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AS REVIRAVOLTAS DO DIVERTIMENTO EM PASCAL

TURNS OF DIVERSION IN PASCAL

RESUMO

Longe de criticar o divertimento como mera futilidade, Pascal o considera um dispositivo de sobrevivência incontornável para a condição humana, continuamente ameaçada pelo tédio (ennui). O que ainda não é totalmente claro, porém, é o alcance desta incontornabilidade. Em outras palavras: o cristão também se diverte ou o divertimento é um caminho necessário apenas ao não cristão? Trata-se de uma descrição fenomenológica dos comportamentos humanos, sem implicação para o projeto apologético pascaliano, ou de um elemento constitutivo deste último? Essas perguntas fazem necessário um retorno ao tema, analisando os principais fragmentos que o exploram e retomando alguns intérpretes fundamentais. Ao final, pretendemos ter mostrado que o divertimento só pode ser contornado quando ocorre a intervenção sobre-humana da graça.

Palavras-chave
Pascal; divertimento; tédio; século XVII; ética

ABSTRACT

Far from criticizing diversion as mere futility, Pascal considers it an inevitable survival resource for the human condition, continually threatened by boredom (ennui). What is still not entirely clear, however, is the extent of this inevitability. In other words: is the Christian also having diversions, or is it a necessary way only for non-Christians? Is it a phenomenological description of human behavior, with no implication for the Pascalian apologetic project, or is it a constituent element of the latter? These questions make it necessary returning to the topic, analyzing the main fragments that explore it and returning to some fundamental interpreters. In the end, we intend to have shown that diversion can only be avoided when the superhuman intervention of grace occurs.

Keywords
Pascal; diversion; ennui; XVII century; ethics

O tema do divertimento, um dos mais famosos no interior dos Pensamentos de Pascal, apesar de bastante explorado pela tradição de comentário, ainda traz indagações importantes para o leitor. Longe de criticar o divertimento como mera futilidade, Pascal o considera um dispositivo de sobrevivência incontornável para a atual condição humana. O que ainda não é totalmente claro, porém, é o alcance desta incontornabilidade. Em outras palavras: o cristão também se diverte ou trata-se de um caminho necessário apenas ao não cristão? Trata-se de uma descrição dos comportamentos humanos sem implicação para o projeto apologético pascaliano ou de um elemento constitutivo deste último? Estas perguntas fazem necessário um retorno ao tema, analisando os principais fragmentos que o exploram.

O divertimento é apresentado por meio de um procedimento argumentativo tipicamente pascaliano, a reviravolta do pró ao contra, que expõe um problema a partir de vários pontos de vista diversos (e antagônicos). Por sua vez, tal procedimento se situa no campo mais amplo da razão dos efeitos, outra noção fundamental do pensamento pascaliano, a qual se formula, em todos os campos do saber, como uma pergunta pelas razões profundas que explicam efeitos paradoxais na superfície. A reviravolta do pró ao contra, precisamente, é um dos caminhos possíveis (lembrando que Pascal não é defensor de um método único) para buscar a resposta para tal pergunta. Um exemplo paradigmático e conciso da reviravolta pode ser encontrado no fragmento que discute a pertinência ou não de saudar as pessoas de grande nascimento:

90/337: Razão dos efeitos. Gradação. O povo honra as pessoas de nascimento ilustre, os semi-hábeis as desprezam dizendo que o nascimento não é um mérito da pessoa, mas fruto do acaso. Os hábeis as honram não pelo mesmo pensamento do povo, mas com segundas intenções. Os devotos que possuem mais zelo do que ciência as desprezam apesar dessa consideração que faz com que sejam honradas pelos hábeis, porque julgam por outra luz que a piedade lhes dá, mas os cristãos perfeitos as honram por uma outra luz superior. Assim se vão sucedendo as opiniões a favor ou contra conforme a luz que se tem. (Pascal, 2001______. “Pensamentos”. São Paulo: Martins Fontes, 2001., p. 32)1 1 As citações dos Pensamentos serão sempre precedidas, respectivamente, das numerações Lafuma (adotada pela edição ora utilizada) e Brunschvicg.

Não nos importa, de momento, analisar o conteúdo desta discussão, e sim destacar a estrutura argumentativa, que opõe duas posições fundamentais por meio de uma sucessão de personagens: o povo, os semi-hábeis, os hábeis, os devotos e os cristãos perfeitos. Todos têm algum elemento de verdade, mas o grau de conhecimento não é o mesmo em todos os graus, nem as posições tomadas. A cada nível ganha-se uma compreensão mais ampla do problema, mesmo que (no caso dos semi-hábeis e dos devotos) tal compreensão não resulte em uma posição mais razoável do que a do nível inferior.

Tendo isto em vista, passemos sem mais delongas ao tema deste trabalho, que é justamente o exemplo mais famoso da reviravolta do pró ao contra: o divertimento. Como nos lembra Magnard, “a acepção de passatempo, entretenimento, distração data do século XVII. Até então, a palavra divertissement designava a ação de desviar um bem num inventário ou de excluir uma pessoa numa divisão” (Magnard, 2013MAGNARD, P. “Vocabulário de Pascal”. São Paulo: Martins Fontes, 2013., p. 21). Também havia a acepção militar de criar distrações estratégicas para surpreender ou reduzir o ímpeto do inimigo, como vemos mencionada em Montaigne,2 2 “Talvez eu tenha abordado alhures alguma espécie de diversão pública. E o uso das militares, de que se serviu Péricles na guerra do Peloponeso, e mil outros alhures para remover de seus países as forças inimigas, é muito frequente nas histórias” (Montaigne, 2001, Vol. III, cap. 4, p. 68). que também utiliza a noção para referir-se às receitas contra as doenças da alma.3 3 “Raramente fazemo-la atacar de frente os males; não a fazemos suportar nem abater sua investida. Fazemos que se afaste e se esquive” (Montaigne, 2001, p. 70). Em Pascal, é o aspecto de passatempo ou distração que prevalece, privilegiando os exemplos da caça, da dança e do jogo. Em todos esses casos,4 4 Para um histórico detalhado dos sentidos da palavra divertissement, ver Anjos, 2011, pp. 92 a 98. porém, a ideia de desvio da atenção está presente, e é a partir dela que o filósofo iniciará um intrincado trabalho conceitual. Com efeito, a relação de Pascal com o divertimento vai muito além das famosas descobertas matemáticas ligadas ao jogo. Entendido num sentido amplo que abarcará as mais diversas atividades, o divertimento foi, para Pascal, objeto de uma reflexão propriamente filosófica que tem, cremos, um papel relevante no projeto apologético dos Pensamentos.

