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Práticas Cotidianas de Judicialização da Vida na Assistência Social: Ensaio Teórico

Daily Practices of Judicialization of Life in Social Assistance: Theoretical Essay

Prácticas Cotidianas de la Judicialización de la Vida de la Asistencia Social: Ensayo Teórico

Resumo

Considerando que a judicialização é uma construção social recente, este ensaio teórico objetiva problematizar a noção de judicialização da vida nas políticas públicas de assistência social, a partir de fragmentos de obras da literatura brasileira (Vidas SecasRamos, G. (1973). Vidas secas (31 ed.). Martins., de Graciliano Ramos, e Conto de EscolaAssis, M. de. (2007). Conto de escola. In J. Gledson (Org.), 50 Contos de Machado de Assis (pp. 326-333). Companhia das Letras., de Machado de Assis). Para analisar o processo de desqualificação e criminalização de vidas, a discussão se ampara nos conceitos foucaultianos de governo e vontade de saber, assim como autoras/es brasileiras/os que trabalham com o tema. Por judicialização entende-se o processo de regulação do viver, a partir de estratégias e normativas legais, que produz a normalização de práticas cotidianas. Essa tecnologia está intrinsecamente articulada com o governo da vida do outro, principalmente no campo das políticas públicas. Constituem-se em modos de punição que extravasam o âmbito legal, produzindo relações de poder assimétricas, caracterizadas pelo processo de judicialização, medicalização e patologização da vida. Finaliza-se o texto com algumas pistas para resistir à judicialização no cotidiano da assistência social, como ações micropolíticas e constituição de coletivos entre trabalhadores e usuárias/os.

Palavras-chave:
Assistência Social; Judicialização; Pobreza; Políticas Públicas

Abstract

Considering that judicialization is a recent social construct, this article aims to problematize the notion of life judicialization in social welfare policies based on fragments of two works of the Brazilian literature: Vidas SecasRamos, G. (1973). Vidas secas (31 ed.). Martins., by Graciliano Ramos, and Conto de EscolaAssis, M. de. (2007). Conto de escola. In J. Gledson (Org.), 50 Contos de Machado de Assis (pp. 326-333). Companhia das Letras., by Machado de Assis. The process of life disqualification and criminalization is analyzed in the light of the Foucauldian concepts of government and the will to knowledge, as well as Brazilian authors addressing the theme. Judicialization is understood as the process of life regulation by legal strategies and provisions, normalizing daily practices. Such mechanism is intrinsically articulated with the government of others, especially in the field of Public Policy. Together, they constitute modes of punishment that go beyond the legal scope, producing asymmetrical power relations characterized by the process of life judicialization, medicalization, and pathologization. Finally, the discussion offers some propositions to resist life judicialization in social assistance, such as adopting micropolitical actions and forming collectives between workers and users.

Keywords:
Social Assistance; Judicialization; Poverty; Public Policies

Resumen

Teniendo en cuenta que la judicialización es una construcción social reciente, en este ensayo teórico se pretende problematizar la noción de judicialización de la vida en políticas públicas para la asistencia social a partir de extractos de obras de la literatura brasileña (Vidas SecasRamos, G. (1973). Vidas secas (31 ed.). Martins., de Graciliano Ramos, y Conto de EscolaAssis, M. de. (2007). Conto de escola. In J. Gledson (Org.), 50 Contos de Machado de Assis (pp. 326-333). Companhia das Letras., de Machado de Assis). Para analizar el proceso de descalificación y criminalización de la vida, la discusión parte de conceptos foucaultianos de gobernabilidad y voluntad de saber, así como de autoras/es brasileñas/os que trabajan con el tema. La judicialización se define como el proceso de regulación del vivir bajo estrategias y regulaciones legales, produciendo la normalización de la práctica diaria. Esta tecnología está intrínsecamente vinculada con el gobierno de la vida de otro, especialmente en el ámbito de las políticas públicas. Son modos de castigo que van más allá del marco legal, que ocasionan relaciones de poder asimétricas, caracterizadas por un proceso de legalización, medicalización y patologización de la vida. Se concluye con algunas pistas para resistir a la judicialización en el cotidiano de la asistencia social, como acciones micropolíticas y constitución de colectivos entre trabajadores y usuarias/os.

Palabras clave:
Asistencia social; Judicialización; Pobreza; Políticas Públicas

A judicialização enquanto processo de constituição de vidas

Este ensaio teórico tem como objetivo problematizar a noção de judicialização da vida nas políticas públicas de assistência social, colocando em questão o processo de desqualificação e criminalização da vida, principalmente quando esta é marcada pela pobreza. Faz-se necessário discutir o que entendemos por judicialização da vida, situar o campo das políticas públicas de assistência social e o como estes temas se articulam. Metodologicamente, recorremos à literatura e a alguns personagens que podem ilustrar nossas problematizações, situando o processo de condições que permitem a viabilidade do processo de constituição de vidas mais judicializáveis que outras. A escolha dos livros e personagens tem como objetivo ilustrar o tema proposto para o ensaio a partir de um diálogo com a teoria elencada. Para tanto, utilizamos o método da cartografia, pois ele nos possibilita o acompanhamento do processo de judicialização, assim como permite apostar na ampliação dos campos de possibilidade para vidas de trabalhadoras/es e usuárias/os.

Discutir a questão da judicialização da vida nas políticas públicas de assistência social é, principalmente, problematizar o cotidiano. São as práticas construídas no dia a dia que passam a ocupar as páginas de processos judiciais. Na figura do juiz constitui-se a fantasia de resolução e as relações familiares se tornam o principal alvo da judicialização. Afinando o olhar sobre esta questão e pensando nas famílias atendidas pelos diversos serviços da Política Nacional da Assistência Social (Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, 2004Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. (2004). Política Nacional de Assistência Social. https://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/Normativas/PNAS2004.pdf
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), é ainda a pobreza o alvo principal da justiça.

Em um regime de visibilidade e dizibilidade no qual o cotidiano é o foco, é preciso falar da vida. Assim, faz-se necessário questionar: como a vida se constitui enquanto objeto judicial? Importante demarcar alguns pontos; dependendo de sobre quais vidas estivermos falando, a judicialização irá atravessar questões diferentes. Constituímos um modo de viver calcado em uma cultura do judicializar, somos demandantes das práticas e ritos judiciais em nossos cotidianos que vão se manifestar de maneiras diversas, conforme a classe social a qual pertencemos, por exemplo.

Para famílias de classe média e classe média alta, a aproximação da vida com a justiça remete a situações de garantia de direitos pessoais: conseguir flexibilizar regras de condomínios, processos contra prestadores de serviços, contra lojas, contra o Estado - em busca de algum direito. Situações de violência ou negligência nessas classes sociais dificilmente serão reportadas para o Sistema de Garantia de Direitos e muito menos aparecerão no cotidiano dos serviços da assistência social. Se pensarmos o público que frequenta esses serviços, a judicialização aparece em outras tonalidades: responsabilização da família negligente quanto a alguma violação de direitos, criminalização de comportamentos, culpabilização de indivíduos, responsabilização por descumprimento de condicionalidades1 1 Condicionalidades são as exigências do Programa Bolsa Família para que a família receba a transferência de renda. As condicionalidades são na área de saúde e educação e, se não cumpridas, o repasse financeiro pode ser cancelado, bloqueado ou suspenso. As condicionalidades de educação estão relacionadas à frequência escolar, segundo as quais as famílias devem: matricular as crianças e adolescentes de 6 a 15 anos em estabelecimento regular de ensino; garantir a frequência escolar de no mínimo 85% da carga horária mensal do ano letivo, informando sempre à escola em casos de impossibilidade do comparecimento do aluno à aula e apresentando a devida justificativa; informar sempre que houver uma mudança de escola. Já no campo da saúde, cabe às gestantes e nutrizes comparecer ao pré-natal e participar das atividades educativas ofertadas pelas equipes de saúde sobre aleitamento materno e promoção da alimentação saudável. Os responsáveis pelas crianças menores de 7 anos devem: levar a criança às unidades de saúde ou aos locais de vacinação e manter atualizado o calendário de imunização, conforme diretrizes do Ministério da Saúde; levar a criança às unidades de saúde para a realização do acompanhamento do estado nutricional e do desenvolvimento e outras ações, conforme calendário mínimo do Ministério da Saúde (dados retirados do site da Secretaria de Desenvolvimento Social - http://www.sedes.df.gov.br/condicionalidades-bolsa-familia/ em 23 de fevereiro de 2018). . Uma discrepância que coloca em evidência a constituição do Estado brasileiro enquanto produtor de desigualdade social.

