a produção das diferenças de gênero e sexualidade não centrados apenas nas mulheres como gênero, mas em processos de generificação, como as pesquisas de viés queer, trans, gays e lésbicos, que correspondem a um total de 64 pesquisas, as quais se preocupam com políticas de representação e identidade e diferença de sujeitos LGBT. Essas investigações também se espraiam em todos os territórios estudados e refletem um enredo diverso, porém focado, principalmente, nas problematizações das sexualidades hegemônicas. As formulações de gênero desses estudos rompem com os limites da heterossexualidade, revelando as potencialidades do gênero para além do binarismo homem/mulher. Recorre-se, aqui, à ideia de embaraçamento entre essas categorias.

Em uma terceira e pouco expressiva vertente, estão as pesquisas sobre masculinidades, com um total de 14 investigações, preocupadas com a reflexão das condições mutáveis dos ideais de masculinidade, cujos parâmetros respondem a própria legitimação e conformação histórica do patriarcado. Esses estudos, ainda escassos no campo, nos possibilitam pensar que a generificação do homem, enquanto ser masculino, não está fechada às mudanças históricas, culturais, discursivas e estéticas e ajudam a desnaturalizar a ideia de rigidez e imutabilidade das identidades masculinas.

Outro aspecto importante identificado nas investigações é que as interfaces entre comunicação e gênero ocorrem, primordialmente, a partir do conceito de representação. Embora, muitas vezes, a própria ideia de representação não seja conceitualmente refletida nas pesquisas, ela costuma inferir as formas de pensamento arbitrárias construídas e partilhadas socialmente. Esse tensionamento operante nas investigações, de alguma forma, acaba fornecendo ao conceito de gênero uma potência comunicacional por fazer, a partir dele, uma crítica aos modelos socialmente acionados para serem expostos pelas mídias ou meios; e por servir de termo operacional no cerne de um processo político em busca de visibilidade e legitimidade. Esse olhar converte-se em um importante caminho crítico adotado pelas investigações a respeito dos discursos sociais hegemônicos, principalmente quando tratados pela via dos estereótipos, pensados como estratégias de representação cristalizadas e hierárquicas das diferenças de gênero e sexualidade. No sentido político, existem pesquisas que fazem uso do conceito de representação como articulador de disputas e práticas sociais que podem dar voz ativa aos grupos excluídos, nestes casos, a representação envolve a participação e manifestação das identidades de gênero e sexualidade nas esferas midiáticas e comunicacionais como forma de inclusão sociopolítica.

Por outro lado, por ser uma prática significadora (HALL, 1997HALL, S. The work of representation. In: HALL, S (org.). Representation. Cultural representation and cultural signifying practices. London/Thousand Oaks/New Delhi: Sage/Open University, 1997. p. 13-74.), a representação não pode ser encarada como reflexo do social e, sim, como uma forma social que também é constituinte da cultura. Dessa maneira, existem alguns limites que precisam ser considerados a respeito dessa associação entre gênero e representação. Os modelos de representação são excludentes, eles contribuem para a manutenção da ordem social, principalmente no que tange os binários feminino-masculino, normal-patológico, aceitável-inaceitável e assim por diante. Tanto a representação política quanto sua crítica devem encarar, assim, as representações como práticas de poder que constroem e estabelecem as normalidades e assimetrias. Nesse aspecto, a luta por representação junto aos meios de comunicação possui uma função de incorporação normativa que sempre terá constrangimentos e rejeições, na medida em que não corresponde à complexidade das articulações sociais. E, nesse sentido, se não refletidas em processos históricos que conseguem vislumbrar suas rupturas, tensões e descontinuidades, as representações possuem pouco valor explicativo em relação às construções de gênero, pois podem recair no caráter específico da identificação essencialista. Isso porque representação enquanto discurso é uma forma de poder simbólico racionalizado e unificante, que pode congelar as diferenças e as complexidades identitárias.