Há vários fragmentos dedicados à questão do divertimento, mas o mais longo desenvolvimento se dá no fr. 136/139, com o qual começamos:

Quando às vezes me pus a considerar as diversas agitações dos homens, e os perigos, e as penas a que se expõem na Corte, na guerra de onde nascem tantas desavenças, paixões, ações ousadas e muitas vezes maldosas etc., repeti com frequência que toda a infelicidade provém de uma só coisa: de não saber ficar quieto num quarto. (Pascal, 2001______. “Pensamentos”. São Paulo: Martins Fontes, 2001., p. 50)

Não é preciso muita argúcia para formular tal crítica. Na verdade, qualquer manual contemporâneo de autoajuda poderia dizer o mesmo. A agitação apaixonada que nos leva incessantemente de um lado a outro não tem sentido em si mesma. A incapacidade de dedicar-nos, por alguns minutos que seja, ao repouso contemplativo seria a fonte de nossa infelicidade, ainda que creiamos estar buscando a felicidade por meio desta agitação constante.

Ademais, não estamos falando de um martírio que impomos apenas a nós mesmos. O mais irônico é que esta mesma sanha por uma agitação vazia frequentemente se apresenta como caridade e preocupação com o próximo, levando-nos a impor-lhe, supostamente para seu próprio bem, aquilo que exigimos de nós:

139/143: Sobrecarregam os homens desde a infância com o cuidado de sua honra, dos bens, dos amigos, e ainda dos bens e da honra dos amigos; cumulam-nos de afazeres, do aprendizado de línguas e de exercícios e se lhes dá a entender que não conseguiriam ser felizes sem que a sua saúde, honra e fortuna, e as de seus amigos estivessem em bom estado, e que a falta de uma única coisa dessas os tornará infelizes. Assim, sãolhes dados encargos e afazeres que os fazem quebrar a cabeça desde o raiar do dia. Aí está, direis, uma estranha maneira de torná-los felizes; que se poderia fazer de melhor para torná-los infelizes? (Pascal, 2001______. “Pensamentos”. São Paulo: Martins Fontes, 2001., p. 56)

O que move este nosso impulso “altruísta” é a crença de que não podemos ser felizes sem a honra e a riqueza que nos faltam, o mesmo valendo para nossos amigos, de modo que também lutamos para que eles lutem para alcançar estes mesmos bens, daí impormos-lhes negócios e encargos diuturnamente. Bela maneira de fazê-los (e também a nós mesmos) infelizes!

Ora, se isto é óbvio até para um manual de autoajuda, cabe perguntar o que nos leva a romper com a sensatez da permanência em repouso e entrar nesta busca insana de bens vãos e fúteis: “638/109: [...] A natureza dá então paixões e desejos conformes ao estado presente. Não há senão os temores que nos damos a nós mesmos, e não a natureza, que nos perturbam porque acrescentam ao estado em que estamos as paixões do estado em que não estamos” (Pascal, 2001______. “Pensamentos”. São Paulo: Martins Fontes, 2001., p. 272). O repouso que nos faria felizes corresponde à proporção natural entre o estado em que estamos e os desejos que temos. Aí se situaria uma felicidade não trágica, onde nos realizamos com aquilo que nossa natureza é capaz de obter. No entanto, nós mesmos nos impomos, contra nossa natureza, a exigência de uma felicidade que não tem proporção com nossa natureza. Donde uma situação, que poderia ser feliz, tornar-se insatisfatória, visto que junta ao estado em que estamos paixões e desejos de um estado em que não estamos. E por que nos impomos tal coisa? Ainda não o sabemos, porém sabemos ao menos que nós próprios o fazemos e que, portanto, poderíamos deixar de fazê-lo; poderíamos deixar de ser infelizes. Para tanto, bastaria abandonar as agitações e abraçar o repouso, ou seja, abraçar nossa natureza tal qual é agora, com desejos proporcionais ao nosso estado atual. Isto é verdadeiro, o que significa que os manuais de autoajuda têm algo de verdade, porém é apenas uma das camadas do verdadeiro.

Independentemente de ser ou não uma tarefa fácil abraçar o repouso, a experiência mostra que não abandonamos a exigência de agitação que nós mesmos nos impomos. Como diz o fragmento 136/139:

[...] Um homem que possui bens suficientes para viver, se soubesse ficar em casa com prazer, não sairia para ir pelo mar ou ao cerco de uma praça; não se pagaria tão caro por uma patente no exército a não ser que se achasse insuportável não sair da cidade, e não se buscam as conversações e os divertimentos dos jogos a não ser que não se tenha prazer em ficar em casa. (Pascal, 2001______. “Pensamentos”. São Paulo: Martins Fontes, 2001., p. 50, tradução levemente modificada)

Em outras palavras, é fato que optamos pela agitação, e se o fazemos é porque o repouso não nos dá prazer e é até mesmo insuportável. Num primeiro momento, poderíamos pensar que este desprazer é o mero enfado, que só desponta depois de termos escapado momentaneamente de nossa rotina e experimentado algo novo, diante do qual a volta à rotina, em si mesma agradável, torna-se penosa. É o que vemos no fr. 79/128:

O tédio (ennui) que se tem em abandonar as ocupações a que se está apegado. Um homem vive com prazer em seu lar; se ele vir uma mulher que lhe agrade, se ficar jogando 5 ou 6 dias com prazer, ei-lo que volta miserando à sua primeira ocupação. Nada é mais comum do que isso. (Pascal, 2001______. “Pensamentos”. São Paulo: Martins Fontes, 2001., p. 50, tradução levemente modificada)

Se a natureza, como vimos no fr. 638/109, nos dá desejos proporcionais ao estado em que estamos, então o que provoca o tédio é a “escapadela” antinatural que empalidece os prazeres naturais. Note-se que não se trata de negar a realidade deste desprazer. Com efeito, é ele que nos move à agitação, o que é uma verdade de fato. Porém é um desprazer que ainda nos parece evitável: “não ceda ao primeiro gole!” e o prazer natural de estar sóbrio jamais dará lugar ao tédio que sucede a embriaguez, afinal este tédio apenas resulta dos prazeres oriundos de um estado que não é o nosso natural. Do manual de autoajuda passamos ao ascetismo moralista? Na verdade, também nisso há algo de verdadeiro, mas somente na medida em que nos mantemos na camada mais superficial do tédio.

A primeira grande reviravolta se conclui quando percebemos que o tédio vai muito além do mero enfado que sucede às “escapadelas” da rotina, e que a agitação não resulta apenas de uma escolha antinatural evitável. Diante da futilidade do divertimento incessante dos homens, o fragmento 139/143 havia nos deixado com a interrogação: o que se poderia fazer de melhor para torná-los infelizes? A resposta deixa para trás todos os manuais de autoajuda:

[...] Como, o que se poderia fazer? Bastaria retirar-lhes todas essas preocupações, porque então eles se veriam, pensariam naquilo que são, de onde vêm, para onde vão, e assim nunca é demais ocupá-los e desviá-los disso. E eis por que, depois de preparar-lhes tantos afazeres, se ainda tiverem algum tempo livre, aconselha-se que o empreguem em se divertir, e jogar, e ocupar-se sempre por inteiro. (Pascal, 2001______. “Pensamentos”. São Paulo: Martins Fontes, 2001., p. 57)

Em outras palavras, quando está livre do divertimento e entregue ao repouso, o homem vê a si mesmo, e esta visão lhe é muito mais insuportável do que a futilidade da agitação contínua. Nas palavras de Lebrun, “o inferno, aqui, não são ‘os outros’: o inferno é Narciso” (Lebrun, 1983LEBRUN, G. “Blaise Pascal: voltas, desvios e reviravoltas”. São Paulo: Brasiliense, 1983., p. 18).

Ver a si mesmo é fonte de um desprazer que ganha outra dimensão quando entendemos que ele não é acidental, mas natural:

136/139: [...] Mas, quando considerei de mais de perto e, depois de ter encontrado a causa de todas as nossas infelicidades, quis descobrir-lhes as razões, encontrei que existe uma realmente efetiva que consiste na infelicidade natural de nossa condição fraca e mortal, e tão miserável que nada nos pode consolar quando a consideramos de perto. (Pascal, 2001______. “Pensamentos”. São Paulo: Martins Fontes, 2001., p. 50, tradução levemente modificada)

Note-se que este excerto remete ao vocabulário da razão dos efeitos. Nossas insatisfações, ou infelicidades (no plural), têm como causa a incapacidade de ficar em repouso, mas esta incapacidade também pede uma causa, ou melhor, a razão daquela causa que em si mesma é tão surpreendente quanto o efeito que ela inicialmente explicava. A razão do efeito, superior à primeira causa, é nossa INFELICIDADE (no singular) natural. Ora, como nossa condição infeliz é natural, não é possível eliminá-la ou corrigi-la. O máximo que se pode fazer é não pensar nela, o que aliás é necessário para que possamos continuar vivendo. Se o fragmento 638/109 opunha a natureza, enquanto proporção entre nosso estado e nossos desejos, à nossa autoimposição antinatural de desejos de outros estados, o fragmento 639/109bis reduz este embate “natureza versus antinatureza” a um embate interno a nossa própria natureza, entendida em sentido mais amplo:

Como a natureza nos torna sempre infelizes em todos os estados, os nossos desejos nos figuram um estado feliz porque juntam ao estado em que estamos os prazeres do estado em que não estamos e, ainda quando chegássemos a esses prazeres, nem por isso seríamos felizes, porque teríamos outros desejos conformes a esse novo estado. (Pascal, 2001______. “Pensamentos”. São Paulo: Martins Fontes, 2001., p. 272)

Os desejos que fantasiam um estado feliz, estranho ao nosso, são a válvula de escape para a infelicidade intrínseca ao estado em que estamos. Mas, se eventualmente os realizássemos, ainda assim estaríamos infelizes, pois a realização implicaria estarmos em um outro estado, cujos bens proporcionais seriam igualmente insatisfatórios, levando-nos à fantasia de um outro estado, e assim por diante. Nossa infelicidade é natural porque nossa natureza tem como ideal de felicidade a transgressão dos limites da própria natureza.

Ora, mas o que encontraremos se conseguirmos romper esta dinâmica de infelicidades sucessivas e encararmos o repouso, ou melhor, nos encararmos no repouso?