A intervenção estatal enquanto prática de proteção para crianças e adolescentes é racializada, ou seja, são as famílias negras as maiores vítimas da desigualdade social e da intervenção do Estado. São duplamente responsabilizadas: pela situação em que se encontram e por saírem dessa mesma situação. Enquanto pesquisadoras/es e trabalhadoras/es, temos que problematizar a maneira como produzimos práticas de proteção e cuidado que possam se constituir para além do controle e governo da vida alheia. Práticas que tenham enquanto pressuposto a ideia de uma coletivização do sofrimento oriundo das constantes violações de direito.

A judicialização é uma construção social extremamente recente; é uma forma de tentar aplacar os tensionamentos do cotidiano, que juntamente com a medicalização da vida, vem se constituindo como resolução de conflitos e manutenção da culpabilização a nível individual. É o sujeito quem se judicializa, se medica, e para quem se prescreve uma forma de viver específica. Podemos pensar em Pilar2 2 A escolha por Pilar se dá pela frequência com que o tema da evasão escolar e de práticas parentais violentas chegam aos serviços da assistência social. Pensando na relação da experiência com o ensaio teórico, a primeira autora, enquanto trabalhadora de um serviço de acolhimento institucional, acompanhou mais de uma dezena de crianças e adolescentes que evadiam da escola, o que se constituía em um motivo de acolhimento institucional e intervenção de outros serviços, como o Conselho Tutelar. , personagem de Machado de Assis no “Conto de EscolaAssis, M. de. (2007). Conto de escola. In J. Gledson (Org.), 50 Contos de Machado de Assis (pp. 326-333). Companhia das Letras.”; menino que todos os dias se via diante do mesmo conflito: o prazer de matar aula e brincar livremente e a penúria da escola, pela qual não sentia nenhum prazer. Em seu contexto histórico, a punição para Pilar eram as surras de seu pai e a palmatória do professor. Não estabelecendo juízo de valor quanto ao que entendemos como certo e errado, poderíamos pensar em como hoje essa situação poderia ser tratada. Quais sujeitos seriam punidos? Como aconteceriam tais punições? E, principalmente, quais seriam as consequências para Pilar? Pouco discutimos sobre como o sistema escolar vem se constituindo e pouco avançou para acolher as demandas contemporâneas das crianças e adolescentes, recorrendo a práticas individuais de responsabilização quanto ao processo de evasão escolar. Ou ainda como a precarização do sistema escolar é parte de um projeto intencional que visa o sucateamento das políticas públicas e sua consequente privatização.

Por judicialização “compreende-se o movimento de regulação normativa e legal do viver, do qual os sujeitos se apropriam para a resolução dos conflitos, reproduzindo uns com os outros o controle, o julgamento e a punição das condutas” (Oliveira & Brito, 2013Oliveira, C. F. B. de., & Brito, L. M. T. de. (2013). Judicialização da vida na contemporaneidade. Psicologia Ciência e Profissão, 33(spe), 78-89., p. 80). Somos atravessados pelo Poder Judiciário - não somente se recorre a ele, como também se incorporam e se legitimam seus modos de operação, reproduzindo-se o controle, o julgamento e a punição de condutas, em prol (assim é justificado) da inviolabilidade dos direitos, do melhor interesse, da proteção e do bem-estar de algumas vidas. Nesse processo, a atenção passa a ser centrada no indivíduo, produzindo sua vitimização e/ou culpabilização, buscando justificativas em seu interior e ignorando os processos sócio-históricos que engendram modos de ser na contemporaneidade (Oliveira & Brito, 2013Oliveira, C. F. B. de., & Brito, L. M. T. de. (2013). Judicialização da vida na contemporaneidade. Psicologia Ciência e Profissão, 33(spe), 78-89.). As mesmas autoras apontam que há o reforço das lógicas patológicas e judicializantes na abordagem dos conflitos relacionais, que acabam concebidos em termos de distúrbios a serem diagnosticados e infrações a serem combatidas.

A judicialização também pode ser entendida nesse contexto como a produção de subjetividades que aprisionam, moralizam, vigiam e julgam a si mesmas e às demais, fortalecendo formas de governo que homogeneízam e delimitam os modos de ser. Se Pilar fosse um aluno de escola pública oriundo da classe pobre e morador de alguma periferia, provavelmente seria encaminhado ao Conselho Tutelar, seu pai seria encaminhado ao Centro de Referência em Assistência Social (Cras) ou ao Centro de Referência Especializado da Assistência Social (Creas), mas pouco se discutiria quanto ao modelo escolar que vem sendo aplicado ou a precarização da educação pública enquanto um projeto de governo neoliberal.

Podemos realizar uma aproximação dessa temática com a discussão que Carolina dos Reis (2012Reis, C. (2012). (Falência Familiar) + (Uso de Drogas) = Risco e periculosidade. A naturalização jurídica e psicológica de jovens com medida de Internação Compulsória [Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul]. Lume Repositório Digital. https://lume.ufrgs.br/handle/10183/60735
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) faz em sua dissertação, na qual relata que, em sua pesquisa, passa a pensar em um movimento de judicialização das políticas públicas não mais como uma atitude de imposição de um judiciário que está acima destas, mas como um efeito que é produzido e produz relações que perpassam o campo social. A autora, analisando as interações da rede que opera na multiplicação das internações de adolescentes usuários de drogas, percebe que esse processo de judicialização extrapola o domínio jurídico e o campo da saúde, fazendo parte de um conjunto de mecanismos de poder pautados por uma lógica normatizadora que assumem, muitas vezes, a função de manutenção de certa ordem social. Assim como pontua Reis (2012Reis, C. (2012). (Falência Familiar) + (Uso de Drogas) = Risco e periculosidade. A naturalização jurídica e psicológica de jovens com medida de Internação Compulsória [Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul]. Lume Repositório Digital. https://lume.ufrgs.br/handle/10183/60735
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), percebemos que é importante compreender quais efeitos a judicialização faz disparar em nome da garantia de direitos das crianças e adolescentes que viram alvos da política de acolhimento institucional da alta complexidade do Sistema Único de Assistência Social (Suas).

Rizzini e Rizzini (2004Rizzini, I., & Rizzini, I. (2004). A institucionalização de crianças no Brasil. Percurso histórico e desafios do presente. PUC-Rio.) nos ajudam a pensar em como vivemos um sistema de garantia de direitos e a constituição de um sistema de proteção para crianças e adolescentes pautados em uma lógica de institucionalização. Um desejo/demanda de/por institucionalização que permeia a história das políticas públicas para crianças e adolescentes.

