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É POSSÍVEL OUVIR O TEMPO-DURÉE? UMA CRÍTICA AO BERGSONISMO MUSICAL* * O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001, durante estágio de pós-doutoramento PNPD no departamento de Filosofia da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).

IS IT POSSIBLE TO HEAR THE TIME-DURÉE? A CRITIQUE OF MUSICAL BERGSONISM

RESUMO

O artigo analisa o tema da escuta musical do tempo na filosofia de Vladimir Jankélévitch, buscando avaliar qual seja a prova fenomênica alegada por Jankélévitch para sustentar a tese de que a escuta musical do tempo carrega as mesmas propriedades do conceito de durée de Henri Bergson. Concluímos que (1) as descrições temporais de Jankélévitch não são suficientes para sustentar que a escuta musical equivale à escuta das propriedades da durée, e que (2) esse fato implica um problema tanto para a máxima “a música é a arte do tempo” quanto para a capacidade geral do bergsonismo, verificado em demais autores, em fundar uma filosofia da música.

Palavras-chave:
Vladimir Jankélévitch; Gabriel Marcel; Tempo; Inefável; Durée; Gisèle Brelet

ABSTRACT

The article analyzes the subject of musical listening of time in Vladimir Jankélévitch philosophy, seeking to assess what is the phenomenal proof alleged by Jankélévitch to support the thesis that musical listening of time carries the same properties as Henri Bergson’s concept of durée. We conclude that (1) Jankélévitch’s temporal descriptions are not sufficient to sustain that listening to music is equivalent to listening to the properties of durée, and that (2) this fact implies a problem both for the maxim “music is the art of time” and for the general capacity of Bergsonism, verified in other authors, to founding a philosophy of music.

Keywords:
Vladimir Jankélévitch; Gabriel Marcel; Time; Ineffable; Durée; Gisèle Brelet

Introdução

A mais conhecida definição de música diz ser ela a arte do som. Essa definição de música, ou o tipo modelar que ela encerra, permite entendermos que essa arte consiste na produção de estados combinatórios possíveis ao som. Permite, igualmente, que o som seja reconhecido sob uma diversidade de parâmetros (e.g. altura, timbre, intensidade). A definição é de tal modo abrangente que permite abarcar variações históricas e culturais - porém, não sem exceções - sem que se abale o seu tipo modelar.

Agostinho de Hipona, no diálogo De musica, definiu a música como a “ciência de modular”, consistindo a modulação no mover dos sons “segundo as leis numéricas” (Fagundes, 2014FAGUNDES, C. “De Musica. Diálogo filosófico de Agostinho de Hipona (354-430): Introdução, tradução e notas”. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2014. [Tese de doutorado], p. 190), aplicadas aos tempos e aos intervalos. Outras variações do modelo dizem: “som organizado” (Varèse, 1966VARÈSE, E. “The Liberation of Sound”. Perspectives of New Music, Vol. 5, Nr. 1 (Autumn - Winter), 1966 [1936], pp. 11-19., p. 18); “ciência do som cujo fim é o prazer” (Malcolm, 1721MALCOLM, A. “A Treatise on Musick, Speculative, Practical & Historical”. Edinburgh: Printed for the author, 1721 [Online]. Disponível em: https://play.google.com/books/reader?id=gzhDAAAAcAAJ&pg=GBS.PP4&hl=pt (Acessado em 09 de dezembro de 2021).
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, p. 1); “formas sonantes em movimento” (Hanslick, 1922HANSLICK, E. “Vom Musikalisch-Schönen: Ein Beitrag zur Revision der Ästhetik der Tonkunst“. Leipzig: Druck und Verlag von Breitkopf & Härtel, 1922 [e-book]., p. 95); “estrutura abstrata de ar [...] produção de certo arranjo dos sons” (Stumpf, 2012STUMPF, C. “The Origins of Music”. United Kingdom: Oxford University Press. 2012 [1911]., pp. 53-54); “O que é a música? A arte dos sons” (Chabanon, 2011CHABANON, M.-P.-G. de. “Da música em si e em suas relações com a palavra, as línguas, a poesia e o teatro”. In: L. Tomás, 2011, pp.17-122., p. 17).

Contudo, neste artigo, iremos tratar da definição proposta por Vladimir Jankélévitch de que a música é a arte do tempo (Jankélévitch, 1983______. «La musique et l’ineffable». Paris: Seuil, 1983., p. 130; 2018______. “A música e o inefável”. Tradução C. S. G. São Paulo: Perspectiva LTDA, 2018., p. 118), portanto, uma definição diferente do modelo definitório mais amplamente aceito.

A postulação ‘a música é a arte do tempo’ é uma postulação recente na história da filosofia e da cultura, relacionada com o idealismo e beneficiada pelo ápice de um “clima de opinião” (Rowell, 1996ROWELL, L. “El tiempo en las filosofías románticas de la música”. Anuario filosófico, Universidad de Navarra, 29, 1996, pp.125-168., p. 128) que veio sendo formado desde o século XVIII, “desde Kant até Bergson”, criando o que Rowell chamou de uma “ideologia temporal” (ibid., p. 127).

Distinguimos a influência causada pelo clima de opinião, que acabou por dar relevo ao tema do tempo na música, da postulação filosófica que liga tempo e música. Stravinsky é tido por Lochhead (1990, p. 83) como um provável defensor do segundo grupo, que liga tempo e música de forma essencial: “a música é uma arte cronológica, tal como a pintura é uma arte espacial” (Stravinsky, 1947STRAVINSKY, I. “Poetics of Music: In the Form of Six Lessons”. Cambridge: Harvard University Press, 1947 [1942]., p. 29 apud Lochhead, 1990, p. 83). Pensamos de modo diverso de Lochhead. Stravinsky teria recebido uma influência, mas não se comprometido ontologicamente em definir a música a partir do tempo. Contudo, esse não é um entendimento fácil de se extrair de Stravinsky.1 1 Stravinsky não se comprometeu com uma definição filosófica de tempo ou de música. O trecho destacado por Lochhead na verdade diz respeito a uma comparação entre pintura e música, somente. Imediatamente antes dessa passagem Stravinsky indicou “som e tempo” (Stravinsky, 1947 [1942], p. 27) como elementos fundamentais da música. Algumas páginas adiante Stravinsky considera o som enquanto “eixo essencial” (ibid., p. 36) dessa arte. É importante notar que para Stravinsky o tempo é tão somente uma palavra que designa o metro e o ritmo musical (ibid., p. 28).

A formulação paradigmática, explícita e filosoficamente articulada, da concepção de que a música é a arte do tempo, advém de Vladimir Jankélévitch. A proposta de Jankélévitch é a de que haja uma identidade entre tempo, enquanto durée, e música - o que de início pressupõe alguma relação metafísica entre a música que ouvimos e o devir unidimensional do tempo-durée. O nosso questionamento sobre a proposta de Jankélévitch, e de demais autores do bergsonismo musical, é saber em que medida essas nos informam sobre a audição da durée em exemplos musicais e quais seriam as implicações filosóficas de sustentarmos uma definição, nesses termos, para a música enquanto arte do tempo.

1. O tempo musical em Jankélévitch

Existem duas partes a serem investigadas quando tratamos de tempo musical na obra de Jankélévitch. Há o tempo-durée, definido filosoficamente por Bergson, e há as descrições de eventos musicais tidos como temporais. Não é simples unir essas duas partes da filosofia de Jankélévitch; a teórica e a descritiva. Soma-se a isso um sentido poético que percorre indelevelmente toda a escrita de Jankélévitch, dificultando a análise em torno da variedade semântica do termo tempo.

A presença de diversos registros semânticos para o tempo foi responsável pela ambivalência mais conhecida e criticada da filosofia da música de Jankélévitch, uma contradição entre o que Jankélévitch defende teoricamente e o que faz na prática de suas descrições. Segundo Lochhead essa ambivalência seria resultado do dualismo entre conhecimento intuitivo (absoluto) e conhecimento conceitual (relativo), herdado da filosofia de Bergson. Ainda segundo Lochhead, como consequência dessa concepção, os conceitos de inefabilidade e charme musical seriam esvaziados de caráter musicológico, faltando um “engajamento crítico e franco com a música” (Lochhead, 2012______. “Can We Say What We Hear? Jankélévitch and the Bergsonian Ineffable”. In: M. Gallope, 2012, pp. 231-235., p. 231).

Lochhead está certa em apontar para essa ambivalência e para sua origem no bergsonismo. De fato, Jankélévitch buscou intencionalmente conduzir sua filosofia nos termos de um bergsonismo musical. Sendo assim, como veremos adiante, a ambivalência entre os registros teórico e descritivo não configuraria mera contradição, mas uma etapa necessária para a concretização do seu projeto.

Para o presente estudo importa analisar de que maneira Jankélévitch conciliou os registros semânticos sobre o tempo, equivalendo a isso demonstrar como as descrições de obras musicais referenciam a audição e referendam uma teoria como a do tempo-durée.

A posição de Lochhead é a de que o método intuitivo de Bergson já desautorizava a conciliação entre sua teoria e a descritividade musical. Nesse caso, Bergson lidaria com entidades inefáveis e místicas, não indexicáveis, tornando o método inacessível à audição real. Se for esse o caso, a filosofia de Jankélévitch incorreria em dificuldades adicionais; visto que Jankélévitch foi um crítico da metamúsica (Jankélévitch, 1983______. «La musique et l’ineffable». Paris: Seuil, 1983., pp. 38; 61), o que, em tese, o faria um crítico da desmaterialização da escuta musical e conseguinte perda de indexação.

Atkinson (2019, p. 181)ATKINSON, P. “Vladimir Jankélévitch, Henri Bergson, and the Emergence of a Musical Aesthetic”. In: M. La Caze (ed.), 2019, pp. 177-196. defende uma leitura que atenua essas contradições. Segundo o autor, Jankélévitch não rejeitou a existência de uma metafísica da música, Jankélévitch apenas rejeitou a metafísica de Schopenhauer (e similares), enquanto defendeu a metafísica de Bergson (Jankélévitch, 1983______. «La musique et l’ineffable». Paris: Seuil, 1983., p. 41). Mesmo atenuando essa contradição, fica em aberto saber em que medida uma metafísica desse tipo2 2 Metafísica, nesse contexto, indica o procedimento filosófico que postula a existência de entidades ideais não evidentes e/ou entidades reificadas, mais comuns dentro da produção metafísica pertencente ao idealismo filosófico. não se enquadraria também enquanto metamúsica, e em que sentido poderia respaldar uma musicologia (Lochhead, 2012______. “Can We Say What We Hear? Jankélévitch and the Bergsonian Ineffable”. In: M. Gallope, 2012, pp. 231-235.).

