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LÍNGUA, MATERIALIDADE DISCURSIVA E COSMOGONIA

Language, Discursive Materiality, and Cosmogony

Lengua, materialidad discursiva y cosmogonía

Resumo

Ao se trabalhar com a relação língua e cosmogonia do ponto de vista discursivo, esbarramos em diferentes aspectos inerentes à organização social dos Kurâ Bakairi, materializada na forma como se pode, ou não se pode, lançar mão do conjunto de formativos da língua. As línguas são constituídas por sua historicidade, forjada, sobretudo, por textos fundadores da identidade do povo e da língua. Trata-se de pôr em pauta uma interdição fundadora da própria estrutura da língua em si. Em termos teóricos, abraçamos pressupostos oferecidos pela escola francesa de Análise de Discurso. E aí destacar que essa organização do mundo num viés político-cosmogônico vem a constituir a materialidade discursiva da língua em vários componentes gramaticais.

Palavras-chave:
Materialidade discursiva e cosmogonia; Língua e identidade; Língua Bakairi

Abstract

When working with the relation between language and cosmogony from a discursive point of view, we bump into different aspects inherent to the social organization of the Kurâ Bakairi, materialized in the way one can, or cannot, make use of the set of language formatives. Languages are constituted by their historicity, forged, above all, by texts that are the founders of the identity of the people and of the language. It is a matter of putting into question a founding interdiction in the very structure of language itself. In theoretical terms, we embrace assumptions offered by the French school of Discourse Analysis. And there we highlight that this organization of the world in a political-cosmogonic bias comes to constitute the discursive materiality of language in several grammatical components.

Keywords:
Discursive Materiality and Cosmogony; Language, and Identity; Bakairi Language

Resumen

Al trabajar la relación entre lengua y cosmogonía desde un punto de vista discursivo, nos encontramos con diferentes aspectos inherentes a la organización social de los Kurâ Bakairi, materializados en la forma en que pueden, o no, hacer uso del conjunto de formativas lingüísticas. Las lenguas están constituidas por su historicidad, forjada, sobre todo, por los textos fundadores de la identidad del pueblo y de la lengua. Se trata de poner a la orden del día una interdicción fundadora de la propia estructura del lenguaje. En términos teóricos, adoptamos los supuestos ofrecidos por la escuela francesa de Análisis del Discurso. Y ahí destacar que esta organización del mundo en un sesgo político-cosmogónico viene a constituir la materialidad discursiva del lenguaje en varios componentes gramaticales.

Palabras clave:
Materialidad discursiva y cosmogonía; Lengua y identidad; Lengua Bakairi

INTRODUÇÃO

Xíxi, o deus-Sol, quando fez o mundo, deu arma de fogo para o karaiva e flecha pro índio. Deu uma língua para o índio e outra para o karaiva. Waluga - janeiro de 1985

Nossa proposta neste texto é enfocar alguns aspectos da formação do léxico em Bakairi numa perspectiva discursiva e cosmogônica. O termo cosmogonia abrange as diversas lendas e teorias sobre as origens do universo de acordo com as religiões, mitologias e ciências através da história. O que de interessante deve-se destacar é que essa organização do mundo num viés político-cosmogônico vem a constituir a materialidade discursiva da língua em vários componentes.

Ao se trabalhar com a relação entre língua e cosmogonia do ponto de vista discursivo, esbarramos em diferentes aspectos inerentes à organização social dos Kurâ Bakairi, materializada na forma como se pode, ou não se pode, lançar mão do conjunto de formativos da língua. As línguas são constituídas por sua historicidade forjada, sobretudo, por textos fundadores da identidade do povo e da língua. Trata-se de pôr em pauta uma interdição fundadora da própria estrutura da língua em si. Em termos teóricos, abraçamos pressupostos oferecidos pela escola francesa de Análise de Discurso.

1 SOBRE A LÍNGUA E O POVO BAKAIRI

A língua bakairi pertence à família das línguas Karib, um tronco do sistema das línguas ameríndias, segundo Voeglin e Voeglin (1977VOEGLIN, C. F; VOEGLIN, E. M. Classification and Index of the Word’s Languages. New York, Oxoford: Elsevier, 1977). A maior parte das línguas Karib são faladas na América do Sul, ao norte do rio Amazonas, mas algumas são encontradas mais ao sul, no Brasil Central, precisamente no estado do Mato Grosso. O Karib costuma ser subdivido em três ramificações - Norte, Nordeste e Sul. O Bakairi pertence à ramificação Sul, sendo a língua mais meridional da família.

