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INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL E ÉTICA: UM DIÁLOGO COM LIMA VAZ

ARTIFICIAL INTELLIGENCE AND ETHICS: A DIALOGUE WITH LIMA VAZ

RESUMO

Os feitos tecnológicos deste início de século levaram a humanidade a mitificar os processos maquínicos de alta performance funcional, a ponto de considerar programas computacionais como entidades inteligentes, as quais têm ampla aplicação em todos os setores da sociedade, como execução de atividades antes reservadas exclusivamente a humanos, na medida em que as realizam de forma infinitamente mais veloz, precisa e eficiente. A Ciência da Computação, associada à Robótica, tem obtido resultados estarrecedores na projeção (design) incorporada de máquinas muito similares aos humanos (androides e ginoides), destinados a executar tarefas ainda mais ambiciosas, como a de se relacionar afetivamente com humanos. Entre esses feitos, o que chama especial atenção é a possível criação de máquinas moralmente mais elaboradas que os próprios humanos. Essa ambição toca diretamente os estatutos da Ética filosófica, desde a sua fundação socrática originária como ciência do ethos e, entre os filósofos que mais se dedicaram a refletir sobre os desafios e dilemas éticos do século XX, figura Henrique Cláudio de Lima Vaz, brasileiro de produção acadêmica e envergadura intelectual invulgares. Deixando um legado monumental à filosofia brasileira, Lima Vaz ocupou-se de diversificadas temáticas do nosso tempo, e suas reflexões seguem tão atuais quanto desafiadoras, atraindo intelectos, que se pretendam rigorosos, a revisitar sua vasta obra e buscar nela inspiração aquilatada para enfrentar questões urgentes dessa nova era que se anuncia. Uma dessas questões é a relação aqui apresentada entre os feitos da Inteligência Artificial e a referência vaziana ao processo mutacional ora vivido. Este artigo parte, portanto, da obra de Lima Vaz para apresentar alguns questionamentos éticos sobre as experiências inusitadas vividas hoje no horizonte de uma cultura altamente tecnicizada, as quais sujeitam o humano ao império de uma suposta superioridade maquínica, o que acaba por impactar nosso universo simbólico, colocando sob suspeita alguns atributos intocáveis da essência espiritual que nos constitui, como a noção de consciência, abertura à transcendência irredutível aos feitos mais eloquentes de qualquer evolução técnica.

Palavras-chave:
inteligência artificial; civilização; ética; direito

ABSTRACT

The technological achievements from the beginning of the century have led humanity to mythify the processes of high functional performance of machines, to the point of considering computer programs as intelligent entities, which have wide application in all sectors of society as the execution of activities previously reserved exclusively for humans, which they perform infinitely faster, more precise and more efficient than humans. Computer Science, associated with Robotics, has obtained amazing results in design of embodied machines very similar to humans (androids and ginoids), destined to perform with affectively with humans. Among these achievements, the one that draws special attention is the possible creation of machines morally more elaborate than humans themselves. This ambition touches directly the statutes of philosophical Ethics, since its original Socratic foundation as a science of ethos. Among the philosophers most dedicated to reflecting on the ethical dilemmas of the 20th century, we find Henrique Cláudio de Lima Vaz, a Brazilian philosopher of rare intellectual stature and enviable academic production. Lima Vaz devoted his reflections to several themes of our time, and his thought continues to inspire current reflections on issues of this century. One of these questions is the relationship presented here between the achievements of Artificial Intelligence and what he calls civilizational mutation, a new radical change in the civilizational flow of human experiences. This article departs, therefore, from the Lima Vaz’s thought to present some ethical questions about the unexpected experiences lived today in the horizon of a technicized culture, which subject the human to the empire of a supposed machinic superiority, which ends up impacting our symbolic universe, putting under suspicion some untouchable attributes of the spiritual essence that constitutes us, such as the notion of consciousness, openness to transcendence irreducible to the most eloquent achievements of any technical evolution.

Keywords:
artificial intelligence; civilisation; ethics; law

Introdução e contextualização temática

Com uma trajetória que marcou a história da Filosofia brasileira, sendo o precursor decisivo na consolidação do hegelianismo em nossa tradição filosófica, o pensamento de Henrique Cláudio de Lima Vaz é fonte obrigatória para todo aquele que se lança ao desafio de pensar filosoficamente o nosso tempo, eis que ele nos oferece uma obra vastíssima e muito atual, que vai desde as suas primeiras discussões sobre Ontologia e História, passando pelo seu tratado de Antropologia Filosófica, pelos Escritos de Filosofia sobre Ética, Cultura, Política, até sua última publicação em vida sobre Experiência Mística e Filosofia na Tradição Ocidental. Sem mencionar a quantidade expressiva de artigos por ele publicados sobre as mais diversas temáticas, inclusive sobre a conjuntura política do país em momentos bastante refratários a perfis intelectuais como o dele, e, ainda, a não menos extensa produção bibliográfica, nas diversas modalidades (dissertações, teses, livros, resenhas e artigos – os quais são recorrentemente publicados sob inspiração do seu vigoroso pensamento).

Quem teve o privilégio de ser aluno de Lima Vaz, seja nos famosos seminários sobre Hegel, ofertados regularmente entre as décadas de 1970 e 1980 na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais – FAFICH/UFMG (cujo conteúdo foi reunido em duas extensas obras pela Editora Loyola em 2020), seja frequentando seus cursos de Ética no antigo Instituto Santo Inácio de Loyola – ISI (hoje Faculdade Jesuíta de Belo Horizonte) – na década de 1990 e início dos anos 2000, sabe da potência com a qual seu pensamento nos arrebata rumo aos mais elevados níveis de reflexão metafísica, em face do vigor com o qual disseca conceitos complexos da história da Filosofia, além de municiar o pesquisador de fontes pouco vistas na literatura filosófica brasileira, sendo suas publicações caracterizadas por um rigor conceptual e uma erudição literária peculiarmente diferenciadas na história das pesquisas filosóficas na América Latina.

É nesse pórtico da história da Filosofia brasileira que orgulha as Minas Gerais (Lima Vaz é mineiro, nascido em Outro Preto, e o centenário de seu nascimento foi festejado por várias instituições acadêmicas no ano de 2021) que buscamos inspiração para discutir o dilema lançado neste ensaio, a encruzilhada milenar na qual nos situamos hoje, a qual aponta para dois caminhos incertos: o que nos sugestiona a um hedonismo sem medidas pela fruição irrefletida e bulímica de bens tecnológicos à disposição; o que nos exorta a uma profunda e responsável reflexão sobre os rumos da nossa civilização, a qual, pelo progresso das tecnociências, vem sofrendo uma mutação (conforme sugere Lima Vaz) nas nossas formas de vida, jamais experimentada antes, nem com o advento da máquina a vapor, nem com o da eletricidade. O diferencial da conquista tecnológica que forja novas experiências do humano com objetos técnicos (expressão adotada por Gilbert Simondon) neste início de século, tal como desenvolvido na tese de titularidade defendida pela autora deste artigo junto à FDUFMG, sob o título “Inteligência Artificial no horizonte da Filosofia da Tecnologia: técnica, ética e direito na era cybernética”, implica numa nova forma antropoformizante da tradicional relação homem-máquina. Essa relação, tal como experimentada neste início de século, destoa das anteriores qualitativamente, haja vista que arquitetamos, enfim, a máquina “de pensar”: o computador. Há neste século uma tendência sensivelmente maior de antropoformizar máquinas computacionais de alta performance precisamente por imitarem, não atividades do corpo humano (como o objeto técnico escavadeira, que imita o movimento do antebraço e do punho para remover terra com maior precisão e eficiência que as mãos humanas, p. ex.), mas as faculdades da inteligência humana, transgredindo nossa tradição filosófica com o esvaecimento de um dos pilares da civilização ocidental, que manteve a unidade espiritual da nossa trajetória civilizatória até aqui: a noção de natureza humana. Essas questões são trazidas à discussão na Ética de Lima Vaz (ética vaziana), um autêntico tratado de Ética filosófica disposto em duas obras de maturidade do filósofo, as quais apresentam, segundo suas próprias palavras, o programa de uma Metafísica do Bem. São elas: Escritos de Filosofia IV: Introdução à Ética Filosófica 1 e Escritos de Filosofia V: Introdução à Ética Filosófica 2, publicadas respectivamente em 1999 e 2000.

