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Falsa Acusação de Abuso Sexual na Alienação Parental: Luto ou Melancolia?

False Accusation of Sexual Abuse in Parental Alienation: Mourning or Melancholia?

Falsa Acusación de Abuso Sexual en la Alienación Parental: ¿Luto o Melancolía?

Resumo

Este artigo apresenta como principal objeto de estudo a falsa acusação de abuso sexual no contexto da alienação parental para, diante dela, estabelecer a seguinte problemática: será possível propor uma eventual correlação entre si e os processos psíquicos do luto e da melancolia? Neste sentido, a partir do recurso teórico ao referencial psicanalítico de Freud e de Laplanche, debate as circunstâncias que norteiam o discurso levado ao Judiciário pelo genitor alienante valorizando em tal movimento não apenas a realidade material da prova, tão importante no campo jurídico, mas também a realidade psíquica ditada pelo inconsciente, a qual se pauta em uma noção de verdade que, na sua vinculação direta com a particularidade de cada sujeito e com o dinamismo das relações específicas que ele estabelece consigo mesmo e com os outros, coloca em xeque as certezas positivistas da norma. Em termos conclusivos, destaca o quanto, a despeito da atual literatura existente sobre alienação parental no Brasil a correlacionar, em regra, a um luto mal elaborado por parte do alienante, é possível e mesmo desejável cogitar também a presença da melancolia - ou, mais especificamente, de traços melancólicos intermediários - na formação e desenvolvimento desse fenômeno.

Palavras-chave:
Falsa Acusação de Abuso Sexual; Alienação Parental; Luto; Melancolia

Abstract

This article presents as the main object of study the false accusation of sexual abuse in the context of parental alienation, to establish the following problem: would it be possible to propose a probable correlation between parental alienation and the psychic processes of mourning and melancholia? In this sense, based on the psychoanalytic theoretical framework of Freud and Laplanche, the article discusses the circumstances that guide the discourse taken to the judiciary branch by the alienating parent, valuing in such action not only the material reality of the evidence, which is very important in the legal field, but also the psychic reality dictated by the unconscious, which is guided by a notion of truth that, in its direct connection with the particularity of each subject and with the dynamism of the specific relations that they establish with themselves and others, threatens the positivist certainties of the norm. In conclusive terms, it highlights how, despite the current existing literature on parental alienation in Brazil generally correlates it to a poorly elaborated mourning by the alienating person, it is possible and even desirable to also consider the presence of melancholia-or, more specifically, of intermediate melancholic traits-in the formation and development of this phenomenon.

Keywords:
False Accusation of Sexual Abuse; Parental Alienation; Mourning; Melancholia

Resumen

Este artículo presenta como principal objeto de estudio la falsa acusación de abuso sexual en el contexto de alienación parental, con el fin de responder al siguiente planteamiento: ¿Es posible proponer una posible correlación entre la alienación parental y los procesos psíquicos de duelo y melancolía? Para ello, desde el marco psicoanalítico de Freud y de Laplanche, se discuten las circunstancias del discurso llevado al Poder Judicial por el padre alienante, que valora en tal movimiento no solo la realidad material de la prueba, tan importante en el campo jurídico, sino también la realidad psíquica dictada por el inconsciente, el cual se guía por una noción de verdad que, en su conexión directa con la particularidad de cada sujeto y con el dinamismo de las relaciones específicas que establece consigo mismo y con otros, pone en jaque las certezas positivistas de la norma. En la conclusión, destaca cómo, a pesar de la literatura actual existente sobre la alienación parental en Brasil, en general, la correlaciona con un duelo mal diseñado por parte de la persona alienante, es posible e incluso deseable considerar la presencia de la melancolía -más específicamente, de rasgos melancólicos intermediarios- en la formación y desarrollo de este fenómeno.

Palabras clave:
Falsa Acusación de Abuso Sexual; Alienación Parental; Luto; Melancolía

O presente artigo é fruto de uma pesquisa cujo objeto foi a falsa acusação de abuso sexual no contexto da alienação parental (AP). Ela ocorre quando um dos genitores denuncia falsamente o(a) ex-companheiro(a) de haver cometido abuso sexual contra o(a) filho(a) de tenra idade, o que pode levar à redução ou à cessação do contato entre o(a) acusado(a) e o(a) filho(a) e, consequentemente, viola o direito constitucional da convivência familiar insculpido no art. 227 da Constituição FederalConstituição da República Federativa do Brasil de 1988. (1988). Presidência da República. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
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, bem como à Lei nº 12.318 (2010Lei nº 12.318 de 26 de agosto de 2010. (2010). Dispõe sobre a alienação parental e altera o art. 236 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Presidência da República. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12318.htm
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), conhecida como Lei da Alienação Parental, que visa garantir os direitos para crianças e adolescentes no conflito familiar. Acreditamos ser esse um fenômeno de suma importância para o entendimento da seguinte problemática, a qual orientará os nossos passos aqui: será possível propor uma eventual correlação entre os processos psíquicos do luto e da melancolia na falsa acusação de abuso sexual no contexto da alienação parental?

Primeiramente é importante registrar que a alienação parental não se confunde com a síndrome da alienação parental (SAP). Nas décadas de 1970 e 1980 nos Estados Unidos, muitos pais passaram a reivindicar a guarda de filhos ante a ruptura conjugal, questionando a guarda automática às mães (Calçada, 2019Calçada, A. (2019). A genealogia do conceito de alienação parental: Historicização do conceito de síndrome de alienação parental; pressupostos teóricos da alienação parental; aplicação da lei no exterior e revogação; contexto cultural de judicialização, patologização e medicalização. In I. R. Silva (Org.), Debatendo sobre alienação parental: Diferentes perspectivas (pp. 70-79). CFP.). Gardner (2002aGardner, R. (2002a). Parental alienation syndrome vs. parental alienation: Which diagnosis should evaluators use in childcustody disputes? The American Journal of Family Therapy, 30(2), 93-115. http://www.fact.on.ca/Info/pas/gard02b.htm
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) atendeu numerosos casos de conflitos envoltos pela ruptura conjugal e, a partir deles, defendeu não somente um aumento considerável de situações em que um dos genitores instigava o filho a se afastar do ex-parceiro, tentando obter vantagem no litígio judicial, mas também a busca de apoio da própria criança em relação à conduta do genitor alienante contra o genitor alienado. Foi nesse contexto que Gardner cunhou os termos alienação parental e síndrome da alienação parental. A primeira restou vinculada a todos os tipos de relações difíceis entre pais e filhos, como negligência, abandono, abusos físico, psicológico e sexual. Gardner (2002bGardner, R. (2002b). O DSM-IV tem equivalente para o diagnóstico de Síndrome de Alienação Parental (SAP)? https://pt.scribd.com/document/144674311/2011-03-72-O-DSM-IV-Tem-Equivalente-p-o-Diagnostico-de-SAP-20p
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) esclareceu que, quando o abuso e/ou a negligência parentais estão presentes, a animosidade da criança pode ser justificada, e assim a caracterização da síndrome de alienação parental para a hostilidade da criança não seria aplicável. Por outro lado, o mesmo Gardner (2002bGardner, R. (2002b). O DSM-IV tem equivalente para o diagnóstico de Síndrome de Alienação Parental (SAP)? https://pt.scribd.com/document/144674311/2011-03-72-O-DSM-IV-Tem-Equivalente-p-o-Diagnostico-de-SAP-20p
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) observou ainda um conjunto de sintomas que apareciam juntos e que, a seu ver, garantiriam a designação de síndrome, pelo que introduziu o termo síndrome de alienação parental (SAP).