Para ilustrar esta questão, alguns dados históricos são interessantes: a primeira casa de recolhimento no Brasil data de 1551, e a educação para a população pobre sempre esteve pautada por uma lógica de institucionalização e orientada para o trabalho, tendo como centrais as figuras dos internatos e reformatórios, assim como as escolas de aprendizagem (Del Priore, 1999Del Priori, M. (Org.). (1999). História das crianças no Brasil. Contexto.). Segundo Del Priore, em 1558 já existiam no país três colégios e cinco casas de recolhimento mantidos pelos jesuítas. O objetivo do trabalho era a “correção” dos pequenos nativos, com foco em ensiná-los as regras do colonizador (Cruz, 2006Cruz, L. R. da. (2006). (Des)articulando as políticas públicas no campo da infância: Implicações da abrigagem. Edunisc.).

Como produzir possibilidades para além do controle da população pobre? Enquanto pesquisadoras da área das políticas públicas e implicadas com o campo da assistência social, acompanhamos o esforço de trabalhadoras/es em produzir práticas implicadas em ir além do controle da população pobre, engajadas em uma ideia de cuidado (Battistelli, 2017Battistelli, B. M. (2017). Carta-grafias: Entre cuidado, pesquisa e acolhimento [Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul]. Lume Repositório Digital. https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/169461
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; Macedo & Dimenstein, 2009Macedo, J. P., & Dimensteins, M. (2009). Psicologia e a produção do cuidado no campo do bem-estar social. Psicologia & Sociedade, 21(3), 293-300. https://doi.org/10.1590/S0102-71822009000300002
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) para além do governamento e produção de judicialização e medicalização do corpo infantil e de adolescente pobres.

No texto “A governamentalidade”, Foucault (2013Foucault, M. (2013). Microfísica do poder (26a ed.). Graal.) trabalha com o desdobramento do papel da família e de como esta, enquanto modelo de governo, vai desaparecer. Para o autor, o que se constitui nesse momento é a família como elemento no interior da população e como instrumento fundamental para a arte de governar. Até a criação do conceito de população, a arte de governar só podia ser pensada com base no modelo da família, com base na economia entendida como gestão da família. A partir do momento em que a população aparece como absolutamente irredutível à família, esta passa para um plano secundário em relação à população, emerge como elemento interno à população, e, portanto, não mais como modelo, mas como segmento. Segmento privilegiado, à medida que, quando quiser obter alguma coisa da população, é pela família que se deverá passar. De modelo, a família vai se tornar instrumento privilegiado para o governo da população. É a partir da metade do século XVIII que a família aparece nessa dimensão instrumental em relação à população, como demonstram as campanhas contra a mortalidade, as campanhas relativas ao casamento, à vacinação etc.

Quanto à questão da judicialização da vida de tantas crianças e adolescentes que passam pela política de acolhimento institucional, é importante visibilizar a forma como esse fenômeno age na organização das políticas públicas e, por consequência, nos modos de governo da população. Reis (2012Reis, C. (2012). (Falência Familiar) + (Uso de Drogas) = Risco e periculosidade. A naturalização jurídica e psicológica de jovens com medida de Internação Compulsória [Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul]. Lume Repositório Digital. https://lume.ufrgs.br/handle/10183/60735
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) relata que esses modos de governo se sustentam em discursos hegemônicos, como o da “família desestruturada”, da “ausência da figura paterna”, da “agressividade do adolescente”, da “criança desorganizada” etc. Com a proliferação e produção desses discursos, que reafirmam uma determinada ordem social e um lugar a ser ocupado por crianças, adolescentes e famílias, estes se tornam viram “reféns” de tais discursos e do que eles produzem.

Será que apenas a justiça tem o poder de judicializar a vida do outro? Lemos (2013Lemos, F. C. S. (2013). A judicialização da vida no campo das relações entre a norma e a lei: Mecanismos de poder e resistências na assistência social e na saúde. In A. L. C. Brizola, A. V. Zanella, & M. Gesser (Orgs.), Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos (pp. 127-140). Abrapso-NUPPE/CFH/UFSC.) aponta que há uma série de formas de punição que não passam pelo envolvimento com o Estado penal. A autora recorre aos trabalhos de Foucault para pensar na forma como os mecanismos disciplinares operam e como ampliam para toda a sociedade a normalização da vida. É pela norma, mais do que pela lei, que a judicialização da vida vai se constituir. A partir dessa discussão, podemos situar os modos de funcionamento dos serviços da assistência social, assim como os de outras políticas públicas.

A arte de judicializar a vida se constitui a partir de mecanismos de controle da vida do outro. Veiga-Neto e Lopes (2007Veiga-Neto, A., & Lopes, M. C. (2007). Inclusão e governamentalidade. Educação & Sociedade, 28(100), 103-127. https://doi.org/10.1590/S0101-73302007000300015
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), ao trabalhar com os conceitos de inclusão e governabilidade, relatam que a invenção do conceito de população é correlata à invenção do biopoder, a partir de meados do século XVIII. “População pode assim ser entendida como um conjunto de indivíduos, que são pensados coletivamente como uma unidade descritível, mensurável, conhecível e, por isso mesmo governável” (Veiga-Neto & Lopes, 2007Veiga-Neto, A., & Lopes, M. C. (2007). Inclusão e governamentalidade. Educação & Sociedade, 28(100), 103-127. https://doi.org/10.1590/S0101-73302007000300015
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, p. 955). Lemos, Nascimento e Scheinvar (2008Lemos, F. C. S., Nascimento, M. L. do, & Scheinvar, E. (2008). Arquivos da dissidência: Os corpos fugidios de crianças e jovens. Psicologia da Educação, (26), 159-172.) afirmam que um regime de escritas e notas sobre o cotidiano se torna possível por meio da vigilância de corpos, que não faziam sentido até o século XVII porque estes não eram considerados dignos de memória. As autoras apontam que “toda uma história da vida dos corpos considerados desviantes terá início após a entrada em cena do dispositivo cristão da confissão” (2008Lemos, F. C. S., Nascimento, M. L. do, & Scheinvar, E. (2008). Arquivos da dissidência: Os corpos fugidios de crianças e jovens. Psicologia da Educação, (26), 159-172., p. 162), apropriado pelo Estado moderno como objeto de administração social e política. Estabelece-se uma quantidade de mecanismos de fazer falar da vida enquanto processo de trabalho nas políticas públicas. O usuário da política pública de assistência social precisa se submeter às práticas de visitas domiciliares, entrevistas com diferentes trabalhadores, preenchimento de cadastros, participação em grupos com diferentes objetivos - com a solicitação de sinceridade ou mais diretamente: “não esconda nada.

O cotidiano e suas infâmias

Com o processo de judicialização do cotidiano, não há como não nos lembrarmos de Foucault (2015Foucault, M. (2015). A vida dos homens infames. In M. B. da Motta (Org.), Ditos e escritos IV: Estratégia, poder-saber (3a ed., pp. 199-217). Forense Universitária.) e seus homens infames. No texto “A vida dos homens infames”, o autor afirma que o soberano se preocupa com a vida cotidiana a partir dos escritos dos familiares e próximos dos sujeitos alvos de denúncias, e é partindo dessa relação que se coloca estas vidas sob a luz do poder. Ou seja, para que alguma coisa dessas vidas chegue até nós, foi preciso que um feixe de luz, ao menos por um instante, viesse a iluminá-las. O que as arranca da noite em que elas teriam podido, e talvez devido, permanecer é o encontro com o poder: “sem esse choque, nenhuma palavra, sem dúvida estaria mais ali para lembrar seu fugidio trajeto” (Foucault, 2015Foucault, M. (2015). A vida dos homens infames. In M. B. da Motta (Org.), Ditos e escritos IV: Estratégia, poder-saber (3a ed., pp. 199-217). Forense Universitária., p. 207). O autor relata que o poder que prestou atenção nessas vidas, em seus pequenos tumultos, “suscitou as poucas palavras que disso nos restam; seja por se ter querido dirigir a ele para denunciar, queixar-se, solicitar, suplicar, seja por ele ter querido intervir e tenha, em poucas palavras, julgado e decidido” (p. 207). A vida em pequena escala passa a ser de interesse do soberano a partir de uma rede de processos de vigilância que perpassa pelo olhar do outro, e se consolida pelo denunciar dos atos da vida.