622/131: Tédio. Nada é mais insuportável para o homem do que estar em pleno repouso, sem paixões, sem afazeres, sem divertimento, sem aplicação. Ele sente então todo o seu nada, seu abandono, sua insuficiência, sua dependência, sua impotência, seu vazio [...]. (Pascal, 2001______. “Pensamentos”. São Paulo: Martins Fontes, 2001., p. 268)

Agora temos a devida noção do tédio em Pascal, que vai muito além do simples enfado com a rotina que sentimos após termos experimentado o inabitual. Este sentimento de si mesmo como um nada é o encontro do mais insuportável dos tormentos. Agora podemos entender a dimensão afetiva daquela situação do homem que pode ser vista no também famoso fragmento 199/72, sobre os dois infinitos: a situação de um ser perdido entre o tudo e o nada (nada em relação ao infinito, tudo em relação ao nada). Aqui o homem é dito um nada, mas não no sentido metafísico do nada absoluto (que para Pascal se une ao infinito), e sim como um vazio, ou melhor, como algo que foi esvaziado devido ao abandono e por conseguinte tornou-se impotente para realizar sua felicidade; algo que sente sua dependência do Outro que o abandonou, tornando-o intrinsecamente insuficiente. Havíamos omitido, e agora cumpre retomar, a última frase do fragmento 139/143, após este mostrar a necessidade do divertimento: “Como o coração do homem é oco e cheio de lixo” (Pascal, 2001______. “Pensamentos”. São Paulo: Martins Fontes, 2001., p. 57). O vazio do fragmento 622/131 revela-se aqui um “oco”, um espaço esvaziado, que buscamos inutilmente preencher com lixo, isto é, com divertimentos. E, se não o fizermos, o que decorre? “622/131: [...] Imediatamente nascerão do fundo de sua alma o tédio, o negrume, a tristeza, a mágoa, o despeito, o desespero” (Pascal, 2001______. “Pensamentos”. São Paulo: Martins Fontes, 2001., p. 268). A aproximação de tédio e negrume é uma referência à medicina antiga, em que a melancolia profunda resulta dos vapores da bílis negra;5 5 Sobre o humor melancólico e as doenças da bílis negra, ver Berlinck, 2008, pp. 33-62. as outras caracterizações deste estado de alma, mais familiares ao leitor contemporâneo, dispensam apresentação. Quão distantes estamos do banal enfado!

Acrescente-se que a relação necessária tédio-divertimento não é restrita a certas condições humanas, mas é intrínseca à condição humana como tal, daí que Pascal deva buscar, na sua experiência da vida social, um caso extremo, cuja falência como contraexemplo autorizará a afirmação da universalidade da infelicidade natural:

137/142: Divertimento. Não é bastante grande a dignidade real em si mesma para aquele que a possui para torná-lo feliz pela simples visão daquilo que ele é? Será preciso diverti-lo desse pensamento como ao comum dos homens? Bem vejo que é tornar um homem feliz diverti-lo da visão de suas misérias domésticas para preencher todo o seu pensamento com o cuidado de dançar bem; mas será a mesma coisa com relação a um rei e será ele mais feliz prendendo-se a esses vãos divertimentos do que contemplando a sua própria grandeza? E que objeto mais satisfatório se poderia dar ao seu espírito? [...] Submeta-se isso à prova, deixe-se um rei a sós, sem nenhuma satisfação dos sentidos, sem nenhuma preocupação no espírito, sem companhias e sem divertimentos, pensar em si totalmente à vontade, e ver-se-á que um rei sem divertimento é um homem cheio de misérias. Assim, evita-se isso cuidadosamente e nunca falta ao redor da pessoa do rei muita gente que cuida de fazer com que o divertimento suceda aos negócios e que fica a observar todo o seu tempo de ócio para fornecer-lhe prazeres e jogos de modo que não haja nenhum vazio. Quer dizer que eles são cercados de pessoas que têm um maravilhoso cuidado para evitar que o rei fique sozinho e em estado de pensar em si, sabendo perfeitamente que ele ficará miserável, muito embora seja rei, se pensar em si. (Pascal, 2001______. “Pensamentos”. São Paulo: Martins Fontes, 2001., pp. 55-56)

No limite, do ponto de vista da felicidade pessoal, o que distingue o homem mais poderoso e o mais humilde é apenas a quantidade de pessoas dispostas a distraí-lo. E aqui Pascal não se refere apenas às piadas dos bobos da corte, mas a todas as atividades que ministros, súditos, embaixadores etc. podem impor ao rei devido à natureza do cargo e que, a despeito das atribulações (as infelicidades no plural) que implicam, também são capazes de distraí-lo de pensar em si mesmo, evitando a infelicidade natural.

Porém, não deixemos que a análise detalhada dos fragmentos nos faça perder de vista o movimento geral do raciocínio por reviravoltas, retomemos o caminho percorrido. A experiência mostra que os homens, sejam grandes ou humildes, cultos ou incultos, divertem-se o tempo todo; com jogos e danças, é certo, mas também com obrigações profissionais, aventuras amorosas, guerras e desafios intelectuais. A futilidade desses divertimentos é clara e parece apontar muito mais para a frustração do que para a felicidade, de modo que os homens que se divertem são insensatos. No entanto, os divertimentos são necessários para desviar-nos de um mal maior (a visão de nossa infelicidade natural) e por isso, concluindo a primeira reviravolta, vemos que os verdadeiros insensatos são os filósofos que denunciam a futilidade do divertimento:

136/139: [...] Eis tudo que os homens puderam inventar para se tornar felizes, e aqueles que, a respeito disso, bancam os filósofos e acreditam que o mundo é bem pouco razoável se passa o dia a correr atrás de uma lebre que não gostariam de ter comprado, não conhecem nada da nossa natureza. Essa lebre não nos garantiria contra a visão da morte e das misérias que nos desviam dela, mas a caça sim, nos garante. (Pascal, 2001______. “Pensamentos”. São Paulo: Martins Fontes, 2001., p. 52)

Tal como anteriormente vimos a reviravolta quanto à razoabilidade das posições do povo e dos semissábios a respeito da pertinência de honrar os grandes, no caso do divertimento vemos de novo os semissábios, agora nomeados “filósofos”, serem derrubados em seus juízos tão pretensiosos quanto superficiais.