A redação das duas obras foi guiada, conforme explica Lima Vaz, pela intenção de “tentar uma reflexão histórico-sistemática sobre os temas e problemas fundamentais da Ética filosófica” (Lima Vaz, 1999, p. 9LIMA VAZ, H. C. “Escritos de Filosofia IV: Introdução à Ética Filosófica 1”. São Paulo: Edições Loyola, 1999.). No prefácio da primeira e na conclusão da segunda, em passagens que dialogam entre si, Lima Vaz registra sua maior preocupação à época, a ponto de iniciar e concluir seu tratado de Ética com ela: o fenômeno da mutação civilizacional em curso na nossa civilização. Nessas passagens, ele traça um cenário prospectivo segundo o qual os feitos das tecnociências atingiriam um nível de mudança sem precedentes na história da civilização humana, pelos impactos disruptivos em nossa forma de existência, o que não seria mais uma entre tantas mudanças experimentadas desde que o homo sapiens emerge como criatura única no universo, razão por que Lima Vaz a considera uma mutação sem precedentes civilizacionais.

O propósito deste texto é, guiando-se pelo pensamento vaziano, trazer um recorte relevante entre as possíveis leituras desse fenômeno mutacional: o problema da atribuição de qualificativos até então exclusivamente humanos a máquinas de funcionalidade superpotente, as quais passam a ser reconhecidas, em virtude dessa performance meramente técnica, como entidades inteligentes ou agentes artificiais autônomos (inclusive morais, como veremos). Provavelmente, em toda a trajetória da experiência técnica humana, ou da tecnicidade – como prefere Gilbert Simondon (1989)SIMONDON, G. « Du Mode d’Existence des Objets Techniques ». Paris: Editions Aubier, 1989. – jamais houve um desafio dessa magnitude, cujo enfrentamento conclama os estatutos tradicionais da Ética filosófica e, igualmente, as propostas da Ética aplicada e da Metaética.

Essa exímia manifestação da tecnicidade (Technischkeit) na trajetória humana exige, portanto, o diálogo com a sua intrínseca eticidade (Sittlichkeit – Hegel), razão por que partimos da Ética vaziana para pensar esse fenômeno a partir de suas significativas contribuições filosóficas sobre a praxis humana, desde a empreitada socrática de fundação de uma ciência do ethos, tal como referenciado por Lima Vaz. Causa especial estranhamento intelectual e temor moral os feitos tecnológicos no campo da projeção (design) de máquinas ditas inteligentes, o que vem sendo explorado à exaustão pelos mass media e seduzindo consumidores em todos os loci da World Wide Web, muito especialmente por se conjecturar a superação intelectiva e emotiva das competências cognitivas humanas por robôs em formato incorporado humanoide (tarefa da Robótica). Um feito exemplar, nesse sentido, é a venda de assistentes artificiais pessoais para atuarem como babás, cuidadores, mediadores empresariais e companhias íntimas, e.g., a ginoide (fembot) Olivia, o robô sexual de luxo mais avançado da linha RealDoll, que foi oferecida ao mercado em 2021 pela empresa americana Abyss Creations. Criadas a partir de um software de Inteligência Artificial (chamado X-Mode) que imita a vida em corpos inanimados de produtos incorporados em silicone superflexível, várias ginoides podem ser adquiridas em formatos customizáveis, por algo em torno de 30 mil reais, no site realdoll. com. Incrivelmente reais, chegam a chocar pelo nível de perfeição estética que encarnam (incorporam, na verdade), como nenhum humano encarnaria, o que nos leva a refletir sobre a banalização do corpo e das relações de afetividade humanas.

Mas a empreitada mais ambiciosa da área de Inteligência Artificial é, no entanto, a arquitetação de Agentes Morais dotados de consciência artificial. Uma afirmação dessa natureza (sobre a possibilidade de criação artificial de consciência) parece não merecer atenção de uma Ética filosófica comprometida com rigores conceptuais, supondo-se que não há qualquer dúvida sobre a impossibilidade de se reproduzir a consciência, haja vista a transcendência da natureza humana. Mas esta categoria, a natureza humana, nunca fora tão banalizada (e até atacada) como nas últimas décadas, especialmente pelos feitos nas áreas da Neurociência e a associação dela aos progressos da Cybernética a partir da década de 1960 pelas descobertas do matemático Norbert Wiener, o que trouxe uma leitura computacional diferenciada na programação de artefatos maquínicos, possibilitando a fundação da escola conexionista da Inteligência Artificial – IA (Boden, 2020, pp. 33-34BODEN, M. A. “Inteligência Artificial: Uma Brevíssima Introdução”. Tradução de F. Santos. São Paulo: Editora Unesp, 2020.), um avanço sem precedentes na história da tecnologia, como será visto.

Quando pensamos nessa aparente teratologia conceptual, qual seja, a de que máquinas possam ser consideradas seres conscientes, remetemo-nos à advertência, já anunciada acima, sobre os processos que integram esse momento de cisão tão radical em nossa história, a qual Lima Vaz considera verdadeira mutação. É no interior do sistema ético vaziano que buscaremos pistas valiosas para propormos algumas reflexões sobre as questões relativas aos desdobramentos da relação entre a produção tecnológica atual (e seus feitos) e a praxis ética que deve permeá-la enquanto atividade humana que é e, como tal, espiritualmente intocável, seja enquanto atividade poiética, seja enquanto atividade finalística, nas relações estabelecidas com os objetos que produz, particularmente os atuais artefatos inteligentes.

1 Mutação da civilização ocidental em curso

Há mais de duas décadas, nas publicações referidas de 1999 e 2000, Henrique Cláudio de Lima Vaz apontou o maior desafio a ser enfrentado pela civilização ocidental, ao cumprir seu terceiro milênio de história, “se concordarmos em datar o início de nossa civilização no século X a.C., com a formação do reino davídico e os começos da tradição literária bíblica de um lado, e de outro, com os primeiros passos da Grécia arcaica” (Lima Vaz, 1999, p. 7LIMA VAZ, H. C. “Escritos de Filosofia IV: Introdução à Ética Filosófica 1”. São Paulo: Edições Loyola, 1999.): uma monumental produção de bens culturais que liberta cada vez mais o humano de inóspitos condicionamentos naturais, ao mesmo tempo em que há um lastimável declínio dos valores espirituais que definem essa mesma humanidade. No prefácio dos Escritos de Filosofia IV e na conclusão dos Escritos de Filosofia V, como já mencionado, em passagens que dialogam entre si, Lima Vaz assevera que o desafio da nossa era é superar um paradoxo civilizacional sem precedentes, qual seja, ao mesmo tempo que agregamos à nossa existência “uma formidável e crescente produção de bens materiais e simbólicos que ocupam o espaço humano, atestando a passagem sempre mais rápida do mundo da natureza para o mundo da cultura”, assistimos, contraditoriamente, a um “progressivo esmaecer em seu horizonte simbólico das constelações de valores espirituais que orientaram até o presente sua marcha através dos azares do tempo” (Cf. Lima Vaz, 1999, p. 7LIMA VAZ, H. C. “Escritos de Filosofia IV: Introdução à Ética Filosófica 1”. São Paulo: Edições Loyola, 1999.), “violando uma lei fundamental do processo de criação cultural: a ordenação normativa de nossa atividade criadora em termos de bens e fins” que nos (auto)realizam (Lima Vaz, 1999, p. 8LIMA VAZ, H. C. “Escritos de Filosofia IV: Introdução à Ética Filosófica 1”. São Paulo: Edições Loyola, 1999.).