As ideias de Gardner (1985Gardner, R. (1985). Recent Trends in Divorce and Custody Litigation Academy Forum, 29(2), 3-7 http://www.fact.on.ca/Info/pas/gardnr85.htm
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) foram bastante criticadas desde seu nascedouro. De qualquer forma, deram suporte teórico para o desenvolvimento e aprimoramento da teoria da alienação parental ao longo do tempo. Em termos da diferenciação entre AP e SAP, Silva (2011Silva, D. M. P. (2011). Mediação e guarda compartilhada: Conquistas para a família. Juruá.) se posiciona da seguinte maneira:

A Alienação Parental (AP) caracteriza o ato de induzir a criança a rejeitar o pai/mãe-alvo (com esquivas, mensagens difamatórias, até o ódio ou acusações de abuso sexual). A Síndrome de Alienação Parental (SAP) é o conjunto de sintomas que a criança pode vir ou não a apresentar, decorrente dos atos de Alienação Parental (p. 208).

No mesmo sentido, Fonseca (2007Fonseca, P. M. P. C. (2007). Síndrome de alienação parental. Revista Brasileira de Direito de Família, fe/mar. 2007(40), 5-16.) afirma que:

A síndrome da alienação parental não se confunde, portanto, com a mera alienação parental. Aquela geralmente é decorrente desta, ou seja, a alienação parental é o afastamento do filho de um dos genitores, provocado pelo outro, via de regra, o titular da custódia. A síndrome da alienação parental, por seu turno, diz respeito às sequelas emocionais e comportamentais de que vem a padecer a criança vítima daquele alijamento (p. 164).

Frisamos que a expressão síndrome da alienação parental não é reconhecida pelo DSM-V como classificação, pois para a comunidade médica a terminologia “síndrome” não corresponde às suas especificidades. Contudo, embora a legislação brasileira não tenha adotado aquela expressão, acabou utilizando o conceito de ato de alienação parental, vislumbrado no art. 2º da lei da alienação parental, que o conceitua como:

a interferência na formação psicológica da criança ou adolescente promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilância para que repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este (Lei nº 12.318, 2010Lei nº 12.318 de 26 de agosto de 2010. (2010). Dispõe sobre a alienação parental e altera o art. 236 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Presidência da República. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12318.htm
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).

O referido dispositivo evidencia que outras pessoas podem praticar a alienação parental para além do(a) genitor(a), promovendo assim interferência psicológica na formação psicológica da criança. A alienação parental implica suprimir a sua liberdade para perceber pessoas e contextos, julgando-os pela ótica do adulto-alienador. Por isso, o ato de alienação parental é considerado abuso moral contra a criança nos termos do art. 3º da Lei nº 12.318/2010 (Brazil, 2022Brazil, G. B. M. (2022). Psicologia jurídica: A criança, o adolescente e o caminho do cuidado na Justiça. Foco.).

Há muitas formas de a alienação parental se apresentar e o parágrafo único do 2º da lei n° 12.318, de 2010, elenca alguns exemplos. Dentre eles, a falsa denúncia:

Parágrafo único. São formas exemplificativas de alienação parental, além dos atos assim declarados pelo juiz ou constatados por perícia, praticados diretamente ou com auxílio de terceiros:

. . .

VI - apresentar falsa denúncia contra genitor, contra familiares deste ou contra avós, para obstar ou dificultar a convivência deles com a criança ou adolescente;

Quando ocorre uma falsa acusação de abuso sexual no contexto da alienação, levando o(a) genitor(a) alienado(a) a responder perante as autoridades competentes, para além de ser considerada uma das formas mais perniciosas de alienação parental, configura-se o crime de denunciação caluniosa, preceituado no art. 339 do Código Penal como:

Dar causa à instauração de inquérito policial, de procedimento investigatório criminal, de processo judicial, de processo administrativo disciplinar, de inquérito civil ou de ação de improbidade administrativa contra alguém, imputando-lhe crime, infração ético-disciplinar ou ato ímprobo de que o sabe inocente (Decreto-Lei nº 2.848, 1940Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. (1940). Código Penal. Presidência da República. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm
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).

Ressaltamos que na alienação parental aquele que acusa o outro genitor de haver cometido abuso sexual contra o(a) filho(a) o faz sendo sabedor de que não ocorrera crime. Contudo, no contexto do referido conflito, sem dúvida a maior prejudicada é a criança, que pode ser induzida a romper os vínculos afetivos com o genitor acusado, passando a narrar mecanicamente o que lhe fora repassado pelo(a) genitor(a) que acusa, ou até mesmo passando a acreditar que de fato sofrera abuso sexual, o que caracteriza as falsas memórias de abuso sexual no contexto da alienação parental. Nessa direção, falsas memórias aparecem pautadas em fatos que jamais existiram ou que existiram e foram distorcidos, podendo envolver outras situações graves que não as falsas memórias de abuso sexual.

Uma vez levada a questão ao Judiciário, um longo e moroso processo se estabelecerá e, ao final da instrução processual, ainda que a sentença reconheça a falsa acusação de abuso sexual e seja favorável à retomada do convívio entre genitor(a) e filho(a), a depender da gravidade da alienação parental e das suas consequências é possível que o convívio não seja efetivamente retomado. Pois, como bem destaca Brazil (2022Brazil, G. B. M. (2022). Psicologia jurídica: A criança, o adolescente e o caminho do cuidado na Justiça. Foco.), a criança - que provavelmente ficou muito tempo afastada do(a) genitor(a) durante a tramitação do processo - pode recusar qualquer proximidade por apresentar “recordações” negativas do(a) genitor(a).

Nesta direção, a partir do recurso à psicanálise e da aposta no caráter profícuo dos diálogos entre si e o direito, nossa proposta neste trabalho é a de debater as circunstâncias que norteiam o discurso levado ao Judiciário pelo genitor alienante, valorizando em tal movimento não apenas a realidade material da prova, tão importante no campo jurídico, mas também a realidade psíquica ditada pelo inconsciente1 1 A literatura pertinente ao direito usualmente denomina alienante ou alienador aquele ou aquela que pratica a alienação parental. Isto não nos parece de todo adequado por acreditarmos que o estudo desse fenômeno deva rejeitar o simplismo de dualismos binários do tipo “alienante” e “alienado”, “algoz” e “vítima”, compreendendo a alienação parental como um processo que envolve não apenas o ex-casal e seus filhos, mas também a dinâmica familiar mais ampla, bem como as relações interpessoais entre os seus diferentes membros. Assim, utilizaremos tais expressões aqui bem mais por uma questão de convenção, o que não significa em absoluto a ausência de um posicionamento crítico em relação a elas. . No que tange a esta última, vale acrescentar, ela adquire destaque aqui na medida em que se pauta por uma noção de “verdade” que, na sua vinculação direta com a particularidade de cada sujeito e com o dinamismo das relações específicas que ele estabelece consigo mesmo e com os outros, coloca em xeque as certezas positivistas da norma.

Em tal cenário, a literatura existente sobre alienação parental (Araújo, 2013Araújo, S. M. B. (2013). O genitor alienador e as falsas acusações de abuso sexual. In M. B. Dias (Coord.), Incesto e alienação parental: Realidades que a Justiça insiste em não ver (3a ed., pp. 207-218). Revista dos Tribunais.; Dias, 2013Dias, M. B. (2013). Alienação parental: um crime sem punição. In M. B. Dias (Coord.), Incesto e alienação parental: Realidades que a Justiça insiste em não ver (3a ed., pp. 15-19). Revista dos Tribunais.; Engelmann, 2015Engelmann, F. (2015). SAP: Síndrome da alienação parental. 3 de maio.; Gomes, 2011Gomes, J. L. P. (2011). Síndrome da alienação parenta: O bullying familiar. Imperium.; Leite, 2014Leite, R. M. (2014). Alienação Parental no Caso de Sequestro Internacional de Crianças e Adolescentes: o caso Sean Goldman. In S. Baccara & C. Fetter (Orgs.), Alienação parental: Interlocuções entre o direito e a psicologia (pp.123-178). Maresfield Gardens.; Madaleno & Madaleno, 2015Madaleno, A. C. C., & Madaleno, R. (2015). Síndrome da alienação parental: A importância de sua detecção com seus aspectos legais e processuais (3a ed.). Forense.; Magalhães, 2009Magalhães, M. V. O. C. (2009). Alienação parental e sua síndrome: Aspectos psicológicos no exercício da guarda após a separação judicial. Bagaço.; Montano, 2016Montano, C. (2016). Alienação parental e guarda compartilhada: Um desafio ao serviço social na proteção dos mais indefesos: a criança alienada. Lumen Juris.; Palermo, 2012Palermo, R. (2012). Ex-marido, pai presente: Dicas para não cair na armadilha da alienação parental. Mescla.; Souza, 2014) a correlaciona, em regra, a um luto mal elaborado por parte do alienante. Nós, por outro lado, defendemos aqui a hipótese de que seria possível e mesmo desejável cogitar a presença também da melancolia ou de traços melancólicos intermediários (os quais não corresponderiam nem ao luto e nem tampouco à melancolia propriamente dita) na formação e desenvolvimento de uma conduta parental alienante.

