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Moralidade e sociabilidade em Frankl: um norte para superação da violência

Moralidad y sociabilidad en Frankl: un norte para la superación de la violencia

Morality and sociability in Frankl: a route to overcome violence

Resumos

O presente texto tem por finalidade apresentar, de maneira introdutória, os conceitos de violência, moralidade e sociabilidade dentro da concepção existencial-humanista de Frankl. Segundo sua concepção, a violência é um empobrecimento e uma descaracterização do humano; portanto, ela é desumanizadora. Em sua ótica antropológica humanista, a superação da violência deve ser concebida pela via da autotranscendência, isto é, por meio da superação de uma existência egoísta. É na experiência da moralidade e da sociabilidade que o homem pode desvelar o sentido que a alteridade confere à sua vida. É, portanto, sedimentando sua existência na autotranscendência que o humano encontra sua realização. Assim, o homem pode realizar suas potencialidades na autotranscendência quando encontra um sentido fora de si mesmo, no encontro autêntico com o outro que permite a sociabilidade, garante a conduta moral e ultrapassa a dimensão da violência.

moralidade; sociabilidade; violência


El presente texto posee por finalidad presentar, de manera introductoria, los conceptos de violencia, moralidad y sociabilidad dentro de la concepción existencial-humanista de Frankl. Según su concepción, la violencia es un empobrecimiento y una descaracterización del humano; por lo tanto, ella es deshumanizadora. En su óptica antropológica humanista, la superación de la violencia debe ser concebida por la vía de la auto trascendencia, o sea, por medio de la superación de una existencia egoísta. Es en la experiencia de la moralidad y de la sociabilidad que el hombre puede desvelar el sentido que la alteridad confiere a su vida. Es, por lo tanto, sedimentando su existencia en la auto trascendencia que el humano encuentra su realización. Así, el hombre puede realizar sus potencialidades en la auto trascendencia cuando encuentra un sentido fuera de él mismo, en el encuentro auténtico con el otro que permite la sociabilidad, garantiza la conducta moral y sobrepasa la dimensión de la violencia.

moralidad; sociabilidad; violencia


The present text aims at presenting, in an introductory way, concepts such as, violence, morality and sociability within Frankl’s human-existentialist conception. According to Frankl’s conception, the violence is responsible for the degradation of the human being, and also for human decharacterization. Therefore, it dehumanizes the human being. In a humanistic and anthropological scope, the overcoming of violence must be conceived by means of auto-transcendence, that is, by overcoming a selfish existence. Undergoing the experience of morality and sociability, mankind is able to reveal the feeling that alterity can confer to human life. Therefore, the human being fulfills himself basing his existence in auto-transcendence. This happens when the human being finds a meaning for his own existence outside himself. It is through the genuine interacting with ‘the other’ that man enables sociability, assures moral behaviour and surpasses the dimension of violence.

Morality; sociability; violence


DOSSIÊ- EDUCAÇÃO

Moralidade e sociabilidade em Frankl: um norte para superação da violência

Morality and sociability in Frankl: a route to overcome violence

Moralidad y sociabilidad en Frankl: un norte para la superación de la violencia

Jacqueline de Oliveira MoreiraI; Anderson Kerley Chaves de AbreuII; Marina Clemente de OliveiraIII

IDoutora em Psicologia. Professora do Mestrado em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais-PUC Minas

IIAluno do curso de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais-PUC Minas

IIIAluna do curso de pós-graduação em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais-PUC Minas, Betim

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Jacqueline de Oliveira Moreira. Rua Congonhas, 161, São Pedro, CEP 30330-100, Belo Horizonte-MG, Brasil. E-mail: jackdrawin@yahoo.com.br

RESUMO

O presente texto tem por finalidade apresentar, de maneira introdutória, os conceitos de violência, moralidade e sociabilidade dentro da concepção existencial-humanista de Frankl. Segundo sua concepção, a violência é um empobrecimento e uma descaracterização do humano; portanto, ela é desumanizadora. Em sua ótica antropológica humanista, a superação da violência deve ser concebida pela via da autotranscendência, isto é, por meio da superação de uma existência egoísta. É na experiência da moralidade e da sociabilidade que o homem pode desvelar o sentido que a alteridade confere à sua vida. É, portanto, sedimentando sua existência na autotranscendência que o humano encontra sua realização. Assim, o homem pode realizar suas potencialidades na autotranscendência quando encontra um sentido fora de si mesmo, no encontro autêntico com o outro que permite a sociabilidade, garante a conduta moral e ultrapassa a dimensão da violência.

Palavras-chave: moralidade, sociabilidade, violência.

ABSTRACT

The present text aims at presenting, in an introductory way, concepts such as, violence, morality and sociability within Frankl’s human-existentialist conception. According to Frankl’s conception, the violence is responsible for the degradation of the human being, and also for human decharacterization. Therefore, it dehumanizes the human being. In a humanistic and anthropological scope, the overcoming of violence must be conceived by means of auto-transcendence, that is, by overcoming a selfish existence. Undergoing the experience of morality and sociability, mankind is able to reveal the feeling that alterity can confer to human life. Therefore, the human being fulfills himself basing his existence in auto-transcendence. This happens when the human being finds a meaning for his own existence outside himself. It is through the genuine interacting with ‘the other’ that man enables sociability, assures moral behaviour and surpasses the dimension of violence.