Esses territórios refletem também, de alguma forma, uma questão muito relevante para o campo da Comunicação no que diz respeito ao que cada pesquisa entende como comunicação. Essa compreensão irá atrelar tendências teóricas e metodológicas para as investigações e induzir as possibilidades de problematização das questões de gênero. Isso porque cada uma delas carrega consigo vertentes teóricas já incorporadas ou até mesmo naturalizadas no campo. Mesmo não havendo, na maioria dos casos, uma explanação sobre o comunicacional, as investigações se concentram em refletir as interfaces que surgem de uma relação com meios de comunicação específicos, gêneros comunicacionais ou ainda processos de comunicação e interrelação sociocomunicativas. Nesse sentido, olhar para os estudos de gênero no campo da Comunicação é também olhar para a multiplicidade de linhas de pensamento que esse campo aglutina, algumas com mais tradição como os estudos em jornalismo e cinema, quando tratamos de objetos por exemplo, ou como os estudos de recepção e os estudos semióticos ou discursivos, quando tratamos de quadros teórico e metodológicos.

Por uma postura crítica: estudos de gênero na comunicação ou estudos de gênero em comunicação?

Existem poucas reflexões em nossa literatura acadêmica que problematizam as pesquisas de gênero no campo da comunicação, suas vertentes teóricas e metodológicas. Essa lacuna por si só é um dado de pesquisa, pois, como vimos, os momentos de dedicação às problemáticas de gênero nas investigações de mestrado e doutorado são até agora esporádicos, pontuais e sem o devido esforço coletivo da área para sua consolidação.

Gostaria, assim, de retomar alguns dados: desde 1972, quando foram fundados os primeiros PPGs na área, até o ano de 2015, produziu-se, aproximadamente, 13.265 investigações de mestrado e doutorado em comunicação. Desse número total, 316 pesquisas realizam algum tipo de interface com os estudos de gênero. Essas investigações estão distribuídas em 28 dos 44 Programas de Pós-Graduação que possuíram defesas nesses 43 anos. Geograficamente, as investigações de gênero e comunicação estão em sua grande maioria localizadas nas regiões Sudeste (66%) e Sul (19%) do Brasil.

A incorporação da temática de gênero na pós-graduação em comunicação do Brasil data do final da década de 1970. Entre as décadas de 1980 e 1990, a produção de investigações passa por certa linearidade, de uma a cinco pesquisas de gênero defendidas por ano até o ano de 2000, sendo esse o período em que há a evidente incorporação de teorias e conceitos de gênero nas pesquisas. Entre 2001 e 2009, esse número sofre um tímido aumento, em torno de três a sete pesquisas por ano. É somente a partir de 2010 que as investigações de gênero e comunicação começam a formar um corpo mais denso de investigações, com 11 pesquisas defendidas naquele ano. A partir daí, o crescimento é exponencial, sendo possível considerar 2015 como ano ápice com cerca 35 pesquisas defendidas, praticamente o dobro de investigações em relação aos anos de 2013, com 18 e 2014 com 16.

Pensando essa constituição de maior densidade de apropriação dos estudos de gênero nas pesquisas mais recentes (2010-2015), gostaria de fazer uma reflexão crítica sobre os usos do conceito de gênero nessas investigações, sobretudo, a partir de um sentido específico de sua gênese: seu compromisso político com um projeto de mudança e transformação social. Entre 2010 e 2015, o campo da Comunicação produziu 94 pesquisas de mestrado e doutorado cujas problemáticas desenvolviam questões de gênero e, para esse exercício reflexivo, gostaria de começar pontuando a partir de que fontes referenciais o próprio conceito de gênero é incorporado nessas investigações. Essas escolhas nos dizem muito a respeito da lente epistemológica das investigações.

Entre as autoras elegidas para a construção conceitual das problemáticas de gênero são majoritariamente citadas as norte-americanas Judith Butler e Joan Scott e a brasileira Guacira Lopes Louro:

Gráfico 5
Número de citações por autoras

Butler é referenciada em 41 pesquisas, principalmente a partir de seu livro Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade, publicado em 1990 e traduzido no ano de 2003 pela editora Civilização Brasileira. Já Joan Scott é citada em 30 pesquisas através de seu notório artigo Gênero: uma categoria útil de análise histórica, publicado originalmente em 1986 e traduzido em 1990 por Guacira Lopes Louro para a revista Educação e Realidade. Além delas, Guacira Lopes Louro é a autora brasileira mais apropriada pelas pesquisas em comunicação e gênero, constando em 22 investigações, seus livros mais citados são Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista, publicado em 1998, e Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer, coletânea de artigos de diversos autores publicado em 2004.