De maneira a sustentar esta ideia, nos guiamos por um oportuno retorno aos referenciais de Freud e de Laplanche. No caso do discurso freudiano, tal retorno se justifica pelo seu caráter fundador, apontando e analisando em maiores detalhes as peculiaridades, semelhanças e dessemelhanças entre os quadros psíquicos do luto e da melancolia a partir de um olhar inquiridor sobre a psiquiatria de sua época. Já a referência a Laplanche adquire renovada importância, por exemplo, pela relevância conferida pelo autor à questão da ambivalência no luto e na melancolia, acrescida da noção de “luto patológico” por ele defendida. Em ambos os casos, porém, temos perspectivas marcadas por uma impressionante atualidade, a qual nos faculta tecer hoje algumas correlações entre si e o hodierno fenômeno da falsa acusação de abuso sexual na alienação parental.

Em termos metodológicos, trata-se aqui, portanto, de uma pesquisa de cunho eminentemente teórico que, seguindo a perspectiva outrora defendida por Mezan (1995Mezan, R. (1995). A vingança da esfinge: Ensaios de psicanálise (V. Ribeiro, Trad.). Brasiliense.), parte do pressuposto de que a interpretação é fruto de um trabalho de leitura que nega os dados imediatos por meio das associações despertadas pelo texto no inconsciente do próprio intérprete, modus operandi similar ao que orienta a fala e a escuta na situação analítica. Mediante tal movimento, entendemos que o texto pode então adquirir variadas e instigantes significações simultaneamente resultantes das associações presentes e das experiências passadas daquele que o interpreta, despertando ou alcançando assim o interesse de renovados leitores. No caso, dedicados à necessária e promissora interlocução entre psicanálise e direito à qual também nós nos empenhamos ao longo destas linhas.

Luto e melancolia segundo freud: entre o trabalho elaborativo e o sofrimento por uma via identificatória

“Luto e melancolia” é, sem dúvida alguma, um dos textos freudianos mais conhecidos e comentados tanto no meio psicanalítico quanto fora dele. Neste trabalho, embora entendesse que ambos os quadros possuíam como causa a perda do objeto, o que realmente instigou Freud (1917/2010Freud, S. (2010). Luto e melancolia (P. C. Souza, Trad.). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1917)) foi o fato de que em alguns sujeitos tal perda produzia o luto e, em outros, a melancolia, sendo esta última considerada patológica. Foi, portanto, a partir de tal variação que Freud (1917/2010Freud, S. (2010). Luto e melancolia (P. C. Souza, Trad.). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1917)) se propôs a elucidar a natureza da melancolia, comparando-a ao afeto normal do luto, o qual aparece definido como “a reação à perda de uma pessoa amada ou de uma abstração que ocupa seu lugar, como pátria, liberdade, um ideal, etc.” (pp. 171-172).

Conforme apontamos, na hipótese freudiana tanto a melancolia quanto o luto podem ser vistos como reações à perda de um objeto amado. Contudo, aquela (a melancolia) se revela como reação inconsciente a uma perda de natureza mais idealizada - isto é, quando o doente sabe quem perdeu, mas desconhece o que perdeu nesse alguém -, algo que não ocorre no luto.

Na sua qualidade de fenômeno natural, aponta Freud (1917/2010Freud, S. (2010). Luto e melancolia (P. C. Souza, Trad.). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1917)), é esperado que o luto seja superado ao longo do tempo e impedi-lo, para além de inapropriado, seria prejudicial. Durante o trabalho do luto, o enlutado se dedica a buscar uma conexão com o objeto perdido nas suas várias representações, de tal forma que não lhe restam outros interesses. O sujeito vive um processo que poderia mesmo ser considerado um adoecimento, caso não fosse um estado bastante compreensível diante da perda sofrida.

Tais características também aparecem na melancolia. Entretanto, embora o luto provoque um afastamento da conduta corriqueira da vida, ele não é encarado por Freud (1917/2010Freud, S. (2010). Luto e melancolia (P. C. Souza, Trad.). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1917)) como patológico, dispensando assim o tratamento médico pela expectativa de que seja superado após o trabalho de elaboração. De todo modo, a inibição comportamental e a ausência de interesse pelas coisas, mesmo que circunstanciais, são compreendidas pelo mesmo Freud (1917/2010Freud, S. (2010). Luto e melancolia (P. C. Souza, Trad.). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1917)) a partir do trabalho de luto que absorve o Eu, trabalho esse que tende a ser mais passageiro, ao passo que a melancolia é pensada como duradoura e, também por isso, como patológica.

Freud (1917/2010Freud, S. (2010). Luto e melancolia (P. C. Souza, Trad.). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1917)) defende que, durante o trabalho de luto, é comum surgir um antagonismo à ideia de abandono do objeto amado, ainda que um substituto já se anuncie. Por isso, tal trabalho tende a ser lento e doloroso, ocorrendo a evocação, o superinvestimento e, por fim, o desligamento de cada lembrança até a constatação da realidade da perda, mesmo que de forma penosa. Na perspectiva freudiana, embora o desinvestimento sobre o objeto perdido não seja fácil, uma vez consumado o trabalho do luto o Eu fica novamente livre para investir sua energia em outro objeto. Isso não significa que a lembrança do objeto perdido tenha deixado de existir, mas sim que ela deixará de ocupar o volumoso lugar de outrora.

Ao realizar a referida comparação, Freud (1917/2010Freud, S. (2010). Luto e melancolia (P. C. Souza, Trad.). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1917)) conclui que o luto apresenta traços semelhantes aos da melancolia. Entretanto, embora sejam próximos, a melancolia apresenta uma característica exclusiva: qual seja, a diminuição da autoestima, externada por meio de recriminações e ofensas dirigidas a si, podendo chegar a uma delirante expectativa de punição. Novamente para Freud (1917/2010Freud, S. (2010). Luto e melancolia (P. C. Souza, Trad.). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1917)), esta agressão ao Eu se direciona, na verdade, ao objeto que foi internalizado de forma ambivalente após a perda, objeto esse com o qual o Eu insiste em se identificar.

Ainda em relação à melancolia, Freud (1917/2010Freud, S. (2010). Luto e melancolia (P. C. Souza, Trad.). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1917)) aponta que falta ao melancólico vergonha diante dos outros. Ele se comporta como alguém que encontra satisfação em se desmoralizar, externando suas fraquezas. Entretanto, apesar das autoacusações e da desvalorização de si, este sujeito estaria longe de apresentar a humildade que conviria a pessoas tão indignas. Ao contrário, tenderia a aparecer bem mais na condição de ofendido, como se uma grande injustiça houvesse sido cometida contra ele.

Luto e melancolia segundo Laplanche: ambivalência no luto e luto patológico

O pensamento de Laplanche (1987Laplanche, J. (1987). Problemáticas I: A angustia (A. Cabral, Trad.). Martins Fontes.), muito embora tenha concentrado seu interesse na melancolia a partir da obra freudiana, descreve-a como uma psicose - ao contrário, portanto, de Freud (1917/2010Freud, S. (2010). Luto e melancolia (P. C. Souza, Trad.). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1917)), que a relaciona a uma neurose narcísica. Já em relação ao luto, o autor entende que é possível estar de luto não somente por uma pessoa, mas também por uma coisa ou por um ideal, estando em causa aí a solidez do vínculo com o objeto e o que acontece quando esse vínculo é posto à prova. O luto é suscetível de descrição por meio de sintomas - dentre eles, a inibição, a qual não se mostraria como um fenômeno necessariamente negativo, implicando no fato de o sujeito estar ocupado com o seu trabalho do luto.