Key words: Morality, sociability, violence.

RESUMEN

El presente texto posee por finalidad presentar, de manera introductoria, los conceptos de violencia, moralidad y sociabilidad dentro de la concepción existencial-humanista de Frankl. Según su concepción, la violencia es un empobrecimiento y una descaracterización del humano; por lo tanto, ella es deshumanizadora. En su óptica antropológica humanista, la superación de la violencia debe ser concebida por la vía de la auto trascendencia, o sea, por medio de la superación de una existencia egoísta. Es en la experiencia de la moralidad y de la sociabilidad que el hombre puede desvelar el sentido que la alteridad confiere a su vida. Es, por lo tanto, sedimentando su existencia en la auto trascendencia que el humano encuentra su realización. Así, el hombre puede realizar sus potencialidades en la auto trascendencia cuando encuentra un sentido fuera de él mismo, en el encuentro auténtico con el otro que permite la sociabilidad, garantiza la conducta moral y sobrepasa la dimensión de la violencia.

Palabras-clave: moralidad, sociabilidad, violencia.

A Logoterapia é considerada a Terceira Escola Vienense de Psicoterapia. Sua proposta é buscar a"cura" (terapia) por meio da introdução do sentido (logos). Viktor Frankl aparece como fundador e criador desse novo modelo de compreensão dos fenômenos humanos e de intervenção clínica. Ele se desligou das escolas freudiana e adleriana, e assim sua proposta difere, nas suas bases antropológicas, das teorias de seus mestres.

O homem, para Frankl (1978), é um ente empenhado na busca de um sentido, e nesse movimento o encontro com o outro não é apenas importante, é indispensável. A proposta de Frankl difere substancialmente da freudiana. Nesse sentido, tomaremos como ponto de referência as idéias freudianas sobre o laço social, expostas em seu texto O mal-estar na civilização, para em seguida apresentarmos as idéias franklianas sobre as bases do enlaçamento social. Freud, em O mal-estar na civilização (1930/1976), expõe a questão do sentido da vida, mas sua concepção trágica revela a dificuldade de se obter uma resposta universal para tal pergunta. No entanto, ele afirma que o sentido da vida é a busca da felicidade, entendida como busca individual. A verdadeira felicidade é repentina, toma-nos pela surpresa, sendo, portanto, mais rara. No texto O mal-estar na civilização, Freud convida Goethe para fundamentar sua posição.

Alles in der Welt lässt sich ertragen, Nur nicht eine Reihe von schönen Tagen. (Nada é mais difícil de suportar que uma sucessão de dias belos). (Goethe, 1810 citado por Freud 1930/1976, p. 95).

Já o sofrimento é mais comum, pois temos três grandes fontes de sofrimento: 1) o nosso próprio corpo; 2) o mundo externo; 3) os nossos relacionamentos com os outros homens. Para Freud, a maior fonte de sofrimento está em nossos relacionamentos. Além de assumir uma posição trágica, do ponto de vista antropológico, ele considera, em seu discurso-manifesto, a relação entre o eu e o outro como a expressão do inferno:

Em resultado disso, o seu próximo é, para eles, não apenas um ajudante em potencial ou um objeto sexual, mas também alguém que tenta satisfazer sobre ele a sua agressividade, a explorar sua capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem o seu consentimento, apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo. Homo homini lupus (Freud, 1930/1976, p. 133).

Assim, o discurso freudiano considera a violência como um fenômeno inerente à condição humana. Nesse sentido perguntamos: Qual é a base da moralidade? Como é possível a socialização entre os sujeitos humanos? Como controlar o potencial originário do homem para a agressividade? Para Freud, os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas; pelo contrário, são criaturas nas quais se deve levar em conta, entre os dotes instintivos, uma poderosa quota de agressividade (Freud, 1930/1976, p. 133).

O processo civilizatório exige a formatação e contenção do quantum pulsional. A pulsão sexual, na sua face demoníaca, também deve ser contida. A cena edípica traduz teoricamente a contenção da sexualidade através da proibição do incesto. Mas a vivência do Édipo também possibilitará a contenção da heteroagressividade através do superego. A triangulação edípica introduz a possibilidade de encontro com a alteridade.

Assim, a agressividade dirigida a outrem deve ser introjetada, e nesse processo ocorrerá uma transformação da agressividade em sentimento de culpa. Sinto-me culpado por desejar agredir aquele que no enlaçamento suporta comigo o desamparo. A verdade do desamparo possibilita a percepção da dependência entre os sujeitos.

O termo alemão Hilflösigkeit pode ser decomposto em três partes: Hilfe significa socorro, los pode ser definido por sem, keit é uma terminação substantivadora (sufixo substantivador); assim, podemos traduzir Hilflösigkeit por "insocorribilidade". O desamparo coloca o sujeito humano em uma condição de insocorribilidade, portanto, de dívida eterna.

Para Freud, a energia original que circula entre os sujeitos é a agressividade; por isso o laço social é garantido através da culpa, ou seja, da agressividade modificada a partir do encontro com a verdade do desamparo, que aponta para o outro como fim em si, e não como meio. Sem o encontro e o reconhecimento da alteridade, o eu sucumbiria no desamparo.