A população Bakairi, composta de 1.042 indivíduos, segundo dados da Funai (2013), está distribuída em duas terras indígenas, Terra Indígena Pakuenra e a Terra Indígena Santana, localizadas respectivamente nos municípios de Paranatinga e Nobre, no estado de Mato Grosso, Centro-Oeste do Brasil. Os Bakairi se dispersaram a partir do lugar que consideram como berço mítico de origem se dividindo em dois grupos, mais tarde conhecidos como “mansos” ou “ocidentais”, absorvidos como mão-de-obra pela sociedade colonial desde o século XVIII, e os “brabos” ou “orientais”, que se isolaram no Alto Xingu. Estes, no final do século XIX, foram arrebanhados por Von den Steinen a mando do governo brasileiro, com fins à pacificação, e alocados nas regiões atuais onde vivem.

2 HISTORICIDADE E ESCOLHA DO OBJETO

As análises com a língua bakairi são fruto da coleta de dados entre os Bakairi desde janeiro de 1984, até os dias atuais. Inúmeros são os trabalhos realizados que trazem contribuição ao estudo da fonologia, da morfologia da sintaxe e do discurso, articulando preceitos da Teoria Gerativa e da escola francesa de Análise de Discurso. Inclui-se entre esses trabalhos a tese de doutorado (SOUZA, 1994SOUZA, T. C. C. de. Discurso e Oralidade - um estudo em língua indígena. Tese de Doutorado. Campinas: IEL/UNICAMP,1994). Data de 1892, a publicação da gramática escrita por Von den Steinen resultante de duas viagens realizadas ao Brasil pelo pesquisador alemão em 1884 e 1887. Composta por mais de 400 páginas, a gramática traz estudos em fonética, vocabulário temático, focando corpo humano, parentesco, flora, fauna e etnografia. Além do vocabulário, são analisadas 542 frases, vários textos e alguns mitos, dentre os quais está a primeira transcrição de Udodo Pajika ‘A onça e o tamanduá’. Um século depois, em 1985, faço a segunda coleta deste mito com a pessoa Bakairi mais idosa - Waluga, com 85 anos presumidos, monolíngue.

A onça e o tamanduá nos remete aos primeiros momentos de confronto entre os Bakairi e os não indígenas, e estes dois personagens representam o índio, no caso udodo ‘a onça’ e o não-índio, pajika ‘o tamanduá’. A onça é um dos elementos ancestrais na cosmogonia bakairi e dele se originam os bakairi; enquanto o tamanduá-bandeira personificando o não-índio é definido como ‘aquele que abraça por trás’, ou seja, traidor. A coleção de mitos Bakairi é extensa, mas a referência a este mito em particular se deve ao fato de ser o índio referendado por udodo ‘a onça’. O elemento gramatical que ocupa nossa reflexão inicial é o formativo -do que entra na composição de udo-do ‘onça’. A palavra ‘udo’ significa homem, ser humano, por extensão, significa também índio, palavra silente na língua, forjada pelo colonizador.

Em pauta discutiremos, de imediato, o alcance do formativo -do na materialidade discursiva da língua, buscando explicitar a relação de interface entre os mitos fundadores da identidade e organização social Bakairi em relação à organização do léxico. Em um segundo momento, ilustraremos um pouco mais a formação de outras palavras, a princípio com o mesmo sentido, mas que são criadas a partir de mitos ligados a diferentes fases da organização social Bakairi. Os Bakairi delimitam sua existência em três momentos - a origem, num tempo sem luz, o da intervenção de Xíxi, deus-Sol que institui as diferenças a partir da dualidade trevas-luz e o da descoberta do milho. A cada um desses momentos corresponde uma organização social e uma civilização. Os Bakairi de hoje em dia se identificam como a terceira civilização, a que renasceu do milho. São momentos fundadores da história do grupo instaurados pela mitologia.