Laplanche (1987Laplanche, J. (1987). Problemáticas I: A angustia (A. Cabral, Trad.). Martins Fontes.) aposta que o trabalho do luto reside no fato de que, se é que o objeto desapareceu, o vínculo do enlutado com ele subsiste, de modo que o sujeito se encontra diante de uma tripla possibilidade. A primeira, mais radical, seria perecer com o objeto; a segunda, também ela pautada pela subsistência do vínculo e por eventuais prejuízos ao Eu, envolveria mantê-lo; finalmente, a terceira possibilidade diz respeito ao luto propriamente dito, onde o respeito à realidade prevalece sobre o laço afetivo. Nesse sentido, a submissão ao princípio de realidade exige que o sujeito transmute ou até aniquile o seu vínculo com uma pessoa que já não está presente. Mas tal respeito pela realidade, pontua Laplanche (1987Laplanche, J. (1987). Problemáticas I: A angustia (A. Cabral, Trad.). Martins Fontes.) “não prevalece num abrir e fechar de olhos (e pode-se até dizer que, se isso acontecesse, seria patológico)” (p. 296).

Na perspectiva de Laplanche (1987Laplanche, J. (1987). Problemáticas I: A angustia (A. Cabral, Trad.). Martins Fontes.), o quadro da melancolia é, em grande parte, idêntico ao do luto, porém mais acentuado e com algumas peculiaridades. Com efeito, o mesmo Laplanche (1987Laplanche, J. (1987). Problemáticas I: A angustia (A. Cabral, Trad.). Martins Fontes.) afirma que na melancolia a inibição se apresenta com maior intensidade, destacando ainda outros elementos pertinentes ao processo, como a perda de interesse pelo mundo exterior - a qual se aproximaria de um egocentrismo absoluto -, a perda da capacidade de amar e a autoacusação, conceituada pelo autor como um “delírio moral” centrado na questão da culpabilidade.

Laplanche (1987Laplanche, J. (1987). Problemáticas I: A angustia (A. Cabral, Trad.). Martins Fontes.) inevitavelmente nos remete a Freud (1917/2011) em sua discussão sobre a melancolia ao evidenciar como característica de tal quadro um vínculo ambivalente e narcísico do sujeito com o objeto. Ele observa que é no aspecto narcísico que Freud insistirá, dada a existência do vínculo entre o melancólico e o objeto, desvelada pela autoacusação e pela culpabilidade. Aqui, a culpabilidade se alimenta não da falta, mas, ao contrário, da energia pulsional reprimida. Ainda segundo Laplanche (1987Laplanche, J. (1987). Problemáticas I: A angustia (A. Cabral, Trad.). Martins Fontes.), outro aspecto especial em relação a uma culpabilidade materialmente justificada é que ela aparece sem-vergonha, descarada, impudica, exibicionista. Tais acusações escondem uma verdade inconsciente que constitui o segundo ponto da dinâmica da melancolia: qual seja, a identificação com o objeto perdido.

Laplanche (1987Laplanche, J. (1987). Problemáticas I: A angustia (A. Cabral, Trad.). Martins Fontes.) prossegue em sua argumentação enaltecendo o quanto, ao se debater a melancolia, outra noção vem se intrincar: a de identificação: trata-se daquela de narcisismo - e, com ela, a de escolha narcísica de objeto. A escolha do objeto é o modo como o sujeito define o seu parceiro. Isto é, a partir de quais características ele se dirige ao outro. Conforme Laplanche (1987Laplanche, J. (1987). Problemáticas I: A angustia (A. Cabral, Trad.). Martins Fontes.), as características dinâmicas da escolha narcísica que permitem compreender melhor o que se passa na melancolia estão na contradição entre a sua grande rigidez e, por outro lado, a sua grande fragilidade. Explicamos: rigidez porque deve existir uma forte fixação no objeto de amor, fragilidade no sentido de que qualquer sinal em termos de falta afeta precisamente este ponto identificatório, o que pode provocar um recuo ou um abandono daquele mesmo objeto.

Ainda nos termos de Laplanche (1987Laplanche, J. (1987). Problemáticas I: A angustia (A. Cabral, Trad.). Martins Fontes.), tal contradição sugere que a escolha objetal tenha ocorrido em uma base narcísica, de modo que, caso ocorram dificuldades na relação, o sujeito possa então recorrer a uma retirada em termos de catexia. Mas essa retirada não é o simples abandono, onde o sujeito sairia ileso da perda, alcançando uma brusca capacidade de se encontrar livre. A retirada carrega consigo o objeto (ou parte dele) para o interior. Trata-se, portanto, de uma nova identificação: a identificação secundária, a qual se cria no processo melancólico. Assim, sugere Laplanche (1987Laplanche, J. (1987). Problemáticas I: A angustia (A. Cabral, Trad.). Martins Fontes., p. 181), quando Freud (1917/2011) afirma que “a sombra do objeto caiu sobre o Eu”, é justamente porque o objeto já estava escolhido de acordo com o modelo do Eu.

Pelo fato de este debate do melancólico consigo mesmo assumir uma forma agressiva, acusadora e destrutiva, Laplanche (1987Laplanche, J. (1987). Problemáticas I: A angustia (A. Cabral, Trad.). Martins Fontes.) entende que a noção de identificação por si só não basta para compreendê-lo. Ou seja, a identificação necessita de uma nova elaboração em função de outro fator. No caso, a ambivalência, aqui compreendida como a coexistência de amor e ódio em toda relação objetal. E essa união das pulsões na relação com o outro acaba por dificultar a desunião, a transformação do amor em ódio tão enaltecida pelos romancistas e que, tanto para Freud (1917/2011) quanto para Laplanche (1987Laplanche, J. (1987). Problemáticas I: A angustia (A. Cabral, Trad.). Martins Fontes.), nada mais é do que a desunião de uma liga ambivalente.

Laplanche (1987Laplanche, J. (1987). Problemáticas I: A angustia (A. Cabral, Trad.). Martins Fontes.) aponta que a ambivalência está presente nos três tipos de perda: no luto, no luto patológico e na melancolia. O autor enaltece, entretanto, a importância do trabalho do luto - ou o trabalho do desapego -, tomado por ele como parcialmente mortífero por transformar e liquidar o objeto de maneira mais “temperada”. Ainda para Laplanche (1987Laplanche, J. (1987). Problemáticas I: A angustia (A. Cabral, Trad.). Martins Fontes.), Freud (1917/2011) teria sugerido a existência de um movimento intermediário entre o luto e a melancolia nem sempre bem compreendido pelos pós-freudianos: trata-se do luto patológico. Laplanche (1987Laplanche, J. (1987). Problemáticas I: A angustia (A. Cabral, Trad.). Martins Fontes.) afirma então o quanto, no caso da incidência deste último, uma vez o sujeito tendo realmente perdido o objeto, ele se sentiria demasiadamente responsável por tal perda, o que o tornaria inconsolável.

Todavia, ao defender a tese do luto patológico como uma terceira via que se apresentaria de maneira intermediária entre o luto e a melancolia, Laplanche (1987Laplanche, J. (1987). Problemáticas I: A angustia (A. Cabral, Trad.). Martins Fontes.) não o define como uma forma mista ou como uma escala com gradação, mas a partir de uma ideia de suplementaridade entre diferentes elementos. Com efeito: “Esquematicamente, tem-se no luto: perda do objeto; no luto patológico: perda do objeto mais ambivalência, mas sem identificação com o objeto perdido; na melancolia, os três elementos: perda do objeto, identificação e ambivalência” (p. 308). Na melancolia, o objeto perdido é introjetado como um objeto mau. O objeto perdido é, como todo objeto de amor, ao mesmo tempo bom e mau. Ocorre que, no que tange ao melancólico, mesmo que o seu aspecto bom domine na relação amorosa ambivalente, no momento da sua perda ele é clivado e então introjetado sob uma única forma má. Com isso, no fim das contas, todo objeto perdido é (tornado) mau.