Assim Freud apresenta a sociabilidade como um movimento secundário em relação à agressividade e como uma forma de driblar a condição humana de desamparo. Podemos dizer que no pensamento freudiano não existe um genuíno movimento em relação ao outro, é sempre um movimento interessado e interesseiro.

Frankl não compartilha dessa tese e radicaliza na importância do outro para um eu. Contrapondo-se explicitamente ao raciocínio freudiano, Frankl (1978/1989) revela que o outro não é objeto de um eu para uma finalidade pulsional, pois assim as relações entre os seres humanos seriam reduzidas a uma reificação da existência de outrem por uma postura hedonista e egoísta, em razão de uma finalidade de obtenção de satisfação pulsional.

Segundo Frankl (1978/1989), o outro não é meio para um fim, pois toda vez que um eu se dirige a um outro com este fim, ele falha em sua intenção. Para a teoria frankliana, as relações são expressão de um encontro existencial de um eu e um tu, na qual se inscreve o reconhecimento da singularidade de outrem.

A autotranscendência, como um atributo ontológico do sistema teórico do existencialismo frankliano e na logoterapia, situa o homem como um ser que anseia por um sentido. Todavia, segundo Frankl (1978), o sentido da vida não se encontra dentro dos limites biológicos e psíquicos; assim, o homem só encontra o sentido de sua existência quando é capaz de transcender a si mesmo e direcionar-se à sua exterioridade. Tal concepção sinaliza o sentido da vida para além dos limites psicofísicos e apregoa que o ser só o encontra quando é capaz de esquecer a si mesmo e se superar pela intencionalidade de um encontro com outrem:

... Ser humano significa dirigir-se para além de si mesmo, para algo diferente de si mesmo, para alguma coisa ou alguém. Em outras palavras, o interesse preponderante do homem não é por quaisquer condições internas dele próprio, sejam elas prazer ou equilíbrio interior, mas ele é orientado para o mundo lá fora, e neste mundo procura um sentido que pudesse realizar ou uma pessoa que pudesse amar. E, com base em sua autocompreensão ontológica pré-reflexiva, tem conhecimento de que ele se auto-realiza precisamente na medida em que se esquece a si próprio; novamente na mesma medida em que se entrega a uma causa a qual serve, ou a uma pessoa a quem ama (Frankl, 1992, p. 77-78).

A vinculação entre os seres humanos, na ótica existencial frankliana, é, pois, possibilitada por uma vontade compartilhada pela busca de um sentido que inclua o outro por meio da solidariedade mútua entre os homens. Viktor Frankl (1978/1989) revela que tal atitude humana poderia conduzir à atenuação do problema da violência entre os seres humanos.

Segundo a concepção antropológica de Viktor Frankl (1978/1989), as teorias que apresentam o homem como objeto – instrumento de gozo – para a satisfação de um eu extraíram tal modelo da observação de animais, porque o homem possui não apenas necessidades pulsionais, provenientes de seu organismo, mas, expressivamente mais que os animais, o homem possui uma vontade de sentido.

Segundo Frankl (1978/1989), quando o homem procura o outro como instrumento, como meio para alcançar seu equilíbrio pulsional, isto é, um estado psíquico de homeostase por meio de uma catarse de seus impulsos libidinais, ele acaba por se frustrar em razão do excesso de intencionalidade que origina uma hiper-reflexão – uma acentuação da concentração reflexiva sobre algo ansiado –, que por sua vez suscita um mal-estar. Portanto, para sua realização no seu ser-com-o-outro, o homem deve renunciar e superar a si mesmo.

A visão do homem como um ser que reage agressivamente, fazendo da agressividade uma válvula de escape de tensões interiores, um ser que toma os objetos e as pessoas como meios para atingir deter-minados fins, essa visão pressupõe por base um sistema fechado. Ao contrário, vejo o homem como um ser caracterizado pela autotranscendência, aberto ao mundo, voltado para o sentido da vida e tendido para o encontro com outros seres humanos (parceiros)... É também minha convicção a de que a humanidade só terá uma chance de sobreviver se encontrar uma tarefa que todos possam desempenhar solidáriamente, animados por uma mesma vontade de encontrar um sentido (Frankl, 1978, p. 58-59).

AGRESSIVIDADE: FENÔMENO SUBUMANO AQUÉM DA AUTOTRANSCENDÊNCIA

Nota-se que, apesar de a proposta teórica frankliana considerar que o fenômeno da agressividade esteja, em última instância, vinculado à falta de sentido transcendente, Frankl apresenta algumas reflexões sobre o aumento da violência na modernidade. O autor insiste na distinção entre causas e razões. O homem tem causas para sua violência; causas psíquicas, emocionais, econômicas e outras. Mas, para Frankl (1978/1989), não existe sentido na violência, o logos não habita o campo da violência. Assim, a violência é um fenômeno subumano. Sentimentos como o amor e o ódio são movidos por uma consciência intencional; portanto, encontram-se no campo do sentido, no campo da razão e do logos. A violência e a agressividade estão fora do logos.

