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A NEGATIVIDADE DA NATUREZA NO IDEALISMO DE J. G. FICHTE; UM EMBATE COM F. W. J. SCHELLING

NATURE’S NEGATIVITY IN J. G. FICHTE’S IDEALISM; A CLASH WITH F. W. J. SCHELLING

RESUMO

Caricaturado como criador de uma filosofia subjetivista extrema, que apresenta o mundo como mero produto do pensamento, Fichte teve de confrontar em diferentes fases de sua vida acusações de ateísmo, idealismo ingênuo e simplismo. Reagiu a todas exatamente da mesma forma, reexplicando seu sistema, ou redirecionando-o para cobrir os desafios que se avolumavam. Contudo, parte de seus críticos, particularmente os que viam nele um conceito de natureza muito deficitário, como Schelling, por ocasião do forte desentendimento entre os dois por volta de 1801, crerão que a obra madura de Fichte tenta sanar o erro. A pesquisa histórica recente, no entanto, mostra que Fichte estava bem ciente dos problemas ligados à filosofia natural já por volta de 1798, e admitia ter dificuldade em resolvê-los. Defenderemos que a formulação original do conceito de natureza de Fichte não chega a ser tão distinta de sua versão posterior, e que esta não se resume a uma mera reação defensiva diante do avanço da filosofia da natureza de Schelling.

Palavras-chave:
Natureza; Negatividade; Eu; Subjetivismo; Idealismo

ABSTRACT

Considered as a radical subjectivist who presented the world as a mere product of thought, Fichte had to face charges of atheism, naïve idealism and reductionism. He always reacted identically, repeatedly explaining his system, or redirecting it in order to overcome new challenges. Even though, part of his critics especially the ones who saw in his theories a deficient concept of Nature, like Schelling, who was moved by a bitter personal and conceptual disagreement with him around 1801, would later consider Fichte’s final works as a complete reformulation. Recent historical research, however, shows that Fichte was aware of his lack of clarity concerning natural philosophy already in 1798, and he even admitted being incapable of solving the problem. We argue here that Fichte’s original conception of nature original is not so far from the new one, and that his further presentation is not a mere defensive reaction to the advancement of Schellingian philosophy of nature.

Keywords:
Nature; Negativity; I; Subjectivism; Idealism

Introdução

A década de 1790 foi marcada por intensas e originalíssimas contribuições filosóficas. Nesse estimulante cenário especulativo, o futuro da filosofia transcendental parecia incerto diante da ampla gama de opções oferecidas em ritmo febril pelos ainda assistemáticos intelectuais alemães. A polimatia propiciava reações de autores que, poucas décadas mais tarde, ter-se-ia interpretado como não suficientemente especializados para que contribuições de porte fossem consideradas (pense-se em Herder, Schiller ou Goethe).

Ao lado dos intensos progressos da filosofia, surgia e consolidava-se como ciência a biologia, ainda em um contexto que a obrigava a lutar contra o mecanicismo e, para afirmar seus traços sugestivamente teleológicos, convidava a um retorno ao que Kant condenara como metafísica dogmática. Autores como Goethe e Blumenbach desenvolviam uma concepção de forças ativas e diretivas dos fenômenos orgânicos, e as noções evolucionistas começam a aparecer (Richards, 2002RICHARDS, R. “The Romantic Conception of Life: Science and Philosophy in the Age of Goethe”. Chicago and London: Chicago University Press, 2002.). Essa reviravolta obriga os filósofos a reconsiderarem cada vez mais o papel da “força da vida” e de uma lógica mais “orgânica” em seus sistemas (Matussek, 1998MATUSSEK, P. „Goethe und die Verzeitlichung der Natur“. München: Verlag C. H. Beck, 1998.).

Mesmo que envolvendo grande número de celebridades da cultura alemã, o debate sobre o legado kantiano começa a migrar das mãos dos intérpretes mais “fiéis” ou conservadores – ainda que críticos – para as de J. G. Fichte e seu precoce seguidor F. W. J. Schelling. Este último, empolgado pela perspectiva libertária de Kant e Fichte, insurgiu-se contra seus mestres tubinguenses e sua interpretação teológica de Kant, buscando colaborar com a nova onda da nova filosofia, a qual reconhecia em Fichte. Nesse primeiro momento, Schelling e Fichte eram vistos e eles próprios acreditavam-se parceiros em uma

empreitada científica compartilhada; mesmo quando diante de desacertos, eles ansiavam a que o público os percebesse como unidos sob a mesma bandeira da filosofia transcendental – como se esta fosse genuinamente a “filosofia perene” engendrada pela modernidade, e não apenas uma contribuição isolada (Fichte; Schelling, 2012, p. 3FICHTE, J. G., SCHELLING, F. W. J. “The philosophical rupture between Fichte and Schelling: selected texts and correspondence (1800-1802)”. Michael G. Vater and David W. Wood (org.) New York: New York Press, 2012.).

A forma eleita por Fichte para dar continuidade à filosofia kantiana, em um sentido que logo seria reconhecido como exageradamente subjetivista, era um elemento (senão o principal) que desde o começo causara desconforto a Schelling.

Contra a pressuposição de que o idealismo objetivo de Schelling (ou de Hegel, depois) absorveu e corrigiu o projeto de Fichte, apresentaremos argumentos em favor da consistência do conceito de natureza na obra de Fichte, ainda que em seus próprios termos, isto é, subordinada ao programa transcendental e crítico.1 1 De forma assertiva, Reinhard Lauth escreve no segundo parágrafo de seu livro sobre o conceito fichtiano de natureza: “Schelling e sua escola [...] cometeram o erro de apresentar a filosofia da natureza como argumento decisivo contra a Doutrina da Ciência” (Lauth, 1984, p. XIII). Em outras palavras, Fichte escapa das acusações caricaturais de idealismo ingênuo porque, por um lado, sua doutrina da criação do mundo natural como um palco para a atuação do Eu é puramente transcendental, e ele é bem-sucedido em seus próprios propósitos, apresentando um modelo único para a formação da autoconsciência (Henrich, 2019HENRICH, D.. “O Eu de Fichte”. Tradução de L. C. Utteich. Analytica 23, 1, 2019. pp. 162-181.); por outro, sua compreensão tardia sobre a natureza “em si” tem um viés espiritualista2 2 No sentido de a natureza não poder ser constitutivamente morta e anti-intelectual, mas precisar conter em si uma origem ou um elemento vital, intelectual e livre que está na essência do ser. Contudo, a constatação de que o ser é “iluminado” por uma fonte intelectual e livre infinita e Absoluta (com ‘a’ maiúsculo) já ultrapassa o escopo da Doutrina da Ciência, em que este trabalho está contido, e caminha para uma doutrina da sabedoria, para além dos limites do criticismo transcendental, o que explica as profundas transformações da versão de 1804 da Doutrina da Ciência. não muito distinto do apresentado por Schelling e Hegel.

O processo produtivo do Eu e o papel negativo do objeto

No entender de Fichte, a tradição filosófica havia se concentrado sobre objeto e substância (Tatsache ou “coisa”, “estado de coisa” na definição de Torres Filho) de um modo dogmático. A ordem lógica da filosofia transcendental, entretanto, só permite traçar o perfil funcional da atividade intelectiva, força espontânea do ato (Tathandlung). Já segundo Diogo Ferrer, a distinção entre Tathandlung e Tatsache faria referência proposital ao “fato” (Tat), de modo que o neologismo que Fichte cria para a ação (Tathandlung) enfatizaria o caráter fático dessa ação (Ferrer, 2014, p. 18FERRER, D. “O Sistema da Incompletude: A Doutrina da Ciência de Fichte de 1794 a 1804”. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2014.). É claro, essa primazia da ação sobre a coisa, do sujeito sobre o fato, daria novas cores ao construtivismo kantiano, fazendo com que o objeto representado e toda a ordem inerente a ele (a natureza), se apresentassem agora como resultado daquela atividade intelectual.

O criticismo não permitiria a retomada do realismo dogmático no sistema da ciência, mas tal “proibição” contém um gérmen de problema na forma dualista segundo a qual é apresentada por Kant, o que se originaria de uma complicação conceitual remontante à terceira antinomia, quando Kant pergunta acerca da possibilidade de existência de outra causalidade além da natural, que possa ser aplicada ao mundo das formas (Neuhouser, 1990, p. 19NEUHOUSER, Frederick. „Fichte’s Theory of Subjectivity“. Cambridge: Cambridge University Press, 1990.). Dentro da estrutura kantiana, portanto, a cisão dá-se na forma de adesão à terceira crítica e sua radicalização, ou a consideração de que a unidade das três críticas revelaria a liberdade como única realidade; idealismo objetivo ou subjetivo, o que será relevante para a posterior divisão entre Fichte e Schelling.

De qualquer maneira, desde a Resenha ao Aenesidemus, Fichte estabelecera que, em um sistema, o ponto de partida ou objeto do saber não pode vir de uma percepção, caso em que a mente nunca estaria de posse ou mesmo confortável com o objeto. Ele deve ser posto (Fichte, GA I,2, 1965, p. 47FICHTE, J. G.. „Gesamtausgabe der Bayerischen Akademie der Wissenschaften“. Bd. I,2: Werke (1793-1795). Stuttgart: Frommann-holzboog Verlag, 1965.). O Aenesidemus de Schulze pretendia desmoralizar a filosofia kantiana acrescentando a ela “coisas” independentes da inteligibilidade e da capacidade de representar. Isso, para Fichte, é algo nunca antes pensado e até mesmo impensável, pois pensar é ato subjetivo, e quem pensa sempre e necessariamente pensa em si - ao menos implicitamente - e em coisas que se lhe aparecem no pensamento (Fichte, GA I,2, 1965, p. 61FICHTE, J. G.. „Gesamtausgabe der Bayerischen Akademie der Wissenschaften“. Bd. I,2: Werke (1793-1795). Stuttgart: Frommann-holzboog Verlag, 1965.).

Em Acerca do conceito da Filosofia da Ciência (1794), Fichte define o papel da filosofia como tarefa que precisa reunir não apenas todo o saber existente como também o possível. Isso, contudo, só seria possível se ao invés de investigar as coisas enquanto dadas fosse investigada a sua origem genética (Fichte, GA I,2, 1965FICHTE, J. G.. „Gesamtausgabe der Bayerischen Akademie der Wissenschaften“. Bd. I,2: Werke (1793-1795). Stuttgart: Frommann-holzboog Verlag, 1965.).