Pois bem, após abordarmos - mesmo que de maneira forçosamente breve, dado o reduzido espaço do qual dispomos aqui -, o luto e a melancolia a partir dos referenciais teóricos e clínicos de Freud e de Laplanche, cabe agora perguntar: mas o que exatamente isso nos diz sobre o nosso principal objeto de estudo do presente artigo - no caso, a falsa acusação de abuso sexual na alienação parental? É o que veremos a seguir.

Falsa acusação de abuso sexual na alienação parental: luto, melancolia ou traços melancólicos?

No contexto de uma dissolução conjugal, uma das formas mais graves e eficazes de afastar um filho do genitor advém da falsa acusação de abuso sexual. A questão é polêmica, pois, caso a acusação seja verdadeira e o(a) juiz(a), por falta de materialidade, mantenha o contato entre o(a) acusado(a) e a criança, poderá contribuir para a perpetuação da violência. Por outro lado, caso a acusação seja realmente falsa e o(a) juiz(a) determine a suspensão da convivência familiar, estará prejudicando a relação paterno-filial. Além do que, o Judiciário é moroso e processos dessa natureza tendem a levar anos até o seu desfecho, intensificando os efeitos prejudiciais da alienação parental.

Amendola (2009Amendola, M. F. (2009). Crianças no labirinto das acusações: Falsas alegações de abuso sexual. Juruá.) e Guazelli (2013Guazelli, M. (2013) A falsa denúncia de abuso sexual. In M. B. Dias (Coord.), Incesto e alienação parental: Realidades que a Justiça insiste em não ver (3a ed., pp. 183-205). Revista dos Tribunais.) descrevem que a falsa acusação de abuso sexual parental contra filhos costuma surgir no contexto de uma dissolução conjugal, enfatizando que é comum que a criança envolvida seja de tenra idade. Outro ponto importante aqui diz respeito à forma como comumente a falsa narrativa ocorre: em regra, advinda de algum fato ocorrido durante uma visita, um passeio, um banho etc., ainda que deturpado pela versão do(a) genitor(a) alienante. Segundo Pötter (2016Pötter, L. (2016). Vitimização secundária infanto-juvenil e violência sexual intrafamiliar: Por uma política pública de redução de danos (2a ed.). JusPodivm.), porém, infelizmente “a narrativa de um episódio durante um período de visitas que possa configurar indícios de tentativa de aproximação incestuosa é o que basta” (p. 109).

A compreensão da dinâmica conjugal e dos seus desdobramentos até a ruptura do par não é tarefa fácil. Nessa direção, Antunes, Magalhães e Féres-Carneiro (2010Antunes, A. L. M. P., Magalhães, A. S., & Féres-Carneiro, T. (2010). Litígios intermináveis: uma perpetuação do vínculo conjugal? Aletheia, (31), 199-211. http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-03942010000100016
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, p. 203) destacam o quanto a convivência pode promover um abalo na ilusão de completude, já que “as diversas solicitações proporcionadas pelo cotidiano desencadeiam defasagens entre expectativa e realidade, entre o que é desejado e o que o outro pode atender”. A frustração daí decorrente pode desencadear muitas reações que dependerão da estrutura psíquica de cada casal e da qualidade do vínculo formado na conjugalidade. A questão é que nem sempre as divergências são superadas e muitas acabam levando a um rompimento a ser discutido judicialmente. Inclusive, o desencontro do ex-casal envolvido em um litígio judicial pode ser encarado como uma forma de o enlutado atribuir ao ex-parceiro a responsabilidade ou a “culpa” pelo engano ante o ideal de completude agora perdido.

Neste sentido, Ferreira (2010Ferreira, E. P. (2010). A separação amorosa: Uma abordagem psicanalítica. Psicanálise & Barroco em Revista, 8(1), 56-97. https://www.academia.edu/14417985/A_SEPARA%C3%87%C3%83O_AMOROSA_UMA_ABORDAGEM_PSICANAL%C3%8DTICA
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) sustenta que a separação conjugal provoca um desequilíbrio de energia psíquica onde toda a libido que era direcionada ao objeto amoroso deverá ser redirecionada a um novo destino. Sem dúvida, o rompimento reverbera em cada ex-par de forma distinta. Ou seja, cada um pode vivenciar o momento com menor ou maior grau de intensidade, com um deles (ou ambos) apresentando variadas dificuldades durante o processo de elaboração do luto. De maneira complementar, é Matioli (2011Matioli, A. S. (2011). Um estudo psicanalítico da separação conjugal: as mensagens enigmáticas de pais separados dirigidas aos seus filhos [Dissertação de mestrado, Universidade Estadual de Maringá]. Repositório UEM. http://www.ppi.uem.br/arquivos-para-links/teses-e-dissertacoes/2011/aline-s
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) quem frisa o quanto neste mesmo processo os ex-pares se deparam com as mais variadas perdas, desde as emocionais até aquelas de cunho econômico, podendo ou não ser acompanhadas de sentimentos de abandono, culpa, desamparo, falha, fracasso, frustração, impotência, remorso, solidão, dentre outros. A dor provocada pela perda é tão violenta que costuma ser necessário delinear sobrevivências e reminiscências do objeto perdido, de forma que seja possível suportar o desamparo ante a perda.

Se retornarmos aos nossos tópicos anteriores, veremos que, ao se indagar acerca do que consiste o trabalho realizado pelo luto, Freud (1917/2010Freud, S. (2010). Luto e melancolia (P. C. Souza, Trad.). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1917)) frisa a dificuldade de o sujeito desinvestir sobre o objeto amado, mesmo visualizando que ele não mais existe e ainda que um substituto já se faça presente. Com isso, mediante um paralelo mais ou menos direto entre a teoria freudiana e a realidade dos divórcios no Brasil, torna-se compreensível a defesa da hipótese de que o(a) ex-companheiro(a) que sustenta por anos sucessivas lides junto ao Judiciário simplesmente não consiga elaborar o luto. E mais: que, dada a impossibilidade de perpetuar o vínculo de forma saudável, ele ou ela opte por mantê-lo por meio de litígios criados a partir do estabelecimento de sempre renovadas queixas ou demandas - por exemplo, em termos de visitações ou do valor ou forma do pagamento de pensão alimentícia.

Ainda no que remete ao binômio investimento/desinvestimento, durante o processo de um divórcio a elaboração do luto costuma demandar certa dose considerável de tempo até que cada ex-par se esforce por realizá-la, abrindo caminho então para que a energia libidinal possa eventualmente ser reinvestida em um novo objeto. E, ao longo de tal período de desinvestimento, torna-se bastante comum, dentre os muitos mecanismos de defesa inconscientes utilizados pelo Eu para elaborar o luto, que se recorra a uma depreciação do objeto perdido, com ou sem a autodepreciação como característica marcante. Afinal, perder um objeto desvalorizado parece menos pesaroso que a perda de um objeto precioso.