Entre outras autoras, é possível notar a apropriação de importantes artigos traduzidos das norte-americanas Donna Haraway13 13 Com o artigo Gênero para um dicionário Marxista, publicado na revista Cadernos Pagu em 2004. e Teresa de Lauretis14 14 Com o artigo A tecnologia de gênero, publicado em coletânea organizada por Heloisa Buarque de Holanda em 1994. , citadas em 11 trabalhos, além da brasileira Heleieth Saffioti15 15 Principalmente a partir do livro Gênero, patriarcado, violência, publicado em 2004. e do autor francês Pierre Bourdieu16 16 Principalmente a partir do livro A dominação masculina, publicado no Brasil em 1998. , com dez citações cada. A maioria das fontes utilizadas para tratar dos estudos de gêneros são de autoras norte-americanas. Além de Guacira Lopes Louro e Heleieth Saffioti, entre as autoras brasileiras e latino-americanas mais citadas estão a argentina Adriana Piscitelli e a brasileira Maria Luiza Heilborn, ambas com cinco citações cada.

A apropriação extensiva dos textos de Joan Scott e Judith Butler indica, assim, que a maioria das pesquisas em comunicação e gênero do período é delineada por uma perspectiva pós-estruturalista ou desconstrucionista de gênero. Essas duas autoras, em particular, compartilham certos posicionamentos epistemológicos e uma relação de crítica aos modelos teóricos totalizantes, que buscam analisar e explicar as transformações históricas por meio de estruturas sociais rígidas. De encontro a essa perspectiva, elas trabalham com uma noção de poder fragmentado nas práticas sociais, institucionais e nos processos de subjetivação (FOUCAULT, 2014FOUCAULT, M. História da Sexualidade I: a vontade de saber. São Paulo: Paz e Terra, 2014.). Além disso, conjugam com a ideia de dissolução da noção de sujeito universal - cujas identidades são fixas, unitárias e universais – realizando trabalhos genealógicos os quais valorizam a linguagem e os discursos como práticas de saber que configuram as relações humanas, seus processos históricos, institucionais e culturais.

Nesse sentido, em um primeiro momento, é possível dizer que a ideia partilhada nos estudos em comunicação é a de que o conceito de gênero representa uma categoria epistemológica de saber/poder sobre a realidade social, estando muito além da inscrição biológica dos corpos. De modo geral, Butler e Scott discutem que a suposta neutralidade das ciências, das instituições e das leis modernas foram/são, na realidade, estruturadas por um olhar masculino, branco e europeu. Dessa maneira, orientadas por um pensamento foucaultiano17 17 Principalmente a partir da publicação de História da Sexualidade I em 1976. , elas buscam demonstrar que essas instituições estabeleceram regimes de verdades (saber/poder) sobre a constituição das identidades humanas. Essas verdades, não neutras e nem ao menos universais, possuem em seu cerne uma lei obrigatória do desejo, a partir de um recorte heterossexual e generificado de acordo com uma linearidade entre sexo-gênero-prática sexual (BUTLER, 2016BUTLER, J. Problemas de Gênero: Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.).

Para Butler (2016)BUTLER, J. Problemas de Gênero: Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016., ao gênero cabe a legitimação dessa ordem a partir de um status pré-cultural e pré-discursivo que se inscreve nas diferenças sexuais para sustentar uma suposta natureza biológica das assimetrias sociais. Conforme ela, é preciso reformular a ideia de gênero a fim de demonstrar que sua artificialidade cultural não é um efeito a-histórico da ordem natural das diferenças sexuais, mas sim, resultado de um aparato (saber/poder) cultural que reitera e estabelece essas diferenças sexuais. O papel do gênero seria produzir, através de atos corporais repetidos em um conjunto regulador e altamente rígido, a falsa noção de estabilidade substancial do ser.

No mesmo sentido, Scott (1995)SCOTT, J. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade, v. 20, n. 2,1995, p. 71-99. se posiciona a partir de um desafio eminentemente epistemológico para os problemas de gênero: a produção de análises voltadas não apenas para as experiências masculinas e femininas, mas para suas conexões históricas, que dão sentidos para a organização das relações de gênero do presente. Rompendo com o que considera as ideias descritivas de gênero: como sinônimo de mulher; como relação entre homens e mulheres e como diferença sexual imposta sobre o corpo; o gênero, para Scott, deve representar uma categoria analítica que permite vislumbrar muito além das dualidades. Mulheres e homens não seriam, nesse pensamento, categorias fixas e opostas, mas formas de dar significado cultural para diferenças hierárquicas. Para ela, corpo, sexo e gênero são assuntos de Estado, poder e normalização social. Isso significa dizer que a existência de pênis e vagina, homem e mulher, masculino e feminino, só possuem sentidos históricos a partir de um olhar cultural e discursivo heterocentrado, como saberes sobre os corpos que orientam relações de poder (SCOTT, 1995SCOTT, J. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade, v. 20, n. 2,1995, p. 71-99.).