Odiar e amar são fenômenos humanos porque são movimentos intencionais, em ambos tenho uma razão. Ao contrário da agressividade, que é devida a causas. Essas causas podem ser fisiológicas ou psicológicas, mas não existe uma intencionalidade, um logos na agressividade (Frankl, 1978/1989, p. 65).

A diferença entre agressão e ódio é a mesma existente entre sexo e amor. Agressão e sexo estão vinculados a nossa condição animal, enquanto ódio e amor revelam nossa face humana. Humano é assumir uma atitude pessoal diante da agressividade, que é subumana. Destarte, segundo Frankl,"a diferença entre agressão e ódio é paralela com a existente entre sexo e amor: eu sou impulsionado para uma parceira pelo meu impulso sexual" (Frankl, 1978/1989, p. 66).

Para Frankl (1978/1989), os autores iniciam a confusão com o conceito de violência quando tratam um fenômeno subumano como um fenômeno humano; ou seja, apesar de a violência se fazer presente no mundo dos homens, ela revela a face animalesca desses homens.

A dificuldade começa realmente com o conceito de agressão, seja biológico, de acordo com as linhas de Konrad Lorenz, seja psicológico, de acordo com as linhas de Sigmund Freud. Esses conceitos são impróprios e inadequados, porque negligenciam totalmente a intencionalidade como fenômeno intrínseco ao homem. Segundo Frankl (1978/1989), não existe no psiquismo alguma coisa como uma agressividade que procura encontrar uma via de saída constrangendo-me, como simples vítima, a encontrar objetos que se prestem à tarefa de expeli-la. "(...) O que efetivamente existe é algo bem diferente: o ódio!" (Frankl, 1978/1989, p. 64).

Segundo Frankl (1978/1989), o conceito de violência pode ser interpretado como não-humano e impessoal. Frente a essa herança animal, o homem deve tomar posição e, assim, decodificar a violência em uma forma humana, como ódio, escolhendo, pois, o comportamento condizente com o logos, com o sentido de ser humano.

Os impulsos agressivos existem no homem, quer os interpretemos como uma espécie de patrimônio hereditário de nossos antepassados subumanos ou como um tipo de reação, de acordo com as linhas das teorias psicodinâmicas... os impulsos agressivos nunca existem per se numa pessoa, mas sempre como alguma coisa diante da qual ela deve tomar posição (Frankl, 1978/1989, p. 65).

Nesse sentido, percebemos que o homem sem liberdade pode ser prisioneiro dessa condição subumana da violência. Por isso Frankl afirma que os"homens humanos são, e provavelmente sempre serão, uma minoria"(Frankl, 1978/1989, p. 24). Segundo Fizzotti (1996), a falta de liberdade responsável e a falta de sentido encontram-se no centro da violência. Frankl (1978/1989) nos revela que a sociedade de consumo reduz o homem à sua dimensão corporal, fechando, pois, o espaço da liberdade que se realiza na dimensão espiritual do sentido. A materialização abre a porta para a manipulação e, assim, para a violência, que é interpretada como a falta de logos, de sentido.

O fenômeno da violência também ocorre de forma incipiente sob a lógica da sociedade de consumo e da concepção utilitarista de homem, que, de algum modo, aspira como fim não ao encontro com a pessoa do outro em sua totalidade existencial, mas àquilo que este pode oferecer em termos de prazer e de satisfação, como um meio para extrair o próprio gozo. Desse modo, o exercício de violar (raiz de toda violência) a realização da existência do outro estaria aí expresso. Assim, a constituição do vínculo social entre os sujeitos estaria fundada numa orientação narcísica e hedonista, e não na busca de um tu, um outro transcendente.

Com efeito, Frankl (1978/1989) adverte-nos acerca da iminente possibilidade de falência de um encontro autêntico consigo mesmo e com o outro em tais condições. Nesse sentido um encontro autêntico só será efetivado se houver um sentido comum que signifique o ser-com o outro, o que a lógica do consumo não oferece. A violência, portanto, é a própria ausência de sentido para a constituição da relação com o outro. Os homens estariam impedidos de ver o outro em sua integralidade existencial. O outro seria então percebido como um complemento de um eu narcísico, e não como um ser em si mesmo. Um ser só se orientaria a um outro ser para nutrir o seu solipsismo.

Nesse sentido, Frankl (1978/1989) não considera a moralidade como um fenômeno estritamente psicológico, como em outras matrizes do pensamento psicológico, mas, sobretudo, como um fenômeno espiritual. Tal especificidade de seu sistema teórico é sustentada até mesmo em relação às demais correntes da psicologia existencial.

A AUTOTRANSCENDÊNCIA COMO PILAR DA AÇÃO MORAL

A moral não é algo externo ao homem, mas interno a ele mesmo, isto é, é algo que lhe é pessoal, que pertence à dimensão singular do ser-homem, pois só a consciência moral pode lhe desvelar seus valores humanos, os quais não podem, na concepção de Frankl, ser abarcados por uma "lei moral" universal, que se preconiza generalista, portanto, se direciona ao alcance de todos.