A denúncia embasa muitos procedimentos de notificação, dando início (ou continuidade) ao escrutínio das famílias. Implica a todos e introduz nas ações banais do cotidiano um estado de vigilância que permite, a um só tempo, o exercício do desejo de banir qualquer estranheza ou anomalia, bem como a criação de canais para o exercício da vingança/punição. Muitas vezes essa relação se alinha aos procedimentos dos programas e serviços da assistência social, pois a denúncia se relaciona aos pequenos desvios da normalidade, produzindo os ditos doentes, violentos, perigosos, negligentes ou prejudiciais.

Neste sentido, lembramo-nos de um expediente, ainda hoje bastante utilizado, que é a ameaça de retirar a criança dos pais (abrigar) para “dar um susto” na criança e/ou adolescente e na família (dependendo sobre quem incorra o “desvio”). Escutamos histórias de profissionais que fazem visitas domiciliares sem agendamento prévio. Outros que fotografam a residência dos usuários. Que questionam sobre sua vida, sobre trabalho, relacionamentos, avaliam armários, bens adquiridos, modo de se vestir ou de se arrumar. Quem os autoriza? Podemos aludir que se trata da gestão da pobreza cotidiana. Haveria um modo certo de ser usuário das políticas públicas?

Não estaríamos hoje construindo um processo de infâmia da família pobre? Que deve ser submetida por condicionalidades de programas como o Bolsa-Família, esquadrinhada por diferentes programas e políticas públicas para que, no final, o veredito seja a confirmação de pressupostos morais que carregamos no trabalho em políticas públicas. Vidas e corpos são iluminados quando em contato com o poder, presentificado nas políticas públicas e sua proximidade com o sistema judiciário.

O “registro em prontuários ou processos refere modalidades de controle em torno do inquérito, de provas, averiguações destinadas ao julgamento e, mais do que isto, a formas de controle dedicadas a rastrear vidas marcadas” (Lemos et al., 2008Lemos, F. C. S., Nascimento, M. L. do, & Scheinvar, E. (2008). Arquivos da dissidência: Os corpos fugidios de crianças e jovens. Psicologia da Educação, (26), 159-172., p. 162), pela pobreza, principalmente. Somos ainda produtores de infâmia? Seria o juiz uma atualização do soberano, mesmo não tendo todo o poder do rei? Enquanto trabalhadores sociais dos serviços da PNAS, é para ele que escrevemos: relatórios, Planos Individuais de Atendimento (PIA), pareceres. Pedidos de internação compulsória, avaliação de famílias, solicitações de acolhimento, diagnósticos, as mais variadas demandas sobre a vida do outro. Como a psicologia se coloca nessa produção do cotidiano enquanto discurso?

Mais do que cúmplices, enquanto operadores das políticas públicas, operamos com a normalização de condutas. Aqueles que se envolvem com o tema enquanto pesquisadores normalizam os corpos-trabalhadores enquanto problematização do que estes fazem, podem fazer ou deveriam estar fazendo em seu campo de trabalho. Punimos e denunciamos condutas com relatórios e artigos acadêmicos. Os trabalhadores sociais remetem essa mesma lógica sobre o corpo-usuário, com a constituição de uma série de aparatos de controle e punição que passam pela produção de laudos, pareceres, encaminhamentos, denúncias, advertências e recomendações, que devem ser seguidas para escapar da tão temida figura do juiz.

Foucault (2015Foucault, M. (2015). A vida dos homens infames. In M. B. da Motta (Org.), Ditos e escritos IV: Estratégia, poder-saber (3a ed., pp. 199-217). Forense Universitária.) afirma que foi preciso para isso a onipresença, ao mesmo tempo real e virtual, do monarca; “foi preciso imaginá-lo bastante próximo de todas essas misérias, bastante atento à menor dessas desordens para que se decidisse solicitá-lo” (p. 214). O cotidiano enquanto questão de Justiça, possibilidades de vida que ganham contornos a partir das práticas judiciais, dentro e fora do sistema legal. O controle da vida do outro exercido pela via da punição. Em quantos prontuários estariam a vida de Pilar e sua família, por exemplo, caso se tratasse de um usuário das políticas públicas na atualidade? Como seria tratada a família do menino travesso de Machado de Assis? Como seria o PIA de Pilar, caso viesse a ser acolhido em um serviço de acolhimento institucional? E o motivo do acolhimento? Fazemos uso de um personagem literário para ilustrar situações e indagações que perpassam ou deveriam perpassar o cotidiano dos serviços que executam as políticas públicas, seja de assistência social, saúde ou educação, assim como o cotidiano dos que fazem parte do Sistema de Garantias de Direitos. Enquanto potencial usuário das políticas públicas, quais discursos atuariam sob Pilar e sua família? Seria o pai do menino um negligente?

São muitos questionamentos quanto ao processo de constituição do cotidiano enquanto problema social. Torna-se imperioso, então, limparmos nossas lentes e perceber qual nosso lugar neste complexo processo: estaríamos auxiliando a colocar luz em vidas infames? Subsidiando o “Juiz-soberano”? Qual nosso papel neste jogo? E se estivermos colocando luzes em vidas infames, como ampliar as possibilidades de vida nessas relações em que nos colocamos enquanto trabalhadoras/es? Para além de receitas e modos de fazer, precisamos exercitar a crítica enquanto processo ético e experimentar formas múltiplas de pensar e fazer.

Somos todos um pouco juízes da vida do outro...

Pensar a questão da judicialização da vida é assumir que todos têm um lugar importante neste processo. Os lugares vão se modificando: ora somos acusadores, ora acusados. O medo quanto à individualização das responsabilidades também está no horizonte dos trabalhadores, em condições e dimensões diferentes das dos usuários. Lemos (2013Lemos, F. C. S. (2013). A judicialização da vida no campo das relações entre a norma e a lei: Mecanismos de poder e resistências na assistência social e na saúde. In A. L. C. Brizola, A. V. Zanella, & M. Gesser (Orgs.), Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos (pp. 127-140). Abrapso-NUPPE/CFH/UFSC.) afirma que a assistência social pode punir sem crime, que a punição pode ocorrer na escola ou na saúde, e não apenas pela figura do presídio. A autora reforça a ideia de que a punição pode e ocorre, muitas vezes, sem o aparato judicial clássico, “sem um juiz, um promotor, advogados, defensores que estejam presentes e sem que haja a execução de pena restritiva de liberdade” (Lemos, 2013Lemos, F. C. S. (2013). A judicialização da vida no campo das relações entre a norma e a lei: Mecanismos de poder e resistências na assistência social e na saúde. In A. L. C. Brizola, A. V. Zanella, & M. Gesser (Orgs.), Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos (pp. 127-140). Abrapso-NUPPE/CFH/UFSC., p. 174).