Fichte investiga a produção transcendental do Eu pelo processo gradativo da reflexão, no qual: 1 - uma ação espontânea é primeiramente direcionada a algo (como numa intencionalidade); 2 - o agente dessa ação se conscientiza dela, porque a ação é desde sempre noética; 3 - forma-se um conceito do sujeito sobre si mesmo, e esse conceito contém em si a incidência do pôr e do ser posto, pois o que se determinou o foi por ato da própria origem. Ulteriormente (4) forma-se por meio de um último regresso reflexivo sobre essa complexidade uma autoconsciência, um pensamento da imbricação de ação e saber potenciais em face do conceito formado por estes.3 3 Naturalmente, Fichte não imaginava que o Eu “surgiria” desse processo mental. A má recepção de sua filosofia como subjetivismo radical, no entanto, forçou-o a explicitar a diferença entre a origem ontológica do Eu e a sua construção transcendental. Nos anos 1790, quando essa diferença não estava clara, teria parecido a muitos que Fichte pretendera criar o universo a partir do pensamento e o próprio sujeito ex nihilo a partir dessa produção genética, quando, na verdade, a primeira filosofia de Fichte pretendia-se radicalmente crítica e não ontológica.

O problema, como bem destaca Dieter Henrich, é que o processo reflexivo demonstra, no máximo, a forma desse movimento, sem justificar o seu conteúdo, isto é, explicar como o ato de consciência sabe de si enquanto agente (Henrich, 2019, pp. 167-170HENRICH, D.. “O Eu de Fichte”. Tradução de L. C. Utteich. Analytica 23, 1, 2019. pp. 162-181.). Além disso, essa dinâmica fala da formação da autoconsciência, e não da outra ponta do processo, que é o entendimento sobre os objetos dispostos no mundo. Mesmo assim, a natureza está lá como negatividade, pois o sujeito só toma ciência de si ao flagrar-se como conhecedor do conhecido.

No Fundamento de toda a Doutrina da Ciência (1794), o ponto de partida é assim apresentado:

O Eu se põe a si mesmo, tão simplesmente porque é. Ele se põe através de seu mero ser, e é por seu mero estar posto. E isto torna claro em que sentido usamos aqui a palavra Eu, e nos conduz a uma explicação específica do Eu como sujeito absoluto. Aquele cujo ser (essência) consiste simplesmente em que ele se põe a si mesmo enquanto existente é o Sujeito Absoluto (Fichte, GA I,2, 1965, p. 259FICHTE, J. G.. „Gesamtausgabe der Bayerischen Akademie der Wissenschaften“. Bd. I,2: Werke (1793-1795). Stuttgart: Frommann-holzboog Verlag, 1965.).

Contrariamente aos fatos empíricos, o Eu é um fato puro. Enquanto fatos empíricos são condicionados, o Eu é um puro agente condicionador cujo ser se revela por si mesmo (Fichte, GA I,2, 1965, p. 259FICHTE, J. G.. „Gesamtausgabe der Bayerischen Akademie der Wissenschaften“. Bd. I,2: Werke (1793-1795). Stuttgart: Frommann-holzboog Verlag, 1965.), ao passo que os outros seres são por ele dados ou postos. Quando Descartes, portanto, afirma cogito ergo sum, Fichte entende esta como a conclusão silogística de “quodcunque cogitate, est” (Fichte, GA I,2, 1965, p. 262FICHTE, J. G.. „Gesamtausgabe der Bayerischen Akademie der Wissenschaften“. Bd. I,2: Werke (1793-1795). Stuttgart: Frommann-holzboog Verlag, 1965.). Ora, as coisas não pensam e Fichte não recorre ao expediente (especulativo) do Deus garantidor empregado por Descartes para validar a substância extensa.

Dessa maneira de abordar a questão da existência do Eu decorre uma visão radicalmente idealista, ou seja, que identifica ser e saber, como dito na Segunda introdução à Doutrina da Ciência (Fichte, 1970FICHTE, J. G.. „Gesamtausgabe der Bayerischen Akademie der Wissenschaften“. Bd. I,4: Werke (1793-1795). Stuttgart: Frommann-holzboog Verlag, 1970.). Também tema da Segunda introdução é a negação de qualquer realidade substancial ao “estofo”4 4 ZÖLLER, G. Fichte’s Transcendental Philosophy. p. 19 : Junto com um idealismo crítico ou transcendental, Fichte distinguirá entre um “criticismo completo e superior”, o qual logra derivar o sistema da atividade mental a partir das leis básicas do ser inteligente, por um lado, e o idealismo incompleto, por outro, o qual meramente abstrai essas leis dos objetos da experiência. A última forma de idealismo transcendental é incompleta por explicar apenas a relação formal das propriedades de uma coisa por meio das leis da atividade inteligente, deixando a matéria em si (Stoff) inexplicada, e permitindo, com isso, uma interpretação dogmática da coisa como originalmente independente da atividade inteligente. Em contraste, num “idealismo transcendental completo” a coisa enquanto matéria e suas propriedades formais são mostradas como originadas de acordo com as leis da atividade inteligente. Logo, a coisa em sua inteireza é derivada da legislação “total” da atividade inteligente. com o qual lida a consciência, de modo que à realidade não pertence morte nem matéria, mas apenas vida e pensamento.

A partir de Fichte, a reflexão passa a significar a fase do processo metafísico de retorno da consciência sobre si mesma, mas já na forma que depois reconheceríamos como uma metafísica da subjetividade (Barth, 2005, p. 470BARTH, U. „Gott als Projekt der Vernunft“. Tübingen: Mohr Siebeck, 2005.). No entender de Kant, por exemplo, Fichte retrogradara ao estágio metafísico anterior às suas críticas, e a produção do Eu fichteano seria o percurso ontológico de criação do Eu e dos objetos no saber. Isso, apesar da observação de Fichte de que, após o ato espontâneo de pôr algo a partir de si, o Eu pode se refletir como o que pôs (Eu) ou o que é posto (representação), enfatizando o caráter representado dos objetos em sua exposição.5 5 Observa-se que o processo não difere muito da reflexão kantiana, atividade essencialmente divisora, estritamente perscrutadora, dos processos mentais, mas já não se trata de uma divisão epistemológica apenas (Vetö, 1998, p. 346), de modo que os estranhamentos e diferenças de interpretação do que estava a ser apresentado eram inevitáveis.

A incondicionalidade ou absolutidade do sujeito está na sua potência de eleger qualquer determinação possível, de iniciar um sem-número de ações espontaneamente. Como ele se constrói a si próprio e, ao se pôr, determina o horizonte de sua ação, o seu mundo enquanto palco projetado para si, ele é o absoluto do qual deriva todo o sistema; ou, como dito em Sobre a dignidade humana, “A filosofia ensina-nos a tudo investigar a partir de nós mesmos” (Fichte, GA I,2, 1965, p. 87FICHTE, J. G.. „Gesamtausgabe der Bayerischen Akademie der Wissenschaften“. Bd. I,2: Werke (1793-1795). Stuttgart: Frommann-holzboog Verlag, 1965.).

É também fundamental que o que é posto o seja absolutamente, sem o que a liberdade de pôr não seria absoluta. Daí a famosa alegação de Fichte de que “o saber não pode repousar sobre o acidental”, alegação que o reinsere na metafísica, enquanto esta é agora uma condição de possibilidade da doutrina da ciência (sistema transcendental).

A subordinação da matéria e das próprias leis naturais (seguindo Kant) decorrem, então, da impossibilidade de se conceber diversamente o fundamento de nosso conhecimento, no qual estão implicadas nossas noções sobre a “ordem natural”:

Por estranho que pareça a alguns pesquisadores da natureza [...] foram eles mesmos quem introduziram na natureza as leis naturais que acreditam dela aprender pela observação [...] a estrutura da mais simples folha de grama, assim como o movimento dos corpos celestes, permitem-se deduzir, antes da observação, dos princípios gerais de todo saber humano. [...] não as aprendemos (essas leis) pela observação, e sim dispomo-las no fundamento de toda observação... (Fichte, GA I,2, 1965, p. 135FICHTE, J. G.. „Gesamtausgabe der Bayerischen Akademie der Wissenschaften“. Bd. I,2: Werke (1793-1795). Stuttgart: Frommann-holzboog Verlag, 1965.).

“Só a partir do Eu”, portanto,

chega a ordem e a harmonia sobre a massa morta e disforme. Só do homem difunde-se a regularidade de seus arredores até os confins de sua observação. [...] traz unidade à diversidade. Através dele os corpos celestiais se mantêm coesos [...] Através dele os sóis seguem os cursos previstos. Através do Eu é que se forma a cadeia imensa que vai do líquem ao serafim; é nele que reside o sistema do mundo espiritual, e o homem espera com razão que a lei que ele forma para si e para este mundo tenha validade para ambos. (Fichte, GA I,2, 1965, p. 87FICHTE, J. G.. „Gesamtausgabe der Bayerischen Akademie der Wissenschaften“. Bd. I,2: Werke (1793-1795). Stuttgart: Frommann-holzboog Verlag, 1965.)

Como se pode observar, apesar do caráter transcendental da primazia do Eu essa não é uma primazia sem repercussão sobre a ordem cósmica, ao menos no sentido em que essa visão do todo resta como a única possível para o saber científico. O Eu aparece como produtor da natureza, como o observador que olha para ela como conjunto de suas representações, que obedecem a uma ordem homogênea (a natureza) imposta por sua razão.

