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CRISTALIZAÇÃO E DESNATURALIZAÇÃO DO TOTALITARISMO EM HANNAH ARENDT: A HERMENÊUTICA COMO MÉTODO PARA O PENSAMENTO POLÍTICO

CRYSTALLIZATION AND DENATURALIZATION OF THE TOTALITARIANISM IN HANNAH ARENDT: HERMENEUTICS AS A METHOD FOR POLITICAL THOUGHT

RESUMO

Neste artigo, ressalto como Arendt mobiliza as noções de compreensão e de sentido de um modo original para orientar sua interpretação acerca dos fenômenos políticos. Cabe perceber que os critérios que a autora pensa para a atividade compreensiva se configuram como uma hermenêutica não elaborada, mas que surge como pano de fundo de seu pensamento. O ponto de partida trata da distinção conceitual que ela faz entre verdade e sentido, este último como objetivo constante e sem fim da atividade compreensiva. Em seguida, resgato dos Diários de pensamento de Arendt as noções de cristalização e desnaturalização como perspectivas hermenêuticas baseadas na noção de sentido, as quais se impõem no lugar do critério da causalidade. Por fim, explicito como o totalitarismo pode ser lido na chave de leitura da hermenêutica.

Palavras-chave:
Sentido; Compreensão; Desnaturalização; Cristalização; Totalitarismo

ABSTRACT

In this article, I emphasize how Arendt mobilizes the notions of understanding and meaning in an original way to guide her interpretation of political phenomena. It is worth noting that the criteria that the author thinks for the comprehensive activity are configured as an undeveloped hermeneutics, but which appears as a background for her thinking. The starting point deals with the conceptual distinction that she makes between truth and meaning, the latter as the constant and unending goal of the comprehensive activity. Then, from Arendt’s Thought Diary, I rescue the notions of denaturalization and crystallization as hermeneutic perspectives based on the notion of meaning, instead of the causality criterion. Finally, I explain how totalitarianism can be read under a hermeneutic view.

Keywords:
Meaning; Understanding; Denaturalization; Crystallization; Totalitarianism

Introdução

O escopo deste artigo é o de circunscrever como podemos ler a filosofia política arendtiana a partir de uma chave de leitura hermenêutica, mais especificamente ao ressaltar o fenômeno totalitário como foco da análise inicial de Hannah Arendt. Isso não implica, por certo, que a própria autora tenha se filiado a tal tradição, nem que esta seja sua única influência, ou, ainda, que tal relação se sobreponha a quaisquer outras. Busco tão somente apresentar um ângulo de visão que abre novas interpretações de sua obra e, portanto, ao próprio pensamento político contemporâneo. Em contraposição a uma perspectiva considerada tradicional pela filosofia política clássica, isto é, a da causalidade histórica, dois conceitos sobressaem da análise do pensamento arendtiano: o de desnaturalização e o de cristalização.

Quanto à utilização da nomenclatura hermenêutica, sigo aqui autores como Bhikhu Parekh (1981, p. 59)PAREKH, B. “Hannah Arendt & the search for a New Political Philosophy”. London: The Macmillan Press LTD, 1981., Novák (2010)NOVÁK, J. “Understanding and Judging History: Hannah Arendt and Philosophical Hermeneutics”. Meta: Research in Hermeneutics, Phenomenology, And Practical Philosophy. Vol. II, Nr. 2, pp. 481-502, 2010., Varsteling (2011)VARSTELING, V. “Political Hermeneutics: Hannah Arendt’s Contribution to Hermeneutic Philosophy”. In: WIERCINSKI, A. (org.). Gadamer’s Hermeneutics and the Art of Conversation. Berlin: Lit Verlag, 2011. pp. 571-582. e Borren (2009)BORREN, M. “Amor Mundi: Hannah Arendt’s political phenomenology of world”. Amsterdam: F & N Eigen Beheer, 2009.1 1 Penso que uma nomenclatura que faz jus à arendtiana perpassa uma terminologia tal como a de um “método compreensivo”. Todavia, como na literatura filosófica o termo “hermenêutica” assume tal papel, considero por bem manter este último (sem suprimir o outro) a fim de indicar uma relação, ainda que transversal, de Arendt com uma linguagem e modo de pensar que têm raízes na filosofia alemã. Junto à fenomenologia e à filosofia da existência, trata-se de designar um modo de conceber o pensamento que foge tanto das amarras metafísicas quanto das naturalistas. . Cabe perceber que Arendt procede, por um lado, recorrendo a exercícios hermenêuticos (cf. Borren, 2009, pp. 26-38BORREN, M. “Amor Mundi: Hannah Arendt’s political phenomenology of world”. Amsterdam: F & N Eigen Beheer, 2009.), e, por outro, tem uma preocupação constante quanto a problemas clássicos da tradição hermenêutica. Entre os temas hermenêuticos que despontam em Arendt, a distinção entre o modelo compreensivo e o modelo causal assume papel relevante. A questão remonta de modo clássico a Dilthey, o qual realiza um diagnóstico de que “a ciência da sociedade e a ciência histórica” que lhe são contemporâneas, mesmo após “a emancipação das ciências particulares”, inicialmente continuaram “a serviço da metafísica” para, em seguida, serem alvos da “transposição de princípios e métodos científico-naturais” (Dilthey, 2010, pp. 3-4DILTHEY, W. “Introdução às ciências humanas: tentativa de uma fundamentação para o estudo da sociedade e da história”. Trad. br. M. A. Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.). A transformação heideggeriana, por sua vez, abre espaço para uma fenomenologia hermenêutica da existência, isto é, uma interpretação do modo de ser de Dasein a partir daquilo que aparece (Heidegger, 2012, pp. 103-131HEIDEGGER, M. “Ser e Tempo”. Trad. br. F. Castilho. Ed. Bilíngue (Alemão e Português). Campinas: Editora da Unicamp; Petrópolis: Vozes, 2012.). Ademais, vemos em Gadamer uma reflexão sobre a relação do pensar e do juízo com os preconceitos, questão que encontra em Kant e Aristóteles uma importante base epistemológica, estética e hermenêutica (Gadamer, 2015GADAMER, H.-G. “Verdade e Método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica”. Trad. Br. F. P. Meurer. 15. ed. Petrópolis-RJ: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2015.).

Todavia, embora Arendt seja impactada em certa medida pelas perspectivas do autor de Ser e tempo, afasta-se dele tendo em vista, sobretudo, uma análise de uma existência autêntica na vida humana compartilhada, de modo que a aparência pública ganha relevo em suas análises. Arendt, por sua vez, ainda que realize procedimentos que retomam temas similares aos do autor de Verdade e método, distingue-se dele, entre outros aspectos, pela apropriação que faz da tradição: em vez de uma fusão de horizontes, como Gadamer, Arendt aponta para a ruptura da tradição e do seu arcabouço teórico-metodológico para nos reconciliar com o mundo.2 2 Quanto a uma leitura hermenêutica de Arendt, Novák (2010) defende que “em Arendt, nós não apenas encontramos problemas que constituem a base da hermenêutica gadameriana: o papel dos preconceitos, a natureza prática de toda compreensão, o problema da distância ou estranheza separando-nos do fenômeno que pretendemos compreender, mas as reflexões de Arendt sobre esse assunto também compartilham com aquelas de Gadamer um número de questões que parecem ser problemáticas ou ao menos incertas” (Novák, 2010, p. 482). Varsteling (2011), em linha similar, entende que “o trabalho de Arendt pode ser uma fonte bastante útil para a elaboração política e extensão da hermenêutica gadameriana” (Varsteling, 2011, p. 505).

