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Dialética por todos os lados

Dialetics everywhere

Resumos

Comentário crÃtico do livro de Paulo Arantes sobre a experiência intelectual brasileira em Antonio Candido e Roberto Schwarz.


Critical commentary of the book by the philosopher Paulo Arantes on the work of the well-known litterary critics Antonio Candido and Roberto Schwarz.


DIREITO E DIREITOS

Dialética por todos os lados

Dialetics everywhere

Marcelo Coelho

Mestre em Sociologia pela USP e membro do Conselho Editorial da Folha de São Paulo

RESUMO

Comentário crítico do livro de Paulo Arantes sobre a experiência intelectual brasileira em Antonio Candido e Roberto Schwarz.

ABSTRACT

Critical commentary of the book by the philosopher Paulo Arantes on the work of the well-known litterary critics Antonio Candido and Roberto Schwarz.

Sabe-se que não é fácil ser intelectual no Brasil. As adversidades do ambiente acabam produzindo mal-estar e desânimo nas pessoas que se dispõem a isso. Desconfio que o filósofo Paulo Arantes é dos que experimentam com mais intensidade esse mal-estar. Mas não o desânimo — e sua análise sobre a crítica literária de Antonio Candido e Roberto Schwarz1 1 Arantes, Paulo Eduardo. Sentimento da Dialética na Experiência Intelectual Brasileira — Dialética e Dualidade Segundo Antonio Candido e Roberto Schwarz. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1992. surge como um brilhante atestado de que a situação, afinal, não é tão desesperadora assim. O desconforto existe, sem dúvida, e se faz sentir nas entrelinhas do seu texto; mas nelas também podemos perceber um discreto otimismo.

Antes de falar das entrelinhas, porém, cumpre dar idéia da argumentação do autor. Resumir determinado livro é sempre a parte mais trabalhosa para quem escreve sobre ele; ainda mais neste caso. As sofisticações do estilo de Paulo Arantes, sua maestria no understatement, o jogo cerrado entre o que é digressão e o que é fio da meada, tudo isso dificulta bastante a tarefa.

O Sentimento da Dialética é composto de dois capítulos, um sobre Antonio Candido, outro sobre Roberto Schwarz. Usa o termo "dialética" em dois sentidos. O primeiro se refere ao tipo de vinculação existente entre obra literária e contexto social. O segundo sentido, para encurtar as coisas, é o da reversibilidade entre pares contraditórios (usando o exemplo do autor, "norma" é "infração" e "infração" é "norma" no esquema narrativo de Machado de Assis, tal como elucidado por Roberto Schwarz). Este segundo sentido do termo "dialética" pode, por sua vez, ser lido conforme duas perspectivas: uma, que prevê a síntese, a reconciliação final entre opostos, e outra, "negativa", onde as contradições se perpetuam sem que nenhuma dedução feliz se vislumbre no horizonte.

Paulo Arantes joga, ainda, com outras polaridades. Contrasta, e afinal reconcilia, os temas do "dualismo" e da "dialética" no pensamento sociológico brasileiro. Como se sabe, interpretações hoje ultrapassadas sobre nossa formação social costumavam opor o Brasil "arcaico" ao Brasil "moderno", como se se tratasse de duas entidades estanques. A idéia tornou-se, diz com exatidão Paulo Arantes, uma heresia conceitual e política. Arcaísmo e modernidade, com efeito, integram-se no Brasil, e chamar alguém de "dualista" é quase um xingamento entre sociólogos. Lembrando que Roberto Schwarz fora acusado de "dualista" por Maria Sylvia de Carvalho Franco, e ao mesmo tempo homenageando esta autora, Arantes diz, com acuidade, que sem algum "dualismo", afinal, não há "dialética" que sobreviva. Para o leitor interessado na história das aplicações da teoria marxista ao caso brasileiro, a discussão de Arantes sobre este ponto é especialmente rica e matizada, dando-se ao luxo de algumas veladas farpas à obra de Florestan Fernandes.

Associado a esse tema, vemos outro par de preocupações que o autor desenvolverá em detalhe. Trata-se da relação entre os progressos da sociologia e os da crítica literária no Brasil. Roberto Schwarz havia participado, com Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni, Fernando Novais e José Arthur Giannotti, dos famosos — se me é permitida a adjetivação mundana — "Seminários do Capital", onde se gestou a Teoria da Dependência. E a tarefa de empreender uma crítica literária "dialética" no Brasil, levada a cabo genialmente por Schwarz, é ainda mais difícil do que na metrópole. Pois, na França ou na Inglaterra, o crítico literário marxista sabe, bem ou mal, a que realidade histórica está se referindo; aqui, a "base social" de que nascem romances e poemas é, nela mesma, de problemática identificação. O jogo entre teoria sociológica e teoria literária teve de ser refeito por completo, graças aos autores estudados por Paulo Arantes.