Caráter subordinado da natureza na esfera do pensamento

A forma inaugural da Doutrina da Ciência em 1794-1795 realmente dava a entender que o discurso substantivo sobre a natureza era impossível.6 6 Não apenas Jacobi e Kant, como até mesmo Hegel reconheceram em Fichte uma filosofia abstrata e afastada da objetividade e realidade do mundo (Ahlers, 2006). A natureza seria o não Eu puramente posto pela atividade do Eu como um contraste - Fichte, inclusive, compara seus conceitos de Eu e não Eu aos atributos da substância de Espinosa: inteligência e extensão (Fichte, GA I,2, 1965, p. 282FICHTE, J. G.. „Gesamtausgabe der Bayerischen Akademie der Wissenschaften“. Bd. I,2: Werke (1793-1795). Stuttgart: Frommann-holzboog Verlag, 1965.). Esse contraste, por sua vez, seria o produto do esforço ativo do Eu na imaginação e no entendimento da representação, isto é, a própria representação enquanto fonte de afecção (Vater, 2021VATER, M. “The Construction of Nature ‘Through a Dark, Unreflected Intuition’”. Fichte Studien 11, 2021.). A objetividade do mundo parecera claramente apresentada como negatividade lógica do processo criativo, tanto que o “mundo” de Fichte não poderia aos olhos dos teólogos comportar um criador, um terceiro para além do Eu e de seu contraposto (Asmuth, 2002, p. 313ASMUTH, C. „Natur als Objekt - Natur als Subjekt. Der Wandel des Naturbegriffs bei Fichte und Schelling“. In: ABEL, G.; ENGFER, H.; HUBIG, C. Neuzeitliches Denken. Berlin: Walter Gruyter, 2002.). Não por acaso a exposição da DC também soava como monismo reducionista, o que estimulava a acusação de ateísmo pelo reforço da associação com Espinosa. A doutrina prática de Fichte, por sua vez, soava igualmente ateísta a ouvidos ortodoxos, criticando como precárias as noções antropomórficas de Deus Pai e Deus Filho. Não negava, contudo, a comunidade ética representada pelo “Espírito Santo” (Fichte, GA I, 5, 1977FICHTE, J. G.. „Gesamtausgabe der Bayerischen Akademie der Wissenschaften“. Bd. I,5: Werke (1798-1799). Stuttgart: Frommann-holzboog Verlag, 1977.). Essa mesma formulação, em contrapartida, ajuda-nos a entender a situação peculiar do idealismo de Fichte, pois, ao enfatizar seguidas vezes que a fé racional consiste em uma expectativa não confirmável pela consciência, lembra que os objetos últimos da metafísica são puramente ideais. Contrariando, portanto, a crítica de intelectualismo, subjetivismo ou idealismo ingênuo, o conceito fichtiano de fé joga a consciência de volta neste mundo e nesta realidade (Rosales, 2012ROSALES, J. R. As Dificuldades do Teísmo do Ponto de Vista Transcendental. Trans/Form/Ação 35, 3, pp. 21-67, 2012.).

A síntese entre a espontaneidade do pôr e a determinação do estar-posto é garantida porque o posicionar-se a si mesmo (a reflexão sobre si) é uma extensão da atividade (Fichte, GA I,2, 1965, pp. 159-161FICHTE, J. G.. „Gesamtausgabe der Bayerischen Akademie der Wissenschaften“. Bd. I,2: Werke (1793-1795). Stuttgart: Frommann-holzboog Verlag, 1965.). A atividade infinita tem de se realizar em um ser de razão finito, pois ambos são conceitos conversivos. A atividade posta não é mais incondicionada e infinita, mas radicada em uma cosmovisão (Weltanschauung). É agora atividade finita e contextualizada, passando a ser efetividade: o horizonte de atividade concretível, com óbvias consequências para a antropologia.7 7 Seria justo falar de linhas de influência alternativas a Kant, as quais ajudam a definir as peculiaridades do conceito fichtiano de natureza, incluindo a antropologia “espiritualista” de Herder, a qual ele em parte absorve e à qual em parte reage (Hösle, 1997, pp. 120-121).

Por essas razões, o Fundamento da Doutrina da Ciência estabelece que a objetividade está subordinada à prática, na medida em que a infinita capacidade de ação do Eu precisa concretizar-se em atos finitos.8 8 “O Eu deve ser igual a si e ao mesmo tempo oposto a si mesmo. É igual a si a propósito da consciência, a consciência é uma só: nessa consciência está posto o Eu absoluto enquanto indivisível; o Eu, por outro lado, que está contraposto ao não-Eu, é divisível” (Fichte, GA I,2, 1965, p. 271). A necessidade de ação/ prática do Eu encontra na série infinita dos objetos discretos a forma adequada de manifestação, pois a finitude do objeto permite o esgotamento, ao passo que a infinitude do mundo permite seguir adiante indefinidamente no tempo e no espaço.

Limitar algo significa: cancelar parcialmente, mas não totalmente, a realidade do mesmo. Dessarte, reside no conceito de limite não apenas os conceitos de realidade e de negação como também o de divisibilidade. Este conceito é o X almejado, e através da ação Y tanto o Eu quanto o não-Eu são inteiramente postos (Fichte, GA I,2, 1965, p. 270FICHTE, J. G.. „Gesamtausgabe der Bayerischen Akademie der Wissenschaften“. Bd. I,2: Werke (1793-1795). Stuttgart: Frommann-holzboog Verlag, 1965.).

Por meio desse processo, podem-se estabelecer também todas as relações parciais, todas as numéricas, quantitativas e categoriais; e um A pode ser igual a um B segundo a característica M.

À questão fundamental da filosofia crítica, “como são possíveis juízos sintéticos a priori?”, Fichte redarguiu que sínteses pressupõem contraposições, que por sua vez pressupõem identidades/igualdades, de modo que as sínteses resultam de processos que unificam uma cisão que contém em si uma união original (Fichte, GA I,2, 1965, pp. 275-276FICHTE, J. G.. „Gesamtausgabe der Bayerischen Akademie der Wissenschaften“. Bd. I,2: Werke (1793-1795). Stuttgart: Frommann-holzboog Verlag, 1965.). Da exaustivamente exposta identidade e contradição internas ao Eu e constatáveis em todo processo mental, concebem-se as coisas como igualmente constituídas por esses princípios, o que facilmente permite a aplicação de categorias e regras lógicas básicas que nos permitem falar em gênero, espécie, indivíduo dentro da espécie etc.

No caso específico da relação sujeito-objeto, a atividade pura e ideal precisa se assentar na passividade real. Isso inclui uma certa negação da atividade (do espírito) na forma da inércia e passividade dos objetos materiais (Fichte, GA I,2, 1965, p. 293FICHTE, J. G.. „Gesamtausgabe der Bayerischen Akademie der Wissenschaften“. Bd. I,2: Werke (1793-1795). Stuttgart: Frommann-holzboog Verlag, 1965.). Qualidades das quais só temos ciência na percepção e na sensação, porém, “não podem ser filosoficamente explicadas a partir dos objetos, como faz o realismo” (Lauth, 1984, p. 58LAUTH, R. „Die transzendentale Naturlehre Fichtes nach den Prinzipien der Wissenschaftslehre“. Hamburg: Felix Meiner, 1984.), pois a filosofia transcendental já tinha mostrado que a objetividade da percepção depende da submissão dos dados amorfos da sensação às regras e formas do entendimento e da sensibilidade pura transcendental. Do ato de enxergar no objeto uma negação de si, o Eu beneficia-se dando a si mesmo uma determinação, estando agora situado e contextualizado em um mar de objetos – já previamente constituído por ele próprio. Essa contraposição básica entre Eu e objetos ressalta o próprio caráter ativo do Eu, dando-lhe sobre o que agir e o que entender.

Os tipos de contraposições variam e se refinam conforme o tipo de relação (realidade, negação ou limitação) considerada de coisa para coisa, de espécie para espécie, de modo para modo. No animal, vemos uma contraposição entre vida e matéria, entre esta e outras espécies, este e aquele indivíduo. No homem, o grande contraposto é em relação aos seres determinados, e a essência do homem é o seu ser livre, que se contrapõe aos demais seres (Fichte, GA I,2, 1965, p. 277FICHTE, J. G.. „Gesamtausgabe der Bayerischen Akademie der Wissenschaften“. Bd. I,2: Werke (1793-1795). Stuttgart: Frommann-holzboog Verlag, 1965.). Os conceitos de cão e lobo, de prata e ouro, são idênticos enquanto animais caninos e metais, mas contrapostos (diferentes, dessemelhantes) segundo o conceito de cor, de espécie, de densidade. Ao mesmo tempo, prata ou ouro estão em relação de identidade e oposição ao conceito de metal, pois a um só tempo se identificam e não se identificam com o conceito de metal (Fichte, GA I,2, 1965, p. 278FICHTE, J. G.. „Gesamtausgabe der Bayerischen Akademie der Wissenschaften“. Bd. I,2: Werke (1793-1795). Stuttgart: Frommann-holzboog Verlag, 1965.). Todas as coisas são julgadas por suas semelhanças e dessemelhanças com os demais conceitos, sendo o ponto de partida inicial a sua relação com o Eu que os pensa, julga, percebe, analisa.

Ao se afirmar (Sistema da Ética) que o ser de razão não conhece efetividade sem atribuí-la ao objeto, tese sustentada pelo princípio prévio de que o ser só conhece o limite de sua própria atividade, se está reconhecendo que a relativa efetividade do objeto (causalidade) é um contraposto da efetividade do sujeito. “A natureza enquanto tal é caracterizada pela oposição à liberdade”. Nada determina, mas é determinada, pois não é livre. “O mecanismo natural se contrapõe diretamente à liberdade” (Fichte, 1845, Bd. IV, p. 116FICHTE, J. G.. „Sämmtliche Werke“. Berlin: Veit, 1845., grifo nosso). Porque é morta, a natureza é um oposto físico à minha ação, um objeto para meu pensar.

Apesar de já estar demonstrada desde o Fundamento da Doutrina da Ciência a forma como o intelecto constitui a natureza conforme as regras do seu pensar, Fichte estava bastante consciente da necessidade de uma elaboração mais independente para a filosofia da natureza. No semestre 1798/1799 ele teria dito durante uma aula: “Existe uma filosofia a priori da natureza. Ela será elaborada. Eu, no entanto, não me sinto capaz de executar a tarefa” (Lauth, 1984, p. xivLAUTH, R. „Die transzendentale Naturlehre Fichtes nach den Prinzipien der Wissenschaftslehre“. Hamburg: Felix Meiner, 1984.). Entre incompreensões por parte de leitores e dificuldades conceituais internas à Doutrina da Ciência (DC), Fichte viu-se cada vez mais instado a explicitar o caráter transcendental desta e o reconhecimento da existência objetiva da natureza.9 9 “O fato de a realidade ser um ‘derivado da imaginação’ não significa que a Doutrina da Ciência venha a ser antirrealista. Fichte fala, nesse sentido, que a filosofia transcendental deve formar um ‘meio’ entre idealismo e realismo dogmático. Ela é, por um lado, realista, porque parte do princípio que a realidade é ‘dada independentemente de toda consciência’. Mas ela também ‘não é, no mais profundo, transcendente, permanecendo transcendental’, porque expõe o ‘independente’ como ‘um produto do poder do pensamento’. Aqui, Fichte faz observar que a realidade sobre a qual ele fala (‘para nós’) não é a realidade dos objetos exteriores, mas a realidade do saber. Trata-se de objetos ideais, não empíricos. Da mesma forma, a filosofia transcendental ou a Doutrina da Ciência não negam a existência de objetos empíricos. Ela apenas suspende o dualismo kantiano, mostrando que tanto objetos ideais quanto empíricos pertencem à dialética do Eu” (Ficara, 2009, p. 92).