Não se trata, entretanto, de fazer aqui um estudo de filosofia comparada entre Arendt e os autores clássicos da tradição hermenêutica. Mais que isso, circunscrevo como a autora mobiliza o conceito de sentido e a atividade da compreensão para refletir acerca dos assuntos mundanos. Realizando uma crítica da categoria da causalidade, Arendt aponta, em seus Diários de pensamento, para a cristalização e a desnaturalização dos fenômenos históricos como método pelo qual se podem compreender os eventos políticos. Interpreto, assim, a noção de desnaturalização como abertura hermenêutica ao fenômeno totalitário. Não realizo, neste artigo, uma análise de Origens do totalitarismo (1989), mas aponto para uma forma pela qual podemos iniciar uma interpretação de tal obra, método que tem raízes hermenêuticas e que pode também nos auxiliar na compreensão de outros fenômenos políticos.

Sentido e verdade

O modo como cada um de nós se relaciona com o mundo e com os demais indivíduos se expõe, para Arendt, a partir de uma dupla face: o sentido e a verdade (Cf. Arendt, 2001, p. 150ARENDT, H. “Hannah Arendt-Martin Heidegger: correspondência 1925/1975”. Org. U. Ludz; Trad. br. M. A. Casanova. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.). A apreensão que temos da realidade revela algo que ultrapassa o que nos é dado na experiência sensorial imediata: uma invisibilidade apresenta-se junto ao que é visto. Fenomenologicamente, por exemplo, Husserl chamaria essa invisibilidade de essência. O modo arendtiano de encarar esse problema busca se desvencilhar de certa herança metafísica essencialista. Em seu lugar, Arendt faz uso da noção de sentido, pois essa invisibilidade que se nos apresenta junto ao que é visto não equivale à essência metafísica, a qual, na tradição filosófica, foi concebida como a verdade escondida por detrás das aparências. Não há uma defesa, por parte de Arendt, de uma forma essencial e imutável que seria acessível intelectualmente.

Essa percepção de uma invisibilidade junto ao visível, diz Arendt, é precisamente o que incitou os filósofos a um recuo do ponto de vista mundano em direção a um olhar a partir da vida do espírito. O elogio da contemplação próprio dos pensadores profissionais nutria a esperança de encontrar uma verdade não revelada sensivelmente. O que está em questão, para Arendt, é tanto uma distinção que precisa ser feita entre Verdade e Sentido, quanto entre as faculdades humanas relativas às tais faces da experiência: a cognição, a qual se move em relação à verdade, e a compreensão, a qual busca pelo sentido. Em última instância, trata-se de reinserir a noção de um pensamento ancorado no mundo, uma perspectiva não apenas filosófica, mas também política. Cabe a Arendt ressignificar o modelo de pensamento acerca da política, dos eventos humanos, circunscrevendo o lugar da verdade e do sentido.

Arendt defende que as questões formuladas pela razão não são respondíveis apenas por meio de fatos, mas, em geral, através de significações, da busca por um sentido. Essas respostas, no entanto, não são coercitivas, não carregam consigo o caráter factual com o qual a verdade se nos apresenta. O caráter hermenêutico que se vislumbra aqui aponta para o que Arendt chama de desmantelamento das falácias metafísicas3 3 Segundo Marieke Borren (2009, pp. 31-34), trata-se de quatro falácias: 1) a falácia da “teoria dos dois mundos”, que se relaciona com a distinção diametral entre Ser e aparência; 2) a falácia solipsista, na qual se exalta um subjetivismo radical em que o ego pensante é mais real que qualquer outra coisa; 3) a falácia da identificação entre verdade e sentido; e 4) a falácia de uma batalha interna entre o pensar e o senso comum. (Arendt, 2010b, p. 234ARENDT, H. “A vida do espírito: o pensar, o querer, o julgar”. Trad. br.: C. A. R. de Almeida, A. Abranches e H. F. Martins. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010b.), mais especificamente para a confusão perpetrada pelos filósofos entre verdade e sentido. O espaço hermenêutico se abre na medida em que não se busca reduzir um determinado sentido à pretensão de verdade, ou, antes, um dos grandes problemas pelos quais se fundamentou historicamente a filosofia foi sua atribuição de verdade a determinadas interpretações da realidade, postura que obliterou o espaço mundano ao se elencar uma significação específica como aquela única capaz de explicar o mundo, reduzindo outras perspectivas a meras opiniões, simulacros falseáveis do real.

Em “Filosofia e política” [“Philosophy and politics”] (Arendt, 1990ARENDT, H. “Philosophy and politics”. Social Research, Vol. 57, Nr. 1, pp. 73-103, Spring 1990.), Arendt descreve a tragédia que se testemunha nos diálogos platônicos: a desconfiança na persuasão, afastando-se dos ensinamentos socráticos, em direção a uma “tirania da verdade”. A argumentação busca demonstrar como o modelo de reflexão efetuada pelo filósofo da academia transcendia o mundo comum e o âmbito do espaço público, onde a realidade se apresenta contingente e em que a persuasão nem sempre é capaz do convencimento; tal posicionamento ocorre em vista de uma fundamentação metafísica, pretensamente válida de modo inequívoco. Nas palavras de Arendt (1990, p. 75)ARENDT, H. “Philosophy and politics”. Social Research, Vol. 57, Nr. 1, pp. 73-103, Spring 1990., Platão passa a “usar as ideias para propósitos políticos, isto é, introduzir padrões absolutos no domínio dos assuntos humanos, onde, sem tais padrões transcendentes, tudo permanece relativo”. Arendt aponta, aqui, o que seria a conclusão antissocrática de Platão: uma tirania da verdade em que não é o que é temporalmente bom – alvo da persuasão – que importa, mas a verdade eterna da qual os homens não podem ser persuadidos.

A pretensão da verdade como algo externo ao mundo humano com o fito de o fundamentar inexoravelmente está na raiz da crítica política e filosófica de Arendt à tradição. Ao se colocar um absoluto como ponto arquimediano pelo qual tudo aquilo ligado à vita activa é designado, abre-se espaço para a realização de um procedimento causal em que o absoluto é convertido em causa ontológica das aparências. Segundo Arendt, é a confusão entre verdade e compreensão que está no fundo desse problema, a terceira falácia descrita por Marieke Borren (2009)BORREN, M. “Amor Mundi: Hannah Arendt’s political phenomenology of world”. Amsterdam: F & N Eigen Beheer, 2009.. A verdade, na concepção arendtiana em A vida do espírito, está vinculada ao conhecimento sensorialmente percebido que ocorre em uma situação pluralmente compartilhada e confirmada, ou seja, liga-se a fatos e acontecimentos, bem como põe em questão a pluralidade humana (Arendt, 2010b, p. 67ARENDT, H. “A vida do espírito: o pensar, o querer, o julgar”. Trad. br.: C. A. R. de Almeida, A. Abranches e H. F. Martins. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010b.). O problema, pensa Arendt, foi ter ocorrido uma conversão de tal noção de verdade e conhecimento para a esfera da razão, do pensamento, do significado. A autora entende que a tradição metafísica buscou por um ponto arquimediano (ibidem, 2010a, pp. 321-334) que pudesse ser referência a toda e qualquer reflexão possível, de modo que, sob essa perspectiva, o pensamento tornou-se coercitivo, pois passou a encontrar relações lógicas advindas de uma causa superior capaz de nos dizer o que é o real e de ditar normas que remetessem a essa verdade não mundana, mas que pretendesse fundamentar o mundo.4 4 Com base na crítica arendtiana, vê-se aqui uma inter-relação entre as quatro falácias metafísicas: 1) partindo da perspectiva em que o verdadeiro Ser é o fundamento das aparências, as quais são mutáveis e não confiáveis, 2) o filósofo se coloca como aquele capaz de encontrar o fundamento da realidade. 3) Aquilo que seria uma opinião, ou, ainda, uma interpretação particular da realidade, passa a ser posto como a verdade última, 4) a qual, por sua vez, é definida como objeto da razão que está acima do senso comum.