Sem adentrar à crítica epistêmica tout court, direcionamo-nos ao modo como Jankélévitch produziu uma coerência interna, quer autorizando, quer não autorizando a ambiguidade semântica sobre o tempo.

Nesse sentido a seguinte passagem de A música e o inefável nos fornece um guia e interpõe algumas dificuldades.

No entanto, há de se convir que a simples audição ou a própria execução são infinitamente mais eficazes nesse sentido que a mais fulgurante das intuições: a audição musical cria, num único instante, aquele estado de graça que páginas e mais páginas de metáforas poéticas não seriam capazes de alcançar. (Jankélévitch, 1983______. «La musique et l’ineffable». Paris: Seuil, 1983., p. 209; 2018______. “A música e o inefável”. Tradução C. S. G. São Paulo: Perspectiva LTDA, 2018., pp. 166-167)

O caráter inefável da música e a limitação do logos (Jankélévitch, 1983______. «La musique et l’ineffable». Paris: Seuil, 1983., pp. 82; 132) em comunicar a experiência musical deixam, portanto, a cargo da audição o contato intuitivo com o estado de graça, estado atribuído ao contato com a durée.

Interessante notar, na citação acima, que tanto a “metáfora poética” quanto a audição são veículos habilitados à experiência intuitiva, porém, quantitativamente distintos em seu poder.

Sobre o uso da metáfora poética, Lochhead destaca que as descrições de obras musicais em Jankélévitch são quase que integralmente compostas delas, caracterizando um importante recurso para o alcance da intuição do tempo-durée, diferente do que a citação faz pensar. Ainda segundo Lochhead, o efeito dessas descrições não se iguala ao da intuição auditiva, como de certo modo Jankélévitch admite, mas, diferente de Jankélévitch, Lochhead diz que as metáforas produzem um efeito hermenêutico, um “uso produtivo de palavras e conceitos que se acrescentam à experiência musical” (Lochhead, 2012______. “Can We Say What We Hear? Jankélévitch and the Bergsonian Ineffable”. In: M. Gallope, 2012, pp. 231-235., p. 235).

Atkinson (2019)ATKINSON, P. “Vladimir Jankélévitch, Henri Bergson, and the Emergence of a Musical Aesthetic”. In: M. La Caze (ed.), 2019, pp. 177-196. mais uma vez atenua a contradição. Para ele as descrições poéticas de Jankélévitch não atuam no âmbito hermenêutico. A descrição poética selecionaria e indicaria, na escuta musical, a imagem que se adequa ao sentido metafísico da durée (Atkinson, 2019ATKINSON, P. “Vladimir Jankélévitch, Henri Bergson, and the Emergence of a Musical Aesthetic”. In: M. La Caze (ed.), 2019, pp. 177-196., p. 177), adequando sua filosofia ao método intuitivo de Bergson (Atkinson, 2019ATKINSON, P. “Vladimir Jankélévitch, Henri Bergson, and the Emergence of a Musical Aesthetic”. In: M. La Caze (ed.), 2019, pp. 177-196., p. 186). Mas não apenas isso, segundo o próprio Jankélévitch o modernismo musical russo e francês teria sido responsável pela criação de uma concepção musical de tempo oposta à espacialidade e à linguagem (Atkinson, 2019ATKINSON, P. “Vladimir Jankélévitch, Henri Bergson, and the Emergence of a Musical Aesthetic”. In: M. La Caze (ed.), 2019, pp. 177-196., p. 186), ou seja, reivindicando uma propriedade inefável já pertencente àquela música.

Dados os problemas iniciais, partimos de quatro constatações sobre a filosofia de Jankélévitch que devem ser levadas em consideração daqui em diante: a primeira, de que o uso da linguagem em descrições não é proibitivo nem no bergsonismo, nem na filosofia de Jankélévitch (Jankélévitch, 1983______. «La musique et l’ineffable». Paris: Seuil, 1983., pp. 132-133; 2018______. “A música e o inefável”. Tradução C. S. G. São Paulo: Perspectiva LTDA, 2018., p. 120); a segunda, como observado por Atkinson, de que o uso de alegorias e metáforas se ajusta ao método intuitivo de Bergson; a terceira, de que Jankélévitch fez uso dêitico nas descrições de obras musicais (Rings, 2012RINGS, S. “Talking and Listening with Jankélévitch.” Journal of the American Musicological Society, Vol. 65, Nr. 1, 2012, pp. 218-223.); e a quarta, de que Jankélévitch tecia comentários e descrições poéticas sobre aspectos programáticos das músicas e dos músicos que analisava.

Sobre o uso dêitico e sua relação com os sentidos poéticos nas descrições de Jankélévitch (terceira e quarta constatações), é possível notar que mesmo as referências dêiticas são muitas vezes pontuadas com termos poéticos. Portanto, é necessário discernir os termos que, embora poéticos, apontam para aspectos temporais identificáveis na audição e partitura (dêiticos) e outros que tratam do tempo enquanto aspecto programático de obras musicais.

É esperado que todos esses três registros semânticos para o tempo (descritivodêitico, descritivo-programático e teórico) se relacionem, mas por ora é suficiente que entendamos que as descrições regidas por um logos poético/programático não necessariamente possuem a função de indiciar tampouco definir o tempo-durée.

Recapitulando. Encontramos em Jankélévitch mais de um registro semântico para o tempo musical, o registro teórico e o registro descritivo, esse último, dividindo-se em dois, um voltado à descrição do programa musical de uma obra, e outro, voltado a trechos e passagens musicais que contêm aspectos temporais específicos. Esse último, propriamente o uso dêitico, é que deve se relacionar com o registro teórico, para que fique demonstrada a participação do tempo-durée em uma escuta musical, dando condições de sustentar uma definição da música enquanto arte do tempo que tem como fundamento a audição do tempo-durée.

1.1 A audição do tempo em Fauré e Debussy

Jankélévitch pontua em diversas obras que a música de Fauré realiza mais propriamente o fluxo do tempo-durée do que a música de outros compositores. A música de Debussy, por sua vez, destacar-se-ia por conseguir o efeito inverso, de estancar o fluxo do tempo-durée. Em ambos os casos, supõe-se que a escuta musical capta o tempo-durée.

Analisamos nas obras La musique et l’ineffable (1983 [1961]), Debussy et le mystère de l’instant (2019 [1950]) e Fauré et l’inexprimable (1974) os termos temporais empregados por Jankélévitch. Para as ocorrências desses termos a seguinte classificação foi estabelecida: (1) termos ordinários ou extramusicais (adjuntos adverbiais); (2) termos musicais e paramétricos (referidos ao andamento ou ao ritmo); (3) termos poéticos e filosóficos (e.g. prolongamento, brevidade, devir, águas correntes, reminiscência, metronomia, fluxo, e os seus contrários).

Os termos poéticos e filosóficos se referem em maior ou menor medida ao caráter inefável da música, sendo esses os termos descritivos mais intimamente conectados ao conceito de tempo-durée. Pode-se dizer que Jankélévitch investiu em alguns desses termos a expectativa de que seu leitor, com eles, ultrapassasse o limite da audição trivial do tempo (e.g. acelerandos e andamento) e alcançasse uma audição genuína de um tempo-durée (inefável).

O termo reminiscência (Jankélévitch, 1983______. «La musique et l’ineffable». Paris: Seuil, 1983., p. 176; 2018______. “A música e o inefável”. Tradução C. S. G. São Paulo: Perspectiva LTDA, 2018., p. 145) é utilizado por Jankélévitch, por exemplo, para indicar a reexposição do tema do Noturno n. 6 de Fauré. O termo reivindica uma experiência temporal para a passagem destacada, no caso, a relação do tema primeiramente exposto e sua reexposição. Para Jankélévitch, essa ocorrência de reexposição do tema não obedece ou corresponde à simetria e ordem do desenvolvimento harmônico pré-formado. A reminiscência seria um conteúdo de tipo qualitativo advindo da lembrança, recusando a interpretação da reexposição enquanto recognição métrica do evento passado no presente. A explicação de Jankélévitch é a de que a reexposição é um fenômeno de sentimento e de modificação do sentimento frente à constatação de uma sensação de semelhança, e nada da ordem de uma identidade lógica. A durée, enquanto tempo irreversível e não recuperável em si mesmo, estaria na base da explicação desse fenômeno de reminiscência, uma sensação do puro fluir do tempo.

Metronomia (ibid., p. 198; p. 160) diz respeito ao andamento musical. Para Jankélévitch, o andamento é parte importante da formação do que ele chama de atmosfera musical, algo que se transmite ao sentimento e que motiva imagens indeterminadas. No caso da composição de Fauré, sua metronomia optaria por um estilo musical antagônico ao estilo romântico, evitando o uso de rubato e de quaisquer estratégias expressivas, sendo mais afeito a um certo ascetismo para sua música. Essa opção poética de Fauré é expressa em indicações antinômicas do andamento, como “rapidez tranquila” (ibid., p. 198; p. 160). Nesse caso, tempo refere-se ao programa estético de Fauré.

Os termos prolongamento e brevidade aparecem conjuntamente no comentário às 8 Pièce Brèves de Fauré (ibid., p. 99; p. 99) e dizem respeito ao formato sintético do conjunto dessas peças. Jankélévitch indica serem elas emblemáticas do princípio estético de condensamento do material e criação de maior densidade musical. O artifício consiste em, através da modificação de nossa expectativa, em virtude da brevidade da peça, produzir uma sensação que perdura para além do tempo decorrido da música, além do limite material do som que ressoou. Jankélévitch não os tratou como um efeito do tempo-durée, assim como fez com a reminiscência.

O termo simetria (ibid., p. 54; p. 68) é referido em diversas passagens na obra A música e o inefável. Entre os comentários sobre as canções de Fauré, o termo faz referência à formalidade estrófica do Lied (cf. Caballero, 2003CABALLERO, C. “Fauré and French Musical Aesthetics”. Cambridge: Cambridge University Press, 2003., p. 58). Embora o termo simetria não designe exclusivamente arranjos temporais, ele costuma ser utilizado por músicos e compositores, o que é frequentemente criticado por Jankélévitch. O procedimento de divisão simétrica dos tempos em uma composição musical é frequentemente tido por Jankélévitch como um recurso apócrifo de espacialização. De acordo com Jankélévitch, a não simetria das canções de Fauré implica a liberdade de fruição do melos, do tempo unidimensional, independente do logos discursivo (Jankélévitch, 1974______. «Fauré et l’inexprimable». Paris: Librairie Plon, 1974., p. 264) e das dimensões do espaço. Simetria e não simetria são termos importantes para Jankélévitch caracterizar o que, no artesanato composicional, torna uma música disposta a uma escuta do tempo-durée, sendo, por isso, um termo que descreve teórica e filosoficamente o tempo.