As leis da natureza não têm sua essência em si próprias, pois lei é um princípio inteligente posto pela liberdade. Ora, a compatibilidade entre essas leis e a própria estrutura da razão - questão ontológico-epistemológica gravíssima - não apenas é garantida e esclarecida por essa constituição do mundo a partir do Eu, como também trazida à relação com as questões éticas do propósito e da satisfação (Genuss). Em outras palavras, o sujeito não apenas vê e pode compreender os objetos do mundo como também os sente e deseja enquanto objetos familiares tanto ao pensamento quanto à vontade (Fichte, GA I,6, 1981, p. 147[233]FICHTE, J. G.. „Gesamtausgabe der Bayerischen Akademie der Wissenschaften“. Bd. I, 6: Werke (1799-1800). Stuttgart: Frommann-holzboog Verlag, 1981.). Essa profunda familiaridade do pensamento e da vontade em relação aos objetos seria, para Fichte, de estranhar e, de resto, não encontraria justificativa alguma se houvesse um abismo entre o espírito e a matéria.

A natureza definitivamente não é - não pode ser - autossuficiente, nem goza de qualquer autonomia. É literalmente o palco projetado pelo Eu no processo de sua autoposição reflexiva.10 10 Torres Filho conclui que, se a natureza não tem status ontológico, a percepção não pode constituir saber, o que deverá caber apenas ao intelecto (Torres Filho, 1975, p. 78). Já Ernst Cassirer evita emitir um juízo, descrevendo da seguinte maneira esse lugar peculiar do conceito de substância: “Fichte acreditava ter-se protegido de um regresso no dogmatismo, ele acreditava permanecer exclusivamente no caminho transcendental, na medida em que sustentava estar buscando o conteúdo do Absoluto apenas numa ação e numa vida, jamais em um inerte ser objetivo. Mas aqui (em contraposição aos demais idealistas) não é a determinação do conteúdo do Absoluto que interessa, senão a sua apresentação formal, a qual se radica no sistema do conhecimento” (Cassirer, 1923, Bd. III, p. 207). Logo, a natureza não seria percebida como um ser em si, mas “montada” na qualidade de produto da atividade intelectual, processo no qual a “imaginação” transcendental teria grande importância.11 11 “Assim, a imaginação adquire uma autonomia que não podia ter em Kant, deixando de ser uma simples mediação entre uma atividade e uma passividade para tornar-se uma atividade independente. Mas, ao mesmo tempo, sendo o núcleo da parte teórica da filosofia, não deixa de estar excluída, com o conjunto dessa parte, de uma explicação da raiz da representação, que escapa, por definição, a toda teoria. Embora desvinculada de uma ‘receptividade’ – que desaparece como instância autônoma – e instituída como constitutiva da objetividade, a imaginação não pode dar conta da irredutibilidade da existência, do Anstosz, ‘daquilo que resta no não-eu, quando se faz abstração de todas as formas demonstráveis de representação’. O real só se manifesta quando o eu é considerado do ponto de vista da prática, e unicamente como sentimento da limitação de seu esforço” (Torres Filho, 1975, p. 110).

De maneira um tanto controversa, Fichte, no Direito Natural, faz “derivar” diversos fenômenos e campos da natureza de necessidades lógico-pragmáticas do Eu. Assim, características da matéria, como a resistibilidade à ação, seres orgânicos e até a vida sexual e outras necessidades ou impulsos biológicos são analogicamente figurados para a estrutura reflexiva do Eu. Em Fé e Saber, Hegel define essa posição fichteana como físico-teologia transcendental.12 12 “Nisso o idealismo fichtiano tem o princípio de liberdade para a expressão do sistema, mas cujo conceito condicionante, o conceito de natureza, não é, aqui, concebido conjuntamente como pertencente às determinações do princípio sistemático. Em vez disso, de construir esse conceito, ele é dedutivamente suprimido, ao mesmo tempo em que é inteiramente pressuposto como dado” (Utteich, 2007, p. 217).

Se, porém, a natureza nada mais é do que um conjunto de sensações referidas ao Eu finito, não se quer dizer com isso que o Eu produza a natureza da forma vulgar como a crítica a Fichte apresenta esse processo. Trata-se apenas de que o saber certamente só pode versar sobre o racional, de modo que, criticamente falando, não há qualquer sentido em um discurso sobre algo que ultrapasse o pensamento, que esteja fora dele.

Como um espelho, a natureza reflete o sujeito por contraste e contraposição. O olhar que se volta sobre si mesmo é um reflexo interior, noético. A reflexão é o fio da navalha que discerne o ser e sua imagem. Mas o Eu refletido é opaco, e o que a consciência vê é o retorno de sua própria luz, apenas mediada pelo contraposto. A luz entende a si mesma quando se manifesta, e só pode se manifestar em relação ao seu oposto.

O Eu natural, por sua vez, é o sujeito concreto que inclui em si não Eu - materialidade e animalidade: negatividade sensível e negatividade volitiva. O homem natural, porque natureza é a obscuridade não espiritual, é marcado pelo pecado original. Como dissera Fausto: “Duas almas habitam em meu peito. Uma, impoluta, quer regressar às suas origens nas alturas, a outra aos órgãos se algema, sequiosa do mundo físico” (Goethe, 1887, p. 165GOETHE, J. W. “Faust: Gesamtausgabe”. Leipzig: Insel, 1887.). Nossa natureza particular é regida pelo impulso instintivo que só aspira à sua satisfação. O objetivo da cultura é domesticar a natureza humana de modo que o instinto se subordine ao conceito, e a espontaneidade se converta em liberdade pelo esforço intelectual, pois “a tendência que se identifica com um objeto natural pertence ao ser dessa coisa, ao modo como ela foi determinada pelas leis naturais. Uma tal tendência determina a coisa necessariamente, e, portanto, não é livre” (Jacobs, 2014, p. 79JACOBS, W. „Fichte. Eine Einführung“. Berlin: Suhrkamp, 2014.). Em contraposição, o direcionamento espontâneo que podemos dar a nós mesmos enquanto seres racionais é o que nos revela a essência livre do ser humano (Jacobs, 2014, p. 82JACOBS, W. „Fichte. Eine Einführung“. Berlin: Suhrkamp, 2014.).

Acreditando fazer eco a definições kantianas, Fichte entende que ‘Eu’ e natureza diferem a ponto da total contraposição; a liberdade e a determinação, a vida e a morte. Asmuth chegará a ver na frieza “antinaturalista” de Fichte um sintoma de uma vida ascética e infância muito pobre, como se o mundo visto e sentido por Fichte não contivesse nada das belezas, da liberdade e dos ares divinos vistos por Schelling (Asmuth, 2002ASMUTH, C. „Natur als Objekt - Natur als Subjekt. Der Wandel des Naturbegriffs bei Fichte und Schelling“. In: ABEL, G.; ENGFER, H.; HUBIG, C. Neuzeitliches Denken. Berlin: Walter Gruyter, 2002.). De um ponto de vista puramente conceitual, no entanto, a oposição e o respectivo desfavor da natureza no pensamento estão subordinadas à dedução genética da natureza a partir do espírito, e também nisso se reflete sua (forma própria de) fidelidade ao projeto crítico e transcendental.

É fundamental observar que na crítica de Fichte a Kant se ressalta a falta de exposição sistemática da compatibilidade entre objetos e categorias; falta que seria suprida, na Doutrina da Ciência de Fichte, pelo caráter dialético da formação de objetos e categorias enquanto elementos reciprocamente referidos no ato criativo da imaginação (Lauth, 1984, p. 8LAUTH, R. „Die transzendentale Naturlehre Fichtes nach den Prinzipien der Wissenschaftslehre“. Hamburg: Felix Meiner, 1984.).13 13 Hartmut Traub entenderá que a harmonização da natureza ao esquema geral do mundo nas últimas expressões da DC significará a aproximação entre o aspecto negativo (não Eu) e positivo (Eu) por meio das forças mediadoras da arte, da ética e da religião (Traub, 1997).

Os interesses fundamentalmente distintos que orientavam a crítica de F. W. J. Schelling

A discordância acerca da correta interpretação da filosofia kantiana está comprometida por essa separação prévia, o que ficaria rapidamente exposto pelos estudos de Schelling sobre Bruno e Böhme, bem como sua parceria com Goethe. Antes mesmo de sua rusga com Fichte, Schelling enxergara na Terceira crítica a possibilidade de reconstituir, no idealismo transcendental, os mundos da natureza e da liberdade.

Em sua interpretação do Timeu (1794), Schelling observa que a natureza é apenas “por um aspecto” recebida empiricamente e, portanto, passiva. Em contrapartida, ela se insinua internamente em nossa representação por um parentesco genético.14 14 O que mais interessava a Schelling no Timeu era precisamente “essa relação entre forma e matéria, e não formação do mundo” (Asmuth, 2002, p. 308). Com esse comentário, Asmuth pretendia enfatizar a importância da dialética dos opostos complementares de Platão sobre a formulação da filosofia da natureza de Schelling, ao passo que a gênese do mundo teria tons mais cristãos e de uma metafísica da vontade, a ser plenamente efetivada apenas no Freiheitschrift. Futuramente, a crítica de Schelling voltar-se-ia contra os limites da autorrelação puramente interior da reflexividade. Essa interioridade extrema impede que a filosofia avalie o impacto da “dimensão natural dos seres sobre a autoconsciência” (Sedgwick, 2000, p. 219SEDGWICK, Sally. “The Reception of Kant’s Critical Philosophy”. Cambridge: Cambridge University Press, 2000.), e a exclusão da naturalidade do processo reflexivo também impediria investigações necessárias sobre a préhistória da subjetividade. Sem isso a circularidade da subjetividade a põe em risco de se apartar do ser. E, no Sistema do Idealismo Transcendental, ele definirá o sistema como afirmação de que o saber deve ser assumido como real. Mais do que fundamentá-lo, Schelling sempre quis que o saber falasse do ser. O idealismo introduzido por Kant e Fichte assenta-se unicamente sobre o espírito. Isso vale particularmente para o sistema de Fichte, o qual Schelling condena como “um golpe decisivamente fatal na natureza” (Müller-Lüneschloss, 2012, p. 190MÜLLER-LÜNESCHLOSS, V. „Über das Verhältniss von Natur und Geisterwelt“. Spekulation und Erfahrung 59. Stuttgart: Frommann-Holzboog, 2012.).