Se a situação de Pilar, o menino “fujão” de Machado de Assis, fosse encarada enquanto um “caso” da assistência social, um caminho mais ou menos estabelecido seria seguido. A escola encaminharia ao Conselho Tutelar, que notificaria a família; um possível encaminhamento para o Cras. O menino seria encaminhado para outros serviços e, caso a situação não fosse alterada, poderia ser direcionado a um abrigo. A concepção individualizante se estabelece e permanece.

A normalização é potente enquanto possibilita a individualização das responsabilidades. Um ponto importante para pensarmos as nossas práticas: em quem recai a culpa? Recai na mãe negligente, recai no adolescente que cometeu ato infracional, na família que não consegue colocar limites e não se estrutura, ou no adolescente que não entende o valor da escola para sua vida. Também pode recair no professor que não encaminhou a situação, no técnico do serviço que não “resolveu” o caso... a judicialização do cotidiano transforma usuários em casos, processos que precisamos resolver, tal como esperamos que o “Juiz-soberano” resolva.

Complexidade talvez seja uma denominação possível para o ofício dos técnicos sociais no campo das políticas públicas de assistência social no que se refere à judicialização da vida. Baptista (1999Baptista, L. A. (1999). A cidade dos sábios. Summus.) nos brinda com o conto “A cidade dos sábios”, apresentando-nos o personagem que ele denominou “amolador de facas”. A reflexão pode ser potente para pensarmos o cotidiano da assistência social. Não seríamos o amolador de facas da vida alheia? Baptista (1999Baptista, L. A. (1999). A cidade dos sábios. Summus.) tem o intento de provocar o desatento psicólogo quanto ao seu papel em relação à diferença, à vida do outro. O autor escreve sobre facas e as mãos que as operam, muitas vezes cheias de boas intenções, querendo-se inocentes. O fio da faca que esquarteja possui alguns aliados, agentes sem rostos que preparam a cena para atos sinistros. “Agentes que podem ser encontrados em discursos, falas, textos, modos de viver e pensar. Tais aliados amolam a faca e enfraquecem a vítima, transformam-na em cúmplice do ato” (Baptista, 1999Baptista, L. A. (1999). A cidade dos sábios. Summus., p. 9). Pensar a judicialização da vida é pensar em facas que amolamos e em vítimas que conduzimos, refletir sobre nossa implicação neste processo.

Enquanto operadores de políticas públicas, muitas vezes o pedido é para avaliar, balizar vidas possíveis de serem defendidas ou privilegiadas em detrimento de outras. Como produzir linhas de fuga? Se nossa função é acolher (e não julgar), por que este é o sentimento recorrente nos trabalhadores das políticas públicas?

Considerando a medida de proteção em acolhimento institucional, executada pelo Suas, é desse serviço (ou deveria ser) o papel de propiciar um ambiente adequado às características das crianças e adolescentes, com a possibilidade de desenvolvimento de potencialidades e execução de um trabalho de acompanhamento com as famílias, permitindo que a criança ou adolescente consiga se relacionar com ela sem a violação de direitos que o levou ao abrigo. O trabalho nesta política é amparado por uma série de legislações, como o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069, 1990Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. (1990, 16 de julho). Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente. Diário Oficial da União. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
), pela Política Nacional de Assistência Social (Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, 2004Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. (2004). Política Nacional de Assistência Social. https://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/Normativas/PNAS2004.pdf
https://www.mds.gov.br/webarquivos/publi...
). As funções dos trabalhadores e a forma de realização do serviço são balizadas pela Tipificação dos Serviços Socioassistenciais (Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, 2009Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. (2009). Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais.) e pela NOB-RH Suas (Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, 2012Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. (2012). Norma Operacional Básica do Sistema Único de Assistência Social NOB/SUAS.). Mas é frequente entre os trabalhadores a sensação de ser um “braço” da justiça mais próximo da vida das pessoas pobres, dizendo com que lentes o juiz precisa olhar tal usuário ou família.

Como operar sem colocar em foco o desejo de punição que permeia o contemporâneo? O sentimento de impunidade toma forma e força, exigindo maior punição da vida. Muitos vão defender, por exemplo, que o pai de Pilar (o menino de Machado de Assis) está certo em lhe aplicar surras por seu comportamento. Outros argumentarão que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) é condescendente com as crianças e adolescentes, lhes afirmando muitos direitos e poucos deveres. Como problematizar tais naturalizações morais? A redução da maioridade penal é outro exemplo do discurso da punição que ganha força e busca, com o aparato das leis, um reforço quanto a sua amplitude. No processo de judicializar a vida cotidiana, não bastará aplicar uma série de normas, é preciso que estas tenham amparo no discurso jurídico.

Para pensar a questão da justiça enquanto produtora de verdades sobre o cotidiano, aproximamos a discussão com o trabalho de Foucault no livro Aulas sobre a Vontade de Saber: curso no Còllege de France (1970-1971). Na lição de 10 de fevereiro de 1971, o autor aborda os livros de Hesíodo e o surgimento de uma oposição entre dois tipos de ações jurídicas: Krínein, na qual a decisão quanto à verdade não estará atrelada ao juramento; aos litigantes caberá a declaração e a verdade virá do juiz, que deve se expor à vingança dos deuses se não o disser; e Díkazein, na qual a decisão se dá por um jogo de afirmações e a verdade é pronunciada pelos litigantes. Segundo Foucault, é a oposição de ambas que vai carregar consigo a decisão, e assim a mais pesada dessas imprecações triunfará. No Krínein, de acordo com o autor, a justiça está ligada à própria ordem do mundo (não ligada à cólera dos Deuses), ligada ao tempo dos ciclos, ao tempo de quando receber (calendário), à promessa de uma dívida que retorna à medida de sua quantidade e valor, ligada a um símbolo monetário e à memória (escrita, contabilidade), enfim a um saber sobre o que se está decidindo. Neste modelo de ação judicial, de acordo com Foucault (2014Foucault, M. (2014). Aulas sobre a vontade de saber: Curso no Còllege de France (1970-1971). Martins Fontes.), se tem uma justiça que toma a forma de uma ordem justa e mensurável, e assim ligada a uma verdade. Desse modo, podemos pensar a justiça como uma verdade que se sabe, e não tanto por uma verdade que se afirma (Foucault, 2014Foucault, M. (2014). Aulas sobre a vontade de saber: Curso no Còllege de France (1970-1971). Martins Fontes.). O autor afirma que não é se esquecer de saber a verdade e sim não esquecer a verdade que se sabe.

A questão que se coloca tem duas faces: a da justiça e a da verdade, e a partir destas se produz uma questão que deve ser problematizada (Foucault, 2014Foucault, M. (2014). Aulas sobre a vontade de saber: Curso no Còllege de France (1970-1971). Martins Fontes.). O autor salienta que três grandes saberes se desenvolveram entre os assírios (saber de observação dos dias e dos astros, das quantidades e das medidas e das origens) ligados ao exercício do poder em uma sociedade na qual o aparelho de Estado estava praticamente desenvolvido. E são os saberes que irão apoiar o Krínein. Assim, há um deslocamento, o saber torna-se o que todo homem necessita para ser justo e reivindicar de cada um a justiça, deslocando-se do exercício do poder para o controle da justiça (Foucault, 2014Foucault, M. (2014). Aulas sobre a vontade de saber: Curso no Còllege de France (1970-1971). Martins Fontes.).