Como dito por ele em certa ocasião, nossa trajetória nos levou a uma sociedade rica em meios e pobre em fins, arrebatando-nos rumo a um “relativismo universal e um hedonismo sem limites”. Sintomaticamente os estudos sobre Ética são os que mais crescem na literatura Filosófica e das Ciências Humanas, o que se estende desde a Metaética e a Ética fundamental até a Ética aplicada, e tal ocorre por “uma das mais inequívocas e significativas reações a uma crise espiritual sem precedentes” em nossa civilização (Cf. Lima Vaz, 1999, p. 7LIMA VAZ, H. C. “Escritos de Filosofia IV: Introdução à Ética Filosófica 1”. São Paulo: Edições Loyola, 1999.). Tais produções parecem representar “o sobressalto de nossa natureza espiritual em face de ameaças que parecem pôr em risco a própria sobrevivência das razões de viver e dos valores de vida lentamente e penosamente descobertos e afirmados ao longo desses milênios de nossa história” (Cf. Lima Vaz, 1999, p. 8LIMA VAZ, H. C. “Escritos de Filosofia IV: Introdução à Ética Filosófica 1”. São Paulo: Edições Loyola, 1999.). A produção bibliográfica em torno de temas éticos, a polissemia do substantivo Ética e do adjetivo ético em todos os campos da linguagem contemporânea, indo das áreas da Filosofia até os meios de comunicação em massa, cunhou a expressão “século da Ética” para designar o século XXI. A expressão aponta:

de um lado, o vertiginoso crescimento das tecnociências, em particular da biotecnologia, e, de outro, a não menos rápida e abrangente dissolução do tecido social tradicional, o qual vem sendo substituído por novas e inéditas formas de convivência humana e de organização da sociedade. Os dois fenômenos estão entrelaçados e a descrevê-los e avaliá-los já se dedica uma vasta literatura, de resto muito desigual. (Lima Vaz, 2000, p. 240LIMA VAZ, H. C. “Escritos de Filosofia V: Introdução à Ética Filosófica 2”. São Paulo: Edições Loyola, 2000.)

Também chamado “século da Biologia”, nele se descortina uma marca dessa nova era: um processo de mutação (palavra tomada por empréstimo da Biologia propositalmente por Lima Vaz) muito mais profundo que qualquer mudança vivida pela humanidade até aqui, assinalando o surgimento de uma nova civilização humana (Cf. Lima Vaz, 2000, p. 240LIMA VAZ, H. C. “Escritos de Filosofia V: Introdução à Ética Filosófica 2”. São Paulo: Edições Loyola, 2000.). Nesse contexto inusitado e insólito, o filósofo nos traz algumas questões:

Que sentido terá a vida humana nessa nova civilização? Que valores a guiarão? Que fins o ser humano poderá entrever para o seu caminho histórico? Essas são interrogações de natureza ética que solicitam com urgência alguma forma de resposta no acelerado processo que nos arrasta em direção a terras ignotas de cultura e civilização. (Cf. Lima Vaz, 2000, p. 240LIMA VAZ, H. C. “Escritos de Filosofia V: Introdução à Ética Filosófica 2”. São Paulo: Edições Loyola, 2000.)

Ele identifica três tipos de resposta a tais questões e a outras que a estas se conectam (Lima Vaz, 2000, p. 241LIMA VAZ, H. C. “Escritos de Filosofia V: Introdução à Ética Filosófica 2”. São Paulo: Edições Loyola, 2000.):

  • i) a primeira, que considera estas interrogações um “resíduo anacrônico da civilização que termina”, retirando “validez ao problema ético” e confiando “a conduta da vida humana a técnicas controláveis de comportamento e previsão” (intenção do niilismo ético – se é que este tem alguma intenção);

  • ii) a segunda, que sustenta a corrente mais poderosa do pensamento ético contemporâneo, que tenta “renovar, no contexto dos problemas atuais, as grandes concepções éticas da modernidade”, todas elas fundadas na metafísica da subjetividade, supondo que “os problemas humanos se equacionam e resolvem na imanência da história”;

  • iii) a terceira, à qual Lima Vaz se filia, que remonta às origens da Ética e ao paradigma platônico-aristotélico que conduziu a Ética clássica, redescobrindo nele “o princípio capaz de inspirar respostas adequadas aos problemas éticos futuros que já começam a ser nossos problemas atuais”

Ele inclui nesta terceira linha de possibilidades a sua Ética filosófica, a qual tem por fundamento primeiro a pressuposição de que o ser humano é constituído por uma instância racional trans-histórica e que é, ao mesmo tempo, instância normativa do agir humano na história. Essa instância é o Bem transcendente.

Essa instância permanece como invariante conceptual na variação dos tempos e lugares. Vivida e pensada em diferentes formas históricas, ela assegura a identidade da vida ética como constitutiva da vida propriamente humana onde quer que se manifeste, e deve ser considerada a razão última de possibilidade de formação do ethos das comunidades históricas particulares e da ideia do ethos de uma comunidade política universal, se essa um dia vier a realizar-se. (Cf. Lima Vaz, 2000, p. 241LIMA VAZ, H. C. “Escritos de Filosofia V: Introdução à Ética Filosófica 2”. São Paulo: Edições Loyola, 2000.)

Tendo assumido esse esteio da tradição grega e não admitindo o esvaziamento semântico kantiano da noção de virtude (areté), Lima Vaz parece ser mais um filósofo contemporâneo a reabilitar a Ética das virtudes, tal como Max Scheler e Alasdair MacIntyre, citados por Manoel dos Reis Morais como sendo filósofos paradigmáticos nessa nova empreitada de reabilitação contemporânea dos postulados platônico-aristotélicos para pensar problemas do tempo presente (Morais, 2018, p. 155MORAIS, M. R. “Ética e Direito em Lima Vaz”. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018.). Nesse sentido, importa destacar a originalidade do sistema ético vaziano: trata-se de uma autêntica proposta pedagógica (paideia), uma heurística do Bem transcendente como normatividade que se cumpre historicamente, aqui tomada como itinerário para refletirmos sobre alguns dilemas existenciais desse milênio, marcado por uma hiperprodução técnica sem similar antes de meados do século passado. A Ética vaziana é, segundo nosso sentir, um programa filosófico que visa a uma profunda compreensão da própria existência do mundo e da nossa situação nele, já que ele só tem existência se significado pelo humano em todos os sentidos que o Ser possa se revelar. Eis a razão pela qual arriscaríamos afirmar que o sistema ético de Lima Vaz, sua obra de maturidade, ao contrário dos Escritos de Filosofia anteriores, completa tematicamente e conclusiva conceptualmente, é uma verdadeira Ontologia, reflexo da sua eleição do Bem transcendente como a essência do Ser que para todos os outros seres traz significado, isto é, o ser humano. É dessa obra que partimos para pensar em que medida nos desumanizamos e em que medida a evolução técnica contribuiu para esse processo. O pensamento ético de Henrique Cláudio de Lima Vaz é um farol inequívoco a guiar nossas reflexões sobre alguns fenômenos existenciais que aqui serão apresentados e que denotam uma mutação nos rumos da humanidade, tal como ele prenunciou há mais de duas décadas.

2 Breviário das noções de Inteligência Artificial e Aprendizado Maquínico

A empreitada mais ambiciosa no campo da inteligência artificial atualmente é o agenciamento maquínico (Deleuze, GuattariDELEUZE, G., GATTARI, F. “O Anti-édipo: Capitalismo e Esquizofrenia”. São Paulo: Editora 34, 2011.) de entidades artificiais com competência moral. Numa breve definição, adequada aos propósitos deste pequeno ensaio, Inteligência Artificial é um campo de estudo da Computação Cognitiva, que tem por subcampo o chamado Aprendizado de Máquina ou Aprendizagem Mecânica (machine learning). Só de nos referirmos a esse catálogo terminológico, percebemos uma mudança de sentidos no que se entende por inteligência e liberdade humanas. Este é um dos fenômenos mais impressionantes do processo mutacional que vivemos hoje, tal como apontado por Lima Vaz, qual seja, uma mítica antropoformizante que ronda essas atividades computacionais, em torno da qual se sugere convictamente a atribuição de características humanas ao que não passa de programas computacionais com altíssima capacidade de acumulação e cruzamento de dados dispostos no formato algoritmo, quer dizer, de receitas executáveis para atingir objetivos. O próprio conceito de algoritmo, que nada mais é que um cálculo preciso com variantes delimitadas, vem sendo tomado por essa aura antropoformizante, de modo que passamos a nos referir a esses processos de cálculos, “os” algoritmos, como verdadeiras entidades à espreita para controlar nossas vidas no imenso e complexo sistema Big data.