Como se vê, este Sentimento da Dialética é inteiro estruturado em pares e duplas. Há Candido/Schwarz; há duas dialéticas; a segunda divide-se em outras duas; há dialética e dualismo; há sociologia e teoria literária; há a metrópole e a periferia.

"Sem muito exagero, pode-se dizer que em AntonioCandido há dialética por todos os lados": assim começa Arantes, e sem nenhum exagero pode-se dizer o mesmo do livro que nos ocupa. Mais adiante será instrutivo perguntar, talvez, onde não há dialética nele. Mas acompanhemos, uma vez caracterizado o instrumental do autor, o fio do seu raciocínio.

O livro começa com uma elegante contestação da análise feita por Davi Arrigucci Jr. (em "Movimentos de um leitor") da obra de Antonio Candido.2 2 Arrigucci Jr., Davi. "Movimentos de um leitor". Folha de S.Paulo, 23/11/1991; republicado na coletânea comemorativa Dentro do Texto, Dentro da Vida. São Paulo, Companhia das Letras, 1992. Arrigucci vê em Antonio Candido acima de tudo a mobilidade do ensaísta. Circundando seu objeto, tomando-o de vários ângulos, Candido articularia "módulos de leitura", pólos alternativos que orientariam o trabalho de interpretação: ordem/ desordem, espontâneo/dirigido, alto/baixo, conforme a obra estudada fosse, por exemplo, Memórias de um Sargento de Milícias, O Conde de Monte disto ou O Cortiço.

Paulo Arantes não se contenta com essa caracterização — afinal, a liberdade de movimentos faz parte do gênero "ensaio", e não constituiria algo que diferenciasse a obra de Antonio Candido daquela, digamos, de Sérgio Milliet. Voltaremos a essa crítica de Arantes a Arrigucci. Recorrendo a termos como "contestação" e "crítica", devo dizer que exagero um pouco. Tudo em Paulo Arantes é mais sutil. Por enquanto, observe-se que o fantasma da "volubilidade" ensaística, do livre movimento do olhar, é sempre perturbador num ambiente cultural como o brasileiro, que conheceu os ziguezagues de Silvio Romero (classicamente recenseados pelo próprio Antonio Candido) e as cabriolas de Brás Cubas, pedra de toque da análise de Roberto Schwarz sobre Machado de Assis. Não. Haveria de se encontrar um pólo central, uma oposição básica, que conformasse a obra de Antonio Candido acima das liberdades do ensaísta. Com efeito, Antonio Candido tem na história da crítica literária brasileira um papel "formador", e Roberto Schwarz nunca deixa de homenagear seu mestre. Paulo Arantes identifica, então, na dialética "dado local/molde europeu" o princípio capaz de unificar os interesses de Antonio Candido. Além disso, outra dialética (a da forma e do conteúdo, para falar grosseiramente) se abre para os estudos literários brasileiros a partir de Antonio Candido, e não é preciso que Paulo Arantes nos diga o que Roberto Schwarz foi capaz de fazer a partir daí.

Observe-se de passagem que, nesta primeira parte do livro,Arantes segue de perto a interpretação de Roberto Schwarz sobre Antonio Candido. Fico pensando se todo este Sentimento da Dialética não é, no fundo, sobre Roberto Schwarz. Mas, para falar como Paulo Arantes (isso contagia...) voltaremos ao assunto.

O fato é que, uma vez estabelecido por Antonio Candido o jogo entre "dado local/molde europeu" na literatura brasileira com referência ao arcadismo e ao romantismo, caberia ver de que modo, como Machado de Assis, nossa literatura elevou-se ao plano de um interesse universal, expondo mazelas periféricas num registro de qualidade estética apto a se livrar dos acanhamentos de província. Seja como for, o livro de Antonio Candido, Formação da literatura Brasileira, interrompe-se antes disso.

A palavra final seria de Roberto Schwarz. Diz Paulo Arantes, concluindo com precisão as idéias deste autor: "Machado não tem parte com o universalismo aparente dos temas, que aliás ele mesmo se encarregou de desacreditar... Caso fosse sem resto a hegemonia burguesa, aí sim resvalaríamos para a irrelevância de mera província do capital".