Nesse sentido se justifica a insustentabilidade de uma "lei moral" engendrada universalmente, de forma generalizada, quanto à efetivação dos valores morais. A moral se efetiva sempre de um modo concreto em um ser que se encontra diante de uma situação, a qual o impele a antecipar intuitivamente o ser-que-deveria-ser, percebido pela consciência moral como um ser possível, o qual anseia sua realização numa posterioridade.

É justamente tarefa da consciência revelar ao ser humano "aquele único necessário", o que é sempre algo exclusivo. Trata-se daquela possibilidade única e exclusiva de uma pessoa concreta numa situação concreta, possibilidade à qual Max Scheler quis se referir com o conceito de"valores de situação" (Frankl, 1992, p. 27).

Em analogia ao amor, Frankl (1992) estabelece um paralelo entre suas especificidades e a moralidade humana. Segundo ele, o amor se realiza de uma forma semelhante à da moral, uma vez que é também intuitivo e irracional, pois o amor apreende do mesmo modo um ser em possibilidade, ou, nas palavras de Frankl (1992), um ser-que-não-é, tal como a consciência moral revela ao homem. Entretanto, enquanto o amor é capaz de perceber um ser-que-poderia-ser, a consciência moral é capaz de perceber um ser-que-deveria-ser, isto é, um ser que ainda não é realidade, mas potencialidade.

Tanto o amor quanto a consciência moral revelam-se hábeis a apreender as possibilidades ontológicas, e não somente as realidades ônticas. Contudo, suas dessemelhanças se expressam em torno da experiência existencial, pois por meio do amor o homem impetra uma potencialidade existencial, um ser-que-poderia-ser e que ainda não é, enquanto a consciência moral apreende uma potencialidade que anseia por tornar-se experiência palpável, não uma revelação de um ser-que-deveria-ser, mas que deverá sê-lo.

Assim a consciência moral se revela como uma função essencialmente intuitiva. A fim de antecipar aquilo que terá que realizar, a consciência deverá primeiramente intuí-lo; neste sentido, portanto, a consciência ética (o Ethos) é, de fato, irracional e apenas posteriormente racionalizável. Por acaso, não conhecemos um fenômeno análogo? Não seria o Eros igualmente irracional e intuitivo? Na verdade, o amor também intui; também ele percebe um ser que ainda não é... Assim o amor descobre e traz à tona possíveis valores na pessoa amada. Também o amor antecipa algo através de sua visão espiritual, justamente aquelas possibilidades pessoais ainda não realizadas que a pessoa concreta, ou seja, a pessoa amada, contém em si (Frankl, 1992, p. 27).

Na perspectiva da concepção frankliana, a moralidade sempre se manifesta sobre a face de uma escolha, a qual Frankl (1992) revela ter origem no inconsciente, uma vez que o ato ou conduta moral não é, segundo ele, algo racional, isto é, portador por essência de uma racionalidade pragmática (kantiana) em seu irrompimento na experiência do ser humano.

Na ótica frankliana, a consciência moral (gewissen) é intuitiva, pois apreende uma possibilidade necessária do ser para ansiar sua realização em sua experiência existencial. A moralidade em Frankl é expressão de passagem ou transformação da possibilidade do ser em necessidade de realização.

A realização humana, na teoria frankliana, é concebida como algo que sinaliza para um ser de possibilidades e que, dessa forma, coloca o homem em busca desse ser possível que ainda não o é, que não existe experiencialmente; isto é, a realização, nessa concepção teórica, se apresenta como uma possibilidade humana transformada em necessidade de realização, em anseio do próprio homem.

As "leis morais" constituídas universalmente revelam-se dessemelhantes da moralidade concebida por Frankl, porque possuem um caráter secundário, segundo o autor, uma vez que são processos racionalizáveis, enquanto a moralidade, em sua ótica, é concebida como um processo primário, inconsciente e pré-lógico - portanto, impossível de ser apreendida por uma racionalização apriorística.

A moralidade é compreendida por Frankl (1992) como um fenômeno da pessoalidade singular do ser, pois sedimenta suas raízes na interioridade de seu inconsciente e é expressão de seu interior para seu exterior, e não o oposto, isto é, não é algo exterior a ele mesmo. Sendo assim, a "lei moral" não lograria a sustentabilidade dos atos e condutas morais humanas, o que somente se sustentaria na consciência moral do homem, que o habilita a tais condutas por meio da realização dos valores humanos.

O fenômeno da moralidade é compreendido como intencionalidade da existência humana, e não como impulso determinista da atividade psíquica. O que fundamenta os postulados franklianos acerca da moralidade como fenômeno intuitivo de uma consciência moral inconsciente – no sentido de uma irracionalidade pré-lógica – é o caráter concreto e situacional de imediaticidade, o que requer do homem uma atitude moral expressa numa escolha, decisão irracional e pré-lógica. Nas palavras de Frankl:

Neste sentido, a consciência também precisa ser considerada como irracional; é alógica ou, melhor ainda, pré-lógica. Da mesma forma que existe uma compreensão pré-científica do ser e, ontologicamente anterior a ela, uma compreensão pré-lógica do ser, existe também uma compreensão pré-moral dos valores, muito anterior a qualquer moral explícita; trata-se justamente da consciência (Frankl, 1992, p. 26).