Evidentemente que “a entidade” por trás dos cálculos é o próprio humano, sendo essa antropoformização maquínica mais uma forma de alienação humana da sua própria essência, portanto, das responsabilidades sobre suas ações, mas em um novo formato plasmado pelos processos tecnológicos hiperpotentes, vale dizer, pela transferência a um suporte concreto. O mito não é uma divindade, um espectro intangível, mas uma máquina (virtual): não é um Deus à imagem e semelhança, mas uma inteligência maquínica decalcada. Cantwell Smith não mede adjetivos para apontar os equívocos que estão entranhados no senso comum sobre os feitos da computação, mostrando, inclusive, as falhas cometidas por programadores, precisamente porque até eles compartilham das crenças fantasiosas sobre o que esses processos computacionais são (Smith, 2019, pp. 40-42SMITH, B. C. “The Promise of Artificial Intelligence: Reckoning and Judgment”. Cambridge: MIT Press, 2019.). Essa mitificação quanto ao poder real dos feitos computacionais chega a ponto de levar alguns cientistas a conjecturarem a possibilidade de construir uma Inteligência Artificial Geral (AGI, na sigla em inglês) que poderia evoluir para uma Inteligência Artificial Sobre-humana (ASI, em inglês), máquina que conseguiria emular nosso cérebro e nossa mente, superando os humanos (Boden, 2020, pp. 38, 199BODEN, M. A. “Inteligência Artificial: Uma Brevíssima Introdução”. Tradução de F. Santos. São Paulo: Editora Unesp, 2020.). Mas essas hipóteses são quimeras, já que desenvolver uma AGI ainda está longe do que o atual estágio das pesquisas computacionais consegue vislumbrar em curto e médio prazos.

Deixando de lado a mítica reinante nessa era de mutações, registramos que os cientistas da computação denominam inteligência artificial a área em que se desenvolvem processos longos, detalhados e enfadonhos de acumulação de dados, que são levados a cabo por centenas de programadores, que há décadas vêm estabelecendo por meio de programas (que ficam memorizados na estrutura computacional) milhares de padrões de passo a passo (algoritmos) com o propósito de obter resultados similares à cognição humana. Esta é caracterizada principalmente pela memória, pelo entendimento e pelo raciocínio, que, no caso, são simulados pelo cruzamento de dados adicionados a computadores potentes, imitando, com velocidade imbatível, os processos de cognição humana.

Complementarmente à noção de inteligência artificial, temos a aprendizagem mecânica ou o aprendizado de máquina, assim denominados os processos computacionais que otimizam a aquisição de informação, exponenciando a execução das tarefas programadas com mais eficiência, refinando habilidades cada vez que se repetem essas tarefas, numa sucessiva e crescente aquisição de melhores padrões computacionais sem intervenção imediata dos programadores humanos (nesse sentido é que a aquisição é considerada “aprendizado”). São, na verdade, programas que atuam sobre programas, como esclarecem Rich e Knight, são “mudanças adaptáveis no sistema, no sentido de que permitem que o sistema, da próxima vez, faça a mesma tarefa ou tarefas tiradas do mesmo grupo com mais eficiência e eficácia” (Rich, Knight, 1993, p. 514RICH, E., KNIGHT, K. “Inteligência Artificial”. Tradução de M. C. S. R. Ratto. Revisão técnica de A. Antunes. São Paulo: Makron Books, 1993.).

Se uma máquina está municiada de memória e de padrões que operacionalizam os dados dessa memória, similarmente ao que ocorre com a memória e o raciocínio humanos (conectando dados e produzindo resultados), diz-se que temos aí uma forma de inteligência, a artificial, e as técnicas desenvolvidas por esse campo da computação decorrem da própria limitação computacional. Como anota Whitby, “em um nível mais básico, o computador é um pateta completamente obediente. Tecnicamente dizemos que ele executa um algoritmo – um padrão de passos simples”, segundo o qual os “cálculos matemáticos podem ser quebrados em passos simples que podem ser executados pelo nosso pateta completamente obediente. De fato, quase todos os cálculos matemáticos podem ser expressos em algoritmos”, de modo que o grande desafio da área de pesquisa Inteligência Artificial é “encontrar as peças que faltam entre um interessante problema real – do tipo daqueles com os quais você tem que lidar – e um algoritmo, ou conjunto de comandos simples que o computador pode executar” (Whitby, 2004, p. 38WHITBY, B. “Inteligência Artificial: um Guia para Iniciantes”. Tradução de C. Blanc. São Paulo: Madras, 2004.). E por que esse sistema funciona tão bem, resolvendo a variedade de demandas da nossa vida, desde a redação deste texto até o guia preciso do GPS quando não fazemos ideia de como chegar a um destino qualquer? Whitby responde-nos: “Um dos motivos principais por que tudo isso funciona tão bem é que a eletrônica é muito rápida e todo o processo demora uma fração de segundo”, isto é, “a estupidez tediosa da maneira como os computadores digitais operam é compensada pela sua tremenda velocidade” (Whitby, 2004, pp. 59, 60WHITBY, B. “Inteligência Artificial: um Guia para Iniciantes”. Tradução de C. Blanc. São Paulo: Madras, 2004.).

As técnicas dessa área computacional, a qual fora inicialmente nomeada “simulação computacional”, passam a ser chamadas de inteligência artificial, por conseguirem, segundo o processo simplificadamente traçado por Whitby, alcançar resultado similar ao da inteligência humana, com um propósito muito bem definido: a produção de resultados a partir da conexão entre ideias (expressas em dados, no caso) que simula a produção de “conhecimento” novo típica dos humanos, libertando-nos de centenas de tarefas que passam a ser delegadas a máquinas (Ziviani, 1986ZIVIANI, N. “Projeto de Algoritmos e Estruturas de Dados”. Campinas: Editora UNICAMP, 1986.), vez que estas, com maior velocidade e precisão, atingem os mesmos resultados que as atividades conectivas do sistema neural do cérebro humano conseguem a duras penas. É nesse sentido que se diz que a máquina produz conhecimento, logo, é inteligente. Mas tratase mesmo de uma imitação artificial do funcionamento do processo cognitivo humano, nada mais. Em outras palavras, são tarefas engendradas

por milhares de algoritmos estruturados como fórmulas cada vez mais refinadas que possibilitam a aprendizagem de máquina (AM), que, pelo grau de refinamento preditivo, são classificadas como machine learning e deep learning. Estas inteligências artificiais adquirem conhecimento extraindo padrões a partir de dados não trabalhados (Ziviani, 2017ZIVIANI, N. “A Quarta Revolução Tecnológica. Computação Cognitiva e a Humanização das Máquinas”. Disponível em https://homepages.dcc.ufmg.br/~nivio/papers/a-quarta-revolucao-industrial-fonte-julho 2017.pdf. Acessado em 2 de fevereiro de 2022.
https://homepages.dcc.ufmg.br/~nivio/pap...
), isto é, são programas de computador capazes de aprender a executar tarefas a partir de sua própria experiência (Faceli et al., 2011). Trata-se de sistemas de aprendizagem algorítmica capazes de se adaptar a novas situações problemáticas de forma independente, seguindo escrevendo seus próprios programas (Hoffmann-Riem, 2021, p. 15). (Brochado, 2021, p. 152BROCHADO, M. “Ética e Direito: pelas Trilhas de Padre Vaz”. Curitiba: CRV, 2021.)