Conquanto a ruptura definitiva entre ambos só tenha ocorrido por volta de 1801, quando as ideias basilares para uma filosofia da natureza já estavam bem explicitadas nas obras de Schelling, é também verdade que já desde os escritos de 1794 e 1795 as noções panteístas, platônicas e espinosistas que tanto caracterizam a metafísica objetiva de Schelling já se faziam sentir como contrapeso ao programa mais metodológico e principiológico de Fichte, e este chegou, inclusive, a apontar problemas nas Cartas, ao passo que afirmava em correspondência com Schelling que seu adversário deveria ser entendido como Espinosa, não Schelling.

Em contato estreito com Goethe, Schelling acompanhou com cuidado a discussão entre Blumenbach e Kant a respeito da Bildungstrieb (Richards, 2002RICHARDS, R. “The Romantic Conception of Life: Science and Philosophy in the Age of Goethe”. Chicago and London: Chicago University Press, 2002.). Pouco depois, Goethe formularia em seus estudos naturais a concepção de que os organismos vivos não são mecanismos, mas manifestações de uma ideia arquetípica ou enteléquia. Cada planta, por exemplo, tem suas partes em função de um órgão principal que é o sentido de sua existência, a folha, e os demais órgãos se dispõem para sustentar, replicar ou abastecer esse órgão central. As plantas em geral revelam um arquétipo ainda maior de planta primordial (Urpflanze), o modelo ou ideia diretriz imanente que perpassa o ser de todas as entidades (Goethe, 2003GOETHE, J. W.. „Schriften zur Naturwissenschaft“. Stuttgart: Reclam, 2003.). Schelling, que ajudara a formular filosoficamente essa concepção, aplicara-a na filosofia da natureza, onde se ocupou de justificar metafisicamente a lógica diferenciada da biologia contra o mecanicismo derivado da observação do mundo inorgânico.

Schelling aceita, contudo, que, segundo a reflexão, a natureza seja vista apenas como objetividade, dotada das características que o pensamento analítico emprega a seus objetos. A intuição, em contrapartida, não nos permite mais ver a natureza coisificada, pois ela quebra as fronteiras traçadas pela reflexão captando a natureza como infinitude de um processo em que ela é o polo negativo da liberdade. Ora, todo polo constitui com seu oposto uma unidade, de modo que os polos isolados são irreais, mera abstração. O sujeito agora tem a natureza em si, e os seres da natureza têm o gérmen de um Eu.

Se com Fichte a natureza era duplamente objeto (para o entendimento e para o desejo), agora a natureza tem suas próprias formas arquetípicas a priori, de modo que não apenas não podemos mais nos apropriar dela de maneira absoluta, como não podemos nos relacionar praticamente só na esfera do desejo unilateral, pois entre o espiritual em nós e na natureza surgem afinidades.15 15 Daí ser condenada como “abstrata” a fundamentação metafísica de Fichte. “Devido a esse rigoroso formalismo, é concebido aqui o idealismo como fundado inferencialmente, em sua sistematização, pela Intuição intelectual. Tornando patente o distanciamento fundacional do sistema em relação à realidade, esse rigor formal suprime diretamente o elemento imediato, pura e simplesmente porque subjaz um imperativo ínsito na atividade negativa do primeiro princípio, de não haver atividade imediata do Eu. Nesse sentido, enquanto por isso cabe só a ‘todo o restante pode[r] ser explicado a partir da mediatidade dessa atividade: a realidade do não-eu (como a negação do eu e a do não-eu) e nessa medida, a realidade do eu’, o caráter inferencial (formalista) da exigência sistemática no qual a autoconsciência aparece como uma ‘consciência universal’ é reforçado e, por isso mesmo, ela aparece como mera abstração” (Utteich, 2007, p. 218, grifos do original). Esse dualismo também tinha causas na expansão temática que Schelling pretendia realizar na filosofia transcendental, levando-a a englobar mais seriamente a pesquisa naturalista e a arte. “Para Schelling, natureza era o lugar de pesquisa natural especulativa, lugar da beleza e do gosto, o lugar em que o homem está em seu lar” (Asmuth, 2002, p. 317ASMUTH, C. „Natur als Objekt - Natur als Subjekt. Der Wandel des Naturbegriffs bei Fichte und Schelling“. In: ABEL, G.; ENGFER, H.; HUBIG, C. Neuzeitliches Denken. Berlin: Walter Gruyter, 2002.). No todo, essa era uma concepção oposta à da DC de Fichte, levando Hegel a dizer na Differenzschrift que, graças a Schelling, a unidade de sujeito-objeto não é mais subjetiva, mas objetiva (Hegel, 2003HEGEL, G. W. F. “A diferença entre os sistemas filosóficos de Fichte e de Schelling”. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 2003.).

Quando o próprio conceito de objeto é alterado de corpo (física) para organismo (vida), e a teleologia (technica intentionalis) (Kant, 2003, p. 300KANT, I. „Kritik der Urteilskraft“. Hamburg: Felix Meiner Verlag, 2003.) insinua-se como constituição necessária dos seres da natureza, as mesmas propriedades de autopreservação e autoprodução que caracterizam o sujeito não têm como ser impedidas de penetrar em nossa concepção dos seres da natureza.

Retrospectivamente, em 1806, Schelling resumiria a noção fichtiana de natureza como meio de que o Eu se serve para se realizar como ser moral (Schelling, 1997, I, p. 7SCHELLING, F. W. J. von. “Sämmtliche Werke“. CD-ROM: Total Verlag, 1997.). Enquanto Fichte reagia sem cessar com o argumento de que Schelling não poderia tratar da natureza fora dos limites da ciência, este redarguia que Fichte era incapaz de enxergar o ser pelo ponto de vista objetivo, alienando-o. Um quer permanecer kantiano de veia jovem platônica, crítica, e falar estritamente do modo de ver a natureza; o outro quer ser kantiano e realista (espinosano e neoplatônico).

Desde A alma do mundo (1798), Schelling explicara toda a diversidade de fenômenos naturais como tensão entre o positivo e o negativo, o espiritual e a matéria, retomando o caminho de Bruno e Böhme. Por trás de qualquer polaridade aparente (magnetismo, pulsões vitais, ótica) existe um contraste primordial entre espírito e matéria, luz e trevas, ação e inércia. O contraste é virtuoso, pois sem o negativo a infinita operosidade da natureza permaneceria amorfa e, com ele, ela se finitiza em inumeráveis formas particulares, promovendo a diversidade, que é a riqueza da criação. Essa configuração permanece idealista porque a origem dos fenômenos naturais é physikalisch unerforschlich (Schelling, 1997, I, 2, p. 348SCHELLING, F. W. J. von. “Sämmtliche Werke“. CD-ROM: Total Verlag, 1997.), não podem ser investigados fisicamente.

Novamente, como em Böhme, a matéria terá de ser explicada como partindo de Deus, e, portanto, como vontade; e só bem depois, na Freiheitsschrift, ele conceberá uma diferença interna a Deus que justifique e complete o panteísmo que inclui a liberdade dos indivíduos (Coelho, 2018COELHO, H. S. “O monismo complexificado de Schelling”. Cadernos de Filosofia Alemã 23, 1, pp. 13-26, 2018.). Entrementes, importa saber que, desde as formulações iniciais, Schelling pressupunha sempre uma unidade primordial entre espírito e matéria, mas esta era explicada pelo princípio lógico da unidade sistemática, antes do que por uma demonstração metafísica de como Deus produz e tem em si o estofo de seu oposto.

Para o Schelling de 1796-1804, o fundamento da filosofia jamais pode centrar-se no Eu absoluto, pois com isso se condena toda a objetividade da filosofia. O seu fundamento só pode ser a identidade absoluta, O Absoluto (Deus). E por mais que nossa reflexão permaneça nos limites de sua própria abstração, nosso organismo, nossa filiação à natureza nos fala de um eco igualmente forte, mas diverso, da fonte da vida. Aqui se inverte a constatação de Kant a respeito de um “algo” para além de nosso conhecimento, e a constatação de estar ele para além dos domínios de nosso entendimento já nos disse muito sobre sua última incognoscibilidade. Esse algo, porém, só foi tratado negativamente por Kant, pelo que somos forçados a conceber o seu tratamento positivo, conforme oferecido pelo realismo metafísico.

Para o Schelling da virada do século XIX, esse tratamento positivo estaria talvez nos limites de nossa razão, colocando em questão a maior parte das exigências do criticismo. Tal não seria um problema, entretanto, porque a natureza pode ser conhecida por Deus, de quem desdobrou-se, e de fato o é, como demonstra a filosofia da identidade (Zantwijk, 2000, p. 83ZANTWIJK, T. „Pan-Personalismus. Schellings transzendentale Hermeneutik der menschlichen Freiheit“. Spekulation und Erfahrung 43. Suttgart: Froomann-holzboog, 2000.). Em uma concepção bem diversa da de Fichte, Schelling defende que transcendentalmente reconhecemos que o fundamento da filosofia há de ser subjetivo, mas realisticamente reconhecemos que ele não pode ser o espírito humano; tem de ser o divino. Uma filosofia que se leve a sério tem de se prolongar em teologia.

A totalidade da identidade não é o princípio temporal ou mesmo lógico do universo, “mas o universo mesmo” (Schelling, 1997, I, 4, p. 129SCHELLING, F. W. J. von. “Sämmtliche Werke“. CD-ROM: Total Verlag, 1997.). Nada de particular está de posse de seu próprio fundamento. Só a totalidade pode ser fundamento, pois ela é absoluta e idêntica, o único verdadeiramente em si, e o único que contém finito e infinito, ato efetivado e potência ilimitada, real e ideal. Da identidade infere-se que a própria natureza enquanto absoluto é sujeito, na forma do impulso produtivo ilimitado que precisa se objetivar por meio de certas determinações, do que surge a infinita diversidade dos seres. Desse modo, o aspecto naturans da natureza é uma anima mundi (objeto da filosofia), enquanto o aspecto naturata é o mundo (objeto da ciência). O sujeito tem, por sua vez, a mesma duplicidade em si, pois é liberdade e realidade, sujeito e corpo.