A consciência moral (gewissen) se inscreve na experiência existencial humana como uma compreensão a priori de um ser que é revelado existencialmente possível. Tal compreensão é pré-lógica, segundo a ótica de Frankl.

Embora não haja em Victor Frankl uma primazia do postulado da consciência, isto é, da premissa que atesta a preponderância da apreensão consciente dos fenômenos; não obstante esta particularidade, em uma aproximação analógica aos pressupostos epistemológicos da fenomenologia de Edmund Husserl aqui se situam alguns postulados da concepção teórica frankliana acerca da moralidade. Segundo Zilles (1996), em menção a Husserl:

Quando um fato se nos apresenta à consciência, juntamente com ele captamos uma essência (Wesen, eidos)... O conhecimento das essências é intuição... As essências são conceitos, isto é, objetos ideais que nos permitem distinguir e classificar os fatos (Zilles, 1996, p. 19).

As especificidades entre ambos os teóricos se exprimem quando, na compreensão de Husserl, a intuição se associa ao campo da consciência, enquanto Frankl, postula o irrompimento do inconsciente espiritual sobre a conduta e o ato moral na experiência existencial dos homens. Todavia, o seguinte enunciado husserliano indica-nos que a moral constitui uma modalidade ontológica que ilustra tal ambivalência entre intuição e razão – lógica. Destarte, parece-nos que as semelhanças entre os teóricos, no que concerne à moralidade, suplantam suas peculiaridades. Ainda nas palavras de Zilles:

Pela referência às essências ideais, a fenomenologia possibilita o que Husserl chama as "ontologias regionais". Regiões são a natureza, a sociedade, a moral e a religião. Estudar essas ontologias regionais então significa captar e descrever as essências ou modalidades típicas com que os fenômenos sociais, morais ou religiosos aparecem à consciência. Husserl contrapõe a essas ontologias regionais a ontologia formal ou a lógica (Zilles, 1996, p. 20).

Assim, tal como existe uma compreensão pré-científica do homem, registra-se também na experiência existencial uma dimensão irrefletida e responsável, que constitui uma compreensão pré-moral dos valores humanos, anterior à conduta e ao ato moral experienciado pelo homem. Segundo Frankl (1992), as deliberações humanas são inescrutáveis por meio de uma observação racional.

A consciência é irracional porque, pelo menos em sua realidade de execução imediata, nunca é completamente racionalizável: torna-se acessível apenas posteriormente a uma "racionalização secundária". Da mesma forma, todo o assim chamado "exame de consciência" só é concebível a posteriori; além disso, a deliberação da consciência é, em última análise, inescrutável (Frankl, 1992, p. 26).

A moral, segundo Frankl (1992), não possui uma fonte pulsional determinista por meio de uma tendência psicofísica. Não é compreendida como um fenômeno psicológico, mas como uma manifestação da dimensão espiritual. Portanto, a moralidade é uma percepção intuitiva e intencional que revela tendência para a realização das possibilidades da existência humana.

No conceito frankliano de autotranscendência, podemos encontrar uma pista que nos forneça uma elucidação mais abrangente acerca da categoria da moralidade que subjaz ao conjunto da obra deste autor. A autotranscendência como atributo ontológico revela o anseio original do homem por empenhar-se na busca por um sentido que ultrapassa o ser em seus limites psíquicos e biológicos e o conduz para a existência de outrem, numa atitude que coloca a própria existência em segundo plano. Para Frankl (1978), nenhuma conduta do homem tem finalidade em si mesma, na satisfação do próprio ser, mas se orienta para uma dimensão alteritária. Portanto, a moralidade é expressão da autotranscendência.

...O ser homem sempre indica um transcender na direção de um sentido, que o homem preenche, ou de um companheiro, que ele encontra. E somente na medida em que o homem assim se transcende na direção de um sentido, ele se realiza – a serviço de uma causa, por amor a alguém. Dito de outra forma: o homem só se torna completamente homem quando se dirige para uma causa ou para uma pessoa. E só chega a se realizar quando se esquece e supera a si mesmo. Como é bonito o espetáculo de uma criança absorvida nos seus folguedos e que não percebe que está sendo fotografada (Frankl, 1978, p. 63-64).

A finalidade da moralidade frankliana não se refere a uma adequação à cultura, como foi possível verificar em seus pressupostos, pois a moralidade é uma expressão pessoal do homem, isto é, uma necessidade pessoal de realização de suas possibilidades. Assim, segundo a teoria frankliana, a orientação primária do ser não é regida por um princípio de prazer que utiliza a realidade como meio para desta extrair satisfação.

Deste modo, a moralidade não é compreendida por Frankl como um princípio da realidade, isto é, como uma adequação à realidade que lhe é exterior. Para Frankl (1978), a moral não é uma exigência externa que ressoa sobre o homem e o constitui como um ser moral, mas exatamente o oposto: uma exigência proveniente de sua interioridade espiritual orientada para fora, para além de sua existência, para uma experiência que o transcende, pois o humano é a busca de sentido que se faz no enlaçamento com o outro.