Águas correntes (Jankélévitch, 1983______. «La musique et l’ineffable». Paris: Seuil, 1983., p. 171; 2018______. “A música e o inefável”. Tradução C. S. G. São Paulo: Perspectiva LTDA, 2018., p. 142) e água viva (Jankélévitch, 1974______. «Fauré et l’inexprimable». Paris: Librairie Plon, 1974., pp. 197-198; 264) fazem referência ao título Eau Vivante pertencente ao ciclo de canções La chanson d’Ève, op. 95, de Fauré, mas também aos fragmentos 12, 49a e 91 de Heráclito3 3 “Aos que entram nos mesmos rios outras águas afluem [...]”; “Nos mesmos rios entramos e não entramos”; “Em rio não se pode entrar duas vezes no mesmo [...]” (Heráclito, 1996, pp. 97; 101; 106). . A imagem da água corrente dos rios ilustra a irreversibilidade do tempo e o seu caráter de fluxo. Para Jankélévitch, a condução melódica de Fauré se adequa à imagem do rio heraclitiano porque adota a propriedade irreversível do tempo. Uma música desse tipo teria a capacidade de nos fazer ouvir o devir.

O fluxo heraclitiano das águas correntes não foi para Bergson uma espécie de imagem sensível do tempo vivido? Neste sentido, a continuidade, em Fauré, está mais próxima de Bergson [...] (Jankélévitch, 1983______. «La musique et l’ineffable». Paris: Seuil, 1983., pp. 171-172; 2018______. “A música e o inefável”. Tradução C. S. G. São Paulo: Perspectiva LTDA, 2018., p. 142).

Os termos fluxo, água corrente e devir, ao fim, indiciam: em primeiro lugar, títulos de obras como Eau vivante (água viva), mas também Au bord de l’eau [à beira da água] e Le Ruisseau [o riacho]. Em segundo lugar, características que se aproximam da condição ontológica do próprio devir, capazes de nos informar algo sobre a ontologia da música, do tempo e do tempo musical.

O devir não permite o arredondamento do objeto em seus limites corporais, é, antes, a dimensão segundo a qual o objeto se desfaz sem cessar: forma-se, deforma-se, transforma-se e logo se reforma. A sucessão dos estados do corpo - isto é, a mudança - faz com que se dissolvam os limites solidificados por nossas fragmentações. A Variação e a Metamorfose correspondem perfeitamente a esse regime de mutação continuada que é o regime musical por excelência: o tema que é o objeto, o insignificante objeto da Variação, anula-se entre as reencarnações e as metamorfoses. (Jankélévitch, 1983______. «La musique et l’ineffable». Paris: Seuil, 1983., p. 171; 2018______. “A música e o inefável”. Tradução C. S. G. São Paulo: Perspectiva LTDA, 2018., p. 141)

Devemos esperar que a condução melódica em Fauré, como descrita por Jankélévitch, corresponda a essa ontologia. Porém, não há uma demonstração de que a melodia de Fauré obedeça a um fluxo radical de modificações e anulação como descrito na citação acima. Sendo assim, a imagem do rio heraclitiano seria tão somente poética ou ela de fato indica uma característica auditiva do tempo-durée?

Parte desse problema foi notado por Gontijo: “[...] nem todas as peças primam pela fluidez, pela continuidade, pelas transformações sutis à imagem da vida que aproximam a obra de Fauré à durée bergsoniana” (Gontijo, 2019______. “Vladimir Jankélévitch e a canção de Gabriel Fauré”. In: C. S. Gontijo (ed.), 2019, pp. 151-176., p. 173). Temos que adicionar que nem mesmo as peças mais experimentais de Fauré se adequam a esse regime de liquefação ou mutação contínua do tema descrito por Jankélévitch. É inclusive uma marca da estética de Fauré a composição temática, havendo inclusive uma recorrência de temas entre obras diferentes (Caballero, 2003CABALLERO, C. “Fauré and French Musical Aesthetics”. Cambridge: Cambridge University Press, 2003., p. 156).

O devir, tudo indica, não se faz perceber enquanto propriedade fluida da melodia de Fauré, visto que esta não corresponde parametricamente ao que o conceito de durée demandaria.

Os termos analisados apontam mais para o nível teórico do tempo-durée do que para algo de temporal que se percebe com a audição. Não há uma argumentação mais minuciosa no sentido de subscrevermos as descrições de obras musicais de Jankélévitch como suficientes a indicar em uma melodia, por exemplo, que um legato (Jankélévitch, 1974______. «Fauré et l’inexprimable». Paris: Librairie Plon, 1974., p. 266), um arpejo, ou a ausência de pausas, caracterizem-se como fenômenos de devir, intuídos de um tempo-durée.

Em uma passagem de Fauré et l’inexprimable: “As harmonias, extraordinariamente espremidas, deslizam mais do que modulam, e as procuramos em vão!” (Jankélévitch, 1974______. «Fauré et l’inexprimable». Paris: Librairie Plon, 1974., p. 196). Trata-se de um comentário sobre a canção L’Aube Blanche. Jankélévitch indica que as constantes modulações enarmônicas naquela canção produzem uma mutação contínua “infinitesimal”, de uma “densidade sem fissuras”, resultando na audição de uma continuidade fluida. Em seguida, Jankélévitch indica que o mesmo tipo de audição é atingido na canção Eau Vivante (Jankélévitch, 1974______. «Fauré et l’inexprimable». Paris: Librairie Plon, 1974., p. 197). Contudo, as descrições não são estáveis, e é difícil discernir em que sentido Jankélévitch está a nos demonstrar as condições paramétricas do fluxo sonoro de um regime de pura liquefação ontológica, como sugerido pelo bergsonismo, ou se está a descrever o que “evoca” (Jankélévitch, 1974______. «Fauré et l’inexprimable». Paris: Librairie Plon, 1974., p. 198) o poema de Charles Van Lerberghe.

Sendo assim, como interpretar a fala de Jankélévitch que nos diz ser a música de Fauré mais próxima da filosofia de Bergson?

Essa proximidade, não totalmente uma coincidência, entre a música de Fauré e os postulados da filosofia de Bergson pode ser melhor compreendida caso lidos em comparação com a música de Debussy. Ou seja, em relação a Debussy, a música de Fauré é mais próxima à filosofia de Bergson, mais por força da relatividade da comparação do que por uma coincidência com os princípios radicais do bergsonismo. Em linhas gerais, a música de Debussy conteria estagnação, justaposição, interrupção e descontinuidade, aspectos contrários ao fluxo do devir (Jankélévitch, 2019JANKÉLÉVITCH, V. «Debussy et le mystère de L‘instant». Paris: Plon, 2019 [1976]., p. 140); sendo, portanto, excluída do “regime de mutação continuada que é o regime musical por excelência” (Jankélévitch, 1983______. «La musique et l’ineffable». Paris: Seuil, 1983., p. 171; 2018______. “A música e o inefável”. Tradução C. S. G. São Paulo: Perspectiva LTDA, 2018., p. 141).

Jankélévitch dá destaque ao fato de não haver em Debussy uma condução fluida dos elementos musicais. Esse é um fato composicional e auditivo que impacta decididamente o julgamento de Jankélévitch. Porque, segundo o filósofo, abalaria a percepção da direcionalidade do tempo, tornando indiferenciados passado e futuro, não imprimindo a irreversibilidade nas ocorrências sonoras na música de Debussy.

Jankélévitch não afirma com isso que a música de Debussy seja “espacializada”, afinal a autonomização da forma musical, o uso do modalismo e o atonalismo em Debussy são uma renúncia ao modelo simétrico - diga-se de passagem, ainda mais radical do que foi em Fauré. Jankélévitch está, na verdade, adjetivando o resultado auditivo da música de Debussy como imóvel e estacionário (Jankélévitch, 2019JANKÉLÉVITCH, V. «Debussy et le mystère de L‘instant». Paris: Plon, 2019 [1976]., pp. 128; 180), um recurso que se opõe ao logos, mas que ao mesmo tempo não permite metaforizar a imagem do rio heraclitiano.

Os contrastes entre acordes (Jankélévitch, 2019JANKÉLÉVITCH, V. «Debussy et le mystère de L‘instant». Paris: Plon, 2019 [1976]., p. 136), entre seções (Jankélévitch, 2019JANKÉLÉVITCH, V. «Debussy et le mystère de L‘instant». Paris: Plon, 2019 [1976]., p. 177) e as interrupções na forma musical (Jankélévitch, 2019JANKÉLÉVITCH, V. «Debussy et le mystère de L‘instant». Paris: Plon, 2019 [1976]., p. 334) são os exemplos de descontinuidade na música de Debussy.

Se, por um lado, as obras de Fauré não se adequam perfeitamente ao ideal do devir, por outro, as obras de Debussy não parecem sequer intencionar esse ideal. Para ambos os autores Jankélévitch colheu imagens e metáforas, mas não propriamente uma análise paramétrica. Importa, para Jankélévitch, em cada caso, em uma obra, a possibilidade de construção de uma metáfora, e da metáfora estar em relação à intuição de um tempo metafísico. Escapa de sua argumentação a relação direta entre o que se escuta e o próprio tempo metafísico.

São comparadas as imagem do rio que flui, para a obra de Fauré, e a imagem da água estagnada, para a obra de Debussy (Jankélévitch, 2019JANKÉLÉVITCH, V. «Debussy et le mystère de L‘instant». Paris: Plon, 2019 [1976]., p. 262), mas não as diferentes estratégias de composição. São metáforas produtivas para a compreensão da poética dos compositores em questão, contudo, não são descrições do tempo musical.

As longas páginas de Debussy et le mystère de l’instant e Fauré et l’inexprimable, porém, não quiseram ser somente uma realização hermenêutica e pessoal de Jankélévitch. Isso fica evidente no livro A música e o inefável, onde se revela a pretensão filosófica de Jankélévitch.