Em nossos trabalhos, vimos definindo o mito como discurso fundador:

A respeito da noção de discurso fundador, gostaríamos de observar ainda que, em Orlandi (1993ORLANDI, E. Discurso Fundador - A formação do país e a construção da identidade nacional. Campinas: Pontes, 1993., p. 13), esta noção é trabalhada na relação com a produção dos sentidos e este passa a ser caracterizado como fundador porque ele “cria uma nova tradição, ele re-significa o que veio antes e institui aí uma memória outra. É um momento de significação importante, diferenciado.” A forma como estamos lendo a noção de discurso fundador se distancia da de Orlandi, porque não estamos pensando o que há de fundador dentro dos muitos discursos produzidos sobre o outro, como foi traduzido o olhar do europeu sobre o novo mundo, por exemplo. Não encerram discursos sobre, mas sim discursos de si. E este movimento discursivo é que vem fundar a memória que atravessa o discurso indígena. (SOUZA, 2016SOUZA, T. C. C. de. Línguas indígenas: memória, arquivo e oralidade. Policromias - Revista de Estudos do Discurso, Imagem e Som, v. 1, n. 2, 2016., p. 106).

3 LÉXICO BAKAIRI E COSMOGONIA

A Onomástica tem em sua base dois componentes principais: a toponímia e a antroponímia, que se resumem em descrever a singularidade do nome de lugares, animais, plantas e de identificar os indivíduos de uma sociedade. Assim, quando se busca sistematizar a relação entre as palavras e as coisas, no campo da onomástica, o primordial é não perder de vista a historicidade da formação desses conjuntos de itens lexicais específicos com relação à cultura e à visão cosmogônica do grupo.

Há, dentro da Onomástica, um campo chamado de Toponímia. Diferente da toponímia, a antroponímia se relaciona com o sistema de denominação dos indivíduos humanos de uma sociedade. “Os sistemas de denominação antroponímica são constructos culturais específicos, e ambos apresentam características gerais que se repetem nas culturas” (SÓLIS, 2018, p. 23).

Diferente dessas duas propostas que atribuem aos sistemas de topônimos e antropônimos uma base cultural, numa outra perspectiva, a da materialidade discursiva, podemos definir além de antropônimos e topônimos outros itens lexicais a serem analisados como fundadores da identidade de um grupo quando, por exemplo, se tomam crenças, valores éticos, mitos, etc como elementos que estão na origem da constituição da identidade e da organização social de um povo. Nesse sentido, as duas perspectivas acima não dão conta dos processos de formação lexical como um todo, mas o trabalho com a noção de materialidade discursiva, sim, pensada como “nível de existência sócio-histórica, que não é nem a língua, nem a literatura, nem mesmo as “mentalidades” de uma época”, mas que remete às condições verbais de existência dos objetos (científicos, estéticos, ideológicos...) em uma conjuntura histórica dada”. (PÊCHEUX, 2011, p. 151-152). Ou seja, por materialidade discursiva, entende-se a inscrição da história no tecido da língua. Assim, uma proposta de análise da língua por esse viés joga, além da descrição e distribuição dos elementos gramaticais da língua, com a compreensão da discursividade, explorando-se nesta dimensão, a inscrição da historicidade de textos que estão na origem, como abarcam nossos objetivos aqui.

3.1 KURÂ BAKAIRI: OS FILHOS DE XÍXI, O DEUS-SOL

Há, em Bakairi, um tipo de formativo de nomes, que se prende a uma lista fechada de palavras, não podendo este ser utilizado em processo aberto de derivação lexical. É o caso, por exemplo, do formativo -do1 1 Dados transcritos em ortografia. O símbolo [r] corresponde a um flap nasal ou oral; o símbolo [â] corresponde ao schuá [∂]; [g] representa a fricativa velar sonora. A vogal média posterior [o] é sempre aberta, e a vogal média anterior [e] é sempre fechada. [y] corresponde a [i]. O padrão acentual em Bakairi é fixo, assinalando como proeminente a penúltima sílaba da palavra, exceto em palavras terminadas por ditongo (oral ou nasal), quando a última sílaba passa a ser a proeminente. . A compreensão melhor que explicita a não produtividade do formativo -do nos remete a um dos mitos de origem do povo Baikiri:

Houve um tempo - conta a mitologia Bakairi - em que os seres tinham a mesma forma física e falavam uma mesma língua. O mundo era do domínio das trevas. Xíxi - o deus-Sol - invadiu o mundo das trevas e instituiu as diferenças entre os seres. As pessoas - kurâ - se tornaram diferentes dos animais - ãnguido. A metamorfose se dava na e pela luz. Aqueles que deveriam se tornar kurâ se colocavam sob os raios da Luz e seus corpos toma vam a forma que têm hoje. A luz tinha que alcançar o corpo plenamente. Quando isso não acontecia, os seres ficavam híbridos - metade ãnguido e metade kurâ - e eram atirados ao fundo das águas, onde a luz não chegava. Tornavam-se kurâma ‘gente excluída’.