É ainda surpreendente, entretanto, que os “insensatos sábios” consigam, com tão pouco, distrair-se de uma infelicidade tão profunda. A experiência mostra, porém, que assim é:

522/140: Aquele homem tão aflito com a morte da mulher e do filho único, que tem essa grande disputa que o atormenta, de onde vem que neste momento ele não está triste e que seja visto tão isento de todos os pensamentos penosos e inquietantes? Isso não é de admirar. Acabam de passar-lhe uma bola e é preciso que ele a lance a seu companheiro. Ele está ocupado em apanhá-la ao cair do telhado para ganhar um lance. Como quereis que ele pense em seus problemas tendo este outro problema para cuidar? Eis aí um cuidado digno de ocupar essa grande alma e de lhe tirar qualquer outro pensamento do espírito. (Pascal, 2001______. “Pensamentos”. São Paulo: Martins Fontes, 2001., pp. 239-240)

Só se surpreende com isso quem não atenta para aquilo que é próprio do oco do coração humano. Assustador enquanto vazio, deixa-se preencher por qualquer coisa, por vã que seja, visto que o vazio não impõe resistência, tal como uma biruta de aeroporto muda de direção ao sabor do vento. Em contrapartida, ao menor intervalo sem divertimentos, o coração encara o quanto há ainda de impreenchível neste mesmo vazio. Como diz o fragmento 43/136: “Pouca coisa nos consola porque pouca coisa nos aflige” (Pascal, 2001______. “Pensamentos”. São Paulo: Martins Fontes, 2001., p. 12). Por isso o divertimento é eficaz, mas instável. Daí que a busca da grandeza, tanto material quanto intelectual, seja tão intensa. Rica em instrumentos para produzir divertimento, a grandeza permite que tal eficácia seja mais duradoura, mesmo que não se possa eliminar a instabilidade que lhe é intrínseca: “132/170: [...] mas não é estar feliz poder alegrar-se pelo divertimento? Não, porque ele vem de outra parte e de fora; e assim é dependente e, por toda parte, sujeito a ser perturbado por mil acidentes que fazem as aflições inevitáveis” (Pascal, 2001______. “Pensamentos”. São Paulo: Martins Fontes, 2001., p. 49). Por outro lado, renunciar a esta futilidade, como aconselham aqueles “filósofos” que desconhecem a natureza humana, é ser mais insensato do que o insensato, visto que este último nunca se propõe ao despropósito de ir além da condição humana:

522/140: [...] Esse homem nascido para conhecer o universo, para julgar de todas as coisas, para reger um Estado, ei-lo ocupado e todo tomado pela tarefa de apanhar uma lebre. E se ele não se rebaixar a isso e quiser estar sempre tenso será ainda mais tolo, porque pretenderá elevar-se acima da humanidade e ele não passa de um homem afinal de contas, isto é, capaz de pouco e de muito, de tudo e de nada. Ele não é anjo nem bicho, é homem. (Pascal, 2001______. “Pensamentos”. São Paulo: Martins Fontes, 2001., p. 240)

Uma segunda reviravolta, porém, já se avizinha:

136/139: [...] Assim tem-se dificuldade em recriminá-los; o seu erro não está em buscarem o tumulto. Se não o buscassem senão como divertimento, mas o mal está em que eles o buscam como se a posse das coisas que buscam devesse fazê-los verdadeiramente felizes, e é aí que se tem razão de acusar a sua busca de vaidade, de maneira que, em tudo isso, tanto aqueles que recriminam como aqueles que são recriminados não ouvem a verdadeira natureza do homem. (Pascal, 2001______. “Pensamentos”. São Paulo: Martins Fontes, 2001., p. 52)

Ou seja, tanto os “filósofos” quanto os “insensatos” desconhecem a natureza do homem. Se os filósofos erram ao criticar o divertimento dos insensatos por não verem que sem isso se cairia no tédio insuportável do repouso; os insensatos, por sua vez, erram por acreditarem que estão efetivamente em busca da presa, e não da própria caça. Os insensatos são sensatos na ação de divertir-se (aliás necessária e da qual não escapam nem mesmo os “filósofos” que a criticam), mas são de fato insensatos no espírito, por não compreenderem a razão pela qual eles têm razão. Em suma, a segunda reviravolta revela que os homens que se divertem estão certos, mas apesar de si mesmos: “136/139: [...] Eles imaginam que se tivessem obtido essa presa descansariam depois com prazer e não sentem a natureza insaciável da cupidez. Acreditam estar buscando sinceramente o repouso e não buscam de fato senão a agitação” (Pascal, 2001______. “Pensamentos”. São Paulo: Martins Fontes, 2001., p. 53).

Mas ainda há uma terceira reviravolta. Tão ignorantes da verdadeira condição humana quanto os filósofos, os insensatos se divertem buscando o repouso, sem saber que não é este, e sim a própria busca, que faz a razoabilidade de sua conduta. Entretanto, e eis aí a reviravolta, é bom que se enganem:

136/139: [...] não é então só a diversão que ele busca. Uma diversão desanimada e sem paixão o entediará. Ele precisa se animar e criar um engodo para si mesmo imaginando que seria feliz ganhando aquilo que não quereria que lhe fosse dado sob a condição de não jogar, a fim de que forme para si um motivo de paixão e que excite com isso o seu desejo, a sua cólera, o temor por esse objeto que formou para si como as crianças se apavoram vendo a cara que lambuzaram de tinta. (Pascal, 2001______. “Pensamentos”. São Paulo: Martins Fontes, 2001., p. 54)

Ironicamente, é o equívoco dos insensatos que garante alguma eficácia para o divertimento. Se soubessem, como sabem os hábeis, que o divertimento vale pelo movimento que provoca, e não pelo objeto conquistado, os insensatos perderiam o ardor da busca. A ignorância do insensato, diferente da ignorância dos filósofos, é uma ignorância útil, sem a qual a natureza humana seria presa fácil para o tédio.

Poderíamos, porém, perguntar o que alimenta essa busca por um bem imóvel. A ignorância útil do insensato é a condição negativa para que o divertimento persista, mas, sem um impulso positivo para o movimento, este provavelmente feneceria diante das sucessivas frustrações com os bens obtidos. Em outras palavras, o que é que alimenta aquele desejo constante de ultrapassar os limites de nosso estado presente (como vimos no fragmento 639/109bis) e que na prática implica buscar a agitação acreditando sinceramente que se busca o repouso?