A partir da aula do dia 10 de março do mesmo curso, Foucault (2014Foucault, M. (2014). Aulas sobre a vontade de saber: Curso no Còllege de France (1970-1971). Martins Fontes.) afirma que entre os séculos VII-VI a.C. haverá mudanças nos ritos, que passam a necessitar ser mais bem conhecidos. Substituem-se os sacrifícios, criam-se condições para arbitrar sobre como surge o ritual, constituindo sua função social e política, passando a afetar todos e cada um dos cidadãos. O autor avança em sua análise da constituição da configuração jurídica do indivíduo, na qual a justiça passa a se ocupar de assuntos como as heranças (e as condições de propriedade), os ritos funerários (para limitar os excessos) e os assassinatos (constituindo elementos para a constituição da lei da cidade). Operar sobre esses temas será uma questão política/econômica mais do que religiosa.

Foucault (2014Foucault, M. (2014). Aulas sobre a vontade de saber: Curso no Còllege de France (1970-1971). Martins Fontes.) concebe a constituição do sujeito enquanto efeito de uma relação de um jogo de verdade a partir das práticas que se estabelecem quanto à questão do assassinato, por exemplo. O sujeito, assim, se constitui a partir de um determinado enquadramento jurídico e político. No caso de o assassinato ganhar foco na justiça, será a exclusão, enquanto prática, constitutiva do sujeito impuro. E por ser impuro, que não tem acesso à verdade, esta deverá ser demonstrada, enquanto tarefa política, através de provas, testemunhos etc. Assim, esse campo de condicionalidades permite que entendamos algumas questões que advêm neste cenário, como a do sujeito de direito, a fixação de uma identidade (impuro) e a constituição de um sistema de caráter jurídico-moral, como o início de práticas divisórias. E é a verdade que sustenta as práticas divisórias. Quais produções de verdade vêm se constituindo no contemporâneo e sustentam discursos promotores de práticas divisórias no campo das políticas de assistência social? Avançando na problematização quanto ao processo de judicialização da vida nas políticas públicas, outras possibilidades de constituição de trabalho podem emergir.

Vidas Secas3 3 A escolha do livro Vidas Secas se deu por representar uma família que poderia ser uma das tantas atendidas nos serviços da assistência social. Uma família que se vê enredada nos efeitos da desigualdade social, tentando sobreviver para além da fome e da miséria econômica, mas que ao longo de sua história vão produzindo formas de cuidado e acolhimento, podendo viver para além do cenário que os envolve. ... vidas que valem a pena...

Emerson Mehry (2012Mehry, E. E. (2012). Saúde e direitos: Tensões de um SUS em disputa, molecularidades. Saúde e Sociedade, 21(2), 267-279. https://doi.org/10.1590/S0104-12902012000200002
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), em um artigo sobre o Sistema Único de Saúde (SUS) e a garantia da saúde enquanto direito, problematiza o valor da vida e a possibilidade de defesa de qualquer vida. Uma radicalidade necessária a ser pensada em relação ao campo da assistência social. É possível defender qualquer vida quando operamos com a política de assistência social? Conseguimos estender essa discussão quanto ao trabalho com famílias no Suas? Como podemos defender o direito de ser família? Enquanto pesquisador/a ou trabalhador/a, algumas indagações são necessárias: eu acho que uma criança pode viver bem em sua família apenas se for da mesma maneira como eu vivo na minha família? Ou eu considero que há muitas formas de vida e relacionamentos possíveis? Quais formas produzem vida e quais não produzem? Somos convocados diariamente a refletir. Conseguimos produzir esta reflexão?

Permitimos que famílias se constituam enquanto coletivos singulares e que possam exercer o cuidado dos seus conforme suas condições de possibilidades? Ou avalizamos modos de ser família conforme nossos valores/moralidades? Impossível não pensar na família que transita no livro Vidas SecasRamos, G. (1973). Vidas secas (31 ed.). Martins., de Graciliano Ramos. Uma família miserável em busca de uma vida melhor. Seria aquela uma família menos família? Quais processos de captura seriam realizados a partir das políticas públicas que temos hoje? São inegáveis os benefícios da Política Nacional de Assistência Social e de programas como o Bolsa Família, mas precisamos problematizar o fato de que direitos sociais básicos ainda estão colocados a partir de condicionalidades, pois não estão ao acesso de todos. As/os trabalhadoras/es das políticas públicas, principalmente da assistência social, se veem imersos em um sistema massificante que produz violação de direitos de forma sistemática e organizada enquanto projeto político. Assim, garantir direitos e fortalecer vínculos é tarefa daquelas/es que se encontram em uma espécie de encruzilhada onde também veem seus direitos não garantidos. Pensar em uma prática não judicializante é pensar em como podemos constituir experiências coletivas entre trabalhadores, mas também com as/os usuárias/os. Uma aposta que passa por reconhecer que há a produção de desigualdade e de sofrimento que é vivida de forma coletiva, e não enquanto responsabilidade individual.

Para estar na escola, ter acesso à saúde, ainda é preciso que uma série de tecnologias de governo das vidas sejam ativadas, produzindo territorializações quanto ao cotidiano e vida de sujeitos pobres. Em busca de melhores condições de existência, vidas são transformadas em vidas secas. Secas de sentido, de potência. Em troca de benefícios e acesso a direitos, corremos o risco de produzir a desqualificação de determinados modos de vida. Como escapar? O que nós fazemos para fomentar os processos coletivos e outros modos de viver e habitar a cidade? O que nós construímos para constituir práticas menos judicializantes? Como produzir a (des)individualização dos conflitos cotidianos?

Com o exacerbamento do cuidado da vida, podemos incorrer em abusos; como exemplo, a crescente demanda de internações psiquiátricas para adolescentes. São realmente casos para internação psiquiátrica? Reis (2012Reis, C. (2012). (Falência Familiar) + (Uso de Drogas) = Risco e periculosidade. A naturalização jurídica e psicológica de jovens com medida de Internação Compulsória [Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul]. Lume Repositório Digital. https://lume.ufrgs.br/handle/10183/60735
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) aponta que a pobreza está atravessada na vida dos adolescentes que são internados. O abuso de drogas é o motivo explícito, mas aos poucos outras relações surgem quando o sujeito passa a ser acompanhado: violação de direitos básicos, como acesso à educação de qualidade, serviços de saúde, acesso à moradia digna, à cultura, esportes etc. Uma lista longa de direitos que mesmo com as garantias do ECA e da Constituição Federal (1988Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. (1988). Senado Federal. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm
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) são negligenciados.

A culpa e responsabilidade recaem sobre o sujeito, mesmo tratando-se de um grave e complexo problema social. Logo cedo, o adolescente vai aprender: mesmo que o Estado não faça sua parte, é pelo seu corpo que passará toda a responsabilidade das situações em que se envolver. Lemos (2013Lemos, F. C. S. (2013). A judicialização da vida no campo das relações entre a norma e a lei: Mecanismos de poder e resistências na assistência social e na saúde. In A. L. C. Brizola, A. V. Zanella, & M. Gesser (Orgs.), Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos (pp. 127-140). Abrapso-NUPPE/CFH/UFSC.) afirma que a discussão passa pela divisão entre corpos em perigo e corpos perigosos, e que essa lógica irá sustentar o processo de judicialização da vida nas políticas públicas. Há um atrelamento dos programas de proteção aos mecanismos disciplinares de docilização, que operam entre o controle e o cuidado. As práticas punitivas não ocorrem apenas na figura do Estado e do direito, mas perpassam a vida cotidiana. O mau comportamento poderá ser penalizado com as mais diversas tecnologias de controle: medicação, internação psiquiátrica, encaminhamento para serviços especializados, encaminhamento para atendimento psicológico etc. E esse poder está a cargo dos operadores das políticas públicas, a quem cabe questionar (ou não) a função que lhes é atribuída.