Em outras palavras, o "universalismo" de Machado de Assis não seria mero produto da "ascensão" de um provinciano a temas de interesse geral. Seguindo Roberto Schwarz, Paulo Arantes mostra de que modo a dialética entre o universal e o particular, o mundial e o provinciano, obedece em Machado de Assis a uma lógica que exclui a simples imitação de modelos externos, e que obedece, mimética e criticamente, à estrutura de nossa sociedade. Falar ao mesmo tempo em crítica e mimese é falar de ironia, e falar de ironia é, creio, falar de modernidade literária. Como Machado de Assis não atinge a universalidade de modo "abstraio", mas sim pela extrema atenção à s contradições próprias da formação social brasileira — ela mesma, explica e repete Arantes, reconciliada e cindida pelas determinações externas do capital, capazes de dar especificidade e estranheza ao seu modo de ser — a obra machadiana equipara-se, milagrosa ou ironicamente, à s proezas da vanguarda literária em meados ou fins do século passado.

A presença de um narrador "inconfíável" como Brás Cubas ou Bentinho; a invenção de uma forma que desconcerta a concepção clássica do romance; o molde "arcaico" de Sterne para dar conta do nosso "arcaísmo"; as sutilezas desencantadas da trama, ao mesmo tempo distensa e niilista, longe dos heroísmos de Balzac ou de Stendhal; tudo harmoniza Machado de Assis ao que havia de mais moderno na literatura européia. A interpretação de Lukács —segundo a qual depois do romance burguês de 1848 o romance nunca mais seria o mesmo — reencontra, curiosamente, a posição de cinismo do narrador machadiano, emaranhado em seus recessos de província. Os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade estariam tão renegados e risíveis na Paris real de 1848 quanto no Brasil escravista. Tematizando o descompasso, os escritores brasileiros — mas, no fundo, apenas Machado de Assis — estariam, com todo seu lastro periférico, situados numa ponta de modernidade de que Flaubert e seguidores saberiam tirar proveito estético a partir das frustrações políticas em curso na França.

A obra de Machado de Assis ganha, a partir da leitura de Schwarz, uma espécie de altiva e áspera arrogância. E, como no resto do mundo as contradições do capital se movem muito mais segundo uma dialética negativa do que conforme as esperanças de resolução, ou de revolução, prestigiadas pelo marxismo clássico, o beco sem saída do intelectual brasileiro termina não sendo muito diferente daquele vivido pelo intelectual europeu.

Final feliz, sem reconciliação, contudo, é o que nos propõe o ensaio de Paulo Arantes. A dialética é negativa, mas o progresso existe naquilo que se possa atingir de autoconhecimento do Brasil graças a Candido e Schwarz. Talvez caiba dizer do marxismo contemporâneo que lhe serve a epígrafe virgiliana que Freud escolheu para sua Interpretação dos Sonhos: "Flectere si nequeo superos, Acheronta movebo". Conhece-te a ti mesmo, enfim, para nos mantermos no campo das citações. Nesse sentido, a esperança se desloca: se a situação brasileira não suscita maiores otimismos, e parece sempre girar em falso com promessa irrealizadas de superação do subdesenvolvimento, há pelo menos uma promessa, uma superação cumprida: a das realizações intelectuais que tematizam nossa eterna ausência de superações concretas.

Talvez estejamos nos aproximando, com estes comentários, daquilo que seria o real impulso do texto de Paulo Arantes. Mas alguns pontos foram deixados em suspenso mais atrás. Recapitulando: havia o problema do desconforto e do otimismo de Paulo Arantes; havia a pergunta a respeito dos trechos em que não há dialética no livro; temos o problema das afinidades entre Arantes e Schwarz, ligado ao da inclusão de Antonio Candido neste livro; ainda que explicitamente denegado, o tema das "vantagens do atraso" parece-me latente na argumentação do autor; paira, sobre toda a negatividade e a dialética, um sentimento de reconciliação; haveria uma dialética entre o "malaise" de ser intelectual no Brasil eum certo prazer perverso a se extrair desta condição; há uma dialética entre a "liberdade do ensaísta" e seu background social — ligada a este último tema, está a apreciação que Arantes faz do texto de Davi Arrigucci Jr.

Começo pelo primeiro ponto, embora não prometa que vá seguir pela ordem.