136/139: [...] Eles têm um instinto secreto que os faz buscar o divertimento e a ocupação exterior, que vem do sentimento de suas misérias contínuas. E têm um outro instinto secreto que restou da grandeza de nossa natureza primeira, que os faz conhecer que a felicidade não está de fato senão no repouso e não no tumulto. E desses dois instintos contrários forma-se neles um projeto confuso que se esconde da sua vista no fundo da alma que os leva a tender para o repouso pela agitação e a imaginar sempre que a satisfação que não possuem lhes virá se, superando algumas dificuldades com que se defrontam, puderem abrir para si a porta do repouso. (Pascal, 2001______. “Pensamentos”. São Paulo: Martins Fontes, 2001., p. 53)

É curioso o uso por Pascal da noção de um instinto secreto. Nas Meditações, Descartes (1988)DESCARTES, R. “Meditações Metafísicas”. São Paulo: Abril Cultural, 1988. (Coleção Os Pensadores). várias vezes recusa a presença de potências anímicas ocultas à própria alma que seriam responsáveis pela produção de certas ideias sem que eu o perceba. No final do século XVII, porém, Leibniz (1966)LEIBNIZ, G. W. “Nouveaux Essais sur l’Entendement Humain”. Paris: GarnierFlammarion, 1966. não hesitará em falar de pequenas percepções inapercebidas que determinam nossos atos, mas Pascal não chega a tanto. Agostinianamente, Pascal poderia falar de uma inclinação a pecar, oriunda do pecado original, e o fará várias vezes nos Escritos sobre a Graça (Pascal, 1963PASCAL, B. “Oeuvres Complètes”. Paris: Seuil, 1963., pp. 310-348),6 6 Todas as citações desta edição das Obras Completas de Pascal são traduzidas por nós. porém aqui não há menção explícita à teologia; até porque Pascal não diz que o divertimento é pecado. O que diz é que o instinto secreto que busca a agitação resulta do ressentimento das contínuas misérias, isto é, das constantes frustrações com os objetos de desejo alcançados. Este instinto poderia produzir uma busca do divertimento por si mesmo, sem necessidade de um objeto de desejo para apaixoná-lo. Contudo, este instinto é contrabalançado por outro, que nos diz que a felicidade está no repouso, instinto que não faz sentido em nosso estado atual. Ele seria um resquício de nossa primeira natureza, a qual supostamente seria proporcional à obtenção de um bem que nos faria felizes sem a necessidade da agitação. Não mais se trata apenas de fantasiar estados futuros a partir da insatisfação presente, mas de supor um estado anterior e superior, do qual teríamos decaído. Da conjunção destes dois instintos, um resultante de nossa condição presente, outro de nossa condição passada, ambos contrários entre si, brotaria um projeto confuso (até porque a união de contrários só poderia ser confusa) e também oculto à alma, que leva a buscar o repouso por meio da agitação. Só isto explica que a eficácia do divertimento, enquanto puro movimento, dependa da crença em um bem estável no qual repousaríamos. Trata-se de um paradoxo que a experiência constata e cuja razão dos efeitos é a operação simultânea de duas naturezas em uma só.

Lebrun não hesita em aproximar o divertimento da questão teológica que está no núcleo do projeto apologético pascaliano: “Porque pensa no eixo do Pecado e da Queda, Pascal pensa historicamente e zomba daqueles que confundem ‘natureza’ e ‘originariedade’ [...]. A ‘natureza’ que nos impõe o divertimento poderia, pois, muito bem ser patológica” (Lebrun, 1983LEBRUN, G. “Blaise Pascal: voltas, desvios e reviravoltas”. São Paulo: Brasiliense, 1983., p. 20). Mais à frente, explicando o paradoxo do projeto confuso que brota dos dois instintos, novamente Lebrun traz a questão para o contexto teológico, ainda que mesclada à noção psicológica de recalque:

Os “insensatos” estão muito perto de saber que não vivem mais na “primeira natureza”. Mas esse pensamento permanece recalcado, de sorte que falam - ridiculamente - como se vivessem nessa “primeira natureza”. Daí vem a defasagem que observamos entre seu discurso e sua prática. “Eles acreditam buscar sinceramente o repouso e buscam apenas a agitação”. (Lebrun, 1983LEBRUN, G. “Blaise Pascal: voltas, desvios e reviravoltas”. São Paulo: Brasiliense, 1983., p. 21)

Já Vincent Carraud situa o divertimento pascaliano no interior do que ele chama de “segunda antropologia” de Pascal, a qual não seria governada por nenhum princípio teológico (diferentemente da “primeira antropologia”, fundamentalmente agostiniana, focada nas noções de grandeza e miséria) e resultaria de uma análise puramente fenomenal operada pelo filósofo: “A antropologia não é mais colocada a serviço explícito de uma apologética, mas ela é o fim mesmo da análise pascaliana. A segunda antropologia é, pois, inteiramente desteologizada: a teologia não está nem em seu princípio, nem em seu fim como apologética” (Carraud, 2006CARRAUD, V. “Observações sobre a segunda antropologia: o pensamento como alienação”. Kriterion, Vol. XLVII, Nr. 114, jul.-dez. 2006., p. 312).

É possível acompanhar parcialmente Carraud, afastando o divertimento pascaliano do dogmatismo teológico, desde que se demonstre (como aliás Pascal tentará fazer em outros fragmentos, embora não nestes sobre o divertimento) que a hipótese da queda é a única explicação plausível para a profundidade da miséria humana (expressa na noção de tédio). Sem isso, a suposição de um instinto restante da primeira natureza seria injustificável. Porém, tirar o divertimento (ou uma suposta “segunda antropologia”) do campo dos dogmas teológicos não é o mesmo que retirá-lo completamente do projeto apologético, como propõe Carraud, e nisso aproximamo-nos mais da posição de Lebrun. A apologia não pode pressupor a crença nos dogmas cristãos precisamente porque se dirige ao não crente, todavia necessariamente resultará em uma defesa da razoabilidade destes mesmos dogmas, do contrário não será uma apologia. O exame do divertimento se enquadra neste modelo, mesmo que a reviravolta do pró ao contra não passe explicitamente (como fizera no caso das honras dadas aos grandes no fragmento 90/337, já citado no início deste artigo) pela posição do cristão perfeito.