As analogias e metáforas estabelecidas por Jankélévitch alimentaram uma rica rede de relações e associações, incluindo a estética e a metafísica. Entretanto, assim como todo recurso poético, elas não são capazes de contornar a mera possibilidade de elegermos outros critérios para a criação de tantas outras analogias e metáforas. É ainda possível pensar em um bergsonismo em que a música de Debussy seja mais próxima à filosofia de Bergson do que a música de Fauré4 4 Socha (2009) defende a música de Debussy como representante da filosofia de Bergson, concebendo como parâmetro da continuidade fluida em Debussy a movimentação de “blocos sonoros” (Socha, 2009, p. 113). . Isso nos coloca novamente diante do problema da função hermenêutica das descrições de Jankélévitch.

[...] somos deixados com uma situação em que nenhum tipo de discurso pode ser descartado a priori. Qualquer fatia de mediação linguística tem o potencial de atuar como um gesto fortemente dêitico para alguns, enquanto deixa os outros indiferentes. (Rings, 2012RINGS, S. “Talking and Listening with Jankélévitch.” Journal of the American Musicological Society, Vol. 65, Nr. 1, 2012, pp. 218-223., p. 223)

Parâmetros temporais como os acelerandos e os ritmos, ou mesmo as condições mentais de formação de expectativas, poderiam ter sido escolhidos por Jankélévitch a ancorar suas afirmações filosóficas sobre o tempo. Entretanto, importou menos o caráter dêitico implicado nesses e outros parâmetros do que os sentimentos e as impressões subjetivas de fluidez e estagnação, que são selecionadas de acordo com o seu potencial em instigar intuições. O bergsonismo de Jankélévitch, pelo recurso insistente à palavra poética, assim interpretamos, atua no sentido da sensibilização de nossa audição, através do verbo, para que essa se torne intuitiva para o tempo-durée; contudo, o efeito colateral é tornar-se surda para a escuta paramétrica, aproximando-se daquilo que buscou criticar na metamúsica, a desmaterialização da audição.

É uma intenção da escrita de Jankélévitch deixar em segundo plano a escuta musical considerada ordinária, para inserir imagens poéticas na medida em que apontam para uma audição em contato direto com o tempo-durée. Portanto, o que Jankélévitch quis dizer ao confrontar Fauré e Debussy foi que a música de Fauré estaria próxima de nos fazer intuir o tempo enquanto durée.

O que se deve dizer é que Debussy vai além da alternativa do contínuo e do descontínuo. Um devir contínuo progride graças aos instantes descontínuos que o impulsionam: mas esses instantes infinitesimais são inúmeros; uma mudança contínua resulta graças às mutações intermitentes que pontuam seu progresso: mas essas mutações imperceptíveis são em número infinito [...] Existe, portanto, uma continuidade debussyana que é, de certo modo, infinitamente descontínua e que parece ora contínua, ora descontínua dependendo do ponto de vista a partir do qual a pessoa se coloca [...] Essa contradição, esse paradoxo da continuidade descontínua, não é o próprio mistério de Debussy? Não é essa, afinal, toda a ambiguidade dessa duração bergsoniana que, no entanto, opomos à imobilidade debussyana? (Jankélévitch, 2019JANKÉLÉVITCH, V. «Debussy et le mystère de L‘instant». Paris: Plon, 2019 [1976]., p. 287)

A música de Debussy joga com diferentes formas de fruir o tempo, enquanto que Fauré, pelo menos uma parte de seu repertório, priorizaria o aspecto contínuo do traçado melódico. Deve-se notar que a própria ideia de comparação entre os compositores já indica que Jankélévitch está de posse do conhecimento de como o tempo-durée é e pode se apresentar musicalmente, e de como o tempo-durée não-é e não pode se apresentar musicalmente. Todavia, essa discussão não é realizada, como é próprio do bergsonismo, tendo em vista que procedem fora das ferramentas analíticas, racionais e fenomênicas.

Nesse caso, devemos reconsiderar a interpretação de Atkinson (2019)ATKINSON, P. “Vladimir Jankélévitch, Henri Bergson, and the Emergence of a Musical Aesthetic”. In: M. La Caze (ed.), 2019, pp. 177-196.. Diferentemente do que foi apontado por Atkinson, os termos temporais em Jankélévitch não estariam sob uma gramática dêitica, estando fora da função de evidenciar, na audição, o caráter teorético prescrito para o tempo-durée.

Atkinson nos diz que “o tempo como duração real [durée réelle] só pode ser revelado na experiência sensual” (Atkinson, 2019ATKINSON, P. “Vladimir Jankélévitch, Henri Bergson, and the Emergence of a Musical Aesthetic”. In: M. La Caze (ed.), 2019, pp. 177-196., p. 177), contudo não é isso o que se revela no procedimento filosófico de Jankélévitch. O que é destacado com os termos dêiticos temporais são trechos musicais, dos quais, a associação com uma imagem poética é possível. A relação entre a música de Fauré e o tempo-durée sustentou-se através de metáforas e analogias; a presença de um conteúdo inefável, somente sugerida, não dependeu de uma correspondência com a coisa audível.

Conclui-se que: (1) não há uso próprio da função dêitica por parte de Jankélévitch, ao mesmo tempo que, (2) para Jankélévitch, uma escuta musical paramétrica não se equipara a uma audição do tempo-durée.

1.2. A indexicalidade do tempo-durée

Jankélévitch pensou a música através do conceito de durée. Isso implicou no aceite tácito do bergsonismo, enquanto pressuposto, e enquanto método para pensar o tempo-durée em audição. Jankélévitch foi o filósofo que mais radicalmente pensou sobre a possibilidade da audição musical ser inscrita na filosofia de Bergson:

Que é a duração [dentro]5 5 Mantenho a tradução da Edições 70, porém insiro uma correção para que fique de acordo com o original: “Qu’est-ce que la durée au-dedans de nous?” (Bergson, 2003a, p. 100). de nós? Uma multiplicidade qualitativa, sem semelhança com o número; um desenvolvimento orgânico que, apesar de tudo, não é uma quantidade crescente; uma heterogeneidade pura no interior da qual não há qualidades distintas. Em síntese, os momentos da duração interna não são exteriores uns aos outros. (Bergson, 1988______. “Ensaio sobre os dados imediatos da consciência”. Tradução J. S. Gama. Lisboa: Edições 70, 1988., p. 156)

A dificuldade de uma definição da música a partir da audição do tempo filosófico/especulativo da filosofia de Bergson é justamente a de conseguir conciliar a escuta musical com a natureza unidimensional do tempo, o que, nas palavras de Bergson, seria como mostrar que na escuta musical “não há qualidades distintas”. Uma definição de música sob esses termos necessita reduzir os fenômenos musicais todos a uma única dimensão temporal, portanto, reduzi-lo a uma quase-desmaterialização. Por esse motivo, a definição de música que inclui o tempo-durée, afasta os fenômenos temporais paramétricos e os espaciais, tidos como ordinários, qualificando-os como não autênticos, ao menos, quando analisados dentro do quadro dualista intuitivo/racional.

A filosofia de Jankélévitch sustenta esse dualismo e ressalta o tempo-durée como polo intuitivo unilateral do verdadeiro estado musical (não do estado ordinário e racional). A ambição do projeto consiste em trazer a explicação epistemológica e ontológica da música para dentro do bergsonismo.

Ainda assim, como visto no tópico anterior, o projeto apresenta dificuldades. O tempo a que Jankélévitch se refere em uma obra (de Fauré ou Debussy) é um tempo poético e filosófico. O que é exemplificado e privilegiado é a linguagem, e não a escuta ou o tempo na escuta. Assume-se que a escuta musical é inefável, mas deduz-se que sua inefabilidade é derivada da pura durée porque seu conteúdo profundo é “roçado [effleuré]” (Gontijo, 2017GONTIJO, C. S. “Em busca da ipseidade musical: a música e o inefável de Vladimir Jankélévitch”. Scripta, Vol. 21, n. 41, 2017, pp. 213-225., p. 214) através de um registro semântico. Não se encontram na escuta as propriedades de um tempo-durée, mas, vislumbra-se, na audição musical, em si mesma aconceitual, um complemento poético, uma ocasião para referir a durée.

Tudo leva a crer que os apontamentos de Rings (2012)RINGS, S. “Talking and Listening with Jankélévitch.” Journal of the American Musicological Society, Vol. 65, Nr. 1, 2012, pp. 218-223. e Lochhead (2012)______. “Can We Say What We Hear? Jankélévitch and the Bergsonian Ineffable”. In: M. Gallope, 2012, pp. 231-235. estão corretos, de que há de fato “uma performance linguística” (Rings, 2012RINGS, S. “Talking and Listening with Jankélévitch.” Journal of the American Musicological Society, Vol. 65, Nr. 1, 2012, pp. 218-223., p. 220) operada por Jankélévitch em suas descrições de obras musicais. Pontuamos ser essa uma performance filosófica, mais especificamente, uma performance metafísica.

Livres de um caráter dêitico, os termos temporais utilizados nas descrições de obras musicais por Jankélévitch não atribuem diretamente à audição aquilo que significam. Assim, o tempo-durée não pode ser propriamente um ganho atribuído à audição, mas uma derivação teórica e conceitual da filosofia de Bergson. O problema se torna intrincado quando reconhecemos que a intenção expressa pela filosofia de Jankélévitch não foi exatamente a de definir a música através de uma teoria, mas através de sua intuição. Por fim, a própria intuição não se relaciona com a percepção.

A incompatibilidade entre intuição e percepção, nesse caso, é derivada do dualismo da filosofia de Bergson. Para esse filósofo há a realidade objetiva, apreendida com o sentido externo e pensada com a racionalidade, e, de outro lado, a realidade intuitiva, identificada com a durée (Bergson, 2013______. «Introduction à la métaphysique». Paris: Payot & Rivages, 2013 [1903]. [1903], p. 44). Essa última, um desenrolar de estados múltiplos e contínuos que configuram nossa vida interior (Bergson, 2013______. «Introduction à la métaphysique». Paris: Payot & Rivages, 2013 [1903]. [1903], p. 40-44).