A Luz trouxe a dualidade ao mundo Bakairi. Uma dualidade expressa também na forma de duas línguas: o kurâ itãro e o e ãnguido itãro. A língua dos Bakairi é o kurâ itãro. O piaji ‘pajé’ - aquele que fala com a sombra, com a luz, com os bichos - domina as duas línguas, mas só revela a língua ancestral do tempo das sombras àquele que se tornar pajé. (SOUZA, 1994SOUZA, T. C. C. de. Discurso e Oralidade - um estudo em língua indígena. Tese de Doutorado. Campinas: IEL/UNICAMP,1994. p 11).

Sobre esse pequeno trecho, há muitas reflexões a serem tecidas. Sob o domínio das trevas, não havia diferença entre os seres humanos e não humanos. Estes seres ancestrais eram chamados de anguido, cuja formação lexical corresponde a angui-do. Com a intervenção de Xíxi, o deus-sol, se institui a dualidade entres os seres humanos - os Kurâ - e os não humanos - os anguido. O que vale observar é que a denominação dos seres filhos do Sol não é formada pelo processo de derivação com o formativo -do. A segmentação de k-ura revela a marca da primeira pessoa de verbos transitivos - k- ~ka- - agregada ao pronome livre de primeira pessoa - ura ‘eu’, dando lugar à palavra kurâ que significa ‘gente’. A palavra kurâ, porém, tem um uso identitário na língua, sentido advindo dessa explicação dos sentidos de origem e da significação do mundo. Os Bakairi se identificam pela denominação Kurâ e falam o kurâ itanro ‘nossa língua’. Quando querem falar de uma língua outra usam a expressão tojitanro ‘a língua em geral’.

Um outro aspecto pertinente ao uso de kurâ é o significado de ‘nosso’, correspondendo à referência cruzada ‘eu + você’. Esse tipo de formação vocabular é classificado em termos linguísticos como um dual. Como acontece com muitas línguas indígenas, trata-se de um tipo de referência classificada como um ‘nós exclusivo’. O escopo que define essa exclusão é, em Bakairi, uma forma de identificação: quando usamos a expressão kurâ, dizemos eu e você (ou tu), e excluímos os demais, os outros. Entretanto, kurâ, pelas normas da língua, só pode ser usado entre duas pessoas com a mesma identidade: somente dois interlocutores Bakairi podem se chamar por kurâ; e somente dois interlocutores karaiva (não-índio) podem utilizar kurâ. Quando queremos nos referir a um eu e você com identidades diferentes, obrigatoriamente, usamos os dois pronomes livres: ura âma ‘eu e você’. Trata-se, então, de se atestar um tipo de interdição fundadora do eu-Bakairi, por isso, recobre um nós que exclui qualquer outro não-Bakairi. Ainda a partir do formativo -do, focalizamos, por fim, a expressão kurâ-do, que significa gente em geral, pessoas, ratificando -do, como marca fundadora da identidade Bakairi da forma como significam o mundo. Ao lado de kurâ, há o pronome xina ‘nós inclusivo’, que abarca todo mundo e qualquer outro.

É oportuno corrigir aqui a análise de linguistas com pouco estudo do bakairi, mas que, seguindo considerações de Capistrano de Abreu (1895), classificam -do, como marca de plural. A inferência de Capistrano de Abreu, provavelmente, advém do fato de kurâdo significar ‘gente’ em sentido generalizado, ‘todo mundo’, sem excluir ninguém. A expressão de pluralidade em bakairi se dá por dois movimentos: (1) afixando ao verbo o morfema -mo, numa uma frase como: mâka nadapioguimo ‘eles estão se batendo’ e (2) afixando ao substantivo a marca de coletivo, de muitos, como em kurâdomondo ‘todo mundo’. A função do formativo -do como em kurâdo é generalizar a referência, significando ‘qualquer gente ou qualquer um’, destituindo o caráter de dual.