A noção de verdade, porém, ao ser desvinculada do mundo, da aparência, da experiência e da pluralidade humana pela tradição metafísica, passa a ser compreendida como anterior a eles ontologicamente falando. Isso significa que uma outra falácia está ligada a esta que confunde verdade e compreensão: é a falácia da causalidade, a qual se baseia na ideia de que a causa de algo é sempre mais digna e mais real do que o seu efeito. Em outros termos: a causa, por preceder seu efeito, possui um status ontológico maior do que aquilo a que engendra; mais ainda, tudo aquilo que existe possui um fundamento distinto de si próprio que não aparece e que por isso mesmo é inferior à sua causa. Isso denota que o mundo, enquanto aparência, possui um fundamento que, ele próprio, não aparece e que é a causa do mundo, e, enquanto causa do mundo, é mais digno e ontologicamente superior a ele.

Arendt, portanto, posiciona-se criticamente a essa moldura pela qual a tradição da filosofia política se acostumou a seguir. Com a falácia metafísica que confunde pensar com conhecer – isto é, sentido/compreensão com verdade/cognição –, tem-se precisamente a destituição de dignidade à aparência e ao mundo, já que a verdade é apresentada como critério absoluto, adquirindo, ontologicamente, um grau superior. Justamente na tentativa de reivindicar o valor da superfície é que Arendt mostra que o pensar sempre se motiva a partir das aparências, mesmo os conceitos metafísicos são retirados de metáforas relativas às experiências sensíveis: “Todos os termos filosóficos são metáforas, analogias congeladas, por assim dizer, cujo verdadeiro significado se desvela quando dissolvemos o termo em seu contexto original” (Arendt, 2010b, p. 124ARENDT, H. “A vida do espírito: o pensar, o querer, o julgar”. Trad. br.: C. A. R. de Almeida, A. Abranches e H. F. Martins. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010b.)5 5 Cf. em mais detalhes todo o ponto “12. Linguagem e metáfora”, in: Arendt, 2010b, pp. 117-130. . A metáfora, como sublinha Aguiar, serve “de ponte ao abismo entre as atividades espirituais e o mundo das aparências” (Aguiar, 2009, p. 65AGUIAR, O. A. “Filosofia, política e ética em Hannah Arendt”. Ijuí: Ed. Unijuí, 2009.). As “analogias congeladas” remetem àquilo que o pensamento cristalizou no decorrer da nossa tradição filosófica, a ponto de muitas metáforas deixarem de ser consideradas enquanto formas de encontrar sentido para determinadas experiências, passando a ganhar certo status de verdade. É em linha de pensamento semelhante que Birulés ressalta “a ideia do pensar como processo de descongelar palavras” (Birulés, 2007, p. 64BIRULÉS, F. “Una herencia sin testamento: Hannah Arendt”. Barcelona: Herder, 2007.). Assim, o ‘descongelar palavras’ desponta como forma de acessar as experiências mundanas, bem como o sentido que elas nos revelam.

Essa concepção arendtiana indica uma orientação hermenêutica, na medida em que percebe que a busca pelo sentido não é a atribuição de uma verdade última, embora se encontre ligado a algo de veritativo sobre o mundo. A compreensão só pode existir enquanto atividade porque ela surge de um mundo que tem como lei a pluralidade humana, um mundo de aparências que, embora possua elementos duráveis, não se reduz a uma estrutura monolítica passível de ser plenamente apreendida. Por um lado, os homens são aptos a agir e iniciar algo novo, e, por outro, eles são seres condicionáveis e abertos ao que surge, afetados por uma realidade vista sempre pela via do dokei moi – o parece-me [it-seems-to-me]. Há um elemento de incompletude nos homens e na realidade que a verdade não é capaz de preencher, e só por meio da atribuição/ produção/revelação do sentido é que os homens podem se reconciliar com o mundo, sentirem-se em casa nele. Há, portanto, um fundo existencial6 6 Nesse sentido, faz eco a indicação feita por Hinchman de que essa diferenciação entre verdade e compreensão, no pensamento arendtiano está em alguma medida aliada a algo visualizado também por Jaspers (Cf. Hinchman, 2006b, p. 75). Podemos interpretar, em Arendt, existência enquanto 1) aquilo que distingue o homem dos demais entes e 2) como maneira de encarar a realidade não mais como um absoluto totalizante; isto é, ambos os modelos – com os quais a compreensão se relacionará – apontam para a ineliminalidade da contingência. que guia o processo de compreensão de Arendt.

O elemento hermenêutico do pensamento de Arendt diz respeito à sua postura parcimoniosa, na medida em que não visa à verdade definitiva, mas se abre enquanto um modo de encarar o mundo e encontrar nele um espaço, isto é, sentir-se em casa no mundo. Isso, por certo, não implica uma negação da verdade, mas circunscrever seus limites e identificar sua posição como externa à vida política. A verdade não deve ser encarada como uma quimera da qual temos que fugir, mas como aquilo que dá suporte às nossas opiniões, pensamentos e juízos; o que precisa ser evitado, pensa Arendt, é o impulso para transformar nossas visões de mundo em verdades únicas. A abertura hermenêutica implica uma forma de encarar as diferentes opiniões a partir da concepção de sentido: o modo pelo qual o mundo se revela e é então significado por cada um de nós. Nessa perspectiva, Arendt rejeita o método da causalidade para analisar as questões políticas; em seu lugar, a busca pelo sentido pode ser lida a partir da desnaturalização, como desenvolvo a seguir.

Compreender o totalitarismo: a desnaturalização dos fenômenos políticos

A compreensão de Arendt movimenta-se em referência às aparências, aos fatos, ao mundo comum e compartilhado junto à pluralidade humana. Nas várias formas pelas quais Arendt buscou compreender o mundo7 7 Os métodos pelos quais essa forma de compreensão pode ser efetuada são variados e não seguem um modelo unívoco. A própria Arendt opera de diversos modos, entre os quais se pode apontar a narração [storytelling] – e como ela leva em conta uma perspectiva existencial da pluralidade humana e da realidade –, bem como a compreensão pode ser lida por meio da noção de juízo, na medida em que seus critérios operam hermeneuticamente. Não cabe, todavia, no escopo deste artigo uma explicitação pormenorizada destas etapas. , ela procedeu tendo em vista uma reconciliação com ele, isto é, nas palavras da autora: “A compreensão, enquanto distinta de ter informação correta e conhecimento científico, é [...] uma atividade sem fim pela qual [...] chegamos a um acordo e nos reconciliamos à realidade, isto é, tentamos estar em casa no mundo” (Arendt, 2005, pp. 307-308ARENDT, H. “Essays in understanding: 1934-1954. Formation, Exile and Totalitarianism”. Edited by J. Kohn. New York: Schocken Books, 2005.). O exame detalhado do tema da reconciliação não é o objeto específico de análise deste artigo, mas ele permanece como um “pano de fundo” hermenêutico, na medida em que se configura como um objetivo que sempre se atualiza, pois diz respeito à relação que há entre a compreensão com a pluralidade humana e com o mundo. Desse modo, concentro-me em expor como o tema da compreensão aponta para uma forma original de encarar as experiências políticas, isto é, como podemos encarar a hermenêutica como uma via de acesso aos fenômenos políticos sem os reduzir a critérios e conteúdos extramundanos.