Por definição, na filosofia de Bergson, a realidade intuitiva encontra-se além da barreira ontológica da racionalidade e da externalidade. Dada essa condição, Bergson se viu obrigado a criar uma estratégia para a comunicação de sua filosofia: “comparações e metáforas sugerirão aqui o que não seremos capazes de expressar” (Bergson, 2003b______. «La pensée et le Mouvant. Essais et conférences». Un document produit en version numérique par Mme Marcelle Bergeron, bénévole professeure à la retraite de l’École Dominique-Racine de Chicoutimi, Québec et collaboratrice bénévole, 2003b [1922]. [1922], p. 27). O problema da indexicalidade se resolve em Bergson com a criação de um método intuitivo que não se confunde com o perceptivo:

A temporalidade na qual a inteligência se insere para satisfazer as necessidades humanas é um tempo criado por ela mesma a partir da estruturação do real pela percepção. Mas a descoberta da especificidade da consciência é também o desvelamento da temporalidade verdadeira, a princípio velada pela percepção. De modo que o problema da origem do conhecimento deve ser considerado de duas maneiras. Há uma origem do conhecimento que é a percepção: a partir dela prolongamos a vocação pragmática do “eu superficial” e constituímos a subjetividade epistemológica que opera generalizações com a finalidade de estruturar simbolicamente o real para que possamos implementar esquemas de ações sobre ele. Mas se a reflexão inverte esta projeção externa da subjetividade e capta a duração da consciência no nível do “eu profundo”, encontramos a coincidência do eu consigo próprio também como uma origem do conhecimento. A partir desta origem podemos considerar a duração psicológica na sua profundidade e especificidade como indicação de uma outra forma de considerar o dado. Não mais O dado organizado no âmbito pragmático da percepção e do intelecto, mas o dado imediato. A consciência é forma de acesso à temporalidade originária. (Silva, 1994SILVA, F. L. “Bergson: intuição e discurso filosófico”. São Paulo: Loyola, 1994., p. 93)

O método intuitivo de Bergson testifica a subjetividade enquanto dimensão originalíssima, de tal modo que o conhecimento da temporalidade, inerente à subjetividade, necessita de uma filosofia em separado: “A metafísica é, então, a ciência que reivindica a dispensa dos símbolos” (Bergson, 2013______. «Introduction à la métaphysique». Paris: Payot & Rivages, 2013 [1903]. [1903], p. 44). A metafísica reivindica, portanto, uma saída para fora da linguagem, embora a comunicação dessa saída, em algum momento desse percurso, necessite dos meios da linguagem. Porém, sendo a intuição por si mesma intraduzível, Bergson concede que:

[...] muitas imagens diferentes, emprestadas de coisas de ordens muito diferentes, podem, pela convergência de sua ação, dirigir a consciência ao ponto preciso onde há uma certa intuição a ser apreendida. Ao escolher as imagens o mais díspares possível qualquer um deles será impedido de usurpar o lugar da intuição que eles são responsáveis por invocar [...]. (Bergson, 2013______. «Introduction à la métaphysique». Paris: Payot & Rivages, 2013 [1903]. [1903], p. 45)

A citação acima aponta para um ponto de inflexão da filosofia de Jankélévitch que gostaríamos de chamar a atenção. Uma vez que as descrições musicais de Jankélévitch não são dêiticas e não indiciam o tempo-durée na audição, qual é, afinal, o papel que essas descrições desempenham?

Elas desempenham justamente o que prescreve a filosofia de Bergson, o papel de criar um estado de conversão de diferentes imagens, unindo música e linguagem sob o propósito de invocar a intuição da durée. Isso é o que podemos interpretar da filosofia de Jankélévitch do ponto de vista das ferramentas filosóficas fornecidas pelo bergsonismo. Porém, como já indicado, Jankélévitch não se satisfaz apenas com uma simples aplicação da filosofia de Bergson, interessa a Jankélévitch identificar, essencialmente, música e durée.

Antes mesmo que a síntese filosófico/musical de Jankélévitch surgisse, o filósofo Gabriel Marcel (2005b)______. “Bergson and Music”. In: G. Marcel, 2005b, pp. 85-95. já diagnosticava uma ânsia por parte dos leitores da filosofia de Bergson pela construção de um bergsonismo musical, cuja expectativa o próprio Marcel fez questão de mitigar. Segundo Marcel, a “doutrina da intuição filosófica” de Bergson (Marcel, 2005b______. “Bergson and Music”. In: G. Marcel, 2005b, pp. 85-95., pp. 85-86) negaria a possibilidade de a música instanciar a intuição de um tempo-durée:

No máximo, pode-se dizer - usando, aliás, uma linguagem que, sem dúvida e com razão, o senhor Bergson não aprovaria - que a continuidade melódica nos fornece um exemplo, uma ilustração de uma continuidade pura que é tarefa do filósofo apreender em si mesma. (Marcel, 2005b______. “Bergson and Music”. In: G. Marcel, 2005b, pp. 85-95., pp. 87-88, tradução nossa)

Diferentemente de Jankélévitch, Marcel buscou criar um bergsonismo musical o mais estrito possível, e, por isso, para Marcel não seria possível uma vinculação estreita entre música e durée. A filosofia da música de Marcel se contentou em utilizar o pensamento de Bergson enquanto uma “filosofia para a qual o ser pode ser apreendido como graus de intensidade” (Marcel, 2005b______. “Bergson and Music”. In: G. Marcel, 2005b, pp. 85-95., p. 92).

Para Marcel, a descrição da música enquanto imagem da fluidez ou da inefabilidade do tempo manter-se-ia como uma propedêutica do trabalho já realizado por Bergson e, por isso, não vê a necessidade de se construir uma filosofia da música nesses termos. Segundo Marcel, um bergsonismo musical possível consistiria apenas em reavivar a psicologia dos graus de intensidade para a experiência musical, interessando-se pela “profundidade” psicológica de uma escuta musical (Marcel, 2005b______. “Bergson and Music”. In: G. Marcel, 2005b, pp. 85-95., p. 93).

Marcel alude a uma escuta profunda, que diz respeito ao ‘aprofundamento’ ou acúmulo de modulações intensivas de nosso interior psicológico no transcurso da escuta musical, configurando a escuta enquanto uma jornada “formativa” (Marcel, 2005b______. “Bergson and Music”. In: G. Marcel, 2005b, pp. 85-95., p. 94). O mesmo pode ser dito das ideias que acompanham a escuta, que em seu transcurso se tornam “ideias profundas” (Marcel, 2005b______. “Bergson and Music”. In: G. Marcel, 2005b, pp. 85-95., p. 94). Segundo Marcel, a escuta musical nos faria entrar em contato com algo que estava antes “indisponível” em nós mesmos (Marcel, 2005b______. “Bergson and Music”. In: G. Marcel, 2005b, pp. 85-95., p. 94) e que se torna progressivamente evidente. Cabe fazer aqui um paralelo entre a experiência musical destacada por Marcel e o Bildungsroman, desde que se considere o ouvinte como o protagonista, e a torrente de acontecimentos onde o protagonista se insere a própria música. Na avaliação de Marcel, esse seria um caso válido de bergsonismo musical.

A filosofia da música de Jankélévitch adotou o caminho mais difícil dentro do bergsonismo, uma via criticada por Marcel; “a durée concrète não é musical em sua essência” (Marcel, 2005b______. “Bergson and Music”. In: G. Marcel, 2005b, pp. 85-95., p. 87).

Ao definir a música como “essencialmente uma arte temporal” (Jankélévitch, 1983______. «La musique et l’ineffable». Paris: Seuil, 1983., p. 130; 2018______. “A música e o inefável”. Tradução C. S. G. São Paulo: Perspectiva LTDA, 2018., p. 118), Jankélévitch dá sinais da relação estreita entre música e tempo-durée que busca defender. A posição de Marcel, mais crítica, reforça a impossibilidade de encontramos, na audição, o tempo-durée, ou um tempo-durée inerente à música.

Diferentemente de Marcel, a filosofia de Jankélévitch sugeriu que a própria música (melos) é essa “franja de imagem” (Bergson, 2003b______. «La pensée et le Mouvant. Essais et conférences». Un document produit en version numérique par Mme Marcelle Bergeron, bénévole professeure à la retraite de l’École Dominique-Racine de Chicoutimi, Québec et collaboratrice bénévole, 2003b [1922]. [1922], p. 27), uma via direta para a intuição, que pode ser descrita poeticamente. Entretanto, esbarramo-nos novamente com a falta de evidência dessa capacidade da audição em nos revelar o tempo-durée, uma vez que o que é descrito por Jankélévitch são ocasiões para a intuição do tempo-durée e não a audição do mesmo. A resposta à pergunta ‘como passar do estado paramétrico da escuta musical para o estado intuitivo do tempo?’ não foi fornecida.

A graciosidade moral, o encanto musical e o encanto poético (Bergson, 1988______. “Ensaio sobre os dados imediatos da consciência”. Tradução J. S. Gama. Lisboa: Edições 70, 1988. [1889], pp. 13, 14) são, igualmente, imagens que suscitam conteúdos intuitivos. Não são elas as imagens prediletas de Bergson para esse fim. A imagem do elástico pode ser mais eficiente a suscitar a intuição da durée do que a melodia (Bergson, 2013______. «Introduction à la métaphysique». Paris: Payot & Rivages, 2013 [1903]. [1903], p. 44), e, por fim, nos diz Bergson: “Àquele incapaz de dar a si mesmo a intuição da duração constitutiva de seu ser, coisa alguma jamais o daria, nem os conceitos nem as imagens” (Bergson, 2013______. «Introduction à la métaphysique». Paris: Payot & Rivages, 2013 [1903]. [1903], p. 44-45).

1.3 Audibilidade versus tempo-durée

Como discorrido no tópico 1.1, Jankélévitch empreendeu descrições do tempo em obras musicais, recorrendo a analogias e metáforas que, por sua vez, não intencionaram o registro dêitico de ocorrências auditivas. Em alguns casos, os descritores retrataram o tempo enquanto sentido pertencente à poética de compositores, e, em outros casos, o tempo é referido à teoria bergsoniana.

No tópico 1.2, vimos que a pretensão de Jankélévitch foi a de que o tempopoético seria capaz de induzir a tomada de consciência do tempo-durée. Essa transição entre a música, o poético e a durée, como previamente criticado por Marcel (2005b)______. “Bergson and Music”. In: G. Marcel, 2005b, pp. 85-95., não encontra um suporte imediato na filosofia de Bergson. Segundo Marcel, a audibilidade musical não teria como ser recepcionada pela filosofia de Bergson sem contradição.

Jankélévitch sustentou, ainda assim, uma proposta não antevista por Bergson (cf. Atkinson, 2019ATKINSON, P. “Vladimir Jankélévitch, Henri Bergson, and the Emergence of a Musical Aesthetic”. In: M. La Caze (ed.), 2019, pp. 177-196., p. 177). Para Jankélévitch, não se trata de a música instigar ou provocar uma intuição da duração interna, mas identificar a música ao tempodurée. Nesse sentido, a música é a arte do tempo porque a audição da música implica a audição direta do tempo-durée.