John MacCarthy, quem cunhou a expressão Inteligência Artificial em 1956, um dos mais importantes fundadores da área, parte de um conceito funcional de livre arbítrio humano para propor que nossa inteligência possa ser decalcável em máquina. Para ele, se humanos decidem o que fazer avaliando resultados das diversas ações sobre o que eles podem fazer e já fizeram, esse processo em alternativas pode ser reproduzido em máquina, ainda que seja de forma determinística. Em suas palavras,

O problema do “livre-arbítrio” assume uma forma aguda, mas concreta. Nomeadamente, em raciocínio de senso comum, uma pessoa frequentemente decide o que fazer avaliando os resultados das diferentes ações que ela possa praticar. Um programa inteligente deve usar este mesmo processo, mas usando um senso formal exato de lata, devendo ser capaz de mostrar que tem estas alternativas sem negar que é uma máquina determinista. (McCarthy, 1969, p. 6MCCARTHY, J., HAYES, P. “Some Philosophical Problems from the Standpoint of Artificial Intelligence”. Stanford: Stanford University, 1969. Disponível em: http://www-formal.stanford.edu/jmc/mcchay69.pdf. Acessado 04 de fevereiro de 2022.
http://www-formal.stanford.edu/jmc/mccha...
, tradução livre)

A primeira petição de princípio ao se nomearem esses processos de simulação computacional como seres inteligentes é a confusão elementar, aqui revelada por McCarthy, entre cérebro e mente, energia e informação. Descrever os processos cerebrais não nos autoriza a deduzir que eles causam as atividades mentais, tal como compreender a energia funcional no cérebro não explica o surgimento da informação na mente. Como pondera Dreyfus,

Os filósofos têm pensado no homem como uma mente contemplativa que recebe passivamente dados sobre o mundo e depois ordena seus elementos. A física tornou esta concepção plausível, fazendo-nos ver o cérebro como um objeto físico. O cérebro recebe passivamente a energia do mundo físico e a processa de acordo com seu estado atual, que depende da energia recebida no passado. Se aceitarmos esta visão passiva da mente e não fizermos distinção entre o nível de processamento físico e o de processamento de informações, parece bastante claro que a mente, assim como o computador, nada mais faz do que receber bits de dados bem definidos. [...] Como era de se esperar, os cientistas da computação, mais uma vez apoiados nisto pela tradição filosófica e pelo sucesso da física, raramente abordaram este problema. (Dreyfus, 1988, pp. 334-335DREYFUS, H. L. “Che Cosa non Possono Fare i Computer: i Limiti dell’Intelligenza Artificiale”. Roma: Armando Editore, 1988., tradução livre)

O chamado aprendizado de máquina é, ao termo e ao cabo, um programa de algoritmos que criam algoritmos para, segundo o sistema de feedback, preencher lacunas informacionais visando a atingir, a partir dos próprios algoritmos existentes (sem intervenção humana imediata, portanto), o desempenho ótimo da máquina. A partir desse sistema de aprendizado, é possível pensar em ensinamento de conteúdo moral a máquinas que, assim, passam a se relacionar com humanos com comportamento intelectivo e moral, vale dizer: tal como a máquina imita o conhecimento humano, seria possível que ela imitasse a moralidade humana também.

3 Agentes morais artificiais: o ápice do processo mutacional

Para unir esse desafio aos princípios da Ética filosófica, a chamada Ética Computacional vem tentando uma espécie de resgate do aristotelismo, buscando na Ética das virtudes o caminho para criar máquinas inteligentes como agentes morais artificiais, os quais, inclusive, poderão ensinar e ser modelo comportamental para os humanos, enquanto seres “virtuosos” infalíveis que essas máquinas serão. Como se vê, o sistema platônico-aristotélico, sugerido por Lima Vaz como caminho para enfrentarmos a mutação que estamos testemunhando, coincidentemente tem sido fonte de inspiração para direcionar as ambições técnico-científicas rumo à arquitetação de um projeto que transcende à Inteligência Artificial enquanto experimento com objetivos meramente eficaciais e econômicos. Esses agentes morais artificiais teriam por tarefa suprema ensinar boas práticas aos humanos, vale dizer, seriam a expressão máxima de uma tecnopaideia que reabilita, por meio de máquinas, a Ética clássica da virtude-ciência.

Nessa nova leitura maquinizada da Ética, adota-se o rigorismo eficacial da Inteligência Artificial para atingir precisão ótima na prática de ações virtuosas. Não estamos aqui a defender que máquinas adquirem consciência, o que seria uma teratologia filosófica. O que se considera aprendizado é apenas um sistema de acúmulo de dados sem autojulgamento sobre cada dado apreendido, razão por que Cantwell Smith refuta a tese da inteligência artificial como inteligência genuína, haja vista que ela não emite juízo sobre as informações que recebe, não só quanto às fontes de recepção, como também quanto à forma como os dados são integrados em diversas perspectivas de modo responsável em face do mundo a eles subjacente.

Para Smith, se qualquer sistema de captação de dados ainda não foi capaz de exercer julgamentos sobre o que “apreende”, evidentemente que a responsabilidade de captação e de integração legítima dessa datificação será sempre e exclusivamente de humanos. A combinação estatística de dados reunidos (necessariamente por humanos), ao contrário do que sugere o modismo atual, milita contra a noção do que entendemos por inteligência, já que essa tarefa mecânica meramente receptiva está longe do que se entende por atividade humana inteligente. Em suas próprias palavras,

A inteligência genuína exige que se faça um juízo experiente, sempre que a informação é combinada de diferentes fontes e circunstâncias, sobre como os vários dados registrados no mundo podem ser avaliados de forma sólida e o que é necessário para integrar suas diferentes perspectivas de uma forma que seja responsável perante o mesmo mundo subjacente. [...] Se um sistema não é capaz de julgar, então somos nós os responsáveis pelas diferentes perspectivas e preconceitos de todas as suas fontes de registro, bem como pela legitimidade de todas as suas instâncias de integração de dados [...] Ao contrário da moda atual, a mera capacidade de combinar estatisticamente dados reunidos de diversas fontes sem exercer julgamento a cada passo pode na verdade militar contra, e não a favor, de qualquer coisa que deveríamos querer chamar de inteligência. (Smith, 2019, p. 90SMITH, B. C. “The Promise of Artificial Intelligence: Reckoning and Judgment”. Cambridge: MIT Press, 2019., tradução livre)

Nada obstante, ao contrário dos humanos, um robô que seja programado para praticar condutas para o bem não romperia, sob qualquer hipótese, o padrão moral programado, o que equivale a uma programação da inteligência moral universal e incorruptível, quer dizer, uma reabilitação artificializada universal-concreta (efetiva) da razão prática, o que hoje é possibilitado pelas tecnologias de entes inteligentes. Pela relação humana com estes, afigura-nos como factível o melhoramento da performance moral humana, inspirada em máquinas incorruptíveis. Tais práticas seriam pedagógicas, e.g., na atuação de assistentes pessoais artificiais, como robôs corporativos direcionados à mediação em compliance empresarial, como robôs-babás programados para também ensinar princípios morais fundamentais a crianças em fase de formação, como cuidadores artificiais capazes de interagir dialogicamente com idosos solitários (este último tem sido um dos principais focos das pesquisas em IA hoje no Japão, cuja população idosa é expressiva e crescente).

A expectativa sobre a construção de agentes morais artificias é grande e não se sabe o limite entre a promessa e a fantasia, tornando-se banais os mitos em torno da Inteligência Artificial, especialmente pelas práticas de vaporware, bastante comuns entre as equipes de desenvolvedores de hardware e software, o que consiste em anunciar o lançamento de novos produtos ainda em fase de design, sem previsão concreta da data de produção conclusiva, com o intuito (muito comum na área também) de agitar a mídia e atrair consumidores em potencial para a “última” tecnologia inventada. Essa prática tem sido bastante recorrente para atrair bilhões de investimentos, seja por instituições de pesquisa, seja por entidades governamentais, seja por predileção excêntrica de bilionários, como Elon Musk, que apostam na tecnologia como caminho para a vida mais longeva e confortável que a humanidade ainda está por experimentar.