A mesma autora propõe pensar a judicialização na assistência social pela via da positividade do poder, que produz cuidado, forja normas, prescreve sem impor. “Em uma história de práticas estatais e não estatais e pela racionalidade do sujeito de direitos liberal e/ou neoliberal, mas que não se limitam as figuras da lei” (Lemos, 2013Lemos, F. C. S. (2013). A judicialização da vida no campo das relações entre a norma e a lei: Mecanismos de poder e resistências na assistência social e na saúde. In A. L. C. Brizola, A. V. Zanella, & M. Gesser (Orgs.), Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos (pp. 127-140). Abrapso-NUPPE/CFH/UFSC., p. 174), como resistir?

Uma aposta que temos feito, apoiadas nos trabalhos de Emerson Mehry (2004Mehry, E. E. (2004). O ato de cuidar: A alma dos serviços de saúde. In Ministério da Saúde, Ver - SUS Brasil: Cadernos de textos (pp. 108-137). Ministério da Saúde., 2006Mehry, E. E. (2006). O cuidado é um acontecimento, e não um ato. Fórum Nacional de Psicologia e Saúde Pública: Contribuições técnicas e políticas para avançar o SUS, Brasília, DF.), é pensar a produção do cuidado nas práticas da assistência social enquanto potencializadoras dos encontros, assumindo-as na condição de acontecimentos que se dão no encontro entre trabalhadoras/es e usuárias/os, entre serviços. Macedo e Dimenstein (2009Macedo, J. P., & Dimensteins, M. (2009). Psicologia e a produção do cuidado no campo do bem-estar social. Psicologia & Sociedade, 21(3), 293-300. https://doi.org/10.1590/S0102-71822009000300002
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) também nos ajudam a refletir sobre nossas práticas na assistência social a partir da produção do cuidado para além de práticas de controle. Propomo-nos e instigamos a conceber o cuidado enquanto estratégia ético-política para avançarmos e resistirmos frente ao avanço da cultura de judicialização e medicalização que permeia o trabalho com a população pobre. Na dissertação Carta-grafias: Entre cuidado, pesquisa e acolhimento, Bruna Battistelli (2017Battistelli, B. M. (2017). Carta-grafias: Entre cuidado, pesquisa e acolhimento [Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul]. Lume Repositório Digital. https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/169461
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) investe em uma pesquisa-intervenção com cartas em um serviço de acolhimento institucional pensando em como as pessoas (usuários, trabalhadores, pesquisadora) pensam e produzem práticas de cuidado neste cenário. Um processo de pesquisa que apostou no cuidado enquanto possibilidade metodológica e como algo que acontece no ato, no encontro entre pessoas. Acreditamos que pensar para além de práticas judicializantes é se abrir ao encontro com o outro e ao que este produz como conhecimento.

A pergunta que se repete é: como não “formatar” a vida dos outros? Conseguimos suportar a pobreza? Por que um corpo-pobre produz desejos de punição da vida do outro? Uma pista pode ser encontrada em Foucault (2013Foucault, M. (2013). Microfísica do poder (26a ed.). Graal.), quando ele insiste no traço positivo do poder, em sua infindável capacidade de criação, produção de saberes e no fato de pertencer a todos e a ninguém ao mesmo tempo. A questão, afirma o autor, não é como acabar com o poder, mas decidirmos o que fazer com ele. As possibilidades de resistência existem, mas são escassas nesta situação.

No texto “A ética do cuidado de si como prática de liberdade”, Foucault (2012Foucault, M. (2012). A ética do cuidado de si como prática da liberdade. In M. B. da Motta (Org.), Ditos e escritos V: Ética, sexualidade, política (3a ed., pp. 258-280). Forense Universitária.) salienta que onde há poder, há liberdade, e assim possibilidades de resistência. São famílias como as do livro Vidas SecasRamos, G. (1973). Vidas secas (31 ed.). Martins. que resistem frente ao cenário de controle que por vezes exercemos enquanto produtores de políticas públicas e enquanto trabalhadores. Saber acolher essas famílias que resistem e insistem em seus modos peculiares de vida é um exercício ético que precisa ser constantemente atualizado. As relações de poder têm por condição a existência da liberdade, não sendo possível pensá-las em práticas nas quais haja um outro dominado. “Não basta um contexto de liberdade para que se produzam práticas de liberdade” (Amarante & Soalheiro, 2008Amarante, P. D., & Soalheiro, N. I. (2008). Reflexões em torno da temática da política e das reformas no campo da psiquiatria, a partir de Michel Foucault e do Movimento dos usuários dos serviços de saúde mental. In I. C. Fiche Passos (Org.), Poder, normalização e violência: Incursões foucaultianas para a atualidade (pp. 127-140). Autêntica., p. 130).

Amarante e Soalheiro apostam no exercício da crítica enquanto possibilidade de derrubar o que chamam de lugares-comuns. Nas palavras de Foucault, “ a crítica deve ser um instrumento para aqueles que resistem, que não querem as coisas como estão. Ela deve ser utilizada nos processos de conflitos, de enfrentamentos, de tentativas de recusa” (2015Foucault, M. (2015). A vida dos homens infames. In M. B. da Motta (Org.), Ditos e escritos IV: Estratégia, poder-saber (3a ed., pp. 199-217). Forense Universitária., p. 342).

Quando questionado quanto ao efeito paralisante que seus estudos estariam produzindo em trabalhadores das prisões, Foucault (2015Foucault, M. (2015). A vida dos homens infames. In M. B. da Motta (Org.), Ditos e escritos IV: Estratégia, poder-saber (3a ed., pp. 199-217). Forense Universitária.) afirma que é preciso problematizar o que seria essa paralisia, e a maneira como ela pode visibilizar uma quantidade de problemas a que os trabalhadores precisam se ater, deixando-nos a pista de que entende que a resolução dos problemas não deve partir de um grande reformador, como intitulou, mas “por um longo vaivém, de trocas, de reflexões, de tentativas, de análises diretas” (Foucault, 2015Foucault, M. (2015). A vida dos homens infames. In M. B. da Motta (Org.), Ditos e escritos IV: Estratégia, poder-saber (3a ed., pp. 199-217). Forense Universitária., p. 341). Ele defenderá que para que os problemas do cotidiano tomem sua amplidão, não se deve esmagá-los sob falas proféticas e prescritivas, determinadas de cima. Para o autor, a aposta é na insubmissão e na radicalidade do exercício da crítica. Resistir enquanto experiência micropolítica é um exercício radical e exige dos pesquisadores e trabalhadores sair dos lugares comuns. Não há receitas, não há moldes a serem seguidos, apenas pistas e questionamentos que podem fazer a vida ser recolocada de múltiplas formas.