Sobre o processo de interdição na língua, lembramos Milner (1976MILNER, J.C. L´amour de la langue. Paris: Seuil, 1976., p.18) ao argumentar que “o fato na língua consiste em que há o impossível: impossível de dizer, impossível de não dizer de uma certa maneira [...] falar de língua e de partição é colocar que não se pode dizer tudo.” A posição de Milner é a de defender o indizível, daí propor que a “a língua está ligada á operação do não-tudo” e aprofundar esta questão no âmbito da língua e da gramática.

De que gramática fala Milner? Certamente, da gramática significada como instrumento tecnológico, tanto nos termos formais da Linguística quanto nos termos da gramática prescritiva, como as conhecemos. Mas o que estamos discutindo, no momento, é uma ordem de gramática fundadora, que está na origem da relação homem/mundo quando da instituição do que pode e não pode ser dito. Entender que a língua pode estar estruturada de uma certa forma e não de outra tem a ver, segundo nossa reflexão, com o fato de serem línguas intrinsicamente orais sem pareamento com a escrita. Com base nessas considerações, é que discordamos de Auroux (1992AUROUX, S. A revolução tecnológica da gramatização. Campinas: Ed. da Unicamp, 1992) sobre o que ele diz sobre gramatização, escrita e metalinguagem. Segundo o autor, “a gramática e o dicionário são como duas tecnologias, que são ainda hoje a base de nosso saber metalinguístico” (idem, p. 65) e que a invenção desses dois artefatos depende do desenvolvimento da escrita, e, portanto, povos cujas línguas são orais não desenvolvem o pensamento metalinguístico. Nos colocamos contrários a tais colocações, pois Auroux sustenta tal afirmativa no fato de que não se tem notícia “em nenhuma civilização oral de um corpo de doutrina elaborado em relação com as artes da linguagem, mesmo onde podemos observar que certos indivíduos são especialistas no papel de tradutores ou ‘poetas’”. Discordamos do autor quando afirma que as civilizações orais não possuem metalinguagem (SOUZA, 1994SOUZA, T. C. C. de. Discurso e Oralidade - um estudo em língua indígena. Tese de Doutorado. Campinas: IEL/UNICAMP,1994; 2016), pois não concebemos que a gramatização, ou a reflexão metalinguística, - como propõe Auroux (idem) - possam ser únicas, fechadas num corpo doutrinário e admitir que esse tipo de gramatização decorra da falta de desenvolvimento da escrita. A gramatização de línguas de oralidade e a reflexão metalinguística pressupõem um saber de outra ordem, que nem sempre conseguimos explicitar, mas quando se desenvolve um trabalho empírico com povos de línguas de oralidade, dependemos de um tipo de pensamento - selvagem, como propõe Lévi-Strauss2 2 Conferir Souza (2016) sobre a discussão em torno da constituição do pensamento abstrato dos povos de línguas de oralidade, tendo na base de sua constituição o recurso a sinédoques abstratas. - para chegar ao nível de formalização pretendido, ou como estamos tentando fazer aqui, buscar uma outra via de reflexão.

Continuando a discussão sobre esse universo de seres ancestrais, há várias entidades que poderiam ser aqui listadas, mas o que nos interessa agora destacar é um conjunto de palavras - conjunto fechado, como já apontamos - com recorrência do formativo -do.

No quadro (1) abaixo, temos uma lista de palavras, cuja derivação vem de udodo ‘onça’. A série, marcada com este formativo, tem sua origem na cosmogonia Bakairi e são todos personagens ancestrais na criação do mundo dos Kurâ Bakairi, sendo udodo ‘onça’, o ser do qual descende o índio. Udo ‘indígena’, ‘ser’ é parte de udodo ‘onça’, o que vem expresso na queda de uma das sílabas da palavra. Esse movimento de elisão parece ilustrar origem por partição na própria língua, descendência. Um outro exemplo desse processo é o da formação do pronome ‘quem’: o item que corresponde à concepção de ser original anguido - hoje significando animal - perde o formativo -do e dá lugar a angui ‘quem’. Essa partição - anguido X angui - em verdade, vem expressar a dualidade instaurada com a luz, assim como a dualidade anguido ‘animal, ser não humano’ X kurâ ‘ser humano, eu-bakairi’.

Quadro 1

Ainda dentro de uma outra lista de nomes em -do (quadro 2), temos em destaque kawida segundo o qual uma menina pouco simpática, que não queria se casar, tinha uma arara de estimação que dormia com ela, mas um outro ser, cemimo ‘o morcego’ entrou no corpo da arara e acabou a engravidando. A menina dá à luz um menino de nome Kwamoti, que vem a ser abandonado.