A dificuldade toda está em descrever como exatamente o espírito brota do mundo, pois ele já não é o olho de Fichte que se vê refletido na opacidade do espelho, senão agora um olho que brota da carne do mundo e que permite ao mundo enxergar a si mesmo. Para Fichte, isso seria uma recaída no realismo ingênuo, mas Schelling tinha grande confiança no poder de sua demonstração. Assim, no Sistema do Idealismo Transcendental, Schelling dirá que

o objetivo final, (o de) tornar-se objeto, a natureza só atinge por sua última e suprema reflexão, que não é senão o homem, ou, genericamente, o que chamamos razão, pela qual a natureza retorna a si completamente, e pela qual se revela que a natureza é originalmente idêntica ao que em nós é conhecido como inteligente e consciente (Schelling, 1997, I, 4, p. 129SCHELLING, F. W. J. von. “Sämmtliche Werke“. CD-ROM: Total Verlag, 1997.).

A crítica de Schelling ao conceito supostamente vazio de natureza em Fichte tornou-se lugar-comum. Os teóricos contemporâneos da subjetividade ponderam que o idealismo pode não ter sido tão feliz em sair da metafísica mais subjetivista de Fichte, mas com isso resolveu-se o problema do lastreamento da subjetividade no mundo. Implícita ou explicitamente, Schelling e Hegel diferenciam-se ou progridem na medida em que, para eles, o Eu não pode fundamentar a si mesmo ex nihilo, havendo, ao contrário, uma mútua implicação entre Eu e mundo, sendo o signo da consciência usado para evocar essa relação originária (Henrich, 1999, p. 126HENRICH, D. “Bewusstes Leben”. Stuttgart: Reclam, 1999.).

Esse indiscutível progresso conceitual oferecido por Schelling não significa, no entanto, que o projeto fichtiano intentasse ou sustentasse exatamente aqueles erros apontados por seu sucessor de direito na tradição idealista. O desenvolvimento da crítica e historiografia do idealismo alemão ao longo do século XX caminhou para a percepção de que, ao invés de superar o conceito defeituoso de natureza de Fichte, Schelling teria divergido e desenvolvido, na verdade, um rumo completamente independente a partir dessa e de outras discordâncias essenciais, como suas preocupações teológicas.

A conclusiva reação de Fichte à divergência com Schelling

Fichte não deu espaço algum ao conceito de natureza elaborado por Schelling, que pressupunha uma “segunda origem” para a filosofia. Essa segunda origem ou força criativa da natureza, contudo, seria ainda e sempre uma concepção do pensamento, e mais propriamente da filosofia. Por isso, Fichte considerava a proliferação de origens uma forma incompetente de lidar com os problemas da ontologia de fundo da filosofia transcendental e do lugar da natureza nela, propiciando, em ambos os casos, uma “tendência ao materialismo” (Asmuth, 2002, p. 306ASMUTH, C. „Natur als Objekt - Natur als Subjekt. Der Wandel des Naturbegriffs bei Fichte und Schelling“. In: ABEL, G.; ENGFER, H.; HUBIG, C. Neuzeitliches Denken. Berlin: Walter Gruyter, 2002.).

Em analogia com o determinismo, por exemplo, poder-se-ia sempre responder que o elaborado teoricamente leva às conclusões deterministas e que ele parte, contraditoriamente, da livre iniciativa do sujeito pensante.

A formulação da DC, ao longo da controvérsia epistolar com Schelling, deixaria clara a convicção de Fichte de que o conceito schellinguiano de natureza deveria ser rechaçado.16 16 “A Wissenschaftslehre de 1801 a 1802 demonstra uma tentativa positiva da parte de Fichte de refutar o que ele considera a forma mais forte de um naturalismo de Schelling - a visão emergente e desenvolvida de que a consciência presume, jaz sobre e em certo sentido depende de suas bases orgânicas na natureza. Poder-se-ia pensar a consciência como originando-se de uma liberdade primordial, ele argumenta, mas não se pode perceber que ela tenha se originado assim; não há necessidade acompanhando o pensamento, e, portanto, nenhuma objetividade emprestando peso à hipótese. “[...] A natureza é uniforme e homeostática, ao passo que a ordem social é diferenciada e algumas vezes errática, uma vez que é campo de ações singulares empreendidas por agentes plurais. A natureza é o domínio do “sempre igual”, enquanto a ordem ética é a harmonização de indivíduos únicos” (Fichte; Schelling, 2012, p. 18). Dessa forma, a narrativa posteriormente bemsucedida de que Fichte não teria conseguido apresentar solução satisfatória para o conceito de natureza, capitulando diante da formulação superior de Schelling, é francamente partidária em favor do último, ou de uma assunção da Differenzschrift de Hegel como a “versão correta” do desenvolvimento do idealismo.

Cartas trocadas entre Fichte e Schelling de 1800 a 1802, por exemplo, mostram fortes atritos de personalidades e discrepâncias nos planos de execução de suas filosofias, o que acrescenta um elemento problemático a qualquer divergência teórica que ambos pudessem ter. A percepção de pertencerem a um projeto conjunto, no entanto, pauta o relacionamento dos filósofos até 1800. Em carta de 15 de novembro de 1800, Fichte revela estar trabalhando numa nova versão da Doutrina da Ciência, e que ambos teriam tempo de conversar sobre o título e anúncio do livro (Fichte; Schelling, 2012, p. 41FICHTE, J. G., SCHELLING, F. W. J. “The philosophical rupture between Fichte and Schelling: selected texts and correspondence (1800-1802)”. Michael G. Vater and David W. Wood (org.) New York: New York Press, 2012.). Mas Fichte ressalta a importante diferença de interpretação sobre o ponto crucial da especificidade da filosofia da natureza.

Contudo, ainda não concordo com a tua oposição entre a filosofia transcendental e a filosofia da natureza. Tudo parece basear-se em uma confusão entre as atividades ideal e real, na qual ambos recaímos; e a qual pretendo clarificar completamente em minha nova apresentação. Em minha opinião, a coisa não é adicionada à consciência, nem a consciência à coisa, mas ambas estão imediatamente unidas no Eu, o idealreal, real-ideal. - A realidade da natureza é também diferente. A última aparece na filosofia transcendental como algo completamente encontrado. De fato, como algo acabado e perfeito; a primeira não é encontrada de acordo com suas próprias leis, mas de acordo com as leis imanentes da inteligência (enquanto ideal-real). (Fichte; Schelling, 2012, p. 42FICHTE, J. G., SCHELLING, F. W. J. “The philosophical rupture between Fichte and Schelling: selected texts and correspondence (1800-1802)”. Michael G. Vater and David W. Wood (org.) New York: New York Press, 2012.)

O fato de nenhum dos dois afrouxar sua posição a respeito do conceito de natureza - somado ao modo rude de colocar e hipersensível de receber críticas por parte de ambos ao longo da troca de cartas - fez com que a reconciliação entre os até então colaboradores fosse impossível.

Como vimos, para Schelling a encruzilhada que os dividia tinha a ver com a necessidade de separar as perspectivas da finitude e da infinitude, do homem e de Deus, mas Fichte não entendia assim essa relação, isto é, não como diferença e alteridade, e sim como unidade prática. Em sua Exortação à vida bem-aventurada (1806), Fichte não apenas identificara as palavras ‘moral’ e ‘religião’ (Fichte, GA I,9, 1995, p. 16FICHTE, J. G.. „Gesamtausgabe der Bayerischen Akademie der Wissenschaften“. Bd. I, 9: Werke (1806-1807). Stuttgart: Frommann-holzboog Verlag, 1995.), como enfatiza que o “seu Deus” é espírito, e não se confunde com matéria alguma, devendo ser visto na beleza, na verdade, na utilidade e na ordem que perpassam as expressões objetais de arte, ciência e política (Fichte, GA I,9, 1995, p. 156FICHTE, J. G.. „Gesamtausgabe der Bayerischen Akademie der Wissenschaften“. Bd. I, 9: Werke (1806-1807). Stuttgart: Frommann-holzboog Verlag, 1995.). De todas as formas, Deus é sempre a interioridade e o bem, e o oposto disso é fantasmagoria, distrações do caminho reto.

A relação traçada por Fichte entre natureza e espírito a partir da virada do século XIX é hierárquica, e não simétrica ou orgânica como a de Schelling. Depois de impressionante exposição da religião derivada de sua filosofia, Fichte conclui que, ao contrário dos modernos, a “nossa” é uma filosofia que “deriva o corpo do espírito” e não o contrário. Tentar fazer o espírito derivar do corpo é a origem de todo o barbarismo, conclui Fichte (Fichte, GA I,9, 1995, p. 74FICHTE, J. G.. „Gesamtausgabe der Bayerischen Akademie der Wissenschaften“. Bd. I, 9: Werke (1806-1807). Stuttgart: Frommann-holzboog Verlag, 1995.).

Conclusão

A essência da crítica schellinguiana ao conceito de natureza de Fichte é que este falharia em sintetizar de modo logicamente consequente os mundos material e espiritual. Certamente é Schelling quem traz o conceito de natureza exterior à total transparência e plena definição dentro do programa idealista, de modo que é justo apresentar assim sua perspectiva:

Desta forma Schelling finalmente desenvolveu o conceito de Natureza. Diferente da filosofia idealista, particularmente de Fichte, a Natureza não é para Schelling mero produto do Eu, mas uma totalidade viva e independente, a qual encerra em si um princípio material e um espiritual. A Natureza assim concebida será, para ele, algo divino, ainda que “um tipo inferior de divino” (SW I, 7, 441). (Müller-Lüneschloss, 2012, p. 186MÜLLER-LÜNESCHLOSS, V. „Über das Verhältniss von Natur und Geisterwelt“. Spekulation und Erfahrung 59. Stuttgart: Frommann-Holzboog, 2012.)

Uma análise mais cuidadosa de ambos os autores, contudo, mostra que Schelling sustentava uma séria gradação de realidade entre a natureza e o espírito por considerar a discrepância entre as ordens causais (do entendimento e da natureza). Para Schelling, a história prévia da natureza e o seu modo próprio de geração dos seres exige de nós um tratamento diferenciado, que não está contido no trato que Fichte dá à natureza enquanto um não eu da consciência.

Embora a crítica de Schelling fosse de todo justificável, inserindo um problema concreto que levou ao desdobramento da filosofia dele e de Hegel em uma nova direção, eles não levaram suficientemente a sério a exigência fichtiana de consistência com a recursividade do idealismo crítico, que denunciava aquela “ordem distinta” da natureza como ainda um pensamento sobre a natureza. Em uma acurada exposição do problema, Francisco Gaspar observa que a forma como Schelling, principalmente, recebe a obra fichtiana e enfatiza o que nela vê como erro é crucial para a transformação do mito da ingenuidade subjetivista de Fichte (Gaspar, 2015GASPAR, F. P. “Fichte e Schelling em confronto - filosofia da reflexão ou não?” Doispontos 12. Curitiba, São Carlos, 2015. pp. 79-97).