Outra questão importante no processo de elaboração do luto nos casos de rompimento conjugal diz respeito ao fato de que a presença do ex-cônjuge pode alimentar fantasias de retorno ao status quo ante (situação vigente anterior), fantasias essas possivelmente relacionadas a sentimentos possessivos. É comum, inclusive, que o enlutado não aceite um novo relacionamento do ex-companheiro e, diante disso, envolva os filhos em um movimento de agressão, eclodindo na alienação parental. Nesse contexto, conforme já mencionamos, grande parte da literatura pátria existente sobre alienação parental entende que a mesma decorre do luto mal elaborado pela separação conjugal (Araújo, 2013Araújo, S. M. B. (2013). O genitor alienador e as falsas acusações de abuso sexual. In M. B. Dias (Coord.), Incesto e alienação parental: Realidades que a Justiça insiste em não ver (3a ed., pp. 207-218). Revista dos Tribunais.; Dias, 2013Dias, M. B. (2013). Alienação parental: um crime sem punição. In M. B. Dias (Coord.), Incesto e alienação parental: Realidades que a Justiça insiste em não ver (3a ed., pp. 15-19). Revista dos Tribunais.; Engelmann, 2015Engelmann, F. (2015). SAP: Síndrome da alienação parental. 3 de maio.; Gomes, 2011Gomes, J. L. P. (2011). Síndrome da alienação parenta: O bullying familiar. Imperium.; Leite, 2014Leite, R. M. (2014). Alienação Parental no Caso de Sequestro Internacional de Crianças e Adolescentes: o caso Sean Goldman. In S. Baccara & C. Fetter (Orgs.), Alienação parental: Interlocuções entre o direito e a psicologia (pp.123-178). Maresfield Gardens.; Madaleno & Madaleno, 2015Madaleno, A. C. C., & Madaleno, R. (2015). Síndrome da alienação parental: A importância de sua detecção com seus aspectos legais e processuais (3a ed.). Forense.; Magalhães, 2009Magalhães, M. V. O. C. (2009). Alienação parental e sua síndrome: Aspectos psicológicos no exercício da guarda após a separação judicial. Bagaço.; Montano, 2016Montano, C. (2016). Alienação parental e guarda compartilhada: Um desafio ao serviço social na proteção dos mais indefesos: a criança alienada. Lumen Juris.; Palermo, 2012Palermo, R. (2012). Ex-marido, pai presente: Dicas para não cair na armadilha da alienação parental. Mescla.; Souza, 2014).

Pois bem, é exatamente em face desta aproximação tão unívoca entre a alienação parental e um luto supostamente mal elaborado pela separação conjugal que defendemos aqui a validade de um retorno às ideias de Freud e de Laplanche acerca do luto e da melancolia para correlacioná-las à falsa acusação de abuso sexual na alienação parental, buscando discutir se, afora o luto, também a melancolia ou traços melancólicos se fariam presentes no momento de ruptura do casal. Nessa direção, destacamos anteriormente que tanto Freud (1917/2010Freud, S. (2010). Luto e melancolia (P. C. Souza, Trad.). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1917)) quanto Laplanche (1987Laplanche, J. (1987). Problemáticas I: A angustia (A. Cabral, Trad.). Martins Fontes.) realizaram uma analogia entre o luto e a melancolia complementada pela afirmação de que ambos possuem como causa a perda do objeto amado, ainda que, em regra, o luto seja desencadeado por uma perda real, ao passo que na melancolia a perda apresente uma natureza mais ideal.

Pensamos que, no caso da alienação parental, pode ocorrer tanto o luto como algo ligado à melancolia. Pode ocorrer o luto quando o(a) alienante consegue se desprender do objeto outrora amado, sendo um dos possíveis efeitos de tal movimento a cessação da alienação parental, caso ela tenha sido posta em curso. Por outro lado, é cediço que o luto pode se transformar em um quadro muito mais doloroso: a melancolia, sendo comum que, ao praticar a alienação parental, a figura alienante não se dê conta do seu sofrimento frente à perda do objeto amado - o qual não necessariamente morreu de fato, tendo sido perdido, porém, na sua qualidade de objeto amoroso.

Ao direcionar suas observações para tais casos, Leite (2015Leite, E. O. (2015). Alienação parental: Do mito à realidade. Revista dos Tribunais.) nos remete a uma situação onde o(a) alienante é capaz de tudo para destruir a relação do ex-cônjuge com o(a) filho(a) muitas vezes por não compreender ou expressar os seus próprios sentimentos acerca de quem (ou do que) foi perdido. Com efeito, passa a acreditar firmemente que o(a) ex-parceiro(a) o(a) vitimou e, ainda, que o que quer que faça para proteger sua prole se justificaria plenamente. Aqui os efeitos da alienação podem se perpetuar até que a criança atinja a vida adulta e talvez consiga, aos poucos, reconhecer que foi alienada.

Em um quadro como este, acreditamos então que a alienação parental possa sim assumir feições melancólicas, vez que, desde Freud (1917/2010Freud, S. (2010). Luto e melancolia (P. C. Souza, Trad.). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1917)), na melancolia a perda do objeto passa a ser considerada como algo da ordem do inconsciente. Ou seja, quando o sujeito, embora saiba conscientemente quem perdeu, desconhece o que perdeu nesse alguém, situação que não ocorre no luto, onde, de acordo com o mesmo Freud (1917/2010Freud, S. (2010). Luto e melancolia (P. C. Souza, Trad.). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1917)), nada seria inconsciente em termos de perda. A perda na melancolia, contudo - vale lembrar -, muito embora desconhecida, costuma culminar em um trabalho interno semelhante ao do luto, trabalho esse que ocupará o Eu de quem perde e o deixará indisponível para investimentos em outro objeto.

No contexto de uma falsa acusação de abuso sexual na alienação parental, a perda tende a se apresentar como algo mais complexo que um luto - e, não raro, como algo menos evidente, pois a perda é em geral mais moral do que física. Neste sentido, mais uma vez nos apoiando tanto em Freud (1917/2011Freud, S. (2010). Luto e melancolia (P. C. Souza, Trad.). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1917)) quanto em Laplanche (1987Laplanche, J. (1987). Problemáticas I: A angustia (A. Cabral, Trad.). Martins Fontes.), destacamos o quanto o(a) alienante ignora qual era o seu tipo de vínculo com o objeto perdido e, portanto, o que ele ou ela realmente lamenta na ruptura eventual desse vínculo, ignorando também se tratar de um vínculo frequentemente ambivalente e narcísico.

Muitas das vezes, o(a) alienante se vê incapaz de investir em outro objeto de amor por estar psiquicamente paralisado(a) ou indisponível a essa possibilidade. Entretanto, frisamos que o fato de o(a) alienante permanecer indisponível, por si só, não é suficiente para sustentar a afirmação de que se trate de um quadro melancólico. Isso porque o luto, assim como a melancolia, também é caracterizado não somente por um abatimento doloroso, pela perda de interesse pelo mundo externo e por toda atividade não voltada para o objeto de amor, mas também pela indisponibilidade de eleição de um novo objeto.

Há casos, inclusive, nos quais o(a) alienante até concretiza um investimento em outro objeto de amor, constituindo um núcleo familiar diferente ao lado do novo companheiro ou companheira. Porém, não abandona o objeto perdido, perpetuando o vínculo com o(a) ex-parceiro(a) por meio de intermináveis agressões. Tal quadro chama atenção quanto à principal dificuldade do trabalho de luto, dificuldade essa que, de acordo com Freud (1917/2010Freud, S. (2010). Luto e melancolia (P. C. Souza, Trad.). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1917)), reside em o enlutado, a partir do exame da realidade, reconhecer que o objeto do seu amor não mais existe para que, a partir daí, o quantum libidinal até então investido nele seja enfim retirado de si. Aliás, uma vez que, no caso retromencionado, isso evidentemente não ocorre, acreditamos mesmo válido questionar até onde o(a) alienante de fato investiu em outro objeto.

Há ainda outro importante elemento a ser ressaltado no que tange a esta problemática. Ele diz respeito à durabilidade do luto e da melancolia. Para Freud (1917/2010Freud, S. (2010). Luto e melancolia (P. C. Souza, Trad.). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1917)), mesmo que demande certo tempo, espera-se que o luto seja superado, tendendo ele a ser mais breve. No luto, embora o desinvestimento sobre o objeto perdido certamente não constitua tarefa fácil, após a consumação do trabalho psíquico o Eu ficaria novamente livre para investir sua energia em outro objeto. De volta ao nosso foco de estudos aqui, isto significa que, caso o(a) alienante refaça sua vida amorosa ao lado de outro companheiro ou companheira sem a necessidade de promover inúmeras lides contra o(a) ex-parceiro(a), é possível entender que este último já não ocupa o lugar de antes, o que diminui a probabilidade de se tratar de um quadro patológico. Já na melancolia, o Eu entende que a relação amorosa não precisa ser abandonada, ainda que exista um conflito com a pessoa amada. Tal dinâmica talvez nos auxilie a compreender o fato de o(a) alienante perpetuar um vínculo com o ex-par, valendo-se de um processo extremamente moroso (e doloroso) cujo objeto é uma acusação de abuso sexual.