Quadro 2

Há outras palavras, dentro do universo do ‘sagrado’, ‘espiritual’, que também derivam pelo mesmo formativo, mas que parecem ter como origem a palavra kado, entidade a quem se obedece, pois castiga, e a quem se oferecem festas e rituais, tanto por reverência, tanto por agradecimento pelas bem-aventuranças. Na lista de palavras a seguir, há exemplos desse outro movimento no léxico, dentre estes destaco as palavras para ‘cantor’: âewondo e tygasein. A primeira se refere ao cantor designado para cantar as músicas em louvor a Kado, já a segunda designa o cantor de quaisquer outras músicas.

Quadro 3

Enfim, há outras palavras diferentes das que trouxemos até aqui no plano do sagrado, ou mítico, assim como há outros seres personificados nas tramas do mito - cemimo ‘morcego’, pajika ‘tamanduá’, pokurâu ‘coruja’, etc - que não são derivados pelo formativo -do, por não serem ancestrais dos Bakairi.

Considerar que udo ‘guerreiro’, ‘índio’ é palavra formada pela elisão de uma sílaba de udodo ‘onça’ tem como perspectiva uma relação de descendência e não de ascendência. Esta perspectiva pode ser observada na formação de várias palavras, como procuramos mostrar acima, e até na relação entre léxico e projeção temporal, discutido a seguir.

3.2 LÉXICO E DIMENSÃO TEMPORAL

As categorias lexicais em línguas indígenas, em geral, nem sempre são fáceis de serem definidas, isso porque há marcas morfológicas que tanto ocorrem com nomes como com verbos. Em bakairi, por exemplo, as marcas de alienação dos nomes são as mesmas que atendem à raiz do paradigma de pessoa dos verbos transitivos3 3 Por ser o bakairi uma língua ergativa, as marcas de pessoa dos verbos intransitivos são diferentes das marcas dos verbos transitivos. . Também algumas marcas de tempo-aspecto ocorrem junto a nomes e a verbos. Dentre estas, está o caso do formativo -pyre ~ -byre4 4 Essas duas formas alternativas atendem à distribuição dos segmentos surdos e sonoros em função da harmonia consonantal. O princípio obrigatório da estrutura silábica do bakairi não permite que sílabas (CV) contíguas comecem ambas por consonantes surdas, ocorrendo, assim, a alternância entre surdo/sonoro, como em konopio ‘passarinho’ e tozekado ‘banco’. que, dependendo do processo lexical em jogo, pode ter o sentido de ‘ex’ e de negação junto aos nomes. Quando ocorre preso à raiz verbal tem um sentido aproximado do modo mais que perfeito em português, ou seja, de um passado anterior a outro passado. Diferente do formativo -do, este sufixo não faz parte de um conjunto fechado, sendo bem produtivo, podendo inclusive ser empregado junto a empréstimos, como em carrobyre ‘carro velho’, ‘carro destruído’, como aquilo que um dia foi um carro.

A formação de alguns substantivos com -byre são pertinentes para, mais uma vez, ilustrar que o movimento de criação de algumas palavras pressupõe uma relação de descendência, de um retorno à origem. Vejamos os exemplos abaixo.

Quadro 4

A derivação de pekodo imeimbyre ‘menina’ e de ugondo imeimbyre vem da negação de pekodo imeri e de ugondo imeri. Já aludimos acima sobre uma regra histórica na língua de queda de consoante nasal ou flap nasal entre vogais, vindo, antes da queda, nasalizar a vogal da sílaba anterior. Todos as vogais de traço nasal em bakairi são decorrentes dessa regra, como vemos, por exemplo, em ugondo < ukoroto (forma registrada em Von den Steinen). A palavra imeimbyre tem essa mesma formação < ime(r)i-byre. Quanto à pekodo imeimbyre, teríamos como tradução não-filha-da-mulher, já que o termo possessivo antecede o termo possuído [pekodo imeri ‘filha da mulher’. Em termos de projeção temporal podemos pensar numa tradução literal próxima a ‘a menina que não teria sido filha da mulher’, isto é, uma menina criança. O mesmo se estende à formação de ugondo imeimbyre ‘menino’.