Em outras palavras, Schelling só pode criticar o conceito fichtiano de natureza ao abandonar a preocupação fundamental de Fichte com a recursividade do pensamento e fundar o seu inteiramente novo sistema em outro princípio já mais externo, o Absoluto. Ao reunir dialeticamente transcendência e imanência na constituição do Absoluto, Schelling não resolvia o “problema interno” da teoria fichtiana, e sim criava outra perspectiva independente, na qual a própria ideia de dialética era levada da dinâmica interna da consciência ao seio da natureza. Semelhante movimento teve implicações radicais que vão da associação com teologia (Böhme) ao espinosismo e o neoplatonismo, mas, em todo caso, trata-se de uma retirada da subjetividade humana do centro do processo cósmico e sua recolocação em um jogo maior. Na expressão de Franz von Baader, cujo pensamento se aproxima muito do de Schelling, “Deus é o espírito do mundo, o mundo é o organismo de Deus” (Baader, 1855, p. 20BAADER, F. „Sämmtliche Werke: Vorlesungen und Erläuterungen über J. Böhme’s Lehre“. Leipzig: Hermann Bethman, 1855.).

Alternativamente, ao invés de um dualismo mente-objeto ou intelectonatureza, pode-se compreender o projeto fichtiano como um monismo intelectual, uma espécie de espinosismo subjetivista (Schlosser, 2001, p. 38SCHLOSSER, U. „Das Erfassen des Einleuchtens“. Berlin: Philo, 2001.).17 17 A recepção de Espinosa na Alemanha é um assunto muito complexo e controverso que remonta a Lessing e Herder, os quais já principiam a hibridação do monismo espinosano com o sentimentalismo de Rousseau e elementos bem conhecidos da mística alemã. Por isso, o entendimento geral a respeito de Espinosa era de que, ou, de fato se tratava de um modelo ateísta, ou bem se o considerava sob as luzes de um espiritualismo alemão muito particular - fosse essa leitura enviesada resultado da ingenuidade ou uma opção consciente. Dado o ambiente distintamente mais religioso que o do iluminismo francês, com destaque para uma renovação evangélica representada pelo pietismo, essa recepção alemã cristianizou e deu ares distintamente neoplatônicos à filosofia de Espinosa, que consciente ou inconscientemente era associado a Jakob Böhme, Giordano Bruno e outros monistas espiritualistas e/ou cristãos. Esse processo se revela até trivialmente, em textos como a autobiografia de Goethe, Poesia e Verdade, como igualmente no contexto da grande discussão teológica daquela geração (Hofmann, 2001). A literatura sobre a recepção de Espinosa nesse período é muito vasta, mas pode-se apontar como referência fundamental para a sua dimensão religiosa a obra de Hermann Timm, Gott und die Freiheit: Studien zur Religionsphilosophie in Goethezeit. Não um “monismo intelectual” de tipo dogmático, é claro, e sim uma perspectiva puramente transcendental e crítica sobre os princípios do saber, que radica no sujeito a possibilidade de discurso e conhecimento sobre a natureza, sem, contudo, anular sua autonomia e subordiná-la em outro nível além do transcendental. Como disse Fichte logo na primeira página dos Princípios de explanação da natureza dos animais, a Doutrina da Ciência aplica sobre a natureza os princípios subjetivos, mas não deseja com isso destituí-la de sua própria constituição, nem “transformar a natureza em inteligência” (Fichte, 1971, p. 362FICHTE, J. G. „Fichtes Werke“. Bd. XI. Berlin: Walter de Gruyter, 1971.). Descartada a conotação pejorativa de subjetivismo, o sistema fichtiano deixa de ser “quase”-metafísica ou pseudometafísica para ser uma espécie de metafísica da subjetividade insinuada pelo seu idealismo transcendental e crítico.

Afinal, ao expressar-se sobre a natureza dos viventes, Fichte soa, às vezes, mais como um Goethe que um Kant: “A parte majoritária da nossa liberdade é aquela mesma da planta que a si mesma se forma; não é essencialmente superior [...] só que não é a matéria formando raízes, folhas e flores, e sim uma personalidade formando impulsos, pensamentos, ações” (Fichte, GA I,6, 1981, p. 288FICHTE, J. G.. „Gesamtausgabe der Bayerischen Akademie der Wissenschaften“. Bd. I, 6: Werke (1799-1800). Stuttgart: Frommann-holzboog Verlag, 1981.).

A correta compreensão da dialética da autoconsciência não se permite reduzir à linearidade de uma produção simplista, em que o Eu seja concebido unicamente como atividade criadora, ele deve, igualmente, estar disposto para a recepção desse mesmo objeto que originalmente põe diante de si, e sem o qual não pode se radicar como consciência e sujeito em um mundo. Sem a duplicidade dessa estrutura de lançar e captar um mundo o idealismo fichtiano haveria de ser, com razão, um projeto metafísico amputado e ultimamente inconsistente (Adickes, 1920, pp. 73-74ADICKES, E. “Kants Opus postumum. Kant Studien 50“. Berlin: de Gruyter, 1920.).

Finalmente, embora o filho de Fichte tivesse assumido interesse em defender as ideias do pai de seus detratores, há considerável força persuasiva nas obras de Immanuel H. Fichte em defesa de uma compreensão mais justa do pensamento de seu mestre e genitor. Immanuel Fichte observou, por exemplo, que a excessiva abstração da filosofia de Hegel, especialmente em matéria de religião (natural) a tornava incapaz de satisfazer os anseios existenciais apontados por Kant como os fins últimos da razão. Seu pai, Johann Fichte, e Schelling, em contrapartida, teriam oferecido propostas mais substanciais nesse sentido (Fichte, 1869, pp. 17-18, 37FICHTE, I. H. „Vermischte Schriften zur Philosophie, Theologie und Ethik“. Leipzig: Brockhaus, 1869.). Muitos elementos dessa interpretação de Immanuel Fichte, privilegiada pela convivência com o pai e alguns de seus discípulos, colocam sob nova luz o que era demasiado obscuro no sistema fichtiano (ver Fichte, 1869FICHTE, I. H. „Vermischte Schriften zur Philosophie, Theologie und Ethik“. Leipzig: Brockhaus, 1869.), embora a compreensão da originalidade da perspectiva de Fichte só atingisse sua plenitude na segunda metade do século XX.

Por mais que uma tal alegação seja muito arriscada, parece haver razão para crer que Fichte foi adquirindo mais consciência das implicações de suas ideias sobre o conceito de natureza, apresentando com atraso uma definição não tão contrária às que foram sustentadas por outros idealistas. Ora, a predisposição do Eu em “gestar em si a natureza”, bem como aspectos do distanciamento que a consciência assume para com a objetividade, reconhecendo-a como diferença em um sentido não irrelevante, fazem com que o conceito fichtiano de natureza seja sempre marcado por um silêncio, muito mais do que por uma negação ou depreciação.