Assim, de acordo com elas, somos generificados no momento que identificam nossas genitálias, antes mesmo de nosso nascimento. A partir daí, somos diferenciados entre meninos e meninas e, quando nascemos, somos sistematicamente treinados de acordo com essa distinção e lidos por nossas genitálias em uma ordem compulsória e predominantemente heteronormativa. A norma cultural, configurada pelo pensamento androgênico é, então, embasada pela assimetria de poder entre homens e mulheres e por uma economia de troca sexual e reprodutiva18 18 Como apontou Rubin (1993). . Assim, tudo que escapa dessa normalidade é tido como anormal, abjeto, dissidente, marginal, estando a mercê dos códigos de violência e disciplinarização. Dessa forma, as autoras buscam olhar para os processos que generificam os seres humanos para desmontar a sua artificialidade social e cultural. Isso quer dizer que é preciso reconhecer o gênero enquanto categoria de saber/poder que funda a vida, as relações sociais/políticas, jurídicas e econômicas. Nessas autoras, então, apesar das diferenças de produção, reside um encaminhar para o refinamento do conceito de gênero para uma teoria movente; que dá atenção à multiplicidade e às políticas da diferença para além dos binarismos.

No entanto, os usos dessas reflexões nas pesquisas em comunicação em questão nem sempre corresponde a essa constituição epistemológica. Sendo utilizadas, na maioria dos casos, para a definição de um conceito de gênero nos trabalhos. As autoras fazem o papel, quase que exclusivo, de locutoras conceituais para a formulação de capítulos teóricos. Em linhas gerais, suas reflexões não estão somadas às questões metodológicas e até mesmo epistemológicas, na configuração de um olhar para o universo empírico das pesquisas. Com alguns casos divergentes, elas são apropriadas com certa descontinuidade e fragmentação na interpretação dos dados e, até mesmo, na análise dos resultados. Isso demonstra que há uma intenção teórico-conceitual, muitas vezes sofisticada, que não corresponde à pormenorização e reflexão dos dados de pesquisa, dados esses que, geralmente, são correspondentes de um universo da comunicação, seja ele midiático, institucional ou interpessoal porque estão relacionados aos objetos de pesquisa problematizados.

Esses usos podem inferir a certos problemas, principalmente ligados ao desvio do conceito de gênero como categoria analítica no interior de lutas contra-opressoras. Autoras feministas como Heilborn (1992)HEILBORN, M. L. “Usos e Abusos da Categoria de Gênero” In: HOLLANDA, Heloísa Buarque (org.). Y Nosotras latinoamericanas? Estudos sobre Gênero e raça”. São Paulo, Fundação Memorial da América Latina, 1992, p. 39-44., Costa (1998)COSTA, C. L. O Tráfico do gênero. Cadernos Pagu, v. 11, p. 127-140, 1998., Moraes (1998)MORAES, M. L. Usos e limites da categoria gênero. Cadernos Pagu, v. 11, p. 99-105, 1998. e Piscitelli (2002)PISCITELLI, A. Recriando a (categoria) mulher?. In: ALGRANTI, L. (org.). A prática feminista e o conceito de gênero. Campinas: IFCH-Unicamp, 2002. vêm constituindo, desde os anos 1990, importantes críticas nesse sentido em território nacional. Elas refletem, sobretudo, a incorporação despolitizada da categoria de gênero, em um terreno neutro de reflexões que abusa das substituições irrefletidas e apressadas do termo gênero como mulher ou homem:

A categoria de gênero não deve ser acionada como um substituto de referência para mulher ou homem. Seu uso designa, ou deveria fazê-lo, a dimensão inerente de uma escolha cultural e de conteúdo relacional. Por outro lado, ele traz embutida a articulação desse código que se apropria da diferença sexual tematizando-a em masculino e feminino com outros níveis de significação do universo

(HEILBORN, 1992HEILBORN, M. L. “Usos e Abusos da Categoria de Gênero” In: HOLLANDA, Heloísa Buarque (org.). Y Nosotras latinoamericanas? Estudos sobre Gênero e raça”. São Paulo, Fundação Memorial da América Latina, 1992, p. 39-44., p. 5).