Esse tipo de processo espelha uma dimensão temporal a partir do vocábulo catalizador na derivação, mas não se pode analisar, ou se afirmar de imediato, que os nomes são marcados com tempo. Em outros termos, podemos dizer esse tipo de formativo é um modalizador de nomes que aponta o ponto de origem da derivação. E atesta, como já dissemos em SOUZA (1994SOUZA, T. C. C. de. Discurso e Oralidade - um estudo em língua indígena. Tese de Doutorado. Campinas: IEL/UNICAMP,1994), a noção de tempo circular, como no tempo do absolutismo em que se tem um eterno retorno ao começo. Os rituais remontam sempre ao momento fundador dos acontecimentos, das práticas rituais, investindo num domínio de memória perene.

Essa circularidade temporal está instituída na língua através das diversas marcas linguísticas que constituem os dizeres em bakairi recobrindo as palavras e as coisas, as palavras e os seres, e o impossível de se dizer.

3.3 TEXTUALIDADE E DIMENSÃO TEMPORAL

A fim de uma vez mais ilustrar que esse retorno a um momento primeiro constitui a organização da língua como um todo, trouxemos aqui a tradução literal de um pequeno recorte de um texto bakairi sobre as comidas bakairi.

‘Bakairi come beiju. Come o beiju só depois de feita a massa dele com man dioca. Ele faz massa de mandioca depois de descascar, ralar e espremer [a mandioca]. Assim que isso é feito, faz o beiju. Para comer o beiju, assa e de pois come. [...].

O desenvolvimento do tema aí solicitado, “as comidas de Bakairi”, girou em torno de um elemento básico à alimentação -awadu ‘o beiju’. Com relação à narrativa do evento “Bakairi come beiju”, houve necessidade de uma explicitação das etapas que antecedem o ato de co mer beiju. Em retrospectiva não-linear foram apontados: fazer a massa do beiju; enumerar as etapas precedentes a isso: descascar, ralar e espremer a mandioca; comer o beiju, que antes foi assado para ser comido. O encadeamento entre as frases se dá através da repetição das ações (fazer e comer, principalmente).

Esse movimento cósmico-circular, como já apontamos acima, estrutura a língua na projeção textual através das diversas marcas aspectuais que modificam os verbos em bakairi. De onde se permite enten der por que as chamadas formas perfectivas - as que de fato marcariam e delimitariam o curso do tempo em termos de presente, passado e futuro - não compõem a estrutura discur siva. A circularidade aponta, na verdade, o não-tempo, ou o retorno a um tempo original, mítico, como no absolutismo, negando uma possível direção prospectiva e apontando uma retrospectiva circular, por isso, não linear. (in: Em busca do risco do bordado, SOUZA, 1994)

Sobre o momento de registro desse texto, lembramos que nossa consultora Hermosina Shagope antes de enunciar o texto em Bakairi, em seu todo, diz bakairi awadu inhedãwile ‘Bakairi come beiju’, faz uma pausa e fala em português: “a gente conta as coisas em bakairi numa ordem diferente de como você conta em português. Vocês começam do começo do preparo do beiju e vão até o fim. Em bakairi é diferente”. Eis aí toda uma reflexão metalinguística sobre as duas línguas - o português e o bakairi. Shagope tem conhecimento das diferenças estruturais das duas línguas e faz questão de anunciá-las. A respeito desse tipo de organização textual em bakairi, Capistrano de Abreu (1895) o classifica como um processo paratático e considera as repetições desnecessárias. “Na forma de exprimir o pensamento é palpável que a subordinação lógica não é alcançada.” (idem, p. 217-218), avalia o autor. Tal gesto analítico não se afasta das colocações de Auroux (1992AUROUX, S. A revolução tecnológica da gramatização. Campinas: Ed. da Unicamp, 1992), quando afirma que a falta da escrita não permite uma reflexão metalinguística aos povos sem escrita.

CONCLUSÃO

A questão da formação do léxico e da tessitura da língua em bakairi não se reduz a uma visão de mundo, constituída pela cultura. Existe, sim, uma visão cosmogônica instituída no léxico, na estrutura da língua como um todo, que, por sua vez, vai permitir entender a organização social do grupo, as relações de parentesco, bem como os valores éticos, religiosos, os rituais, etc. São redes de diferentes ordens que tecem a materialidade da língua.