Conforme sugerido anteriormente, afora a questão do investimento em um novo objeto de amor, da perpetuação e da solidez do vínculo, também outro ponto merece destaque em nossa discussão: a existência (ou não) do caráter patológico no luto e na melancolia. Para Freud (1917/2010Freud, S. (2010). Luto e melancolia (P. C. Souza, Trad.). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1917)), embora o luto provoque um afastamento da conduta normal da vida, ele não é considerado patológico - dispensando, inclusive, tratamento médico. Já a melancolia o é. Foi, portanto, também levando em conta tal caráter patológico da melancolia que levantamos a hipótese de uma associação entre si e a falsa acusação de abuso sexual na alienação parental. Nesse sentido, pensamos sim ser possível identificar um traço melancólico no alienante, o qual, em decorrência de seu estado, pode necessitar de ajuda profissional com o objetivo de ser reinserido no ambiente familiar de forma saudável, o que favoreceria não somente o seu restabelecimento enquanto sujeito, mas também a manutenção dos próprios vínculos parentais.

Aliás, uma vez identificada a alienação parental, é mesmo bastante comum o entendimento do sujeito alienante como alguém adoecido e em sofrimento que necessita de apoio a fim de restabelecer o vínculo parental saudável entre os genitores e o(a) filho(a). Daí frequentemente o Judiciário - de praxe, após sugestão da equipe multidisciplinar ligada ao Setor Técnico do Fórum -, determinar a realização de acompanhamento psicológico às partes, sobretudo ao alienante e à criança/adolescente. Em tais casos, vale acrescentar, dentre as medidas legais o acompanhamento psicológico nos parece a solução mais efetivamente voltada para uma possível transformação, pois atinge não somente os vínculos, mas também a subjetividade, afastando-se assim de um viés unicamente punitivo. A partir daí, o alienante talvez possa se sentir mais acolhido na sua dor, reconhecendo seus atos sob um novo prisma e se responsabilizando por eles de maneira mais equilibrada.

Ainda em termos da associação que propomos aqui entre a prática da alienação parental e a melancolia (ou traços melancólicos), destacamos o quanto, tanto em um caso quanto no outro, é comum o sujeito se colocar perante terceiros em condições penosas e depreciativas. Como aponta Araújo (2013Araújo, S. M. B. (2013). O genitor alienador e as falsas acusações de abuso sexual. In M. B. Dias (Coord.), Incesto e alienação parental: Realidades que a Justiça insiste em não ver (3a ed., pp. 207-218). Revista dos Tribunais.), o(a) alienante costuma se vitimizar para buscar alianças, para a formação de laços com quem entenda necessário: família, amigos, advogados, técnicos etc. Muitas vezes, conforme afirmamos alguns parágrafos atrás, ele sequer sabe expressar ou explicar seus sentimentos, acreditando que o(a) ex-parceiro(a) pura e simplesmente o(a) vitimou. Nos termos de Buosi (2012Buosi, C. F. (2012). Alienação parental: uma interface do direito e da psicologia. Juruá.), o(a) alienante: “Percebe-se num papel de vítima maltratado e desrespeitado pelo ex-companheiro, demonstrando aos filhos seus ressentimentos e levando-os a crer nos defeitos desse. Em muitos casos tem o apoio dos familiares nessa conduta” (p. 83).

Guardadas, é claro, as devidas diferenças - uma vez que não se trata aqui de, com pouca ou nenhuma mediação, simplesmente “acoplarmos” o fenômeno da alienação parental ao quadro nosográfico outrora descrito e analisado por Freud (1917/2010Freud, S. (2010). Luto e melancolia (P. C. Souza, Trad.). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1917)), mas de o utilizarmos como instrumento heurístico viabilizador de um campo aberto em termos de possibilidades interpretativas -, o comportamento depreciativo do sujeito alienante nos remete a outro ponto importante da perspectiva freudiana acerca da melancolia, em particular na sua associação com as noções de narcisismo e de identificação. Nesse sentido, Freud (1917/2010Freud, S. (2010). Luto e melancolia (P. C. Souza, Trad.). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1917)) ressalta que o melancólico apresenta algo que falta no luto, algo que qualifica como “um extraordinário rebaixamento da autoestima, um enorme empobrecimento do Eu. No luto, é o mundo que se torna pobre e vazio; na melancolia, é o próprio Eu” (p. 175). O melancólico dirige a si autocríticas e autopunições sem sentimento de vergonha, recrimina e insulta a si mesmo, degradando-se perante os outros. Há uma comunicabilidade que encontra satisfação no desnudamento de si próprio.

Entretanto, após esta descrição, Freud (1917/2010Freud, S. (2010). Luto e melancolia (P. C. Souza, Trad.). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1917)) sabiamente explicita o quanto as autorrecriminações do melancólico são direcionadas não exatamente a si mesmo, mas ao objeto amado, sendo isto feito por intermédio de uma via identificatória narcísica com este mesmo objeto sem que haja a consciência acerca de tal movimento. Por isso é possível afirmar que o melancólico ama a si mesmo no outro, culminando em uma forte dependência psíquica. Mais uma vez de volta ao nosso foco de estudos neste artigo, torna-se possível então conjecturar que, quando o(a) alienante se autodeprecia como vítima injustiçada, ele ou ela esteja, na verdade, direcionando tais adjetivos ao ex-parceiro ou parceira, a quem permanece identificado(a) em sua qualidade de objeto amoroso.

De posse dessas ideias, sigamos então com Freud (1917/2010Freud, S. (2010). Luto e melancolia (P. C. Souza, Trad.). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1917)), que, um pouco mais adiante em seu texto, enfatiza o seguinte paradoxo acerca dos melancólicos:

E estão longe de mostrar, para com aqueles a seu redor, a humildade e a sujeição que convêm a pessoas tão indignas; pelo contrário, são extremamente importunos, agindo sempre como ofendidos, como se lhes tivesse sido feita uma grande injustiça (p. 180).

Ora, de praxe também a figura alienante costuma se mostrar não apenas como vítima ou como diminuída, mas também como arrogante e inoportuna. É o que aponta Motta (2007Motta, M. A. P. (2007). A síndrome da alienação parental. In Associação de Pais e Mães Separados (Org.), Síndrome da alienação parental e a tirania do guardião: Aspectos psicológicos, sociais e jurídicos (pp. 40-72). Equilíbrio.), para quem o alienante, em geral, ignora as determinações legais que não lhe sejam benéficas, agindo segundo suas convicções em relação às decisões sobre os filhos. Ele ou ela não respeita as leis e costuma não obedecer às sentenças judiciais, presumindo que as regras sejam somente para os outros. Revela-se costumeiramente incapaz, portanto, de ver a situação de outro ângulo que não o seu (inclusive, como se o seu ponto de vista fosse sempre ignorado). Também por isso, é possível vislumbrarmos na figura alienante marcantes traços melancólicos, mesmo que não seja possível ou mesmo desejável imputar-lhe um diagnóstico de melancolia propriamente dita.