Nesse sentido, se a categoria de gênero não está acionada como um marcador de diferenças culturais no interior de uma crítica às convenções que constroem homens como masculinos e mulheres como femininas, ela não designa um conhecimento crítico sobre a cultura, mas indica simplesmente uma terminologia de caráter descritivo. Para Moraes (1998)MORAES, M. L. Usos e limites da categoria gênero. Cadernos Pagu, v. 11, p. 99-105, 1998., a ideia por detrás dessas substituições corrobora com o efeito do pensamento binário, tornando a categoria de gênero como uma terminologia científica academicamente correta. Em um exemplo interessante, Moraes cita a apropriação do termo gênero pelo sociólogo Anthony Giddens no seu livro Sociology: a brief but critical introduction, onde no capítulo 5, The family and Gender, “o autor se refere o tempo todo a homens e mulheres sem sequer se dar ao trabalho de explicar o que entende por gênero” (MORAES, 1998MORAES, M. L. Usos e limites da categoria gênero. Cadernos Pagu, v. 11, p. 99-105, 1998., p. 102).

Essas marcas de substituição acontecem em diversos níveis, e, em certa medida, acabam por naturalizar o termo gênero como um correspondente identitário essencialista. Nas pesquisas em comunicação, isso é recorrente em alguns trabalhos que buscam pesquisar a representação da feminilidade e do feminino, assim em termos singulares, nos quais esses mesmos termos são vistos a priori como gênero, quando na realidade são, de forma limitada, um espectro isolado de uma constituição generificada. Outro exemplo interessante desse tipo de uso é que cerca de 13,9% das pesquisas de gênero realizadas nos PPGs em comunicação entre 2010 e 2015, não apresentou nenhuma referência aos estudos de gênero, mesmo utilizando-se recorrentemente dessa expressão ou apontando um recorte de gênero na condução da pesquisa. Ou seja, são trabalhos que consideraram estudar questões de gênero, mas omitem seu tensionamento conceitual em detrimento de outras categorias. Nesses casos, mesmo que não conscientemente, persiste-se em uma ideia de naturalização da categoria de gênero, que passa a ser utilizado como dado universal fundado, principalmente, em uma distinção biológica entre homens e mulheres.

Por essa via, as pesquisas que não se preocupam em conceituar as relações de gênero em seus empreendimentos desconsideram completamente a produção intelectual deste campo de estudos que, desde a década de 1970, contribui, justamente, para desmontar a operação assimétrica e universalizante das relações de gênero e sexualidade.

Em meio ao reconhecimento das possibilidades contra hegemônicas do que reconhecemos enquanto corpo, sexo e gênero, torna-se importante identificar o poder de alastramento e reprodução das instituições midiáticas na construção de saberes sobre as práticas que engendram a generificação de nossos corpos. Nesse sentido, é pertinente que nossa área de estudos se empenhe em fugir das dimensões essencialistas que decretam a feminilidade e a masculinidade como categorias fixas e acabadas. Principalmente quando insistimos em falar de identidades e de representações, é preciso se ater no caráter processual, dinâmico e interseccional da conduta humana, caso contrário, recaímos no problema da fixação universal das categorias.

Isso porque refletir o gênero como categoria analítica, implica em tomá-lo como um saber que não se limita às referências biológicas, mas a práticas e relações sociais de desigualdade. O conceito de gênero quando tomado por sua concepção epistemológica abarca a organização da vida social para além dos corpos, implicando um olhar evidente às relações de poder que generificam e separam todas as práticas sociais (BONETTI, 2012BONETTI, A. L. Gênero, poder e feminismos: as arapiracas pernambucanas e os sentidos de gênero da política feminista. labrys, études féministes/estudos feministas, v. 1, p. 1-16, 2012.).