Essa perspectiva analítica, porém, só é alcançada quando se toma a língua como um todo, mas num movimento constante entre a análise de frases isoladas e a análise da textualidade, esta, porém, vista pelo ângulo da historicidade da língua e do povo numa imbricada relação de constituição mútua, movimento inscrito na materialidade discursiva.

Ao postular a reflexão sobre a organização lexical da língua, em termos de uma materialidade discursiva instaurada pela mitologia do grupo, pensamos ser esta articulação entre cosmogonia e discursividade, eficaz no trabalho de reflexão por parte dos indígenas sobre a própria língua. Em cursos de pós-graduação têm sido previstas cotas para admissão de alunos indígenas, deliberação mais do que bem vinda, mas que, em termos práticos, a admissão desse alunado nem sempre funciona de forma satisfatória, na medida em que não há um desejo por parte de quem ensina de ouvir o índio sobre o funcionamento da própria língua e, em que medida, esse tipo de funcionamento pode ser estudado pelos cânones instituídos como científicos. No caso do aluno indígena, há necessidade de proceder a vários tipos de abstrações: abstrair a taxonomia e os princípios linguísticos e abstrair a própria língua em função dessa taxonomia e princípios. Tarefa complexa e difícil não só para o índio, mas também para os demais alunos, como verificamos no nosso dia a dia como docente.

Há, com certeza, uma outra via para se desenvolver a reflexão metalinguística. Uma via que pode começar por se entender a relação entre língua e materialidade discursiva desde que haja uma escuta da forma de dizer do sujeito índio. A formalização - esta sim abstrata e séptica, como a definimos nas grades estreitas do sistema - constitui a “língua como um real representável por um cálculo, como um real que se substitui por pequenas palavras de formalização. Ao que serve o conceito de signo e o princípio de divisibilidade: cada segmento da língua - palavra, frase, som, sentido - entendido como signo, é repetido de maneira unívoca e analisável: identidade por identidade, diferença por diferença.” (MILNER, 1978. p. 8).

Enfim, por uma interdição fundadora do dizer temos um eu partido, multifacetado, um não-um, como preconiza a Psicanálise e que, ao mesmo tempo, determina quem pode e não pode partilhar das mesmas formas da língua. A velha sábia contadora de histórias, há muito tempo, já sabia disso: “Xíxi, o deus-Sol, quando fez o mundo, deu uma língua para o índio e outra para o karaiva.” (Waluga, 1985)

REFERÊNCIAS

  • AUROUX, S. A revolução tecnológica da gramatização. Campinas: Ed. da Unicamp, 1992
  • CAPRISTANO DE ABREU, J. C. Os Bacaerys. Revista Brasileira, v. 1, Tomos III e IV, 1895
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  • VON DEN STEINEN, K. Durch Central Bresilien, Leipzing, 1886 tradução brasileira: O Brasil Central - Expedição de 1884 ao Xingu, São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1940
  • 1
    Dados transcritos em ortografia. O símbolo [r] corresponde a um flap nasal ou oral; o símbolo [â] corresponde ao schuá [∂]; [g] representa a fricativa velar sonora. A vogal média posterior [o] é sempre aberta, e a vogal média anterior [e] é sempre fechada. [y] corresponde a [i]. O padrão acentual em Bakairi é fixo, assinalando como proeminente a penúltima sílaba da palavra, exceto em palavras terminadas por ditongo (oral ou nasal), quando a última sílaba passa a ser a proeminente.
  • 2
    Conferir Souza (2016SOUZA, T. C. C. de. Línguas indígenas: memória, arquivo e oralidade. Policromias - Revista de Estudos do Discurso, Imagem e Som, v. 1, n. 2, 2016.) sobre a discussão em torno da constituição do pensamento abstrato dos povos de línguas de oralidade, tendo na base de sua constituição o recurso a sinédoques abstratas.
  • 3
    Por ser o bakairi uma língua ergativa, as marcas de pessoa dos verbos intransitivos são diferentes das marcas dos verbos transitivos.
  • 4
    Essas duas formas alternativas atendem à distribuição dos segmentos surdos e sonoros em função da harmonia consonantal. O princípio obrigatório da estrutura silábica do bakairi não permite que sílabas (CV) contíguas comecem ambas por consonantes surdas, ocorrendo, assim, a alternância entre surdo/sonoro, como em konopio ‘passarinho’ e tozekado ‘banco’.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    14 Dez 2021
  • Aceito
    20 Dez 2022
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