Fato é que a crença no aprendizado maquínico virtuoso é igualmente paradoxal, como tantos outros paradoxos que marcam este início de século. Ao mesmo tempo que se criou um mito antropoformizante em torno de entidades inteligentes que nada mais são que programas computacionais, talvez seja essa mesma mitificação que nos empurre rumo à ascensão a patamares morais mais elevados. Essa crença na superioridade maquínica pode ser o bodoque que vai nos catapultar, segundo o mesmo sugestionamento hoje experimentado quanto às proezas da inteligência artificial, a práticas virtuosas por imitação de robôs elevados moralmente, admirável inspiração (pedagógica) para nos tornarmos humanos melhores.

A criação de agentes artificiais morais, como vimos, já é realidade e, até o momento, é a conquista tecnológica mais desafiadora no campo das discussões éticas, pois que temos, nesse caso, a mutação mais paradoxal que viveremos: máquinas corrigindo os desacertos de caráter do ser humano. Como expecta Paulo Antônio Silveira,

A conclusão a que diversos cientistas de programação chegaram é que um modelo de agência artificial fundado em machine learning, combinado com a ética da virtude, é um caminho natural, coeso, coerente, integrado e “bem costurado” (seamless). Assim, existe uma resposta coerente, consistente e bem fundamentada que indica que não é provada a impossibilidade de um agente moral artificial autêntico. (Silveira, 2021, p. 186SILVEIRA, P. A. C. V. “Ética e Inteligência artificial: da Possibilidade Filosófica de Agentes Morais Artificiais”. Porto Alegre: Editora Fi, 2021.)

Ocorre que essa empreitada jamais pode ser encarada como produção de um artefato, design técnico. Essas e tantas outras questões de ordem prática não podem ficar à mercê de uma Ética de situação pensada somente por atores envolvidos nos processos de criação tecnológica, os próprios cientistas da computação e programadores, simplesmente porque os objetivos técnicos desses protagonistas das tecnociências podem se afastar em muito do sentido ético sobre o qual a ciência deve edificar suas conquistas.

4 A condição da pessoa na Ética e no Direito e a desespiritualização mutacional da natureza humana

Nesse ponto é que entendemos que o Direito deva assumir protagonismo regulatório em diálogo com o estatuto filosófico da Ética, a Ética Geral, e não com supostas Éticas parciais pensadas situacionalmente por atores envolvidos nos processos de criação tecnológica e inovação. Sem essa interlocução, que nos parece evidente, não encontraremos possibilidades normativas efetivas para diminuir os impactos negativos que os processos tecnológicos produzem.

Parece que até o momento, no direito vigente, em que pesem as conquistas regulatórias no Canadá, na Alemanha e, especialmente, no pioneirismo da União Europeia, o que temos de fato é uma regulação fragmentária, incipiente e demasiadamente principiológica, o que denota a indisfarçável impotência do Direito em lidar com esses complexos fenômenos de verdadeira mutação civilizacional; razão pela qual este texto também defende o comprometimento que a Filosofia do Direito atual deve assumir na tarefa de refletir sobre questões de ordem técnica (não só das tecnicalidades jurídicas, mas da tecnicidade na experiência humana) que impactam na própria aplicação do direito positivo, como a experiência hoje trivializada no emprego de robôs virtuais para a tomada de decisões nos processos judiciais.

Não é demais mencionar o quanto pode ser desestabilizador para a simbologia social em torno do papel e da relevância do Direito o excesso de casos decididos por máquinas, a pôr em xeque a própria necessidade do Poder Judiciário enquanto instituição de poder, se se entender que este nada mais é que um compêndio de programas computacionais. Politicamente falando, as práticas de decisão maquínica podem vir a

estafar as bases institucionais do Judiciário em pouco tempo, sem qualquer tom escatológico, pelo malogro nos escopos do próprio Poder Judiciário, o qual cumpre a missão de receber demandas e decidi-las com competência e sensibilidade (não à toa sentença vem de sentire), no que reside simbolicamente sua legitimidade, respeitabilidade, sua posição de poder. Pessoas seguirão buscando por autoridades para resolver com sensibilidade humana seus dramas pessoais quando sabedoras serão de que robôs estão à frente dos processos? Parece que será algo similar ao que os chatbots provocam em nós hoje: busca por empatia ao tentarmos chegar num humano que nos atenda e resolva nossas questões humanamente. (Brochado, 2021, p. 154BROCHADO, M. “Ética e Direito: pelas Trilhas de Padre Vaz”. Curitiba: CRV, 2021.)

Eis mais um desafio a ser enfrentado pelo Direito em diálogo com os princípios da Ética filosófica. Na busca pela união do papel formalizador do Direito e da tarefa conteudística da Ética, emerge como ponto de equilíbrio a categoria da pessoa moral, que é a própria singularidade no movimento dialético da relação estabelecida entre os indivíduos e seu ethos

através das mediações sociais que se tecem no campo das esferas particulares da sociedade, cada qual particularizando, por sua vez, o horizonte universal do ethos, [sendo] justamente o movimento dialético que retorna do particular ao universal, fazendo do indivíduo empírico um universal concreto [...], [um] singular na terminologia dialética ou uma pessoa moral na terminologia da Ética. (Lima Vaz, 1993, pp. 25-26LIMA VAZ, H. C. “Escritos de Filosofia II: Ética e Cultura”. São Paulo: Edições Loyola, 1993.)

A noção de pessoa moral é angular na Ética vaziana, visto que é ela que permite uma ontologia do sujeito em diálogo entre Antropologia e Ética filosóficas. Nesse sentido, a distinção que Vaz propõe entre as categorias da Pessoa e da Pessoa Moral, na Antropologia e na Ética, respectivamente:

a expressão pessoa moral é, sob certo aspecto, redundante, pois a pessoa humana é, por essência, um ser moral enquanto princípio dos atos que são propriamente atos humanos. [...] [A] pessoa é constitutivamente ética e o predicado da eticidade se estende a todas as suas manifestações: psicológica, social, política, jurídica, profissional e outras. A distinção entre pessoa e pessoa moral diz respeito apenas à distinção entre os objetos formais de duas disciplinas no corpo dos saberes filosóficos, a Antropologia filosófica e a Ética. (Lima Vaz, 2000, pp. 237-238LIMA VAZ, H. C. “Escritos de Filosofia V: Introdução à Ética Filosófica 2”. São Paulo: Edições Loyola, 2000.)

O direito é a normatividade do ethos que dota de objetividade a categoria universal concreta da pessoa moral na forma de sujeitos de direito, cujo horizonte normativo é a universalidade empírica (concreta, portanto) da normatividade jurídica. É o direito enquanto norma e praxis (e enquanto ciência que os toma por objeto) que garante a preservação das subjetividades ao reconhecer a categoria da pessoa moral (da Ética) como categoria axiforme dos direitos e garantias fundamentais, a pessoa, capaz efetivamente de postular seus direitos (ius suum), razão pela qual a pessoa é um sujeito (universal-concreto) de direitos (Brochado, 2021, pp. 252-253BROCHADO, M. “Ética e Direito: pelas Trilhas de Padre Vaz”. Curitiba: CRV, 2021.). Nesse sentido é que a dialética da experiência ética ascende em dignidade efetiva à dialética da experiência jurídica, cujo movimento se desdobra como

a universalidade abstrata da lei e a universalidade também abstrata do conflito de interesses [que] fazem nascer a universalidade concreta do sujeito de direito e realiza a um só tempo, como sujeito universal, a singularidade universal da sociedade, isto é, o sujeito de direito (Salgado apud Brochado, 2021, p. 254BROCHADO, M. “Ética e Direito: pelas Trilhas de Padre Vaz”. Curitiba: CRV, 2021.).

O sujeito de direitos (pessoa juridicamente considerada) está autorizado a exigir a fruição de bens e valores na forma do exercício de direitos que integram a sua dignidade, condição exclusiva da pessoa moral.