A interpretação pela chave hermenêutica do pensamento arendtiano levanos ao método da desnaturalização dos fenômenos políticos: no lugar de buscar por causas e, assim, descrever a verdade definitiva acerca da vida política, Arendt procede recorrendo ao desvelamento do sentido de uma ação ou evento. Em outras palavras, ao direcionar o espírito a determinado acontecimento, a atividade da compreensão não tem como propósito revelar uma suposta rede causal que atua na realização do fenômeno. Esse modelo de ler os fatos apaga a contingência da realidade e transforma as ações humanas em mero desenvolvimento natural. No lugar de tal perspectiva, Arendt aponta para o modelo da compreensão: aqui está em questão uma origem não causal, isto é, trata-se de pôr em destaque certos elementos que persistem historicamente – seja pela linguagem, seja pelos costumes – e que são cristalizados nos eventos que se pretende compreender.

Desnaturalizar os fenômenos políticos, nesse sentido, diz respeito a uma leitura dos acontecimentos e das ações humanas que tem como prerrogativa não identificar um nexo causal inexorável, tal como se poderia proceder nas ciências da natureza; no lugar disso, cabe identificar quais experiências são retomadas nesses fenômenos e quais realidades elas são capazes de nos revelar. A hermenêutica política, desse modo, busca desvelar os sentidos dos fenômenos políticos – múltiplos, contingentes e, por vezes, antitéticos – em vez de uma verdade fora do âmbito do debate.

Arendt tem em vista, nesse sentido, não apenas distanciar-se do procedimento metafísico proveniente da dialética platônico-hegeliana, mas, também, não sucumbir ao método das ciências sociais. Os Diários de pensamento de Arendt (2006)ARENDT, H. “Diario filosófico: 1950-1973 – Volumen I”. Editado por U. Ludz e I. Nordmann. Trad. R. Gabás. Barcelona: Herder Editorial, 2006. revelam como a autora enfrentava esse tópico constantemente durante o início dos anos 1950, logo após a publicação de Origens do totalitarismo8 8 Segundo Birulés (2007, p. 27), Origens tem sua redação iniciada em 1945 e finalizada em 1949. Sua primeira edição será de 1951. e durante o processo de pesquisa e escrita do que viria a se tornar A condição humana. Essa mesma questão desponta na réplica (2008) de Arendt à resenha escrita por Eric Voegelin sobre Origens do totalitarismo. Na busca por compreender o totalitarismo, o procedimento arendtiano nem se constitui sob as bases filosóficas tradicionais, nem lança mão do método das ciências sociais. Como ressalta Amiel (1997, p. 47)AMIEL, A. “Hannah Arendt Política e Acontecimento”. Lisboa: Instituto Piaget, 1997., o pensamento arendtiano “consiste em descobrir os elementos principais do totalitarismo e analisá-los em termos históricos”. Para Arendt, tratava-se sobretudo de não repetir nenhum dos dois modelos epistêmicos.

Vejamos, primeiro, como o debate Arendt-Voegelin9 9 Para uma análise mais detalhada do debate em Arendt e Voegelin, conferir Eccel, 2017. auxilia-nos nessa interpretação. Daiane Eccel (2017)ECCEL, D. “Debate sobre o totalitarismo: a troca de correspondência entre Hannah Arendt e Eric Voegelin”. Lua Nova, São Paulo, 101, pp. 141-174, 2017. Doi: http://dx.doi.org/10.1590/0102-141174/101.
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ressalta que a compreensão acerca do totalitarismo em Arendt parte de uma descrição de elementos históricos e, nessa perspectiva, de uma leitura própria do sentido da História. Voegelin, enfatiza Eccel, argumentava que o totalitarismo decorre de uma certa “doença que assola a modernidade e adoece o espírito dos homens, refletindo as consequências dessa doença na política” (Eccel, 2017, p. 167ECCEL, D. “Debate sobre o totalitarismo: a troca de correspondência entre Hannah Arendt e Eric Voegelin”. Lua Nova, São Paulo, 101, pp. 141-174, 2017. Doi: http://dx.doi.org/10.1590/0102-141174/101.
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). Voegelin, dessa forma, realiza o debate no nível das ideias que nos lega uma causalidade histórica em decorrência de um vazio religioso que proporciona a formação das massas e, por fim, desemboca em um tipo de crise política. Arendt, por sua vez, posiciona-se de forma crítica e “discorda completamente que o totalitarismo possa ser o resultado da falta de uma religião ou que [...] o regime totalitário e seus líderes atuavam como uma religião secular” (ibidem, p. 165).

Quando Voegelin critica Arendt, ainda, por um certo sentimentalismo que obscureceria a análise totalitária, é porque ele não compartilha da perspectiva hermenêutica arendtiana, a qual entende que “a indignação ou a emoção não obscurece nada, é uma parte integrante da coisa” (Amiel, 1997, p. 48AMIEL, A. “Hannah Arendt Política e Acontecimento”. Lisboa: Instituto Piaget, 1997.). Em outras palavras, segundo novamente Eccel (2017, p. 162)ECCEL, D. “Debate sobre o totalitarismo: a troca de correspondência entre Hannah Arendt e Eric Voegelin”. Lua Nova, São Paulo, 101, pp. 141-174, 2017. Doi: http://dx.doi.org/10.1590/0102-141174/101.
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, Arendt “afirma que reagir de forma totalmente indiferente aos horrores cometidos nos campos de concentração não seria rigor acadêmico, mas, mais do que isso, significaria perdoar o ocorrido”. A hermenêutica, assim, não se reduz a um tipo de racionalismo que se torna alheio às emoções, mas as integra no modo pelo qual podemos compreender um determinado acontecimento. A compreensão não se move junto a uma estrutura meramente formal, ela demanda acesso ao conteúdo vivido, aos modos pelos quais o mundo se abriu a determinados indivíduos. Proceder de outra forma é, diz a autora em “Sobre a natureza do totalitarismo”, apagar “a autocompreensão e a autointerpretação”, as quais “constituem o alicerce mesmo de toda análise e compreensão” (Arendt, 2008, p. 358ARENDT, H. “Compreender: Formação, exílio e totalitarismo”. Trad. Br. D. Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008.).

Em vez, portanto, de se mover a partir de um racionalismo metafísico apartado dos nossos sentimentos em vista de uma causalidade histórica que se possa postular como verdade capaz de revelar a essência do totalitarismo – como pensa Voegelin –, Arendt se guia em busca dos fatos que nos ajudem a compreender a novidade totalitária não como um desenvolvimento inerente à História, mas como um acontecimento do nosso tempo com o qual temos que lidar. No lugar da verdade metafísica sobre a política, emerge a verdade dos fatos e a busca por seus sentidos. Geraldo Pereira (2019)PEREIRA, G. A. E. “Verdade e política na obra de Hannah Arendt”. Curitiba: Appris, 2019. desenvolve a tese de que a verdade implica uma noção de limite: sua negação completa nos leva à mentira total que os regimes totalitários buscaram implementar; já sua elevação à verdade absoluta se categoriza por um caráter excessivo em que a vida política passa a ser dominada por critérios extrínsecos ao espaço público. Caberia, desse modo, perceber que há uma “vizinhança epistemológica” entre a verdade dos fatos e a opinião, questão que serve de abertura à dignidade da política ao reconhecer a importância dos fatos para o pensamento político, bem como da pluralidade humana e suas diversas formas de interpretar o mundo (Pereira, 2019, p. 177PEREIRA, G. A. E. “Verdade e política na obra de Hannah Arendt”. Curitiba: Appris, 2019.). Os eventos, enquanto fatos históricos, impõem-se como fonte pela qual não apenas nossas opiniões são formuladas, mas, junto a isso, são os pontos de contato que estimulam nossa reflexão.