Se considerarmos a posição do cristão excluída dos fragmentos em questão, poderemos dizer que todos os personagens que estão nos polos da gradação se divertem, até mesmo o hábil, que, acima do insensato e do filósofo, compreende o processo todo. O insensato diverte-se correndo atrás da presa; o filósofo (“semi-hábil”), denunciando a futilidade do insensato; o hábil, desvendando as ilusões de ambos, porém, sem perceber, iludindo-se a si mesmo ao repor um fim para o movimento para além da mera distração, a saber, inflar seu amor próprio gabando-se da conquista:

136/139: [...] Mas direis: Que objetivo tem ele em tudo isso? O de se gabar amanhã entre os amigos por ter jogado melhor que outro. Da mesma forma outros suam em seu gabinete para mostrar aos sábios que resolveram uma questão de álgebra cuja solução ainda não se tinha podido encontrar; e tantos outros se expõem aos maiores perigos para se vangloriar depois de uma praça que tomaram tão estupidamente, a meu ver. E finalmente outros se matam para aprender todas essas coisas, não para se tornarem mais sábios, mas tão-somente para mostrar que as sabem, e esses são os mais tolos do bando, pois que o são com conhecimento, ao passo que se pode pensar dos demais que não o seriam se tivessem esse conhecimento. (Pascal, 2001______. “Pensamentos”. São Paulo: Martins Fontes, 2001., p. 54, negritos nossos)

Estaria Pascal, nestas últimas linhas, fazendo uma crítica a si mesmo, como “um dos mais tolos do bando”? Não seria descabido afirmá-lo; afinal, exceto pela conquista militar, o autor poderia gabar-se de todas as façanhas citadas. Todavia, só o colocaremos nesta “saia justa” se excluirmos da discussão a posição do cristão perfeito, que, enquanto tal, talvez possa escapar à dinâmica aparentemente inescapável do divertimento, mas somente “enquanto tal”. Neste sentido, vale lembrar a frase que conclui o fragmento 137/142, que falava das vantagens do rei por ter mais pessoas para diverti-lo: “[...] Não falo em tudo isso dos reis cristãos como cristãos, mas somente como reis” (Pascal, 2001______. “Pensamentos”. São Paulo: Martins Fontes, 2001., p. 56). Talvez se possa daí deduzir que, enquanto cristão, o rei não mais precise divertir-se, ou mesmo que o cristão, em geral, não precise divertir-se. Mas será que a experiência nos atestaria isso? O próprio Pascal resolveu problemas matemáticos na fase mais ardorosa do seu cristianismo, para não mencionar as múltiplas atividades (gramática, botânica, pintura...) dos outros Solitários de Port Royal. Os fragmentos sobre o divertimento não trazem uma solução explícita para este problema, mas penso que ela só pode vir da compreensão mais estrita da condicionante “enquanto cristãos”.

De fato, o fragmento 132/170 diz: “Divertimento - se o homem fosse feliz, tanto mais o seria quanto menos se divertisse, como os santos e Deus” (Pascal, 2001______. “Pensamentos”. São Paulo: Martins Fontes, 2001., p. 49). A possibilidade de ser feliz sem divertimento não é dada para um personagem genericamente apresentado como “cristão perfeito”, mas para o “santo”, que a frase (e a graça) reúne a Deus. Ou seja, somente sob a influência direta da graça divina pode-se pensar uma vida suportável sem o divertimento. Entrementes... à caça!

Há um fragmento, porém, que parece abrir espaço para uma recusa do divertimento, mesmo sem mencionar a ação direta de Deus:

414/171: Miséria. A única coisa que nos consola de nossas misérias é a diversão. E no entanto é a maior de nossas misérias. Porque é ela que nos impede principalmente de pensar em nós e que nos põe a perder insensivelmente. Sem ela ficaríamos entediados, e esse tédio nos levaria a buscar um meio mais sólido de sair dele, mas a diversão nos entretém e nos faz chegar insensivelmente à morte. (Pascal, 2001______. “Pensamentos”. São Paulo: Martins Fontes, 2001., p. 157)

Embora seja o único com este teor, o fragmento não deixa de colocar dificuldades aos intérpretes. Ele parece criar uma nova reviravolta, fazendo do divertimento não uma escapatória fugidia das misérias, mas a maior das misérias. E não porque nos condene às frustrações constantes, como vimos anteriormente, mas porque nos desvia da vivência do tédio, a qual não é mais apresentada como absolutamente insuportável, porém como uma motivação capaz de oferecer uma saída mais sólida para nossa condição miserável. Seria então possível enfrentar o tédio de frente, resistindo ao divertimento, e encontrar uma saída humana para o abismo? Embora não dê uma resposta afirmativa a esta questão (o que aliás seria impossível), Pondé vê neste fragmento a base para a afirmação de uma poderosa proposta ética:

Pascal está esboçando uma ética da insuficiência - e evidentemente não no sentido concupiscente -, tomando como dado empírico o esforço para não fugir da consciência da miséria e do desconforto existencial. A hipótese ética pascaliana não parece ser dominada pela ideia de felicidade empírica. [...] Por isso podemos caracterizá-la como anti-humanista, na medida em que o que é natural no homem, ‘divertir-se’, é um dos marcos do que deve ser recusado. Pascal não parece buscar uma forma de negar a insuficiência em sua raiz ontológica, mas sim afirmá-la no que ela tem de possibilidade de transformação da condição humana. (Pondé, 2001PONDÉ, L. F. “O homem insuficiente: comentários de antropologia pascaliana”. São Paulo: Edusp, 2001., p. 246)