Sendo a pessoa (juridicamente considerada) o centro unificador (categoria axiforme) de todos os direitos, importa assumir que não seria possível ao direito reconhecer capacidades e responsabilidades senão a seres que possam ser definidos como tais. A base de uma Filosofia do Direito propriamente dita é uma metafísica do sujeito tal como legada pela modernidade, a qual supõe a condição intocável e superior da pessoa em sua dignidade. O suposto da liberdade é o sustentáculo do Direito, de modo que não há que se falar em direitos e obrigações de seres que não consolidam as características da pessoa e com ela o seu valor central: a dignidade humana. Esta só pode ser atribuída à natureza humana, atribuição esta, conforme a síntese precisa ofertada por Karine Salgado, ilimitada e inquantificável, visto ser “um valor cuja medida é inexprimível” (Salgado, 2009, p. 21SALGADO, K. “A Filosofia da Dignidade Humana: a Contribuição do Alto Medievo”. Belo Horizonte: Mandamentos, 2009.). A liberdade, o fundamento da dignidade, é o “elemento diferenciador do homem que o coloca acima das determinações naturais, pois que racional, e lhe permite a construção de sua própria obra, a determinação de como as coisas devem ser, a cultura” (Salgado, 2009, p. 16SALGADO, K. “A Filosofia da Dignidade Humana: a Contribuição do Alto Medievo”. Belo Horizonte: Mandamentos, 2009.).

Eis por que falar-se em inteligência artificial e autonomia de máquinas (como carros autônomos que hoje já circulam por aí) gera um impasse jurídico difícil de contornar: impossível responsabilizar seres que não são capazes de juízo de reprovação sobre a própria conduta – o que não é possível, evidentemente, em máquinas (Brochado, 2021, p. 161BROCHADO, M. “Ética e Direito: pelas Trilhas de Padre Vaz”. Curitiba: CRV, 2021.). Sobre esse suposto, algumas teses emergem na seara jurídica para imputar consequências, nos quadros do ordenamento jurídico vigente, aos resultados provocados na realidade pela atuação de entidades maquínicas que imitam a inteligência humana. Uma possibilidade é a comparação delas à categoria da pessoa jurídica, a qual não é definida, evidentemente, por uma natureza intrínseca, mas por uma finalidade, quer dizer, em virtude de uma função societária. Nesse sentido, a atribuição de responsabilidade a essas entidades pode ser análoga ao que há séculos se pratica na área jurídica no tratamento da pessoa jurídica, inclusive com a possibilidade de responsabilização solidária dos humanos quando adquirem esse tipo de artefatos inteligentes.

Cogita-se, ainda, da possibilidade de regulação em que os humanos devam permanecer sempre responsáveis por suas máquinas “inteligentes” e o “modelo de responsabilização deve, sempre que possível, envolver um processo de certificação de boas práticas, a ser ofertado pelos entes envolvidos (academia, indústria e governo” (Peixoto, 2020, p. 157PEIXOTO, F. H. “Inteligência Artificial e Direito: Convergência Ética e Estratégica”. Curitiba: Alteridade Editora, 2020.). Hoje já se anuncia um plexo de direitos destinados a robôs, direitos robóticos, uma tentativa de analogia com os direitos da personalidade, que se apresentam em três classes: físicos (direito à vida, à integridade física, à imagem, ao cadáver etc.), psíquicos (direito à liberdade, à intimidade, à privacidade etc.), morais (direito à identidade, à honra, à criação intelectual etc.) (Bittar, 2015, pp. 37-38BITTAR, C. A. “Os Direitos da Personalidade”. São Paulo: Saraiva, 2015.). Ficou famoso o caso de reconhecimento de direitos a Sophia, “uma robô humanoide a quem o governo da Arábia Saudita concedeu nacionalidade, e que gerou protestos de organizações de proteção de direitos humanos contra discriminação de tratamento dispensado para mulheres naquele país” (Polido, 2020, p. 237POLIDO, F. B. P. “Inteligência Artificial entre Estratégias Nacionais e Corrida Regulatória Global: Rotas Analíticas para uma Releitura Internacionalista e Comparada”. Revista da Faculdade de Direito da UFMG, Nr. 76, pp. 229-256, jan./jun. 2020.).

Direitos robóticos ainda estão num segundo plano diante das exigências regulatórias mais urgentes, como a responsabilidade de carros “autônomos”, que hoje são realidade, e, independentemente da estratégia jurídica a ser adotada futuramente para o controle e responsabilização (compartilhada ou não) de entidades maquínicas inteligentes, parece bastante plausível, na ausência de uma categorização jurídica mais atual e adequada, tomar as atividades desses agentes similarmente ao modo como o Direito entende a pessoa jurídica. Nesse sentido, como fundamento para adoção de critérios juridicamente, parece conclusiva a posição de Stancioli e Lopes:

Embora agentes de inteligência artificial sejam constituídos de modo diverso a organizações, ambos possuem a semelhança fundamental da busca pela separação entre identidades e ações: sejam de seus membros, ou de seus controladores, programadores ou usuários humanos. É a capacidade social para a ação autônoma – e, por isso, individualizável – que possibilita, segundo Allen e Widdison, considerar tais agentes de IA como fontes de comunicações relevantes, havendo, portanto, sentido em se promover a sua personificação. (Stancioli, Lopes, 2020, p. 90STANCIOLI, B. S., LOPES, G. F. P. “A Personificação de Agentes Autônomos de Inteligência Artificial”. Revista de Direito Civil Contemporâneo, Ano 7, Vol. 23, pp. 65-93. abr.-jun./2020.)

A personificação deve ser tomada em sentido pragmático e não semântico, já que, como Allen e Widdison defendem, trata-se apenas de agenciamento como fonte comunicacional relevante e não como semanticamente autônomo. São agentes somente se considerados sob um imperativo técnico, e não sob um imperativo ético. Eis por que é uma impropriedade chamar essas máquinas de “agentes autônomos”, como os carros ditos “autônomos”, os quais, de fato, possuem autonomia técnico-funcional; nesse sentido, a nomenclatura adequada seria autômato (Aristóteles, Descartes) e não autônomo, já que autonomia (autos+nomos: capacidade de se dar as próprias leis) é atributo cooriginário da psyqué (alma), ou a transcendência humana enquanto metabolismo espiritual exclusivo dos humanos.

Na dicção de Lima Vaz, “racionalidade e liberdade são os dois atributos fundamentais do espírito que especificam os dois princípios constitutivos da sua atividade, a inteligência e a vontade” (Lima Vaz, 2000, p. 33LIMA VAZ, H. C. “Escritos de Filosofia V: Introdução à Ética Filosófica 2”. São Paulo: Edições Loyola, 2000.). Sob a suposição de que a conditio sine qua non para o reconhecimento jurídico de ações e consequências atribuíveis a elas seja a personalidade, importa anotar que, sob o ponto de vista da Ética, essa categoria está vinculada à espiritualidade própria da pessoa moral. Nesse sentido é que a mutação civilizacional que Lima Vaz aponta é antes e acima de tudo uma empreitada desespirutualizante do humano, vez que nesse século passamos a acreditar ser atribuíveis a seres maquínicos os mesmos qualificativos (logo, direitos) que só o são a seres humanos em virtude da sua intrínseca espiritualidade. Esta é a mais profunda cisão já experimentada na trajetória civilizacional da humanidade, qual seja, a negativa de que o espírito seja a base do reconhecimento dos humanos enquanto tais, o que lhes garantiu por séculos um espaço de especial grandeza perante todos os outros animais: sendo ele o único animal dotado de logos, este o tornou absolutamente singular (Lima Vaz, 2000, p. 201LIMA VAZ, H. C. “Escritos de Filosofia V: Introdução à Ética Filosófica 2”. São Paulo: Edições Loyola, 2000.).