Como indicado no tópico 1, a posição de Jankélévitch acumula alguns aspectos contraditórios, sobretudo em A música e o inefável, quando professa uma postura antimetafísica quando critica seus oponentes, e metafísica quando entende ser a música uma experiência da durée. Interessa-nos agora avaliar o motivo pelo qual Jankélévitch adiciona ao bergsonismo a ideia de uma música que é toda ela tempo-durée. Essa posição de Jankélévitch, segundo nossa avaliação, é que, em primeiro lugar, motiva as contradições anteriormente elencadas, porque institui um dualismo entre música autêntica [melos] (Jankélévitch, 1983______. «La musique et l’ineffable». Paris: Seuil, 1983., p. 41) e inautêntica [logos], cuja autenticidade é baseada na adequação da música a uma vivência de tempo unidimensional.

Tratando-se de um devir que exclui toda ideia geral, todo conceito abstrato, “preâmbulo” e “conclusão” são, por sua vez, noções metafóricas [...] a pura audição não identificaria o esquema da sonata. Isto porque o esquema é coisa mental, não algo audível, nem tampouco tempo vivido (Jankélévitch, 1983______. «La musique et l’ineffable». Paris: Seuil, 1983., pp. 47-48; 2018______. “A música e o inefável”. Tradução C. S. G. São Paulo: Perspectiva LTDA, 2018., p. 64)

A questão premente recai sobre o sentido que o método de Jankélévitch atribuiu ao objeto que visa conhecer. Aquilo que Jankélévitch afirma ser música, seria algo possível de audição? Sendo audível, o seria na mesma forma como compositores, instrumentistas e audiência a compreendem? Caso negativo, qual a razão ontológica para nomeá-la música?

Segundo Jankélévitch, a ontologia da durée exige uma escuta unidimensional, o que o obriga, coerentemente, a desmaterializar os parâmetros audíveis (Jankélévitch, 1983______. «La musique et l’ineffable». Paris: Seuil, 1983., p. 211; 2018______. “A música e o inefável”. Tradução C. S. G. São Paulo: Perspectiva LTDA, 2018., pp. 167-168). Escutar o tempo-durée em música seria como uma relação não regrada de escuta, uma sucessiva “simbiose irracional do heterogêneo” (Jankélévitch, 1983______. «La musique et l’ineffable». Paris: Seuil, 1983., pp. 34-44). O expediente de tornar unidimensional aquilo que é rico de dimensões é o que precisamente cria a condição para que Jankélévitch asserte a identidade entre tempo e música. Contudo, a equação ontológica, não obstante, produz um resíduo. A música ordinária, fenomênica, depositária do sentido do termo música, não pode ser referida dentro dessa nova ontologia.

Chegamos ao núcleo do problema. Nos termos da ontologia musical de Jankélévitch, somente a música que não pode ser ouvida, a música em que nenhuma audição sonora qualifica, a música que não ocupa o espaço acústico - justamente o caso absurdo - é essa suposta música quem deve ser, segundo Jankélévitch, identificada enquanto autêntica; visto ser o único modo pelo qual podemos identificar essencialmente a música com o tempo. O custo dessa identificação é a anulação da audição, realidade e cultura musical.

[...] aquele que procura pela música em algum lugar não a encontrará, frustraremos nossa curiosidade se esperarmos que a revelação nos seja dada por alguma anatomia do discurso musical. (Jankélévitch, 1983______. «La musique et l’ineffable». Paris: Seuil, 1983., p. 196; 2018______. “A música e o inefável”. Tradução C. S. G. São Paulo: Perspectiva LTDA, 2018., p. 158)

O expediente de especulação conceitual de Jankélévitch não é, por si, censurável. Contudo, a conclusão - a identidade entre música e tempo - é precipitada. Não há evidência alguma para a aceitação da durée, ou, mais importante, que as propriedades da durée participem de uma audição musical. Não houve uma metodologia ou análise nesse sentido. O uso do termo música é semanticamente meândrico, e, a rigor, o que Jankélévitch nomeia enquanto música não guarda nenhuma propriedade em comum com o que ordinariamente é significado com o termo música. Não há familiaridade ou semelhança entre o que se convém chamar música e o que postula Jankélévitch, podendo ser considerados casos homônimos.

A audibilidade, capacidade sensível humana que articula as dimensões espacial e temporal (cronometrável), é condição imprescindível da inteligibilidade do termo música, sua condição sine qua non.

É conhecido desde a época de Aristóteles que o som é um fenômeno vibracional que se transmite através do espaço (Johnstone, 2013JOHNSTONE, M. A. “Aristotle on Sounds”, British Journal for the History of Philosophy, Vol. 21, Nr. 4, 2013, pp. 631-648., p. 636). No século XVII, foi comprovado ser o som um fenômeno ondulatório, gerado por corpos vibratórios, dotado de propriedades temporais e espaciais discerníveis pela escuta. Não somente o tempo cronométrico, mas o espaço foi igualmente objeto de especulação artístico-musical na música ocidental, desde a acústica das catedrais, passando pela era dos cientistas acústicos com Huygens, chegando até o Poème Électronique de Edgard Varèse, composto para o Pavilhão Philips.6 6 Sobre a pertinência do espaço na experiência musical, ver os conceitos de: “espaço sonoro; espaço figural; espaço cênico; espaço acústico” (Aldrovandi, 2004, pp. 16-20), “espaço holístico” (Smalley, 2007, p. 37), “forma espacial” (Smalley, 2007, p. 40), “espaço enativo” e “espaço performado” (Smalley, 2007, p. 41).

A atitude de Jankélévitch foi a de negação ativa da realidade espaçotemporal, e com ela, a própria audibilidade:

O movimento efetivo ou o deslocamento espacial, que é a mais simples mutação, produz uma vibração acústica da atmosfera e, por conseguinte, perfaz-se na balbúrdia, na agitação e na algazarra. O tempo nu e abstrato é um tempo silencioso, mas o devir preenchido de eventos e ocorrências, abastecido de conteúdos concretos gera ruído. Os ruídos se sucedem e os sons implicam uma continuidade dotada de vigor, como as notas apoiadas que o cantor deliberadamente faz vibrar: o tempo é, portanto, sua dimensão natural. (Jankélévitch, 1983______. «La musique et l’ineffable». Paris: Seuil, 1983., pp. 231-232; 2018______. “A música e o inefável”. Tradução C. S. G. São Paulo: Perspectiva LTDA, 2018., pp. 180-181)

Um som vibrante qualquer se desloca espacialmente, assim admite Jankélévitch. Entretanto, segundo o filósofo, a essência musical consta somente na dimensão metafísica da durée, inexistente espaço-temporalmente: “um mistério e não [...] um segredo material” (Jankélévitch, 1983______. «La musique et l’ineffable». Paris: Seuil, 1983., p. 196; 2018______. “A música e o inefável”. Tradução C. S. G. São Paulo: Perspectiva LTDA, 2018., p. 158).

Em que consistiria esse “mistério”? A resposta, para todos os efeitos, encontra-se no apagamento da matéria, no conceito de durée ou “tempo fundamental”:

Uma melodia que ouvimos de olhos fechados, pensando em nada mais que não nela, está muito perto de coincidir com este tempo que é a própria fluidez da nossa vida interior; mas ela tem ainda muitas qualidades, muita determinação, e seria necessário apagar primeiro a diferença entre os sons, depois abolir os caracteres distintivos do próprio som, para reter apenas a continuação do que precede no conseguinte e a transição ininterrupta, multiplicidade sem divisibilidade e sucessão sem separação, para finalmente encontrar o tempo fundamental. (Bergson, 2003 [1922], p. 41)

1.3.1 Audibilidade em Gisèle Brelet

A filósofa, musicóloga e música Gisèle Brelet, no livro Le temps musical (1949), buscou equiponderar a tensão fundamental do bergsonismo musical, entre intuição e percepção. A ideia de Brelet foi a de buscar preservar a fenomenalidade da escuta dentro de uma compreensão metafísica do tempo-durée.

Segundo McBrayer, Brelet se filia ao bergsonismo a partir de uma atitude de “clarificação” do mistério, diferente da atitude de Jankélévitch, que foi a da “proliferação” do mistério (McBrayer, 2017MCBRAYER, B. M. “Mapping Mystery: Brelet, Jankélévitch, and Phenomenologies of Music in Post-World War II France”. Pittsburgh: University of Pittsburgh, 2017. [Tese de doutorado]., p. 10).

O ponto de partida de Brelet foi a consideração de um tempo inerente à música (Brelet, 1949BRELET, G. “Le temps musical: essai d’une esthétique nouvelle de la musique”. Vol. 1. Presses Universitaires de France, 1949., pp. 7-8), distribuído entre as dimensões objetiva, subjetiva, abstrata, vivida e metafísica: “o tempo musical nos pressiona e nos assalta com a urgência e as exigências do tempo real. E apreendemos aqui que o objeto da música é de fato o próprio tempo, tempo sensível à alma, vivido em sua realidade viva” (ibid., p. 17).

Sua motivação foi buscar superar o formalismo de Hanslick, uma concepção restrita ao ordenamento material e racional do som (ibid., p. 32). Contudo, assim como Hanslick, buscou por uma investigação estética que contemplasse os níveis físico, psicológico, mental e espiritual da música. Foi substancialmente distinta de Hanslick conquanto ao método e ao objeto de estudo (o tempo).

Brelet tinha por objetivo conduzir as suas reflexões até “a essência profunda da música” (ibid., p. 30), expressa através de uma temporalidade qualitativa. Brelet entendeu que a metafísica intuicionista bergsoniana foi bem-sucedida na compreensão da durée e na separação entre o racional e o qualitativo. Entretanto, criticou em Bergson a impossibilidade de a música conciliar, em uma e mesma experiência, as dimensões racionais e qualitativas:

O tempo da obra musical é aquele que já está inscrito no interior da própria sonoridade, um tempo sem dúvida racional, encerrado nos limites de um começo e de um fim, mas também qualitativo e como que inseparável da substância sonora ela mesma, de sua altura e de seu timbre, pois o som agudo é curto enquanto o grave é longo, um flui em um andamento rápido e o outro em um andamento lento. (ibid., p. 29)

Embora coloque em pauta um bergsonismo fenomenalista, Brelet ainda manteve a crença de que a música possui um conteúdo místico e metafísico: “a criação musical é ascese da duração psicológica ao tempo musical” (ibid., p. 35); “a música, a arte do tempo puro, é também a arte metafísica por excelência” (ibid., p. 45).