A AUTOTRANSCENDÊNCIA COMO FUNDAMENTO DA SOCIABILIDADE

A sociabilidade se revela, para Frankl (1978), como uma modalidade da busca de sentido mediante o caráter autotranscendente que marca a experiência humana, uma vez que a autotranscendência se configura como uma orientação do homem para a realização de um encontro existencial com o outro que lhe é transcendente, diverso de si, opondo-se ao fenômeno da violência e criando condições para a moralidade. A sociabilidade se inscreve como uma modalidade do anseio humano por encontrar um sentido, tendo em vista que o ser humano direciona sua busca para o exterior de sua existência.

O homem possui uma dimensão existencial que o supera, que transcende sua experiência psíquica e física. Contudo, Frankl (1978/1989) adverte-nos acerca de um hiperdimensionamento desta expressão da existência, o que se traduziria num reducionismo sociologista. A sociabilidade humana, quando hiperdimensionada, torna-se um reducionismo e um problema para o homem, pois este corre o risco de concentrar e reduzir a realização de sua existência a uma só dimensão existencial, o que o impede de tomar contato com sua integralidade existencial.

Ser social, para esse sistema teórico, assimila-se a uma intencionalidade do ser, a uma vontade de encontrar e realizar um sentido por meio da premissa da autotranscendência. Isto significa que o homem que anseia pelo sentido de sua existência - portanto, que se empenha na busca de um sentido que lhe é transcendente - acaba assim por encontrar o outro, que se lhe revelará como um tu, um não-eu, digno de reconhecimento de sua peculiar pessoalidade, e não como objeto de gozo para um eu.

O homem encontra o sentido de sua existência em sua experiência social, na qual expressa sua dimensão de alteridade. Vale dizer que Victor Frankl (1978/1989) emprega uma distinção entre os modos de existência do homem numa comunidade e numa coletividade. A comunidade se distingue como manifestação dotada de uma pluralidade de dessemelhanças que se congregam em sua extensão, as quais exprimem o valor da qualidade da individualidade do homem, que o sustenta na relação que este constitui com o não-eu.

Já a coletividade se inclina à dissolução da individualidade por um objetivo de estabelecer uma uniformidade entre os seres que a compõem, uma vez que numa coletividade o homem pode demonstrar um caráter médio, incompatível com uma experiência existencial de autenticidade. Vale ainda ressaltar que a comunidade fornece sentido à existência do ser, e este, por sua vez, confere sentido à comunidade, enquanto a coletividade ameaça o sentido da singularidade da existência, podendo fazer-se solúvel aquilo que é especificidade do ser.

O atributo existencial de ser-com-o-outro pode desembocar em outro atributo, que é também exclusivamente humano, a saber, o de ser-em-outro. Tal capacidade consiste na compreensão e no entendimento mútuos. A capacidade de compreensão mútua entre os homens é uma expressão que caracteriza a relação entre dois seres humanos.

Essa capacidade se expressa no que Frankl (1978/1989) designa como interexistencialidade, isto é, a possibilidade de um conhecimento mais aprofundado do outro por meio de expressões de alteridade, como a que se inscreve na experiência de doação a um outro ser, o qual é apreendido em sua humanidade. Estamos nos referindo a um conhecer interexistencial, o qual só pode se operar metafisicamente na ontologia do amor humano. Portanto, tal capacidade de compreensão de um ser em relação a outro ser só pode se inscrever entre "seres de mesma qualidade", isto é, que possuem uma paridade entre si, um estado de eqüidade existencial.

Desse modo, pode ser apontado como um pressuposto para a sociabilidade o reconhecimento de um atributo semelhante no outro, o qual ocorre não no âmbito ôntico, mas no ontológico. Tal reconhecimento de um caráter semelhante, que torna nítida a pessoa humana na figura de outrem, configura-se como abertura, uma possibilidade para a relação de entendimento e compreensão mútua entre os seres humanos.

A existência humana, na concepção de Frankl (1978), possui um caráter de irrepetibilidade temporal, constituído em relação a outrem no contraste experienciado relacionalmente em referência ao outro. Assim, essa concepção de homem atesta como imprescindível o reconhecimento do caráter de uma especificidade qualitativa da existência humana. Segundo Victor Frankl (1978), tal caráter de irrepetibilidade e unicidade da existência é o que confere sentido à mesma, já que, se os homens fossem todos iguais – no sentido de uma uniformidade –, não lhes seria possível possuir um atributo de peculiaridade que caracterizasse a existência e a tornasse insubstituível temporalmente.

Retornando agora à comparação com o caleidoscópio, diremos que somente na medida em que eu desisto, em que renuncio ao meu ser-assim, tudo o que é mais do que eu pode tornar-se visível. Esta renúncia é o preço que devo pagar para conhecer o mundo. Para conhecer aquilo que é mais do que a simples expressão do meu próprio ser. Em síntese: devo transcender a mim mesmo. Se não puder fazê-lo, então minha capacidade cognitiva fica restringida; eu mesmo e o conhecimento de mim mesmo ficamos no caminho, tornamo-nos obstáculos. Ad hoc, uma derradeira comparação: quando é que os olhos (excetuando-se o caso do espelho) se podem ver? Só nos casos de turvação do cristalino ou do corpo vítreo, quando a capacidade visual já está afetada. Em outras palavras, a reflexão é um modo deficiente e secundário de intenção do ser, do mesmo modo que o é a auto-realização com relação à intenção de realização do sentido (Frankl, 1978, p. 37).