Em outro sentido, essa crítica pode ir além do uso apriorístico da categoria de gênero nas pesquisas, mas pensar quais relações nós estabelecemos entre as nossas próprias investigações. Nesse caso, é possível apontar certa omissão de cunho teórico-metodológico operada, principalmente, por dois fatores: 1) a falta de uma produção contínua na área, como já demonstraram Escosteguy e Messa (2008)MESSA, M. R. Os Estudos Feministas de Mídia: uma trajetória anglo-americana In: ESCOSTEGUY, A. C. (org.). Comunicação e gênero: a aventura da pesquisa. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2008. e John e Costa (2014)JOHN, V.; COSTA, F. Mulheres, identidade de gênero e sexualidade: Problemáticas e desafios a partir do recorte de sexo. In: JACKS, N. (org.). Meios e audiências 2: A consolidação dos estudos de recepção no Brasil. Porto Alegre: Sulina, 2014., e também 2) a falta de leitura e apropriação das pesquisas que já foram produzidas no desenvolvimento de novas investigações. É como se sofrêssemos de uma síndrome de “cachorro vira lata” no interior dos quadros acadêmicos das ciências sociais e humanas. As autoras mais referenciadas não estabelecem em seus estudos relações com objetos e temáticas da comunicação, configurando suas reflexões a partir de olhares disciplinares próprios, como a filosofia, a história, a educação, a antropologia e a sociologia. No entanto, em virtude da própria interdisciplinaridade dos campos de gênero e comunicação, a busca por fontes exógenas não é, de fato, um obstáculo para o desenvolvimento de tensionamentos teóricos mais profícuos. Mas, o problema evidente é que, como campo científico, nós pouco nos referenciamos, dando predileção conceitual e metodológica para outras áreas em nossos quadros teóricos. Isso nos traz uma desvantagem, pois não avançamos nas problemáticas que nós mesmos formulamos. Além disso, essa omissão faz com que as pesquisas se tornem reflexões isoladas, mesmo quando há entre elas objetivos altamente similares.

Há, ainda, um apagamento de certas tradições de pesquisas de mídia, comunicação e gênero que deve ser levado em consideração. Escosteguy e Messa (2008)MESSA, M. R. Os Estudos Feministas de Mídia: uma trajetória anglo-americana In: ESCOSTEGUY, A. C. (org.). Comunicação e gênero: a aventura da pesquisa. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2008. já demonstraram a articulação histórica que os estudos de mídia possuem com as teorias feministas desde a década de 1970 junto às pesquisas desenvolvidas no CCCS (Center for Contemporary Cultural Studies), na Inglaterra. Essas reflexões têm seu compasso com a configuração do Womens Group em 1974 e com a publicação da edição Women Take Issue. Esse volume de trabalhos reuniu resultados e experiências de pesquisa de autoras como Angela McRobbie, Charlotte Brunsdon, Dorothy Hobson, Janice Winship, Christine Geragthy, Charlotte Brunsdon entre outras, revelando uma primeira tentativa de produção intelectual feminista com envergadura acadêmica preocupada com os meios de comunicação (ESCOSTEGUY, 2001ESCOSTEGUY, A. C. Cartografias dos estudos culturais - uma versão latino-americana. Belo Horizonte: Autentica, 2001., SHULMAN, 2004SCHULMAN, N. O Centre for Contemporary Cultural Studies da Universidade de Birmingham: uma história intelectual. In: SILVA, T. O que é, afinal, estudos culturais? Belo Horizonte: Autêntica, 2004.). Os ensaios apresentados no volume lidam, em grande medida, com as mulheres de classe operária e encaram, sobretudo, as ideologias que comportam as relações de produção na divisão sexual do trabalho e na naturalização das assimetrias entre os gêneros (BRUNSDON, 1978BRUMDON, C. It is well known that by nature women are inclined to be rather personal. Women take issue. London: Hutchison, 1978.).

As autoras ainda demonstram a contínua produção acadêmica que se estabelece nas décadas de 1980 e 1990, apontando para a reconfiguração do próprio feminismo como prática acadêmica institucionalizada nas universidades ao redor do mundo19 19 Messa (2008) aponta com detalhes essa produção elencando os principais trabalhos: Janice Winship, Sexuality for Sale (1980); Angela McRobbie, An Ideology of Adolescent Femininity (1982), Feminism and Youth Culture: from Jackie to Just Seventeen (1991) e Postmodernism and Popular Culture (1994); Dorothy Hobson, Crossroads: the Drama of a Soap Opera (1982); Annette Kuhn, Women’s genres (1984); Ien Ang, Watching Dallas: Soap Opera and Melodramatic Imagination; Carol Lopate e Tânia Modleski, Michèle Mattelart, Women and the Cultural Industries (1982) e Women, Media and Crisis: femininity and disorder (1986); Christine Geraghty (1990, 1995), Women and Soap Opera (1990) e Feminism and media consumption (1995); Andrea Press, Class, gender and the female viewer (1992); Charlotte Brundson, Crossroads: notes on soap opera (1981), Women watching television (1986) e Feminism and Soap Opera (1988). . As análises produzidas no período voltam-se particularmente para a representação do universo feminino no contexto da indústria cultural, refletindo sobre as audiências e os textos das mídias por meio de metodologias abertas e de cunho interpretativo, como as etnografias. É possível notar, assim, que as teorias da comunicação, em especial aquelas produzidas pelos estudos culturais, não foram omissas aos estudos de gênero. O feminismo e suas problematizações constituíram, inclusive, novos paradigmas para pensar a crítica dos meios de comunicação de massa e suas interfaces com as relações de gênero, de classe social e com as identidades culturais (TOMAZETTI; MARCONI, 2017TOMAZETTI, T. P.; MARCONI, D. Do cultural ao queer: a contribuição dos Estudos Culturais para pensar as relações de gênero nos estudos em comunicação. Razón y Palabra, v. 21, n. 97, 2017.).