Ora, mesmo que se possa falar de um anti-humanismo pascaliano (tema que não discutiremos aqui), é difícil aceitar, com base em um único fragmento, que o divertimento possa ser recusado em nome de uma ética que não tenha em vista a felicidade. Como vimos no fr. 140/522, isto seria, mais do que antihumanismo, querer colocar-se acima do humano, o que vemos confirmado também no fragmento 134/169: “Não obstante essas misérias, ele quer ser feliz e nada mais quer do que ser feliz, e não pode não querer sê-lo. Mas que fará para isso? Seria preciso, para conseguir, que se tornasse imortal, mas, não podendo, resolveu evitar pensar nisso” (Pascal, 2001______. “Pensamentos”. São Paulo: Martins Fontes, 2001., p. 50). A não ser, evidentemente, que estivéssemos falando do homem sob a ação da graça, e portanto em uma esfera sobrenatural, na qual a própria ideia de uma ética pensada a partir da reflexão humana sobre o divertimento e sobre a insuficiência que o implica ficaria comprometida, como aliás o próprio comentador reconhece:

Todavia, alcançar tal “ética” é resultado de uma graça eficaz contingente, logo, a “ética” pascaliana não é uma proposta que assuma sua viabilidade a partir de uma vontade humana autônoma - o que complica a ideia de uma ética -, mas sim na busca do sentido verdadeiro (redentor) da insuficiência pela submissão espiritual a ela na prece humilde pela graça. (Pondé, 2001PONDÉ, L. F. “O homem insuficiente: comentários de antropologia pascaliana”. São Paulo: Edusp, 2001., pp. 246-247)

Em consequência, a dificuldade interpretativa gerada pelo fragmento 414/171 pode ser resolvida de duas maneiras: 1) Entendendo-o como referente ao cristão perfeito sob a ação da graça, e neste caso o tédio deixa de ter o habitual caráter assustador, pois o vazio está agora preenchido, ainda que provisoriamente. Neste caso, o divertimento torna-se um entrave desnecessário, e a visão de si mesmo torna-se porta para o repouso, porém então estaríamos longe da esfera puramente humana, na qual o reinado do divertimento restaria inconteste. 2) Entendendo o fragmento como um mero desdobramento da etapa inicial da gradação, antes da primeira reviravolta, quando ainda não se via o tédio com a radicalidade devida, nem o divertimento como condição sine qua non de sobrevivência. Neste caso, o fragmento apresentaria não a realidade mas as ilusões do filósofo insensato. Em ambas as alternativas de leitura, mantémse inalterada a interpretação geral do conjunto de fragmentos sobre o tema: sem o auxílio sobrenatural, o divertimento é incontornável, até mesmo para o insensato que não tem ideia do que está em jogo.

  • 1
    As citações dos Pensamentos serão sempre precedidas, respectivamente, das numerações Lafuma (adotada pela edição ora utilizada) e Brunschvicg.
  • 2
    “Talvez eu tenha abordado alhures alguma espécie de diversão pública. E o uso das militares, de que se serviu Péricles na guerra do Peloponeso, e mil outros alhures para remover de seus países as forças inimigas, é muito frequente nas histórias” (Montaigne, 2001MONTAIGNE, M. “Os Ensaios”. São Paulo: Martins Fontes, 2001., Vol. III, cap. 4, p. 68).
  • 3
    “Raramente fazemo-la atacar de frente os males; não a fazemos suportar nem abater sua investida. Fazemos que se afaste e se esquive” (Montaigne, 2001MONTAIGNE, M. “Os Ensaios”. São Paulo: Martins Fontes, 2001., p. 70).
  • 4
    Para um histórico detalhado dos sentidos da palavra divertissement, ver Anjos, 2011ANJOS, A.A. “Divertimento pascaliano: a agitada busca pelo repouso”. Dissertação de mestrado apresentada ao Departamento de Filosofia da USP, São Paulo, 2011., pp. 92 a 98.
  • 5
    Sobre o humor melancólico e as doenças da bílis negra, ver Berlinck, 2008BERLINCK, L. C. “Melancolia, traços de dor e de perda”. São Paulo: Humanitas, 2008., pp. 33-62.
  • 6
    Todas as citações desta edição das Obras Completas de Pascal são traduzidas por nós.

Referências

  • ANJOS, A.A. “Divertimento pascaliano: a agitada busca pelo repouso”. Dissertação de mestrado apresentada ao Departamento de Filosofia da USP, São Paulo, 2011.
  • BERLINCK, L. C. “Melancolia, traços de dor e de perda”. São Paulo: Humanitas, 2008.
  • CARRAUD, V. “Observações sobre a segunda antropologia: o pensamento como alienação”. Kriterion, Vol. XLVII, Nr. 114, jul.-dez. 2006.
  • DESCARTES, R. “Meditações Metafísicas”. São Paulo: Abril Cultural, 1988. (Coleção Os Pensadores).
  • LEBRUN, G. “Blaise Pascal: voltas, desvios e reviravoltas”. São Paulo: Brasiliense, 1983.
  • LEIBNIZ, G. W. “Nouveaux Essais sur l’Entendement Humain”. Paris: GarnierFlammarion, 1966.
  • MAGNARD, P. “Vocabulário de Pascal”. São Paulo: Martins Fontes, 2013.
  • MONTAIGNE, M. “Os Ensaios”. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
  • OLIVA, L. C. “As Marcas do Sacrifício. Um estado sobre a possibilidade da História em Pascal”. São Paulo: Fapesp/Humanitas, 2004.
  • ______. “Corrupção humana e justiça em Pascal”. Cadernos Espinosanos, São Paulo, XXXIII, jul-dez. 2015.
  • PASCAL, B. “Oeuvres Complètes”. Paris: Seuil, 1963.
  • ______. “Pensamentos”. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
  • PONDÉ, L. F. “O homem insuficiente: comentários de antropologia pascaliana”. São Paulo: Edusp, 2001.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Out 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2021

Histórico

  • Recebido
    18 Jun 2020
  • Aceito
    16 Dez 2020
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