Esse modelo que apaga o conteúdo vivido em vista de uma forma, todavia, não é prerrogativa única do raciocínio de tipo metafísico. Para Arendt, em “Religião e política” (2008)ARENDT, H. “Compreender: Formação, exílio e totalitarismo”. Trad. Br. D. Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008., isso reflete uma tendência também nas ciências sociais, as quais procedem recorrendo a uma “funcionalização dessubstancializadora de nossas categorias” (Arendt, 2008, p. 399ARENDT, H. “Compreender: Formação, exílio e totalitarismo”. Trad. Br. D. Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008.). Entretanto, esse posicionamento não é somente um método acadêmico para interpretar a realidade, mas, sobretudo, se encontra em uma perspectiva cada vez mais cotidiana por meio da qual se interpreta o ser humano. Trata-se, diz Arendt, do

[...] fato de que o homem moderno tem se tornado, cada vez mais, uma simples função da sociedade. O mundo totalitário e suas ideologias não refletem o aspecto radical do secularismo ou do ateísmo; refletem o aspecto radical da funcionalização dos homens. Seus métodos de dominação se baseiam no postulado de que os homens podem ser inteiramente condicionados, porque são apenas funções de forças superiores, históricas ou naturais. (idem)

Essa negação aos métodos derivados das ciências sociais acaba equivalendo, em certa medida, àqueles provenientes das ciências naturais, em especial o critério da causalidade. No seu lugar, Arendt aponta para a noção de cristalização, de modo que o presente ilumina o passado. É nesse sentido que Odilio Aguiar (2008)AGUIAR, O. A. “A tipificação do totalitarismo segundo Hannah Arendt”. Doispontos, Curitiba, São Carlos, Vol. 5, Nr. 2, pp. 73-88, Outubro 2008. contrasta o ineditismo da experiência totalitária com a originalidade do método de Arendt: a narração da experiência não é uma descrição dos fatos, mas uma reflexão a partir deles a fim de se reconciliar com um mundo em que o totalitarismo foi possível. Arendt, assim, “nessa prática, verificou que o próprio acontecimento ilumina o que no passado pode a ele estar relacionado” (Aguiar, 2008, p. 74AGUIAR, O. A. “A tipificação do totalitarismo segundo Hannah Arendt”. Doispontos, Curitiba, São Carlos, Vol. 5, Nr. 2, pp. 73-88, Outubro 2008.). Essa forma de compreensão nunca é definitiva, pois parte do evento, o qual rompe com aquilo que se espera mediante as estatísticas e nos coloca diante do desafio do pensar. Na medida em que a história não se desenvolve meramente segundo desígnios causais, desnaturalizar é o modo pelo qual podemos entender as experiências, pensamentos, formas de vida etc. que são cristalizadas na novidade do evento.

Cristalização e desnaturalização: pensar o evento

Muitos dos textos aqui comentados10 10 “Compreensão e política”, “Sobre a natureza do totalitarismo”, “Religião e política” e a réplica de Arendt a Voegelin. , os quais nos auxiliam na perspectiva de compreender o totalitarismo após a publicação de Origens, datam principalmente dos anos 1953 e 1954, mas podemos ver, nessa franja argumentativa, que a recusa da explicação causal pode já ser verificada em junho de 1951, mesmo ano da publicação de Origens, quando Arendt anota em seus Diários a seguinte passagem:

O método nas ciências históricas: esquecida toda causalidade. Em seu lugar: análise dos elementos do evento. O evento em que os elementos rapidamente se cristalizaram é central. O título de meu livro é completamente falso; deveria ter sido: “Os Elementos do Totalitarismo”11 11 Título final da versão alemã: “Elemente und Ursprünge totaler Herrschaft”, de 1955. Em tradução livre: “Elementos e origens da dominação total”. (Arendt, 2006, p. 95ARENDT, H. “Diario filosófico: 1950-1973 – Volumen I”. Editado por U. Ludz e I. Nordmann. Trad. R. Gabás. Barcelona: Herder Editorial, 2006.).

Essa revisão que Arendt faz do título de sua obra é paradigmática e revela bem o que estava em questão para ela em sua tarefa de compreender tanto o totalitarismo, como também os eventos modernos, as revoluções, as descobertas científicas entre tantos tópicos que transcorriam na esteira do seu pensar. Diferente de se fazer uso do critério causal de explicação de um evento, Arendt pensava que as ciências históricas precisavam analisar os elementos que um determinado evento carrega consigo, isto é, quais elementos se cristalizam em um dado acontecimento histórico. Pensar o evento passa a ser o mote que conduz à compreensão. Mais uma vez os Diários, em julho de 1951, revelamnos o que Arendt está pensando em sentido metodológico:

Sobre a pergunta do método nas ciências históricas: apenas quando eu vir que a teoria do evento e dos elementos que confluem nele se une com a descoberta da desnaturalização de fenômenos históricos pela negação da resposta adequada (miséria, indignação etc.), saberei algo acerca disso. (Ibidem, pp. 102-103)

Distintamente do modelo tradicional, Arendt aponta para a desnaturalização dos fenômenos históricos. A recusa da “resposta adequada” refere-se à utilização de determinadas ideias que operam como estruturas capazes de mover a História, uma busca por determinações extrínsecas às ações e aos eventos que Arendt rechaça. Cabe colocar como ponto de contato da compreensão o evento. Isso que Arendt chama de “teoria do evento” nunca foi definitivamente desenvolvida por ela, embora possamos perceber o quanto seu pensamento se molda tendo em vista os acontecimentos. Um exemplo é quando em 1956, em seu texto “A Revolução Húngara e o imperialismo totalitário” (2021), ela afirma que, “a partir do instante em que se dá um acontecimento de significado fora do comum como a revolução espontânea na Hungria, toda política, teoria e previsão sobre possibilidades futuras precisam ser reexaminadas” (Arendt, 2021, p. 147ARENDT, H. “Pensar sem corrimão: compreender 1953-1975”. Trad. Br.: B. Andreiuolo et al. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.).

Essas reflexões, as quais guiarão a autora até A condição humana (2010a), buscam retirar quaisquer resquícios da noção de natureza para compreender as ações políticas. Isso porque, diz Arendt (2010a, p. 9)ARENDT, H. “A condição humana”. Trad. Br. R. Raposo, revisão técnica: A. Correia. 11ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010a., “a ação seria um luxo desnecessário, uma caprichosa interferência nas leis gerais do comportamento, se os homens fossem repetições interminavelmente reproduzíveis do mesmo modelo, cuja natureza e essência fosse a mesma para todos”. Sem desenvolver o argumento em direção à fenomenologia da vita activa, ressalto que a desnaturalização dos fenômenos históricos implica também na desnaturalização da ação humana, a qual não pode ser compreendida tão somente pelo signo do comportamento, já que se trata da tentativa de uma normalização que visa “excluir a ação espontânea ou a façanha extraordinária” (ibidem, p. 49). Ainda sobre o assunto, diz Arendt (ibidem, p. 53): “A triste verdade do behaviorismo e da validade de suas ‘leis’ é que, quanto mais pessoas existem, maior é a possibilidade de que se comportem e menor a possibilidade de que tolerem o não-comportamento”.12 12 Não à toa, é precisamente no momento em que “os homens tornaram-se seres sociais e passaram a seguir unanimemente certos padrões de comportamento” (ibidem, p. 51) que a economia – uma ciência social – pode se pretender científica. Trata-se, assim, de perceber que a naturalização das ações humanas nos conduz à previsibilidade do comportamento, mas não nos capacita a compreender precisamente aquilo que desponta como novidade no mundo. Os novos eventos não são, por isso, explicáveis por tal via, pois ela transcende seus limites de atuação. Eis, portanto, as dificuldades que se impõem a Arendt na busca por compreender o evento totalitário, de modo que, diante das novidades e “à luz delas, devemos verificar e alargar nossa compreensão da forma totalitária de governo” (Arendt, 2021, p. 147ARENDT, H. “Pensar sem corrimão: compreender 1953-1975”. Trad. Br.: B. Andreiuolo et al. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.).