O homem não pode ser apreendido em sua existência de forma reducionista dedutivamente, em função da comunidade na qual se encontra inserido, mas poderá sê-lo em relação a esta comunidade, isto é, por meio da nitidez de seu valor para ou na comunidade. Sua vida somente encontra um sentido nesta relação que estabelece com o todo em que está inserido, quando é capaz de ex-istir, isto é, de ser para além de si mesmo.

A percepção do caráter único e insubstituível da existência só pode ser efetivada na experiência relacional do ser com o todo que o circunda. Só na relação e em relação ao todo pode um sentido ser conferido à existência. Dessa forma, o homem não pode ser concebido simploriamente como uma célula integrante de um todo, ou ainda como um fragmento-síntese da comunidade à qual pertence, mas como um ser-com-o-outro que ex-iste em relação ao não-eu que constitui a comunidade.

Há uma relação de reciprocidade entre o sentido da comunidade e o sentido do ser em sua individualidade, pois ambos necessitam um do outro para adquirir uma significação que os caracterize. A comunidade precisa do indivíduo para se constituir como comunidade, enquanto o ser em sua individualidade necessita da comunidade para se reconhecer como um ser específico, singular e insubstituível, para poder assim encontrar o sentido de sua existência em relação ao outro.

O sentido da individualidade só se atinge plenamente na comunidade. Nesta medida, o valor do indivíduo depende da comunidade. De modo que, se a comunidade, por si, tiver sentido, não poderá prescindir da individualidade dos indivíduos que a formam; na massa, em contrapartida, desaparece o sentido da existência única e individual de cada homem, e não pode deixar de desaparecer, já que tudo quanto tiver a peculiaridade de algo único atua nela como fator de perturbação. Pode-se dizer ainda que a individualidade intervém na constituição do sentido da comunidade e que, por outro lado, esta também intervém na constituição do sentido da primeira; ao passo que o"sentido" da massa é perturbado pela individualidade dos indivíduos que a compõem (obs. 16) e, por outro lado, o sentido da individualidade (que na comunidade se destaca) desaparece nela inteiramente (Frankl, 1978/1989, p. 116).

A vida do homem só adquire sentido quando este se supera, transcende a sua existência e se apreende como uma peça constituinte de um todo, por meio do reconhecimento de si mesmo como um elemento relevante para sua constituição. Por conseguinte, o reconhecimento do valor que adquire a existência de um ser para o seu entorno circundante confere sentido à sua vida.

Assim, o ser só ex-iste em relação a outro ser, referenciado num todo que lhe é distinto e que, deste modo, revela a importância da especificidade de sua existência como um ser individual para o todo que o envolve. Portanto, mais do que somarem-se as partes, elas se reúnem, se juntam umas às outras para constituírem e darem significação ao todo. O todo, por sua vez, também possui um sentido próprio, assim como o ser pessoal possui um sentido próprio.

Segundo a concepção frankliana de homem, o delineamento dos limites da existência é que confere sentido ao ser. Portanto, as relações sociais conferem sentido à existência do homem enquanto são capazes de delinear sua existência e sua pessoalidade peculiar, única e irrepetível, por meio do contraste que estabelece com o todo a que pertence. Quando é compreendido como um objeto para um eu, o não-eu – o outro – é produto de uma concepção reducionista, pois perde sua especificidade humana e acaba por equiparar-se a uma reles experiência da facticidade. Assim, o reconhecimento da especificidade de cada homem é o ato imprescindível de apreendê-lo como um ser humano, garantindo, assim, a conduta moral e evitando o comportamento violento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O que difere substancialmente na compreensão da violência pela antropologia existencialista frankliana é a crença (aposta confiante) nas potencialidades da existência humana. A humanização do próprio homem é entendida como um norte de superação da violência, pois humanizar é transcender a uma condição animal. O homem pode realizar suas potencialidades na autotranscendência quando encontra um sentido fora dele mesmo, no encontro autêntico com o outro. Assim a violência se inscreve como uma confinação do homem a sua dimensão biológica stricto sensu, o que impede a contemplação da expressão de humanidade de sua existência, pois aponta-nos um rebaixamento do humano a uma condição animal.

Na autotranscendência, por meio do atributo da sociabilidade, o sentido da existência pode ser desvelado, tal como vimos na experiência de ser-com-o-outro, que leva o homem a constituir comunidade. A privação de sentido da existência conduz o humano a não descobrir o significado da dimensão de ser-com e a destituição de seu status humano. A experiência de ser-com-o-outro como dimensão da existência possibilita a vivência da conduta moral – sempre concreta, situacional –, que por sua vez permite desvelar o sentido dos valores da existência com-o-outro. O principio da não-violência está, portanto, no reconhecimento do outro como uma existência com fim em si mesma, e não como um meio, uma reificação do ser – o outro – transformado em objeto de gozo para um eu narcísico e hedonista.

Recebido em 29/08/2005

Aceito em 29/03/2006

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  • Endereço para correspondência

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Mar 2007
    • Data do Fascículo
      Dez 2006

    Histórico

    • Aceito
      29 Mar 2006
    • Recebido
      29 Ago 2005
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