Ainda em termos aproximativos, outro ponto que tanto Freud (1917/2010Freud, S. (2010). Luto e melancolia (P. C. Souza, Trad.). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1917)) quanto Laplanche (1987Laplanche, J. (1987). Problemáticas I: A angustia (A. Cabral, Trad.). Martins Fontes.) defendem diz respeito ao fato de a perda do objeto amado na melancolia ser um momento propício para a eclosão da ambivalência nas/das relações amorosas, vez que aquela (a perda) não se restringe à morte, podendo abranger também decepções ou frustrações suficientes para introduzir ou reforçar uma mútua imbricação entre amor e ódio na relação2 2 Neste ponto convém observarmos uma diferença do pensamento de Laplanche (1987) em relação ao de Freud (1917/2010) acerca do quadro geral da melancolia, pois, para o primeiro, o objeto outrora perdido e agora introjetado é um objeto mau, ainda que todo objeto de amor seja, ao mesmo tempo, bom e mau (pois o aspecto bom domina enquanto existe a relação amorosa ambivalente, mas, uma vez ocorrendo a sua perda, o objeto é clivado e introjetado apenas no aspecto mau). De todo modo, para Laplanche (1987) o objeto perdido é privado daquilo que o tornava bom, reduzindo-se então a um aspecto mau a ser introjetado. Já a perspectiva original de Freud (1917/2010) não recorre à noção de clivagem após a perda do objeto e também não defende que seria somente o aspecto mau do objeto a ser introjetado pelo melancólico. . Tais situações também ocorrem na alienação parental, particularmente em casos de falsa acusação de abuso permeados por ofensas, traições, desprezo etc.

Antes de passarmos às nossas considerações finais, uma última aproximação que entendemos como pertinente de ser feita entre o fenômeno da alienação parental e a melancolia diz respeito à possibilidade do suicídio - possibilidade essa, nunca é demais alertar, nada desprezível, em particular em quadros melancólicos agudos. No que tange a isto, lembramos com Freud (1917/2010Freud, S. (2010). Luto e melancolia (P. C. Souza, Trad.). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1917)), o quanto na melancolia, levando-se em conta a hipótese de uma dolorosa divisão ou clivagem do Eu, o mecanismo de identificação narcisista desencadeia um ódio sádico contra si mesmo e, concomitantemente, uma satisfação secundária com o próprio sofrimento como possível explicação para o suicídio. Em resumo, aqui o Eu se condena à morte na medida em que inconscientemente se identifica com o objeto ao mesmo tempo perdido e internalizado rumo a quem direciona intensas doses de ódio e hostilidade.

Pois bem, no caso da acusação de abuso sexual, quando ela é levada ao Judiciário e identificada como falsa, a figura alienante estará seriamente sujeita a sofrer a imposição de uma ou mais medidas do art. 6º da lei da alienação parental, além de outras medidas na esfera cível e criminal. Inclusive, dependendo das circunstâncias de cada caso, é possível a perda do poder familiar. Contudo, mesmo estando ciente das eventuais consequências, na grande maioria dos casos o(a) alienante costuma prosseguir com seu intento. A nosso ver, não parece um exagero a compreensão de tal movimento como espécie de suicídio, se não diretamente na qualidade de atentado à própria vida, como na melancolia, mas como um passo bastante deletério em termos da guarda do(s) filho(s), que, por si sós, não deixa(m) de ser uma extensão das vidas dos seus genitores.

Logo, em ambos os casos - ou seja, no suicídio melancólico e na falsa acusação de abuso sexual na alienação parental, considerando-se aí as penalizações dela decorrentes -, temos um sujeito que atua de maneira absolutamente prejudicial contra o que deveriam ser os seus principais interesses em termos de autopreservação e/ou de preservação daqueles que lhe deveriam ser bastante caros (até por se apresentarem como uma extensão de si). E mais: também em ambos os casos, trata-se de um sujeito que (a)colherá as consequências diretamente advindas do seu próprio ato. Isso posto, avancemos rumo aos nossos derradeiros parágrafos.

Considerações finais

A Lei nº 12.318, de 2010, é explícita ao dispor que a prática de ato de alienação parental fere direito fundamental da criança ou do adolescente de convivência familiar saudável, além de prejudicar o vínculo nas relações com o(a) genitor(a) e com o grupo familiar, constituindo, portanto, abuso moral contra a criança ou o adolescente. Diante dela, levando sempre em conta o fato de que os atos de alienação parental podem ser inúmeros, não se reduzindo, portanto, à falsa denúncia de abuso sexual, vale destacar que optamos por abordar aqui as especificidades desta última por sua gravidade no seio familiar, sobretudo em relação à criança. Vale destacar ainda que, embora cônscios de que seja ela (a criança) a maior prejudicada em um caso de falsa denúncia de abuso sexual, nosso foco nesta pesquisa foi outro, já que discutimos a prática do(a) genitor(a) alienante que acusa o(a) ex-parceiro(a) de haver cometido abuso sexual contra o(a) filho(a), ação que resulta em responder pelo crime de denunciação caluniosa.

Diante disto, em que pese a afirmação maciça de grande parte dos autores que escrevem sobre a falsa acusação de abuso sexual na alienação parental no sentido de que esta corresponderia a um luto mal elaborado, defendemos que tal afirmação deve ser relativizada ou tratada com cautela, já que a perpetuação do luto acima referida também pode ser pensada como a transmutação desse mesmo luto em algo mais. Nesse sentido, levando em conta os exemplos, evidências, argumentos e referências teóricas por nós utilizados nas páginas anteriores, propomos que na falsa acusação de abuso sexual na alienação parental o(a) alienante não seja tomado exata, exclusiva ou necessariamente como um enlutado, mas também como um sujeito que possivelmente padece tanto de um quadro mais amplo de melancolia quanto de traços melancólicos de natureza intermediária que, não menos deletérios, geram graves reflexos de ordem, ao mesmo tempo, psíquica, somática e no núcleo familiar mais restrito, principalmente nos filhos.

E assim, a despeito das inevitáveis incompletudes ditadas pelo limitado espaço de um artigo, esperamos que, ao longo da trilha argumentativa que construímos em prol da exposição e defesa da hipótese apresentada anteriormente, tenha efetivamente se cumprido o que compreendemos ser a função essencial da pesquisa acadêmica. Ela reside em debater e lançar novas luzes sobre os seus objetos de estudo, aprofundando as questões por si levantadas sem jamais alimentar a pretensão última de encerrá-las.

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  • 1
    A literatura pertinente ao direito usualmente denomina alienante ou alienador aquele ou aquela que pratica a alienação parental. Isto não nos parece de todo adequado por acreditarmos que o estudo desse fenômeno deva rejeitar o simplismo de dualismos binários do tipo “alienante” e “alienado”, “algoz” e “vítima”, compreendendo a alienação parental como um processo que envolve não apenas o ex-casal e seus filhos, mas também a dinâmica familiar mais ampla, bem como as relações interpessoais entre os seus diferentes membros. Assim, utilizaremos tais expressões aqui bem mais por uma questão de convenção, o que não significa em absoluto a ausência de um posicionamento crítico em relação a elas.
  • 2
    Neste ponto convém observarmos uma diferença do pensamento de Laplanche (1987Laplanche, J. (1987). Problemáticas I: A angustia (A. Cabral, Trad.). Martins Fontes.) em relação ao de Freud (1917/2010Freud, S. (2010). Luto e melancolia (P. C. Souza, Trad.). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1917)) acerca do quadro geral da melancolia, pois, para o primeiro, o objeto outrora perdido e agora introjetado é um objeto mau, ainda que todo objeto de amor seja, ao mesmo tempo, bom e mau (pois o aspecto bom domina enquanto existe a relação amorosa ambivalente, mas, uma vez ocorrendo a sua perda, o objeto é clivado e introjetado apenas no aspecto mau). De todo modo, para Laplanche (1987Laplanche, J. (1987). Problemáticas I: A angustia (A. Cabral, Trad.). Martins Fontes.) o objeto perdido é privado daquilo que o tornava bom, reduzindo-se então a um aspecto mau a ser introjetado. Já a perspectiva original de Freud (1917/2010Freud, S. (2010). Luto e melancolia (P. C. Souza, Trad.). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1917)) não recorre à noção de clivagem após a perda do objeto e também não defende que seria somente o aspecto mau do objeto a ser introjetado pelo melancólico.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    23 Mar 2022
  • Aceito
    10 Jan 2023
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