Há, então, desde os Diários e Origens, uma indicação inicial do que viria a ser o desmantelamento da metafísica e da tradição política feitos por Arendt. Esse processo fenomenológico tem aqui também função hermenêutica na medida em que a abertura fenomenológica significa, para Arendt, um espaço para o pensamento, para a atividade da compreensão e da “produção” e/ou revelação de sentido. Desnaturalizar, aqui, significa desmantelar, partir de um ponto em que os eventos e seus elementos não se inserem em uma lógica de sentido pré-estruturada, mas, no lugar disso, aceita que os fenômenos históricos são permeados pela contingência e imprevisibilidade. Nenhuma dialética ou funcionalismo são capazes de prever ou antecipar o evento, não existe um movimento natural para a história. De modo análogo, desnaturalizar significa fugir de respostas para eventos passados sob o signo da verdade e da causalidade. Para Arendt, a compreensão não pode subsumir o aspecto contingente da realidade e das ações dos homens. Como nos diz Novaes (2022, p. 87)NOVAES, A. “Compreensão”. In: CORREIA, A. et al. Dicionário Hannah Arendt. São Paulo: Edições 70, 2022., a “compreensão é uma disposição à experiência viva dos seres humanos, a partir do reconhecimento da imprevisibilidade dos acontecimentos”.

A tentativa de compreensão do totalitarismo, antes de tudo, tem a ver com uma forma de reconciliação com o mundo, sem que com isso se busque repetir os antigos paradigmas que deram suporte às estruturas políticas anteriores. Perceber no totalitarismo a ruptura dos critérios e princípios políticos e, junto a isso, que o próprio totalitarismo foi gestado na política moderna não significa responder dialeticamente ao processo de formação dos povos como uma realização de opostos. Cabe a Arendt, na verdade, estabelecer uma concepção não naturalista e não metafísica da realidade política baseada numa interpretação de que não há um desenvolvimento necessário que nos leve seja a um estado de liberdade, seja ao seu mais completo oposto: a dominação total. Há, em Arendt, a manifestação de um pensamento que só pode compreender o mundo percebendo suas nuanças espontâneas que explicam os eventos passados, mas que não podem ser deles deduzidas, isso porque, para Arendt,

[...] o que há de assustador no surgimento do totalitarismo não é o fato de ser algo novo, mas o fato de ter trazido à luz a ruína de nossas categorias de pensamento e de nossos critérios de julgamento. A novidade pertence ao campo do historiador, o qual [...] lida com eventos que ocorrem apenas uma vez. Essa novidade pode ser manipulada, caso o historiador insista na causalidade e pretenda ser capaz de explicar os eventos segundo uma cadeia causal que acaba por ocasioná-los [...]. Mas a causalidade é uma categoria totalmente estranha e falseadora nas ciências históricas. Não só o significado efetivo de todo o evento sempre transcende qualquer quantidade de “causas” passadas que podemos lhe atribuir [...] como esse próprio passado só vem a existir com o próprio evento. Apenas quando acontece algo irrevogável é que podemos traçar sua história anterior. O evento esclarece seu próprio passado; nunca pode ser deduzido dele. (Arendt, 2008, pp. 341-342ARENDT, H. “Compreender: Formação, exílio e totalitarismo”. Trad. Br. D. Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008., grifos meus)

As passagens destacadas acima revelam tanto a leitura de Arendt sobre a ruptura provocada pelo evento paradigmático do século XX – o totalitarismo – quanto a sua não aceitação das explicações causais para se compreender os eventos concernentes às ciências históricas. A orientação hermenêutica de Arendt surge ao não querer utilizar a categorias das ciências sociais ou da metafísica da explicação – válidas, talvez, paras as ciências naturais – para se compreender aquilo que faz parte das ciências humanas, sociais, políticas e históricas. A noção de cristalização, no lugar da causalidade, e a desnaturalização nos auxiliam na atividade de compreensão do acontecimento ao revelarem os elementos que ocorrem no evento. Segundo Arendt (2021, p. 147)ARENDT, H. “Pensar sem corrimão: compreender 1953-1975”. Trad. Br.: B. Andreiuolo et al. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021., “acontecimentos, passados e presentes – não forças sociais e tendências históricas nem questionários, estudos de opinião pública ou qualquer tipo de dispositivo do arsenal das ciências sociais –, são os verdadeiros, os únicos instrutores confiáveis dos cientistas políticos”.

Em vez de explicar o totalitarismo como o resultado de um processo, Arendt diz que são os elementos cristalizados no governo totalitário que revelam a origem desse novo regime. A partir disso, ela narra a história ressaltando aquilo que foi cristalizado no evento totalitário. Não se trata de uma cadeia progressiva de pequenos ou grandes acontecimentos que desencadeiam o novo regime, mas é o vir-a-ser do totalitarismo que finda por desvelar seu modus operandi com base naquilo que o antecedeu. Isso significa que ele não possui apenas uma configuração processual possível que aconteceu e não poderia deixar de acontecer dados os eventos passados, mas que determinados elementos puderam ser utilizados para implementar o totalitarismo. Não à toa os regimes de Hitler e Stalin se basearem na mesma estrutura formal de operação totalitária, mas os conteúdos cristalizados por cada um dos governos não serem os mesmos.

Desnaturalizar o fenômeno totalitário, portanto, significa retirar o caráter natural que se poderia inferir nele ao se utilizar os critérios de causalidade e verdade (metafísica) para explicá-lo. Na medida em que a causalidade não revela o sentido, pois envolvida na busca pela verdade, a atividade de compreensão não pode utilizar esse critério. Ao nos depararmos com o acontecimento, ele nos demanda uma reflexão, mas, nesse mesmo movimento, ele também nos revela suas condições, não sua natureza, nas palavras de Amiel (1997, p. 49)AMIEL, A. “Hannah Arendt Política e Acontecimento”. Lisboa: Instituto Piaget, 1997.: “o acontecimento, por muito inédito que seja, está sempre preso a um contexto que lhe fornece as condições. Mas estas condições necessárias não são condições suficientes”, isto é, aquilo que o evento revela não são causas, mas condições cristalizadas. É esta mesma impressão que faz com que Birulés (2007, p. 32)BIRULÉS, F. “Una herencia sin testamento: Hannah Arendt”. Barcelona: Herder, 2007. afirme que o “totalitarismo é, na obra de Arendt, um amálgama de certos elementos presentes em todas as condições e problemas políticos de nosso tempo: o antissemitismo, a decadência do Estado-Nação, o racismo, a expansão pela expansão [...]”. A desnaturalização nos revela as condições cristalizadas pelo evento.