  • **
    Agradeço a Luciano C. Utteich pela paciente discussão de aspectos centrais deste trabalho.
  • 1
    De forma assertiva, Reinhard Lauth escreve no segundo parágrafo de seu livro sobre o conceito fichtiano de natureza: “Schelling e sua escola [...] cometeram o erro de apresentar a filosofia da natureza como argumento decisivo contra a Doutrina da Ciência” (Lauth, 1984, p. XIIILAUTH, R. „Die transzendentale Naturlehre Fichtes nach den Prinzipien der Wissenschaftslehre“. Hamburg: Felix Meiner, 1984.).
  • 2
    No sentido de a natureza não poder ser constitutivamente morta e anti-intelectual, mas precisar conter em si uma origem ou um elemento vital, intelectual e livre que está na essência do ser. Contudo, a constatação de que o ser é “iluminado” por uma fonte intelectual e livre infinita e Absoluta (com ‘a’ maiúsculo) já ultrapassa o escopo da Doutrina da Ciência, em que este trabalho está contido, e caminha para uma doutrina da sabedoria, para além dos limites do criticismo transcendental, o que explica as profundas transformações da versão de 1804 da Doutrina da Ciência.
  • 3
    Naturalmente, Fichte não imaginava que o Eu “surgiria” desse processo mental. A má recepção de sua filosofia como subjetivismo radical, no entanto, forçou-o a explicitar a diferença entre a origem ontológica do Eu e a sua construção transcendental. Nos anos 1790, quando essa diferença não estava clara, teria parecido a muitos que Fichte pretendera criar o universo a partir do pensamento e o próprio sujeito ex nihilo a partir dessa produção genética, quando, na verdade, a primeira filosofia de Fichte pretendia-se radicalmente crítica e não ontológica.
  • 4
    ZÖLLER, G. Fichte’s Transcendental Philosophy. p. 19ZÖLLER, G. „Fichte’s Transcendental Philosophy. The Original Duplicity of Intelligence and Will”. Cambridge: Cambridge University Press, 1998. : Junto com um idealismo crítico ou transcendental, Fichte distinguirá entre um “criticismo completo e superior”, o qual logra derivar o sistema da atividade mental a partir das leis básicas do ser inteligente, por um lado, e o idealismo incompleto, por outro, o qual meramente abstrai essas leis dos objetos da experiência. A última forma de idealismo transcendental é incompleta por explicar apenas a relação formal das propriedades de uma coisa por meio das leis da atividade inteligente, deixando a matéria em si (Stoff) inexplicada, e permitindo, com isso, uma interpretação dogmática da coisa como originalmente independente da atividade inteligente. Em contraste, num “idealismo transcendental completo” a coisa enquanto matéria e suas propriedades formais são mostradas como originadas de acordo com as leis da atividade inteligente. Logo, a coisa em sua inteireza é derivada da legislação “total” da atividade inteligente.
  • 5
    Observa-se que o processo não difere muito da reflexão kantiana, atividade essencialmente divisora, estritamente perscrutadora, dos processos mentais, mas já não se trata de uma divisão epistemológica apenas (Vetö, 1998, p. 346VETÖ, M. «De Kant à Schelling: Les deux voies de l’Idéalisme allemand». Grenoble: Jerôme Millon, 1998.), de modo que os estranhamentos e diferenças de interpretação do que estava a ser apresentado eram inevitáveis.
  • 6
    Não apenas Jacobi e Kant, como até mesmo Hegel reconheceram em Fichte uma filosofia abstrata e afastada da objetividade e realidade do mundo (Ahlers, 2006AHLERS, R. „Der späte Fichte und Hegel über das Absolute und Systematizität“. Fichte-Studien 30, Amsterdam, Brill-Rodipi, 2006. pp. 185-200.).
  • 7
    Seria justo falar de linhas de influência alternativas a Kant, as quais ajudam a definir as peculiaridades do conceito fichtiano de natureza, incluindo a antropologia “espiritualista” de Herder, a qual ele em parte absorve e à qual em parte reage (Hösle, 1997, pp. 120-121HÖSLE, V. „Anthropologie bei Fichte“. In: BREUNINGER, R. (Hrsg.). Philosophie der Subjektivität und das Subjekt der Philosophie. Würzburg: Königshausen und Neuman, 1997.).
  • 8
    “O Eu deve ser igual a si e ao mesmo tempo oposto a si mesmo. É igual a si a propósito da consciência, a consciência é uma só: nessa consciência está posto o Eu absoluto enquanto indivisível; o Eu, por outro lado, que está contraposto ao não-Eu, é divisível” (Fichte, GA I,2, 1965, p. 271FICHTE, J. G.. „Gesamtausgabe der Bayerischen Akademie der Wissenschaften“. Bd. I,2: Werke (1793-1795). Stuttgart: Frommann-holzboog Verlag, 1965.).
  • 9
    “O fato de a realidade ser um ‘derivado da imaginação’ não significa que a Doutrina da Ciência venha a ser antirrealista. Fichte fala, nesse sentido, que a filosofia transcendental deve formar um ‘meio’ entre idealismo e realismo dogmático. Ela é, por um lado, realista, porque parte do princípio que a realidade é ‘dada independentemente de toda consciência’. Mas ela também ‘não é, no mais profundo, transcendente, permanecendo transcendental’, porque expõe o ‘independente’ como ‘um produto do poder do pensamento’. Aqui, Fichte faz observar que a realidade sobre a qual ele fala (‘para nós’) não é a realidade dos objetos exteriores, mas a realidade do saber. Trata-se de objetos ideais, não empíricos. Da mesma forma, a filosofia transcendental ou a Doutrina da Ciência não negam a existência de objetos empíricos. Ela apenas suspende o dualismo kantiano, mostrando que tanto objetos ideais quanto empíricos pertencem à dialética do Eu” (Ficara, 2009, p. 92FICARA, E. “Transzendental“ bei Kant und Fichte. In: ASMUTH, C. (Hrsg). Kant und Fichte. Fichte und Kant. Fichte-Studien 33, Amsterdam: Brill-Rodopi, 2009.).
  • 10
    Torres Filho conclui que, se a natureza não tem status ontológico, a percepção não pode constituir saber, o que deverá caber apenas ao intelecto (Torres Filho, 1975, p. 78TORRES FILHO, R. R. “O Espírito e a Letra. A Crítica da Imaginação Pura em Fichte”. São Paulo: Ática, 1975.). Já Ernst Cassirer evita emitir um juízo, descrevendo da seguinte maneira esse lugar peculiar do conceito de substância: “Fichte acreditava ter-se protegido de um regresso no dogmatismo, ele acreditava permanecer exclusivamente no caminho transcendental, na medida em que sustentava estar buscando o conteúdo do Absoluto apenas numa ação e numa vida, jamais em um inerte ser objetivo. Mas aqui (em contraposição aos demais idealistas) não é a determinação do conteúdo do Absoluto que interessa, senão a sua apresentação formal, a qual se radica no sistema do conhecimento” (Cassirer, 1923, Bd. III, p. 207CASSIRER, E. „Das Erkenntnisproblem in der Philosophie und Wissenschaft der neueren Zeit“. Berlin: Verlag Bruno Cassirer, 1923.).
  • 11
    “Assim, a imaginação adquire uma autonomia que não podia ter em Kant, deixando de ser uma simples mediação entre uma atividade e uma passividade para tornar-se uma atividade independente. Mas, ao mesmo tempo, sendo o núcleo da parte teórica da filosofia, não deixa de estar excluída, com o conjunto dessa parte, de uma explicação da raiz da representação, que escapa, por definição, a toda teoria. Embora desvinculada de uma ‘receptividade’ – que desaparece como instância autônoma – e instituída como constitutiva da objetividade, a imaginação não pode dar conta da irredutibilidade da existência, do Anstosz, ‘daquilo que resta no não-eu, quando se faz abstração de todas as formas demonstráveis de representação’. O real só se manifesta quando o eu é considerado do ponto de vista da prática, e unicamente como sentimento da limitação de seu esforço” (Torres Filho, 1975, p. 110TORRES FILHO, R. R. “O Espírito e a Letra. A Crítica da Imaginação Pura em Fichte”. São Paulo: Ática, 1975.).
  • 12
    “Nisso o idealismo fichtiano tem o princípio de liberdade para a expressão do sistema, mas cujo conceito condicionante, o conceito de natureza, não é, aqui, concebido conjuntamente como pertencente às determinações do princípio sistemático. Em vez disso, de construir esse conceito, ele é dedutivamente suprimido, ao mesmo tempo em que é inteiramente pressuposto como dado” (Utteich, 2007, p. 217UTTEICH, L. C. “A exigência da fundamentação do sistema da filosofia transcendental sob o princípio absoluto do ‘Ich bin’ em J. G. Fichte”. Tese de Doutorado. Porto Alegre: PUCRS, 2007.).
  • 13
    Hartmut Traub entenderá que a harmonização da natureza ao esquema geral do mundo nas últimas expressões da DC significará a aproximação entre o aspecto negativo (não Eu) e positivo (Eu) por meio das forças mediadoras da arte, da ética e da religião (Traub, 1997TRAUB, H. „Natur, Vernunf-Natur und Absolutes“. In: ASMUTH, C. (Hrsg.). Sein, Reflexion, Freiheit. Aspekte der Philosophie Fichtes. Bochumer Studien zur Philosophie. Amsterdam: Grüner, 1997.).
  • 14
    O que mais interessava a Schelling no Timeu era precisamente “essa relação entre forma e matéria, e não formação do mundo” (Asmuth, 2002, p. 308ASMUTH, C. „Natur als Objekt - Natur als Subjekt. Der Wandel des Naturbegriffs bei Fichte und Schelling“. In: ABEL, G.; ENGFER, H.; HUBIG, C. Neuzeitliches Denken. Berlin: Walter Gruyter, 2002.). Com esse comentário, Asmuth pretendia enfatizar a importância da dialética dos opostos complementares de Platão sobre a formulação da filosofia da natureza de Schelling, ao passo que a gênese do mundo teria tons mais cristãos e de uma metafísica da vontade, a ser plenamente efetivada apenas no Freiheitschrift.
  • 15
    Daí ser condenada como “abstrata” a fundamentação metafísica de Fichte. “Devido a esse rigoroso formalismo, é concebido aqui o idealismo como fundado inferencialmente, em sua sistematização, pela Intuição intelectual. Tornando patente o distanciamento fundacional do sistema em relação à realidade, esse rigor formal suprime diretamente o elemento imediato, pura e simplesmente porque subjaz um imperativo ínsito na atividade negativa do primeiro princípio, de não haver atividade imediata do Eu. Nesse sentido, enquanto por isso cabe só a ‘todo o restante pode[r] ser explicado a partir da mediatidade dessa atividade: a realidade do não-eu (como a negação do eu e a do não-eu) e nessa medida, a realidade do eu’, o caráter inferencial (formalista) da exigência sistemática no qual a autoconsciência aparece como uma ‘consciência universal’ é reforçado e, por isso mesmo, ela aparece como mera abstração” (Utteich, 2007, p. 218UTTEICH, L. C. “A exigência da fundamentação do sistema da filosofia transcendental sob o princípio absoluto do ‘Ich bin’ em J. G. Fichte”. Tese de Doutorado. Porto Alegre: PUCRS, 2007., grifos do original).
  • 16
    “A Wissenschaftslehre de 1801 a 1802 demonstra uma tentativa positiva da parte de Fichte de refutar o que ele considera a forma mais forte de um naturalismo de Schelling - a visão emergente e desenvolvida de que a consciência presume, jaz sobre e em certo sentido depende de suas bases orgânicas na natureza. Poder-se-ia pensar a consciência como originando-se de uma liberdade primordial, ele argumenta, mas não se pode perceber que ela tenha se originado assim; não há necessidade acompanhando o pensamento, e, portanto, nenhuma objetividade emprestando peso à hipótese. “[...] A natureza é uniforme e homeostática, ao passo que a ordem social é diferenciada e algumas vezes errática, uma vez que é campo de ações singulares empreendidas por agentes plurais. A natureza é o domínio do “sempre igual”, enquanto a ordem ética é a harmonização de indivíduos únicos” (Fichte; Schelling, 2012, p. 18FICHTE, J. G., SCHELLING, F. W. J. “The philosophical rupture between Fichte and Schelling: selected texts and correspondence (1800-1802)”. Michael G. Vater and David W. Wood (org.) New York: New York Press, 2012.).
  • 17
    A recepção de Espinosa na Alemanha é um assunto muito complexo e controverso que remonta a Lessing e Herder, os quais já principiam a hibridação do monismo espinosano com o sentimentalismo de Rousseau e elementos bem conhecidos da mística alemã. Por isso, o entendimento geral a respeito de Espinosa era de que, ou, de fato se tratava de um modelo ateísta, ou bem se o considerava sob as luzes de um espiritualismo alemão muito particular - fosse essa leitura enviesada resultado da ingenuidade ou uma opção consciente. Dado o ambiente distintamente mais religioso que o do iluminismo francês, com destaque para uma renovação evangélica representada pelo pietismo, essa recepção alemã cristianizou e deu ares distintamente neoplatônicos à filosofia de Espinosa, que consciente ou inconscientemente era associado a Jakob Böhme, Giordano Bruno e outros monistas espiritualistas e/ou cristãos. Esse processo se revela até trivialmente, em textos como a autobiografia de Goethe, Poesia e Verdade, como igualmente no contexto da grande discussão teológica daquela geração (Hofmann, 2001HOFMANN, P. „Goethes Theologie“. Paderborn: Schöningh, 2001.). A literatura sobre a recepção de Espinosa nesse período é muito vasta, mas pode-se apontar como referência fundamental para a sua dimensão religiosa a obra de Hermann Timm, Gott und die Freiheit: Studien zur Religionsphilosophie in Goethezeit.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Abr 2023

Histórico

  • Recebido
    03 Fev 2022
  • Aceito
    14 Jul 2022
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