Brelet elabora a sua própria metafísica da música, de modo a se inscrever parcialmente na tradição metafísica de Bergson (ibid., p. 48): “Bergson está errado em acreditar que qualquer divisão da durée é uma fragmentação dela [...]” (ibid., p. 285). A concepção de Brelet seria a de integrar o sensível ao suprassensível na análise da música (ibid., p. 51). Brelet praticou o que nomeou de “metafísica imanente” (ibid., p. 52), uma metafísica que se infere a partir do contato perceptivo.

Como podemos ver, há elementos para considerarmos a filosofia de Brelet como não representativa do bergsonismo, contudo, o reconhecimento do tempodurée enquanto componente profundo da essência musical, não tira o bergsonismo de seu horizonte filosófico:

[...] é mesmo o tempo íntimo do músico que se inscreve em sua obra: essa é a verdade do bergsonismo. Bergson apreendeu, em uma intuição profunda, que para além da forma, a obra musical é a duração vivida de uma consciência [...]. (ibid., p. 53)

O projeto de Brelet reconhece a tensão entre intuição da durée e percepção sensível, e esse reconhecimento tácito é suficiente para seu trabalho ser inscrito como bergsonismo musical. Para o formalismo musical, a exemplo do supracitado Hanslick, essa tensão é inexistente. Uma segunda característica bergsoniana de seu projeto encontra-se na diferenciação ontológica entre o sensível e o suprassensível, consequentemente, entre o tempo ordinário e o tempo-durée.

E, finalmente, como a melodia, fiel ao tempo musical e por assim dizer à essência do tempo, a obra musical realizará sua vocação secreta, a aspiração que se eleva do tempo ao eterno: fluindo no tempo, o atravessará e sobreviverá ao seu fluir, a fim de superá-lo dentro de si. Porque, descobrindo em si o ato atemporal do qual emana, a obra musical se tornará seu símbolo vivo e, como a melodia, finalmente se retirará em si mesma, fora do devir e do fluir, em um tempo musical forjado por seu ato, presente indivisível, lugar de sua total presença... (ibid., p. 177)

Brelet, embora não empregue sistematicamente o método imagético de Bergson, fez uso do recurso da metáfora como termo médio entre a percepção sensível e a intuição da durée. Encontramos esse recurso em termos como “fundo”, “fundamento”, “profundo” (ibid., pp. 56-57), “ascender” e “subir” (ibid., p. 53). Em todos os casos o tempo sonoro e o tempo psicológico da música são transpostos, de alguma forma, para o tempo metafísico. Não é claro o modo como Brelet concebeu essa passagem. Embora afirme haver uma continuidade, alega, por vezes, ser a metafísica um “efeito” (ibid., p. 53) da música. O recurso intermediário, nesses casos, é poético e metafórico, o que reforça a descontinuidade ontológica entre o tempo objetivo e o tempo-durée: “mas conceber a arte como esse método que medeia o imediato e salvaguarda o valor metafísico da arte é impossível na metafísica bergsoniana” (ibid., p. 54).

A metafísica de Brelet abraça o dualismo, sem o resolver. Ou seja, mantém integrados o sensível e o suprassensível, sem implicar com isso uma planificação de suas ontologias. O tempo metafísico e o tempo paramétrico não compartilham a mesma ontologia (ibid., pp. 58-59).

Um outro aspecto influente do programa bergsoniano, bem exemplificado na seção Ambiguidade do espaço sonoro, é a exigência de redução e desmaterialização da variedade paramétrica em prol da unidimensionalidade temporal (ibid., p. 93). Esse mesmo procedimento é observado no capítulo A sonoridade e o espaço, no qual Brelet abole a dimensão do espaço enquanto condição para adentrarmos na interioridade do tempo puro (ibid., p. 85). Esse procedimento mobiliza a conhecida interpretação de Bergson sobre as intensidades sonoras, concebidas como intrinsecamente temporais, interpretadas por Brelet enquanto “significado temporal” (ibid., p. 89). Seguindo essa mesma linha, Brelet considera a harmonia como “fenômeno psíquico” (ibid., p. 94), e os intervalos musicais como não representáveis no espaço (ibid., p. 99).

Há na música uma forma de sucessão pura que pode se apoiar somente na proximidade espacial; mas se opõe e se une a uma forma de simultaneidade, apoiando-se na harmonia, e que, desta maneira, é livre de espaço: desta forma, não há mais espaço, mesmo dinâmico, pois ele encarna, situado além do espaço e o tempo ele mesmo, e remontando aos momentos esparsos da multiplicidade temporal, um presente que nenhuma sucessão poderia quebrar. (ibid., p. 107)

É certo que Brelet defendeu um bergsonismo musical, com vistas a criar uma síntese entre musicologia, filosofia da música e metafísica. Contudo, não é possível afirmar que houve uma perfeita conciliação entre esses campos. Embora apresente análises paramétricas instigantes, o argumento permaneceu em favor de uma origem ou fundamento metafísico-temporal para a música.

2. Implicações do bergsonismo musical

Gabriel Marcel, Gisèle Brelet e Vladimir Jankélévitch recepcionaram individualmente e de maneira original a filosofia de Henri Bergson. Todos eles compreenderam a metafísica enquanto disciplina de um saber ontologicamente oposto ao mundo que se encontra ao alcance da racionalidade: “que existe um universo musical tão amplo quanto o mundo da alma, tão insondável quanto metafísico” (Marcel, 2005c______. “Music Understood and Music Experienced”. In: G. Marcel, 2005c, pp. 97-102., p. 102). Em todos eles, identificamos a tensão fundamental que anima o bergsonismo musical, a tensão ontológica que separa percepção paramétrica e intuição da durée.

Gabriel Marcel concluiu ser impossível identificar o fluxo da durée com o fluxo melódico (Csepregi, 2014CSEPREGI, G. “The Relevance of Gabriel Marcel’s Musical Aesthetics”. British Journal of Aesthetics, Vol. 54, Nr. 1, January 2014, pp. 15-29., pp. 18-19). Essa impossibilidade, segundo o autor, não joga em favor do formalismo (Marcel, 2005c______. “Music Understood and Music Experienced”. In: G. Marcel, 2005c, pp. 97-102., p. 101), mas é reinvestida naquilo que em contexto musical se comporta mais em acordo com a propriedade da durée; os aspectos expressivos, afetivos e os estados da alma. Marcel se desvia da questão dos parâmetros de escuta e se interessa pela qualidade do que nomeia de uma camada “profunda” da escuta. O bergsonismo musical de Marcel é, por isso, mais propriamente uma análise psicológica.

Brelet buscou reconhecer no ordenamento sonoro da sucessão melódica uma multiplicidade constituidora, embora não espacializada, como sugerido por Bergson (Brelet, 1949BRELET, G. “Le temps musical: essai d’une esthétique nouvelle de la musique”. Vol. 1. Presses Universitaires de France, 1949., p. 48). Brelet buscou por uma metafísica imanente que conciliasse toda a diversidade paramétrica dentro da unidimensionalidade do tempo, para que então fosse remetida à realidade imaterial e superior da durée.

Jankélévitch, por sua vez, constituiu um bergsonismo musical radical. Para isso, propôs uma ontologia da ipseidade musical, identificando-a com o tempodurée. A sua concepção foi, por isso, avessa às qualificações paramétricas e formais da música. A concepção é a de uma identidade entre música e tempo. A ontologia musical de Jankélévitch foi, entre as diversas propostas, a que apresentou as características mais distintivas do bergsonismo musical: a identificação entre música e tempo-durée, a desmaterialização dos parâmetros sonoros e a alteração da semântica do termo música.

Por esse motivo, medir as implicações de sua filosofia equipara-se a conhecermos as implicações mais gerais do bergsonismo musical.

Sobre a questão semântica, a análise que Jankélévitch empreendeu da obra de Debussy foi bastante ilustrativa das implicações de sua posição. A imagem da água, enquanto metáfora para o tempo, serviu a Jankélévitch como descritor do regime de tempo da música de Debussy, no caso, o tempo estagnado como a água do lago. Contudo, o tempo próprio à música de Debussy não se inscreveria parametricamente, nem foi objeto de escrutínio técnico. Ao fim, o que é o tempo musical em Debussy resta incategorizável, uma vez que não se adequa nem a um tempo espacializado, nem a um tempo em fluxo, como o tempo-durée.

Se assumirmos com Jankélévitch que a audição do tempo-durée seja uma audição sem qualificativos, inevitavelmente reuniremos elementos contraditórios que solicitarão a anulação da própria audição como parte da experiência da música. Nesse caso, o que seja “ouvir” música não parece implicar necessariamente o ouvido nem o som. Um estado continuamente paradoxal, pois contradiz a experiência ordinária com a música, a experiência especializada com a música, a musicologia e mesmo com o que se entende por filosofia da música (disciplina que produz um esclarecimento, crítica e/ou análise sobre a música).

Sobre a questão da identificação entre música e durée, entende-se, após a análise da função dêitica na obra de Jankélévitch, que sua argumentação não incidiu sobre a relação entre indiciamento e indiciado. O que esteve em jogo em sua filosofia foi a relação entre o poético, o inefável e o metafísico. A audição do tempo-durée, por definição, não pode ser dêitica. Caso contrário, perderia o seu caráter metafísico, tornando-se trivial. A implicação desse princípio é a de que exemplificar o tempo-durée é contradizê-lo. Qualificar as metáforas da água corrente ou da água estagnada através de análise melódica e harmônica seria como evadir o campo inefável da ipseidade musical.

A mediocridade pretensiosa e intolerável de certas parolagens sobre a música tem algo de deprimente. Isto não significa que a autêntica musicologia seja suspeita a priori, o que comprovamos ao observar suas fontes: por um lado, os musicólogos mais profundos de hoje são compositores ou músicos práticos e, por outro, o fazer e a teoria não estão entrelaçados na obra de Jean-Philippe Rameau? Não faltam músicos que, como Rimski-Korsakov e Bartok, Dukas e Debussy, Arnold Schoenberg e Stravinski, conjugaram em si mesmos a lucidez especulativa e o gênio criador: mas essa lucidez nada tem em comum com o pedantismo estéril de uma especulação doutrinal! Com maior frequência, o criador dispõe de uma única maneira de refletir sobre a criação, a saber, criando. Seus neologismos sem precedentes criarão, por sua vez, precedentes. (Jankélévitch, 1983______. «La musique et l’ineffable». Paris: Seuil, 1983., pp. 150-151; 2018______. “A música e o inefável”. Tradução C. S. G. São Paulo: Perspectiva LTDA, 2018., p. 128)

Segundo Jankélévitch, não há espaço para um conhecimento racional acerca da música. Em sua ótica, a musicologia possível não opera análises, não relaciona causalidade, ela é apenas a clarividência não racional de criadores originais, retrospectivamente transformada em tecnicidade. A afirmação de Jankélévitch não contempla a relação entre o trabalho técnico e racional dos compositores citados e os seus ganhos artísticos; no caso particular de Schoenberg, não contempla seus ganhos teóricos e artísticos. O mesmo podemos falar sobre os procedimentos composicionais e o tipo de percepção engendrado por inúmeros compositores contemporâneos, nenhum contemplado pela teoria de Jankélévitch.