No entanto, nossa elaboração teórica fica à mercê de uma ainda escassa produção estrangeira traduzida. Por outro lado, a negligência de uma produção nacional também deve ser considerada. No Brasil, existem grupos, pesquisadores e publicações que se dedicam exclusivamente ao tema, como as revistas Estudos Feministas e Cadernos Pagu, além de pesquisas de pós-graduação em diversas áreas, como os PPGs em Educação e Antropologia da UFRGS; o PPG Interdisciplinar em Ciências Humanas da UFSC; os PPGs em Ciências Sociais e Antropologia da Unicamp, para citar apenas alguns. Na prática, essas produções estão sendo pouco exploradas em nossas investigações, o que não deveria ocorrer, principalmente pelo fato delas se realizarem em contexto nacional, refletindo o próprio universo sociocultural de nossas pesquisas.

À guisa de conclusão

Por fim, há uma especificidade em nossa produção que diz muito a respeito de nossos usos e abusos do conceito de gênero. Se os estudos de gênero chegaram no Brasil nos anos 1980, para nós, do campo da Comunicação, eles ainda são novos e estão chegando com pouca aderência e esporádica produção desde a metade da década de 1990. Podemos nos considerar um campo retardatário? Acredito que estamos em processo de aprendizagem e justamente essa morosidade pode nos permitir flutuar em lugares ainda não explorados e potencializar nossos empenhos de pesquisa em um devir epistemológico. Muito embora nossos saberes ainda estão a mercê das fontes cânones – como Butler e Scott – com a ampla utilização de textos traduzidos da década de 1980 e 1990. Por essa via, de fato, ainda não avançamos com vigor analítico nessas problemáticas conceituais, que se formulam na tensão entre a construção de nossos objetos de reflexão e da apropriação teórico metodológica emprestada de outros contextos. Como sugerem essas autoras, nosso desafio consiste em fazer explodir a noção de rigidez do caráter identitário das representações, em busca de descobrir a natureza do debate ou da repressão que leva à representação binária do gênero para uma aparência atemporal.

Esse tipo de análise, quando produzida, deve incluir uma concepção de política, bem como uma referência às instituições e à organização social das quais emanam as relações de poder. Acredito, assim, para lembrar Scott (1995)SCOTT, J. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade, v. 20, n. 2,1995, p. 71-99., que devemos mudar alguns de nossos hábitos de trabalho. Devemos examinar atentamente nossos métodos de análise. Em vez de buscar origens únicas, temos que pensar em relações de poder e assimetria como estando tão interconectadas aos problemas de gênero que não podem ser separadas. É evidente que isolamos certos problemas para serem estudados e que estes problemas constituem pontos de partida. Porém, devemos nos perguntar mais seguidamente como as coisas acontecem para descobrir por que elas acontecem.

Talvez devêssemos retornar ao princípio que sugere essa crítica e parar com os usos e abusos do conceito de gênero. Precisamos desafiar a burocratização das teorias e dos conceitos aí articulados, pois nenhum deles é cânone, nenhum deles tem raiz epistêmica fechada, não há certezas nessas linhas teóricas, mas dúvidas, tensionamentos e fricções. Talvez devêssemos apreender o melhor dessas leituras: pesquisar essas temáticas têm muito mais haver com o ouvir, com o se relacionar. Torna-se, assim, cabível sair de nossas salas e de nossas telas, fazer nossas teses e dissertações com a sociedade. Talvez nosso lugar de iniciantes seja o melhor lugar para se estar nesses tempos, pois estamos abertos para aprender.