Esta é a mais grave espécie de maquinização humana. E quando aqui nos referimos a essa maquinização, não se quer com isso negar, de forma grosseira e anacrônica, sentido e propósito às refinadas acoplagens de artefatos que possam condicionar melhor o corpo humano para o bem-estar, a saúde e a longevidade dos humanos, inclusive as nanoacoplagens que são realidade na mitigação de doenças, como, e.g., a Doença de Parkinson. A referência à maquinização não se dirige à estrutura corpórea humana, mas a sua estrutura simbólica, ao suscitar a discussão que deve ser seriamente trazida a debate pela Filosofia, qual seja, uma crença difícil de ser afastada, a essa altura do progresso das ciências e da irreversibilidade dos feitos tecnológicos: a crença de que humanos são seres similares a máquinas, com o diferencial de que as máquinas de hoje são projetadas e testadas em laboratórios, ao passo que as máquinas humanas foram aleatoriamente “montadas” por sistemas de feedback naturais segundo bilhares de bilhões de tentativas e erros. Esta tem sido uma das teses mais festejadas pela Neurociência e pela Neurocomputação atuais, que pretendem, mapeando o sistema neural humano, superá-lo por cérebros artificiais muito mais potentes que a rede de cálculos da qual nós, homo sapiens, somos dotados, e que nada mais é que um sistema de algoritmos naturais, nada tendo a ver com a arcaica narrativa mítica de uma natureza humana guiada, por fins e valores, a um Bem transcendente.

Conclusão: o desafio de se resgatar o humano como ser aberto e generoso

Neste pequeno ensaio, buscamos em Lima Vaz o ponto central da discussão sobre o progresso tecnológico que ele considera uma verdadeira mutação, marcada pela contradição entre a gênese e o desenvolvimento do processo que libertou os humanos das amarras da natureza, sua capacidade de postular fins e valores, e o atual estágio da evolução humana possibilitada por essa capacidade, o qual tende a negar a singularidade humana enquanto espiritualidade (inteligência livre). O progresso científico e tecnológico chegou a uma objetificação tal da realidade que toma o humano como ser catalogável, desespiritualizando-o, ao suprimir dele seu destino rumo a fins e valores superiores e que deveriam ser intocáveis por qualquer forma de reificação. A civilização tecnológica, ao mesmo tempo que nos trouxe uma plêiade de bens materiais, os quais representariam libertação das amarras da natureza rumo a uma vivência culturalmente mais elevada, rompeu com nosso telos essencial ao suprimir em nós o próprio sentido de espírito. É dizer: a maquinização primorosa implicou em nossa desespiritualização, atingindo nosso “metabolismo espiritual”, que, como explica Lima Vaz, é a abertura própria da pessoa, abertura esta que se processa “mantendo o intercâmbio noético (inteligência) e pneumático (liberdade) com a totalidade do Ser” (Lima Vaz, 2000, p. 237LIMA VAZ, H. C. “Escritos de Filosofia V: Introdução à Ética Filosófica 2”. São Paulo: Edições Loyola, 2000.). Essa abertura à transcendência que nos define é que nos permite evoluir historicamente rumo a novos direitos que tutelem, preservem, reconheçam como intocáveis nossos atributos espirituais, todos gravitando em torno da dignidade em ser sempre fim em si mesmo, jamais meio para qualquer outra finalidade (Kant).

O encontro da Ética e do Direito em busca de respostas para os dilemas civilizacionais, neste texto mencionados, equilibra-se na categoria éticojurídica sustentáculo da nossa civilização, a dignidade humana, explicitamente tomada desde a modernidade como valor-eixo em torno do qual gravitam todos os demais valores humanos. Ela é o “último elo da cadeia conceptual que constitui a estrutura inteligível da vida ética concretamente vivida na comunidade ética” (Lima Vaz, 2000, p. 204LIMA VAZ, H. C. “Escritos de Filosofia V: Introdução à Ética Filosófica 2”. São Paulo: Edições Loyola, 2000.). E a comunidade ética existe pela importante tarefa desempenhada pelo Direito de funcionar como mediador da realidade que qualifica tudo o que existe em termos de justo e injusto, distribuindo equanimemente bens. Assim é que Lima Vaz entende o papel do Direito na processualidade do ethos: “ao ser assumida na esfera do direito, a realidade objetiva (pessoas, atos, coisas) é negada em sua particularidade empírica e recebe, pela mediação da lei, a qualificação universal de ‘regra justa’ constituindo-se em res justa” (Lima Vaz, 2000, p. 120LIMA VAZ, H. C. “Escritos de Filosofia V: Introdução à Ética Filosófica 2”. São Paulo: Edições Loyola, 2000.).

A singularidade da vida ética dos indivíduos, como pontua Lima Vaz, é definida pelo “progresso da liberdade como adesão sempre mais plena da vontade ao Bem, e pelo aprofundamento sempre mais exigente da consciência moral” (Lima Vaz, 2000, p. 204LIMA VAZ, H. C. “Escritos de Filosofia V: Introdução à Ética Filosófica 2”. São Paulo: Edições Loyola, 2000.). Esses dois traços são constitutivos do metabolismo espiritual humano e, tal como entende o filósofo, esse metabolismo funciona segundo o intercâmbio noético (inteligência do Ser) e pneumático (vontade livre dirigida ao Bem), liberto de determinações cronológicas ou factuais, tornando a pessoa um ser constantemente aberto segundo a convergência desses dois traços. Essa composição é, por sua vez, a “face da sua dignidade com a qual ele pode voltar-se para o outro, nele reconhecendo a mesma dignidade e com ele consentindo na tarefa de uma vida ética em comum. Entendida como inter-relação dos sujeitos pela aceitação recíproca da dignidade de cada um, a vida ética é uma vida na justiça” (Cf. Lima Vaz, 2000, p. 204LIMA VAZ, H. C. “Escritos de Filosofia V: Introdução à Ética Filosófica 2”. São Paulo: Edições Loyola, 2000.). Daí o papel desempenhado pelo Direito na manutenção da comunidade ética, considerando a pessoa moral como sujeito de direitos para uma vida ética comum justa.

Não é possível pensar em regulação ética ou jurídica dos processos que aqui mencionamos, dentre tantos outros que envolvem as novas formas de vida que estamos experimentando, sem postular o metabolismo espiritual humano nestes termos, visto que é ele, pouco importando quais tarefas técnicas e relações maquínicas empreendidas pelos humanos, que nos torna pessoas como um todo aberto, pela inteligência e pela liberdade, à universalidade do Ser e do Bem, sendo, por esta razão (Lima Vaz inspira-se em Jacques Maritain) um ser “aberto e generoso” (Lima Vaz, 2000, p. 237LIMA VAZ, H. C. “Escritos de Filosofia V: Introdução à Ética Filosófica 2”. São Paulo: Edições Loyola, 2000.). Essa dimensão da espiritualidade enquanto abertura do humano aos seres e ao Bem, o que o caracteriza como um ser aberto e generoso, vem se apagando em nós, e em seu lugar elegemos um hedonismo sem limites no consumo de bens tecnológicos, sem qualquer fim superior que nos eleve espiritualmente. Por não haver propósito para além do uso desses artefatos, passamos a glorificá-los, entificando-os a ponto de nos subjugar diante das potencialidades desses seres instrumentais, haja vista sua eficaz capacidade de nos trazer fruições materiais e simbólicas jamais experimentadas pelas sociedades humanas. Todos esses bens são apreciados por uma nova feição de sociedade, uma sociedade bulímica, como caracteriza Lima Vaz, a qual, na mesma velocidade e proporção que consome a parafernália técnica sofisticada que alcançou com o avanço das tecnociências, descarta de forma banal e inconsequente o que foi consumido, comprometendo sua morada primordial, vez que o impacto ambiental desse consumismo hedonista e bulímico não é calculável, como querem fazer crer experts tecnocientistas, hoje muito ocupados com suas predições e projeções técnicas, cada vez mais inebriantes e fugazes, buscando nelas, em vão, algum sentido intrínseco que amenize a angústia da finitude da nossa presença neste mundo.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Abr 2023

Histórico

  • Recebido
    08 Fev 2022
  • Aceito
    10 Out 2022
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