Para Arendt, é isto que significa compreender o totalitarismo: não se trata de apenas descrever todos os seus procedimentos e eventos históricos, mas encarar o sentido deles. É por isso que, em resposta à crítica de Eric Voegelin sobre o método de Origens, Arendt diz que não buscou fazer uma historiografia, pois “toda historiografia é necessariamente salvação e com frequência justificação” (Arendt, 2008, p. 418ARENDT, H. “Compreender: Formação, exílio e totalitarismo”. Trad. Br. D. Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008.), ao passo que não cabe perdoar ou desculpar (nem salvar ou justificar), mas compreender (ibidem, pp. 330-331). Como diz Arendt,

O que eu fiz [...] foi descobrir os elementos principais do totalitarismo e analisálos em termos históricos, remontando esses elementos na história até onde julguei necessário. Ou seja, escrevi não uma história do totalitarismo, e sim uma análise em termos históricos; não escrevi uma história do antissemitismo ou do imperialismo, mas analisei o elemento de ódio aos judeus e o elemento de expansão porque ambos ainda eram claramente visíveis e desempenhavam um papel decisivo no próprio fenômeno totalitário. Assim, o livro não trata das “origens” do totalitarismo – como infelizmente indica o título –, mas apresenta uma exposição histórica dos elementos que se cristalizaram no totalitarismo; essa exposição é acompanhada de uma análise da estrutura elementar da dominação e dos movimentos totalitários. (ibidem, pp. 418-419, grifos meus)

A “análise em termos históricos” do totalitarismo, diz acima Arendt, é uma “exposição histórica dos elementos” cristalizados junto a uma “análise da estrutura elementar” do totalitarismo. Não se trata das causalidades históricas que nos trouxeram o regime totalitário, mas de uma narração dos seus processos, dos seus elementos que foram cristalizados em uma estrutura nova. Saber o que é o totalitarismo – analisar sua estrutura – envolve pensar o seu sentido, suas condições de possibilidades, os sentimentos e emoções, e, com isso, encontrar uma maneira de compreender como uma forma de governo assim pôde vir a existir.

A compreensão a partir dos elementos históricos e o seu vir-a-ser é o que propicia os exercícios de imaginação de Arendt. Narrar a “história” do totalitarismo é buscar sentido em seus elementos. Desse modo, a essência do totalitarismo, compreendido não causalmente, “não existia antes do seu surgimento”, não estava presente já nesses elementos que o antecedem, como parece ser a tese de Voegelin, para quem, nas palavras de Arendt, “‘o surgimento do sectarismo imanentista’ desde o final da Idade Média iria resultar no totalitarismo” (ibidem, p. 422).13 13 Mais uma vez se distanciando da análise de Voegelin, Arendt indica que as massas modernas se distinguem das multidões anteriores da história pela ausência de um interesse comum, isto é, de um “entre” que separe e una os indivíduos, “um terreno comum”, “uma finalidade comum”, de modo que isso “é apenas mais um sinal de seu [das massas modernas] desenraizamento [uprootlessness] e estranhamento [homelessness]” (Arendt, 2008, p. 422).

A crítica de Arendt à causalidade como método de interpretação da realidade, do pensamento e, sobretudo, da política não nasce apenas de questões filosóficas, mas, principalmente, da própria observação da realidade, mais ainda, surge da experiência viva. Sua orientação hermenêutica é também existencial tanto por não se basear em um início metafísico ou naturalista, quanto por não se reduzir à busca de uma verdade transcendente capaz de explicar os fenômenos políticos. A relação existência e pensamento não é efetuada por Arendt dialeticamente, mas fenomenológica e hermeneuticamente: a aparência desvelada a cada um de nós é validada em uma situação de pluralidade, no compartilhamento de um mundo vivido, mas que não prescinde da possibilidade de examinar na esfera do pensamento e do juízo aquilo que é revelado diante de nós.

Considerações finais: narrar o totalitarismo e julgá-lo

Neste texto, busquei ressaltar inicialmente como podemos ler o pensamento arendtiano em uma via hermenêutica, sobretudo por meio dos conceitos de compreensão e de sentido. O foco de Arendt na tarefa da compreensão enquanto forma de dar sentido à nossa existência plural e compartilhada é um dos modos pelos quais ela pensava poder se reconciliar com um mundo capaz das imensas atrocidades impetradas no totalitarismo. Sua “hermenêutica”, por assim dizer, tem uma origem não causal do espanto ante os campos de concentração, a produção de cadáveres, a solidão das massas, o contingente sem precedentes de refugiados e sua própria experiência enquanto pária e apátrida. O peso da hermenêutica para a análise totalitária tem em vista a identificação de seus elementos, sobretudo a produção de mentiras, a propaganda, a ideologia, a criação do mundo de semblâncias, o terror e a dominação total; contudo, para além de tais identificações, trata-se de ressaltar a novidade totalitária e seu sentido para nossa existência mundana.

Embora não se defenda que haja uma unidade que possa agregar toda a produção intelectual de Arendt, o tema da compreensão e o próprio ímpeto de compreender são inequivocamente presentes em toda a obra arendtiana. Sem erigir um sistema filosófico, a pensadora judeu-alemã pôde realizar a atividade de compreensão incessantemente, repensando o que já havia sido por diversas outras vezes pensado por ela própria e pelos seus interlocutores. Justamente por isso, nunca se tratou, para Arendt, de fornecer uma versão definitiva sobre um assunto, logo, por exemplo, o tema do político ser a todo momento revisitado, o que faz com que uma nova linguagem surja sem necessariamente abandonar a gramática anterior. São preocupações que se renovam diante dos acontecimentos e das pérolas que Arendt pesca em suas leituras e releituras. Desse modo, na busca por compreender o sentido dos eventos, as noções de cristalização e de desnaturalização despontaram como aspectos hermenêuticos pelos quais Arendt pôde pensar originalmente as experiências políticas de seu tempo, com destaque para o fenômeno totalitário.

Como afirma Di Pego (2016, p. 81)DI PEGO, A. “La comprensión como perspectiva metodológica en Hannah Arendt”. Andamios, Vol. 13, Nr. 31, pp. 61-83, mayo-agosto 2016., “o avanço da ciência não apenas não resultou em uma maior compreensão de nosso passado e de nosso presente, mas sim, pelo contrário, o século XX parece atravessado por certa impotência da compreensão e por uma profunda crise de sentido”. Arendt não nega a ciência e a verdade científica, mas percebe que sua localização junto à nossa existência se dá em uma esfera diferente do que aquela que ocorre no processo compreensivo. A ciência é capaz de nos fornecer instrumentos para lidar com o mundo, com nossos problemas de ordem prática, com a saúde de nossos corpos. No entanto, essa ciência capaz de produzir conhecimento e, inclusive, operar em determinados níveis de previsibilidade, tem seu limite e não pode ser implementada em toda e qualquer área de modo inquestionável. Apesar da ciência, nós ainda não conseguimos nos reconciliar com nossos pares e com o mundo de modo a evitar as diversas formas de dominação que homens exercem sobre outros seres humanos e sobre a própria natureza. O conhecimento científico aponta para causas, mas os eventos políticos não, eles escapam às causas e nos revelam algo de diferente do previsto.

No lugar, portanto, de buscar as causas que levam ao totalitarismo, o modo pelo qual podemos compreendê-lo seria por meio dos elementos que o evento cristaliza. A cristalização indica uma perspectiva pela qual não se põe o presente como derivado necessariamente do passado, mas implica em uma postura na qual o exame de um determinado evento nos revela o próprio passado. A cristalização desponta como metáfora para se compreender a formação do totalitarismo a partir da união de elementos tradicionais e contemporâneos por uma via não causal, posto o totalitarismo não se reduzir seja aos modelos (anti)políticos já descritos pela teoria política clássica, bem como não ser uma dedução lógica a partir de princípios determinados.

Nesse sentido, a desnaturalização auxilia no desvelamento daquilo que fora cristalizado, isto é, serve como método pelo qual as diversas origens do evento ganham destaque e, assim, aquilo que fora cristalizado é posto à luz. Desnaturalizar o totalitarismo é retirar dele quaisquer traços deterministas ou de previsibilidade, o que nos leva à compreensão não de causas, mas de elementos, estruturas, pontos de vista [no sentido da Weltanschauungen], ideologias e ações que são implementadas na estratégia totalitária de dominação.