Uma das soluções trazidas por Grisey é um artifício digital: nas obras Espaces acoustiques, as durações cronométricas dos diversos processos são definidas na proporção dos intervalos do espectro de um som de trombone (sintetizado no final de Périodes). Matematicamente, isso equivale à elaboração de durações a partir de uma sequência harmônica, e quase todas as obras de Grisey obedecem a uma estruturação de ordem numérica, muitas vezes sistemática e metódica. (Baillet, 2000BAILLET, J. “Gérard Grisey. Fondements d’une écriture”. Paris: L’Harmattan, 2000., p. 69)

Ao fim, não há uma consideração pelo trabalho contínuo de músicos, cientistas e técnicos, especialmente no período moderno e contemporâneo. De acordo com Jankélévitch, a musicologia, a filosofia da música e a acústica, por se ampararem na percepção musical, e não na intuição da durée, não possuiriam valor musical legítimo.

3. Conclusão

O bergsonismo musical, sob diferentes graus, estreitou os laços entre metafísica e mística-teológica, sobrepondo-os à musicologia e filosofia da música. O campo do bergsonismo musical, por esse motivo, caracteriza-se pelo confronto com a produção de um conhecimento qualificado de nossas habilidades auditivas e da escuta musical. Essa tendência é observável de modo menos acentuado em Brelet e mais eminente em Jankélévitch. Em ambos os casos, a filosofia da música manteve-se sob os auspícios pré-modernos da metafísica.

O bergsonismo musical opõe-se, mas é consciente do fato de a música ser um evento que dura, se espacializa, apresenta qualificações, diferenciações e interações; enfim, que a música fenomênica seja o objeto de interesse perene da filosofia da música e musicologia.

Não estamos mais aptos para pensar a música em si mesma, ipsa, ou a ipseidade da música, que para pensar o tempo: aquele que acredita pensar o tempo, no sentido de que o tempo é complemento direto e objeto de um pensamento transitivo, pensa os eventos que estão no tempo ou os objetos que duram, ou seja, não pensa o puro devir, mas, sim, os conteúdos que “devêm” (Jankélévitch, 1983______. «La musique et l’ineffable». Paris: Seuil, 1983., pp. 181-182; 2018______. “A música e o inefável”. Tradução C. S. G. São Paulo: Perspectiva LTDA, 2018., p. 148)

A música, ao contrário do que nos diz Jankélévitch na citação acima, são os “conteúdos que devêm”, é o “complemento direto e objeto de um pensamento transitivo”. O que o bergsonismo diz sobre a música não pertence à semântica musical.

Segundo Lochhead (2008)LOCHHEAD, J. “The Sublime, the Ineffable, and Other Dangerous Aesthetics.” Women and Music: A Journal of Gender and Culture, 12, 2008, pp. 63-74., Ayrey (2006)AYREY, C. “Jankélévitch the Obscure(d).” Music Analysis, Vol. 25, Nr. 3, 2006, pp. 343-57. e Froneman (2009)FRONEMAN, W. “The desire for the ineffable: on the myth of music as absolute”. Koers, Vol. 74, Nr. 1 & 2, 2009, pp. 1-22., o principal prejuízo da concepção musical de Jankélévitch encontrar-se-ia no aspecto regressivo de sua proposta. Todos dão ênfase à retomada da metafísica e do misticismo através do conceito de inefável. Adicionalmente, Lochhead indica haver uma caracterização estereotipada do feminino na obra de Jankélévitch que já não teria lugar em um debate acadêmico, mesmo na década em que A música e o inefável (1961) foi publicado. Ayrey enfatiza o aspecto nonsense de todo o projeto filosófico musical de Jankélévitch, apela ao conjunto dos argumentos, descrições musicais, utilidade e evidência de seus postulados, caracterizando-os como inconsistentes, fabulosos e sistematicamente contraditórios. Froneman, embora não comente diretamente sobre Jankélévitch, julga a concepção musical do inefável como um entrave para a aproximação teórica da filosofia com a performance musical real e seu contexto sociocultural.

Diferentemente da tradição crítica supracitada, não identificamos o aspecto de regressão do pensamento de Jankélévitch no conceito de inefável, mas, na verdade, na concepção da durée, que é o fundamento mais íntimo de sua filosofia. É somente porque defende uma identificação essencial entre música e tempodurée que sua filosofia incorre nas implicações discutidas no tópico anterior.

Lochhead (2008)LOCHHEAD, J. “The Sublime, the Ineffable, and Other Dangerous Aesthetics.” Women and Music: A Journal of Gender and Culture, 12, 2008, pp. 63-74., Ayrey (2006)AYREY, C. “Jankélévitch the Obscure(d).” Music Analysis, Vol. 25, Nr. 3, 2006, pp. 343-57. e Froneman (2009)FRONEMAN, W. “The desire for the ineffable: on the myth of music as absolute”. Koers, Vol. 74, Nr. 1 & 2, 2009, pp. 1-22., ao que tudo indica, fizeram críticas a partir de aspectos tangenciais ao núcleo filosófico do projeto de Jankélévitch, direcionadas à postura desse enquanto produtor de cultura e reprodutor de visões antiquadas ou discriminatórias. A questão do tempo, aspecto central de toda a filosofia da música de Jankélévitch, não foi especialmente visada. A nossa hipótese é a de que esses mesmos autores compartilham, com Jankélévitch, da ideia de um tempo-durée musical.

Que o tempo seja “a dimensão essencial da música” é uma constatação de Lochhead (1990, p. 83). Asserções como essa são contemporaneamente encontradas em trabalhos como o de Gallope (2011)GALLOPE, M. “Technicity, Consciousness, and Musical Objects”. In: D. Clarke, 2011, pp, 47-63. e Kozak (2020, pp. 181; 184)KOZAK, M. “Enacting Musical Time”. New York: Oxford University Press, 2020.. O problema, em todos os casos, é o mesmo. Como reduzir todo o fenômeno musical a um estreito unidimensional, sem medir as implicações que esse procedimento antepõe à fenomenalidade da música?

É constituinte da durée, assim nos informou o seu postulante, não ser fenomênica. Portanto, não é possível ouvir o tempo-durée, somente intuir. Alheia ao espaço e ao tempo objetivo, fora dos parâmetros sensíveis, dos juízos e conceitos, indiferente às normas e aos agentes; uma música concebida nesses termos é mais do que inefável, é inescrutável.

  • *
    O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001, durante estágio de pós-doutoramento PNPD no departamento de Filosofia da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).
  • 1
    Stravinsky não se comprometeu com uma definição filosófica de tempo ou de música. O trecho destacado por Lochhead na verdade diz respeito a uma comparação entre pintura e música, somente. Imediatamente antes dessa passagem Stravinsky indicou “som e tempo” (Stravinsky, 1947STRAVINSKY, I. “Poetics of Music: In the Form of Six Lessons”. Cambridge: Harvard University Press, 1947 [1942]. [1942], p. 27) como elementos fundamentais da música. Algumas páginas adiante Stravinsky considera o som enquanto “eixo essencial” (ibid., p. 36) dessa arte. É importante notar que para Stravinsky o tempo é tão somente uma palavra que designa o metro e o ritmo musical (ibid., p. 28).
  • 2
    Metafísica, nesse contexto, indica o procedimento filosófico que postula a existência de entidades ideais não evidentes e/ou entidades reificadas, mais comuns dentro da produção metafísica pertencente ao idealismo filosófico.
  • 3
    “Aos que entram nos mesmos rios outras águas afluem [...]”; “Nos mesmos rios entramos e não entramos”; “Em rio não se pode entrar duas vezes no mesmo [...]” (Heráclito, 1996HERÁCLITO. “Os Pré-Socráticos”. Tradução J. C. Souza et al. São Paulo: Nova Cultural, 1996 (Coleção Os Pensadores)., pp. 97; 101; 106).
  • 4
    Socha (2009)SOCHA, E. “Bergsonismo musical: O tempo em Bergson e a noção de forma aberta em Debussy”. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2009. [Dissertação de mestrado]. defende a música de Debussy como representante da filosofia de Bergson, concebendo como parâmetro da continuidade fluida em Debussy a movimentação de “blocos sonoros” (Socha, 2009SOCHA, E. “Bergsonismo musical: O tempo em Bergson e a noção de forma aberta em Debussy”. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2009. [Dissertação de mestrado]., p. 113).
  • 5
    Mantenho a tradução da Edições 70, porém insiro uma correção para que fique de acordo com o original: “Qu’est-ce que la durée au-dedans de nous?” (Bergson, 2003aBERGSON, H. “Essai sur les données immédiates de la conscience”. Une collection développée en collaboration avec la Bibliothèque Paul-Émile-Boulet de l’Université du Québec à Chicoutimi, 2003a., p. 100).
  • 6
    Sobre a pertinência do espaço na experiência musical, ver os conceitos de: “espaço sonoro; espaço figural; espaço cênico; espaço acústico” (Aldrovandi, 2004ALDROVANDI, L. A. V. “A ideia de espaço na comunicação sonora: a composição musical recente”. São Paulo: PUC-São Paulo, 2004. [Tese de doutorado]., pp. 16-20), “espaço holístico” (Smalley, 2007SMALLEY, D. “Space-form and the acousmatic image”. Organized Sound, Vol. 12, Nr. 1, Cambridge University Press, 2007, pp. 35-58., p. 37), “forma espacial” (Smalley, 2007SMALLEY, D. “Space-form and the acousmatic image”. Organized Sound, Vol. 12, Nr. 1, Cambridge University Press, 2007, pp. 35-58., p. 40), “espaço enativo” e “espaço performado” (Smalley, 2007SMALLEY, D. “Space-form and the acousmatic image”. Organized Sound, Vol. 12, Nr. 1, Cambridge University Press, 2007, pp. 35-58., p. 41).

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    Dez 2023

Histórico

  • Recebido
    10 Dez 2021
  • Aceito
    04 Ago 2023
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