A partir de um questionamento feito por Reishoffer e Bicalho (2016Reishoffer, J. C., & Bicalho, P. P. G. de. (2016). PesquisarCOM em instituições totais: Ingenuidade, desafio ou utopia? In M. S. Ferreira, & M. Moraes (Orgs.), Políticas de pesquisa em psicologia social (pp. 223-236). Nova Aliança.) sobre PesquisarCOM em instituições totais - se seria ingenuidade, desafio ou utopia -, apontamos que para trabalhar em instituições com características próximas das ditas instituições totais, é precisar colocar em perspectiva uma visão homogeneizante de quem são os sujeitos por ela atendidos e qual é o trabalho que é realizado. Assim, pesquisarCOM nesse cenário é agir em prol da possibilidade de outras histórias serem contadas histórias, conforme sugere Meneses (2008Meneses, M. P. (2008). Outras vozes existem, outras histórias são possíveis. Diálogos sobre Diálogos. Grupalfa, UFF.). Histórias que possam ser contadas por trabalhadores, crianças, adolescentes, mães, pesquisadores. “Histórias que coloquem em xeque a versão ‘científica’ da instituição e das vidas que a constituem. Histórias que façam falhar a narrativa acadêmica que se constrói e constrói as vidas que perpassam a instituição” (Battistelli, 2017Battistelli, B. M. (2017). Carta-grafias: Entre cuidado, pesquisa e acolhimento [Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul]. Lume Repositório Digital. https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/169461
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, n.p.). Retomando a questão colocada anteriormente, se seria ingenuidade, desafio ou utopia, pensamos que seja um pouco de tudo e um tanto mais....

Lembrando que por mais que sejam relações assimétricas que se estabelecem entre profissionais e usuários do Suas, ainda há possibilidade de resistir, pois não estamos trabalhando em um cenário de dominação. Como aumentar as condições de possibilidades tanto de trabalhadores quanto dos usuários parece ser uma questão. Para Foucault (2012Foucault, M. (2012). A ética do cuidado de si como prática da liberdade. In M. B. da Motta (Org.), Ditos e escritos V: Ética, sexualidade, política (3a ed., pp. 258-280). Forense Universitária.), o processo de constituição das relações de poder e os processos de resistências são colocados em ação na própria engrenagem de constituição de relações de poder. São essas estratégias de afrontamento e resistência que podem constituir frente ao que se institui a partir das novas tecnologias de governo da população, principalmente quando esta é considerada pobre. O interesse de Foucault (2015Foucault, M. (2015). A vida dos homens infames. In M. B. da Motta (Org.), Ditos e escritos IV: Estratégia, poder-saber (3a ed., pp. 199-217). Forense Universitária.) estava em estudar como os homens se governam (a eles próprios e aos outros), e como os conjuntos de prescrições constituíam formas de organização de instituições e do controle da vida. Enquanto operadores de políticas públicas, é necessário que possamos constituir processos de problematização do trabalho, bem o autor colocou seu objetivo quanto à análise das prisões, ou seja, tornar os atos, gestos e discursos problemáticos, perigosos ou difíceis.

Finalizamos este ensaio tomando a crítica como um instrumento de luta e resistência em relação ao que está posto. Talvez essa possa ser uma pista importante quanto ao processo de judicialização da vida de sujeitos, principalmente os usuários das políticas públicas de assistência social, pois permite o exercício de estranhamento frente ao que vamos constituindo enquanto regimes de verdades. Apostamos, assim, na construção de possibilidades de vida que passem pelo e no coletivo.

No cotidiano de trabalho da política de assistência social, encontraremos muitas/os usuárias/os como Pilar e os membros da família de Vidas SecasRamos, G. (1973). Vidas secas (31 ed.). Martins.. Pessoas que precisam ser investidas em sua potência de vida para além das desigualdades sociais a que são expostas. Vidas que precisam ser defendidas em sua radicalidade para que se possa pensá-las para além das políticas de controle do outro. Como respeitamos os movimentos de vida de uma família como a de Vidas SecasRamos, G. (1973). Vidas secas (31 ed.). Martins.? Uma aposta que fazemos é na construção de outras histórias com elas. Para meninos como Pilar, precisamos entender como a escola vem se constituindo na contemporaneidade e como podemos ampliar a experiência escolar. Pilar e as personagens de Vidas SecasRamos, G. (1973). Vidas secas (31 ed.). Martins. nos ensinam que ouvir as/os usuárias/os é parte fundamental no processo de produção de estratégias de intervenção, para que não produzamos novas e repetidas vidas que se secam em contato com os serviços das políticas públicas, pois enquanto trabalhadores também sofremos a judicialização de nossas práticas. Resistir a esses processos é apostar em estratégias coletivas, investir em acolhimento e na produção de outras/novas histórias para nós (trabalhadoras/es) e para as/os usuárias/os.

Referências

  • Amarante, P. D., & Soalheiro, N. I. (2008). Reflexões em torno da temática da política e das reformas no campo da psiquiatria, a partir de Michel Foucault e do Movimento dos usuários dos serviços de saúde mental. In I. C. Fiche Passos (Org.), Poder, normalização e violência: Incursões foucaultianas para a atualidade (pp. 127-140). Autêntica.
  • Assis, M. de. (2007). Conto de escola. In J. Gledson (Org.), 50 Contos de Machado de Assis (pp. 326-333). Companhia das Letras.
  • Baptista, L. A. (1999). A cidade dos sábios. Summus.
  • Battistelli, B. M. (2017). Carta-grafias: Entre cuidado, pesquisa e acolhimento [Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul]. Lume Repositório Digital. https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/169461
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  • Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. (1988). Senado Federal. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm
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  • Cruz, L. R. da. (2006). (Des)articulando as políticas públicas no campo da infância: Implicações da abrigagem. Edunisc.
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  • 1
    Condicionalidades são as exigências do Programa Bolsa Família para que a família receba a transferência de renda. As condicionalidades são na área de saúde e educação e, se não cumpridas, o repasse financeiro pode ser cancelado, bloqueado ou suspenso. As condicionalidades de educação estão relacionadas à frequência escolar, segundo as quais as famílias devem: matricular as crianças e adolescentes de 6 a 15 anos em estabelecimento regular de ensino; garantir a frequência escolar de no mínimo 85% da carga horária mensal do ano letivo, informando sempre à escola em casos de impossibilidade do comparecimento do aluno à aula e apresentando a devida justificativa; informar sempre que houver uma mudança de escola. Já no campo da saúde, cabe às gestantes e nutrizes comparecer ao pré-natal e participar das atividades educativas ofertadas pelas equipes de saúde sobre aleitamento materno e promoção da alimentação saudável. Os responsáveis pelas crianças menores de 7 anos devem: levar a criança às unidades de saúde ou aos locais de vacinação e manter atualizado o calendário de imunização, conforme diretrizes do Ministério da Saúde; levar a criança às unidades de saúde para a realização do acompanhamento do estado nutricional e do desenvolvimento e outras ações, conforme calendário mínimo do Ministério da Saúde (dados retirados do site da Secretaria de Desenvolvimento SocialSecretaria de Desenvolvimento Social. (2018). Condicionalidades do Programa Bolsa Família. http://www.sedes.df.gov.br/condicionalidades-bolsa-familia/
    http://www.sedes.df.gov.br/condicionalid...
    - http://www.sedes.df.gov.br/condicionalidades-bolsa-familia/ em 23 de fevereiro de 2018).
  • 2
    A escolha por Pilar se dá pela frequência com que o tema da evasão escolar e de práticas parentais violentas chegam aos serviços da assistência social. Pensando na relação da experiência com o ensaio teórico, a primeira autora, enquanto trabalhadora de um serviço de acolhimento institucional, acompanhou mais de uma dezena de crianças e adolescentes que evadiam da escola, o que se constituía em um motivo de acolhimento institucional e intervenção de outros serviços, como o Conselho Tutelar.
  • 3
    A escolha do livro Vidas Secas se deu por representar uma família que poderia ser uma das tantas atendidas nos serviços da assistência social. Uma família que se vê enredada nos efeitos da desigualdade social, tentando sobreviver para além da fome e da miséria econômica, mas que ao longo de sua história vão produzindo formas de cuidado e acolhimento, podendo viver para além do cenário que os envolve.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Set 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    02 Jun 2018
  • Aceito
    03 Maio 2019
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