Tanto a mera indução dos dados e das partes que compõem o totalitarismo são incapazes de explicá-lo, quanto uma dedução a partir de critérios tradicionais seria impossível prevê-lo. Ao circunscrever, portanto, a desnaturalização como método de abertura hermenêutica para compreensão do fenômeno totalitário, podemos perceber a originalidade da reflexão arendtiana quanto à forma de encarar os eventos políticos. Em vez de revelar uma suposta verdade, cabe, àquele que busca compreender os acontecimentos públicos, analisar os elementos do evento, desvelar seus sentidos e aquilo que o tornou possível. Penso, por fim, que este método não está restrito à leitura do totalitarismo – ainda que tenha sido o foco deste texto –, mas que ele pode vir a nos oferecer caminhos diversos pelos quais os eventos políticos de nosso tempo e do passado podem ser interpretados.

  • 1
    Penso que uma nomenclatura que faz jus à arendtiana perpassa uma terminologia tal como a de um “método compreensivo”. Todavia, como na literatura filosófica o termo “hermenêutica” assume tal papel, considero por bem manter este último (sem suprimir o outro) a fim de indicar uma relação, ainda que transversal, de Arendt com uma linguagem e modo de pensar que têm raízes na filosofia alemã. Junto à fenomenologia e à filosofia da existência, trata-se de designar um modo de conceber o pensamento que foge tanto das amarras metafísicas quanto das naturalistas.
  • 2
    Quanto a uma leitura hermenêutica de Arendt, Novák (2010)NOVÁK, J. “Understanding and Judging History: Hannah Arendt and Philosophical Hermeneutics”. Meta: Research in Hermeneutics, Phenomenology, And Practical Philosophy. Vol. II, Nr. 2, pp. 481-502, 2010. defende que “em Arendt, nós não apenas encontramos problemas que constituem a base da hermenêutica gadameriana: o papel dos preconceitos, a natureza prática de toda compreensão, o problema da distância ou estranheza separando-nos do fenômeno que pretendemos compreender, mas as reflexões de Arendt sobre esse assunto também compartilham com aquelas de Gadamer um número de questões que parecem ser problemáticas ou ao menos incertas” (Novák, 2010, p. 482NOVÁK, J. “Understanding and Judging History: Hannah Arendt and Philosophical Hermeneutics”. Meta: Research in Hermeneutics, Phenomenology, And Practical Philosophy. Vol. II, Nr. 2, pp. 481-502, 2010.). Varsteling (2011)VARSTELING, V. “Political Hermeneutics: Hannah Arendt’s Contribution to Hermeneutic Philosophy”. In: WIERCINSKI, A. (org.). Gadamer’s Hermeneutics and the Art of Conversation. Berlin: Lit Verlag, 2011. pp. 571-582., em linha similar, entende que “o trabalho de Arendt pode ser uma fonte bastante útil para a elaboração política e extensão da hermenêutica gadameriana” (Varsteling, 2011, p. 505VARSTELING, V. “Political Hermeneutics: Hannah Arendt’s Contribution to Hermeneutic Philosophy”. In: WIERCINSKI, A. (org.). Gadamer’s Hermeneutics and the Art of Conversation. Berlin: Lit Verlag, 2011. pp. 571-582.).
  • 3
    Segundo Marieke Borren (2009, pp. 31-34)BORREN, M. “Amor Mundi: Hannah Arendt’s political phenomenology of world”. Amsterdam: F & N Eigen Beheer, 2009., trata-se de quatro falácias: 1) a falácia da “teoria dos dois mundos”, que se relaciona com a distinção diametral entre Ser e aparência; 2) a falácia solipsista, na qual se exalta um subjetivismo radical em que o ego pensante é mais real que qualquer outra coisa; 3) a falácia da identificação entre verdade e sentido; e 4) a falácia de uma batalha interna entre o pensar e o senso comum.
  • 4
    Com base na crítica arendtiana, vê-se aqui uma inter-relação entre as quatro falácias metafísicas: 1) partindo da perspectiva em que o verdadeiro Ser é o fundamento das aparências, as quais são mutáveis e não confiáveis, 2) o filósofo se coloca como aquele capaz de encontrar o fundamento da realidade. 3) Aquilo que seria uma opinião, ou, ainda, uma interpretação particular da realidade, passa a ser posto como a verdade última, 4) a qual, por sua vez, é definida como objeto da razão que está acima do senso comum.
  • 5
    Cf. em mais detalhes todo o ponto “12. Linguagem e metáfora”, in: Arendt, 2010b, pp. 117-130ARENDT, H. “A vida do espírito: o pensar, o querer, o julgar”. Trad. br.: C. A. R. de Almeida, A. Abranches e H. F. Martins. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010b..
  • 6
    Nesse sentido, faz eco a indicação feita por Hinchman de que essa diferenciação entre verdade e compreensão, no pensamento arendtiano está em alguma medida aliada a algo visualizado também por Jaspers (Cf. Hinchman, 2006b, p. 75HINCHMAN, L. P.; HINCHMAN, S. K. “Existencialism politicized: Arendt’s debt to Jaspers”. In: Hannah Arendt: Critical Assessments of Leading Political Philosophers – Volume IV – Arendt and Philosophy. New York: Routledge, 2006b. pp. 58-86.). Podemos interpretar, em Arendt, existência enquanto 1) aquilo que distingue o homem dos demais entes e 2) como maneira de encarar a realidade não mais como um absoluto totalizante; isto é, ambos os modelos – com os quais a compreensão se relacionará – apontam para a ineliminalidade da contingência.
  • 7
    Os métodos pelos quais essa forma de compreensão pode ser efetuada são variados e não seguem um modelo unívoco. A própria Arendt opera de diversos modos, entre os quais se pode apontar a narração [storytelling] – e como ela leva em conta uma perspectiva existencial da pluralidade humana e da realidade –, bem como a compreensão pode ser lida por meio da noção de juízo, na medida em que seus critérios operam hermeneuticamente. Não cabe, todavia, no escopo deste artigo uma explicitação pormenorizada destas etapas.
  • 8
    Segundo Birulés (2007, p. 27)BIRULÉS, F. “Una herencia sin testamento: Hannah Arendt”. Barcelona: Herder, 2007., Origens tem sua redação iniciada em 1945 e finalizada em 1949. Sua primeira edição será de 1951.
  • 9
    Para uma análise mais detalhada do debate em Arendt e Voegelin, conferir Eccel, 2017ECCEL, D. “Debate sobre o totalitarismo: a troca de correspondência entre Hannah Arendt e Eric Voegelin”. Lua Nova, São Paulo, 101, pp. 141-174, 2017. Doi: http://dx.doi.org/10.1590/0102-141174/101.
    http://dx.doi.org/10.1590/0102-141174/10...
    .
  • 10
    “Compreensão e política”, “Sobre a natureza do totalitarismo”, “Religião e política” e a réplica de Arendt a Voegelin.
  • 11
    Título final da versão alemã: “Elemente und Ursprünge totaler Herrschaft”, de 1955. Em tradução livre: “Elementos e origens da dominação total”.
  • 12
    Não à toa, é precisamente no momento em que “os homens tornaram-se seres sociais e passaram a seguir unanimemente certos padrões de comportamento” (ibidem, p. 51) que a economia – uma ciência social – pode se pretender científica.
  • 13
    Mais uma vez se distanciando da análise de Voegelin, Arendt indica que as massas modernas se distinguem das multidões anteriores da história pela ausência de um interesse comum, isto é, de um “entre” que separe e una os indivíduos, “um terreno comum”, “uma finalidade comum”, de modo que isso “é apenas mais um sinal de seu [das massas modernas] desenraizamento [uprootlessness] e estranhamento [homelessness]” (Arendt, 2008, p. 422ARENDT, H. “Compreender: Formação, exílio e totalitarismo”. Trad. Br. D. Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008.).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Abr 2023

Histórico

  • Recebido
    20 Mar 2022
  • Aceito
    20 Jul 2022
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