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    Disponível em: http://www.agenciapatriciagalvao.org.br/dossie/o-dossie/. Acesso em: 25 jun. 2018.
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    Disponível em: http://redetransbrasil.org/dossiecirc2016.html. Acesso em: 26 jun. 2018.
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    Considera-se especial atenção para as pesquisas defendidas nos primeiros 14 anos de pós-graduação em comunicação (1972-1986), pois os dados que correspondem a catalogação dessas investigações são escassos e de difícil acesso, portanto, algumas investigações poderão não constar nessa análise.
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    Não obtive acesso a integralidade de algumas pesquisas, principalmente com as investigações das décadas de 1970, 1980 e início dos anos 1990. De fato, as teses e dissertações não estão disponíveis em sites ou bibliotecas online.
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    Considerou-se, primeiramente, leitura dos resumos e das introduções. A partir disso, as investigações foram lidas em sua totalidade de acordo com a sua disponibilidade integral. É importante, contudo, ponderar algumas distinções nessas leituras. Como as investigações produzidas entre as décadas de 1970-1990 não estão, em sua maioria, disponíveis em sua completude, elas foram analisadas a partir de seus resumos. Já as investigações produzidas entre 2000 e 2015 foram analisadas integralmente.
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    Segundo o documento da área na Capes (2018) possuímos 50 cursos de pós-graduação credenciados (24 doutorados e 26 mestrados).
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    Link para acessar as teses e dissertações premiadas a partir de 2011: http://www.compos.org.br/premios.php. Acesso em: 27 jun. 2018.
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    A dissertação: Documentário queer no Sul do Brasil (2000-2014): narrativas contrassexuais e contradisciplinares nas representações das personagens LGBT, de Dieison Marconi Pereira, produzida no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
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    As pesquisas sobre mulheres são aquelas que trabalham com a categoria mulheres como espectro identitário, sem remeter especificamente ao feminismo ou às relações de gênero. Já, as pesquisas de viés feministas trabalham com a categoria mulheres no interior da teoria feminista, ora ligada ao vetor político das questões de gênero, ora situada na desconstrução das relações de poder entre os sexos.
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    São as pesquisas que, no geral, trabalham com as diferenças de gênero e sexualidade de lésbicas, gays, transexuais, bissexuais entre outros. A diferença entre ela está na apropriação das teorias: as investigações LGBT, trabalham com um viés de assimilação ou a incorporação identitária das diversidades de sexo/gênero, já as investigações queer compreendem o viés crítico das normalizações de sexo/gênero no entorno desses processos identitários.
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    Com o artigo Gênero para um dicionário Marxista, publicado na revista Cadernos Pagu em 2004.
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    Com o artigo A tecnologia de gênero, publicado em coletânea organizada por Heloisa Buarque de Holanda em 1994.
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    Principalmente a partir do livro Gênero, patriarcado, violência, publicado em 2004.
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    Principalmente a partir do livro A dominação masculina, publicado no Brasil em 1998.
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    Principalmente a partir da publicação de História da Sexualidade I em 1976.
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    Como apontou Rubin (1993)RUBIN, G. O Tráfico de mulheres: notas sobre economia política do sexo. Edição SOS Corpo, 1993..
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    Messa (2008)MESSA, M. R. Os Estudos Feministas de Mídia: uma trajetória anglo-americana In: ESCOSTEGUY, A. C. (org.). Comunicação e gênero: a aventura da pesquisa. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2008. aponta com detalhes essa produção elencando os principais trabalhos: Janice Winship, Sexuality for Sale (1980); Angela McRobbie, An Ideology of Adolescent Femininity (1982), Feminism and Youth Culture: from Jackie to Just Seventeen (1991) e Postmodernism and Popular Culture (1994); Dorothy Hobson, Crossroads: the Drama of a Soap Opera (1982); Annette Kuhn, Women’s genres (1984); Ien Ang, Watching Dallas: Soap Opera and Melodramatic Imagination; Carol Lopate e Tânia Modleski, Michèle Mattelart, Women and the Cultural Industries (1982) e Women, Media and Crisis: femininity and disorder (1986); Christine Geraghty (1990, 1995), Women and Soap Opera (1990) e Feminism and media consumption (1995); Andrea Press, Class, gender and the female viewer (1992); Charlotte Brundson, Crossroads: notes on soap opera (1981), Women watching television (1986) e Feminism and Soap Opera (1988).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    11 Jul 2019
  • Aceito
    06 Jul 2020
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