Tem sido para mim uma surpresa, para dizer o mínimo, acompanhar a trajetória intelectual de Paulo Arantes. Ele defendeu uma tese sobre Hegel em Paris (A ordem do Tempo, SP, Polis, 1981); passou à consideração (nos Novos Estudos, Cebrap) do pensamento do obscuro positivista brasileiro, o dr. Pereira Barreto; o crítico da nova "Ideologia Francesa" (Novos Estudos, Cebrap, 28/1990) dedica-se a interpretar depoimentos em torno da presença de Jean Maugué na USP durante a década de 40; examina Gramsci e as origens do idealismo alemão (na revista Presença, nº 17, 1991) e, neste momento, retoma, na revista Discurso, do Departamento de Filosofia da USP, seu tema predileto, o da figura do intelectual no mundo moderno, em "Quem pensa abstratamente?". Temos ainda um livro sobre Habermas e a modernidade arquitetônica, escrito em colaboração com Ottilia Arantes (SP, Brasiliense, 1992), ao lado do estudo sobre Antonio Candido e Roberto Schwarz.

O que será que mobiliza Paulo Arantes a enveredar pela história da USP, por Habermas e Jean Maugué? Por que passar de Hegel ao dr. Pereira Barreto?

É que suas preocupações — para retornar ao tema inicial — parecem-me marcadas pelo desconforto de ser um intelectual na periferia. O artigo sobre o dr. Pereira Barreto, endereçado a uma publicação parisiense, é um exercício quase perverso de ironia. Evidentemente, o positivismo brasileiro é uma piada — mas como quem ri por último ri melhor, cabe a Paulo Arantes dizer que o interesse francês a respeito de nosso positivismo é risível para um brasileiro bem-informado. Paulo Arantes comporta-se, neste texto, como o mais francês dos franceses, encarregando-se de desprezar aquilo que eles não desprezaram por nós. Não sei se nisso, mas a palavra é dura, não há uma espécie de provincianismo de sinal contrário. Será que esse dr. Pereira Barreto mereceria o desenfreio de sarcasmos que Arantes lhe dirigiu? E, honestamente, será que Paulo Arantes não perdeu tempo afiando suas farpas contra um pensador que não está à altura de sua própria sofisticação intelectual? E será que não embotou suas mesmas farpas ao tratar de forma tão admirativa a respeito de Jean Maugué?

Mas entramos, neste instante, no real impulso de Paulo Arantes. Tanto quanto o conceito de dialética, mobiliza-o a esperança de que haja, na vida intelectual brasileira, uma idéia de "formação" — a este tema, a idéia de "formação" no pensamento de Antonio Candido, ele dedicou longo estudo (em Dentro do Texto, Dentro da Vida). Dadas a escassez de continuidade e síndrome de heteronomia vigentes no pensamento brasileiro, doses iguais de desconforto (o dr. Pereira Barreto) e esperança (a tradição uspiana) mexem com o pensamento de Paulo Arantes.

Seu último livro registra bem o propósito de traçar linhas de continuidade na história cultural brasileira; ou, melhor, paulista, ou melhor "uspiana" — e este adjetivo ocorre com irritante e, creio, irritada insistência nos textos de Paulo Arantes. Mas, na minha opinião, as referências "formativas" dedicadas a Antonio Candido não escondem a avaliação de que, no fundo, as coisas todas começam e acabam com Roberto Schwarz. E nesta perversa circunscrição de adjetivos — brasileiro, paulista, uspiano — pode-se ver o ímpeto "provincianizador" de Paulo Arantes; o tom de sua análise é ao mesmo tempo restritivo e orgulhoso. Nós, na periferia, com p minúsculo, e nossa obra, com o maiúsculo. Não digo que o maiúsculo não seja merecido. Mas o jogo de maiúsculas e minúsculas, do centro e da periferia, do "nós" e "eles" surge aqui de modo quase obsessivo. Caso contrário, creio eu, não teria sido necessário queimar pestanas com os escritos de Pereira Barreto. E não sei se mesmo Antonio Candido, cuja estratégia Arantes elogia, precisava ficar estudando Silvio Romero em profundidade.

É como se todos tivéssemos que pagar o preço de ser brasileiros, conscientes de estarmos sendo vítimas de um conto-do-vigário. Roberto Schwarz, que serve como modelo neste aspecto, não compartilha de tal masoquismo; e a dialética não é, para ele, mote de retorcimentos de linguagem. Tais retorcimentos são, sem dúvida, belíssimos no texto de Paulo Arantes. Sou brasileiro também, e para mim é um prazer vê-lo desancar Pereira Barreto ou entrar nas delícias da genealogia uspiana. Mas não me dou bem com isso.

E creio que essa preocupação "formativa" acaba atrapalhando um pouco o livro de Paulo Arantes. Sua visão é conciliatória demais — haja vista o que escreve sobre Maria Sylvia de Carvalho Franco, quando esta ataca frontalmente Schwarz, aquele que é, aliás com razão, o herói da narrativa. E ninguém ousaria, no Brasil contemporâneo, levantar restrições a Antonio Candido —embora seja perceptível, no texto de Arantes, algo neste sentido.

Há, no fundo, uma dialética mal resolvida entre este conceito de "dialética" e o de "formação". Talvez seja grosseria de minha parte dizer isso. Mas um pouco de clareza, quem sabe, não cai mal ao avaliar um texto tão sutil.

Passo ao ponto, especialmente delicado, de uma possível ausência de dialética no livro. Penso, acima de tudo, no primeiro sentido de "dialética": aquele que se ocuparia em ver, na obra de determinado autor, as determinações do contexto social em que vive. De que maneira isto se aplicaria às obras do próprio Antonio Candido e de Roberto Schwarz?

É neste ponto, e com relação apenas a Antonio Candido, que o ensaio de Davi Arrigucci parece ter indicações preciosas, embora Paulo Arantes o critique. Na exposição feita por Arrigucci do pensamento de Antonio Candido, seria fácil identificar pólos de tensão, mais históricos e materiais do que poderíamos supor: 1) o jogo entre o rodapé jornalístico e as conquistas do "new criticism"; 2) a luta entre Mário e Oswald de Andrade; 3) o contraste entre a correção da escrita e a naturalidade da fala; 4) a personalidade de Candido, avessa a aproximações íntimas, e sua postura paternal de mestre; 5) a fusão entre ensaísmo livre e rigor universitário; 6) a ligação entre o gosto literário, atemporal, e o senso histórico; 7) o misto de liberdade e de prudência em seus juízos críticos; 8) a idéia de sistema literário e de liberdade crítica; 9) a atração pelos românticos em convívio com a disciplina clássica. Todos esses pontos, potencialmente contraditórios, Davi Arrigucci identifica em Antonio Candido.

São na verdade "resultado" — para usar um termo caro a Antonio Candido — da situação ambígua vivida por todo crítico literário no Brasil. Envolvem as tão denegridas condições materiais que infernizam a vida do brasileiro culto. Contradições que Arantes não quis explorar na sua análise do ensaio de Arrigucci — e que este tampouco explicitou.

Que importa? A esperança de uma Versöhnung, rancorosa que seja, mobiliza, num misto de reverência e de perfídia, o autor de Sentimento da Dialética. Dialética conciliatória e negativa ao mesmo tempo, dialética em estado de sítio, arrogância de entrelinhas que parecem escrever em francês, tom admirativo das linhas que se escrevem em português, e vice-versa; jogo cifrado de alusões e superioridades savantes no estilo; sutilezas de uma introversão aufgeklärte, entusiasmo contido e triunfalismo auto-irônico, rodeios de uma razão crítica modesta e ambiciosamente "à brasileira", o livro de Paulo Arantes é fonte de reconforto para os intelectuais, explicitação de raiva para ele mesmo, e — grande mérito — motivo de inquietação para quem o lê.

  • 1 Arantes, Paulo Eduardo. Sentimento da DialĂŠtica na ExperiĂŞncia Intelectual Brasileira DialĂŠtica e Dualidade Segundo Antonio Candido e Roberto Schwarz. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1992.
  • 2 Arrigucci Jr., Davi. "Movimentos de um leitor". Folha de S.Paulo, 23/11/1991;
  • republicado na coletânea comemorativa Dentro do Texto, Dentro da Vida. SĂŁo Paulo, Companhia das Letras, 1992.
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    Arantes, Paulo Eduardo.
    Sentimento da Dialética na Experiência Intelectual Brasileira —
    Dialética e Dualidade Segundo Antonio Candido e Roberto Schwarz. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1992.
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    Arrigucci Jr., Davi. "Movimentos de um leitor".
    Folha de S.Paulo, 23/11/1991; republicado na coletânea comemorativa
    Dentro do Texto, Dentro da Vida. São Paulo, Companhia das Letras, 1992.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Jan 2011
    • Data do Fascículo
      Ago 1993
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