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Pesquisa e acontecimento: o toque no impensado

Pesquisa y acontecimiento: el toque en lo impensado

Research and event: the touch in the not thinking one

Resumos

Intenta-se, neste texto, abrir uma janela e pensar sobre a relação da pesquisa com o conceito de acontecimento, decorrente de algumas considerações de Foucault (1992) e Deleuze (1999). Deste modo, visa-se tocar em alguns problemas importantes, tais como: a relação pesquisador/objeto, a noção de História, as revoluções do tempo e como se dá a propagação daquilo que estudamos na sociedade e em nossa própria vida. Busca-se também fazer um corpo-a-corpo com a poeira virtual que o escavar-revolver-pesquisar nos impõe quando pensamos a partir da noção de acontecimento. Acontecimentalizar a pesquisa, para Foucault, é um procedimento analítico e de produção de conhecimentos implicado com uma posição teórico-política de desnaturalização que considera o pesquisar como forma de acesso à desmultiplicação causal. Portanto, busca-se constituir uma posição de análise, isto é, perspectivar as singularidades do acontecimento, rondá-lo dia e noite para fins de adentrar-lhe a carne e romper as evidências que se assomam ao nosso olhar.

pesquisa; acontecimento; singularidade


Se intenta, en este texto, abrir una ventana y pensar sobre la relación de la pesquisa con el concepto de acontecimiento, decurrente de algunas consideraciones de Foucault (1992) y Deleuze (1999). De este modo, se visa tocar en algunos problemas importantes, tales como: la relación investigador / objeto, la noción de Historia, las revoluciones del tiempo y como se da la propagación de lo que estudiamos en la sociedad y en nuestra propia vida. Se busca también hacer un "cuerpo a cuerpo" con el polvo virtual que el excavar-revolver-pesquisar nos impone cuando pensamos a partir de la noción de acontecimiento."Acontecimentalizar" la pesquisa, para Foucault, es un procedimiento analítico y de producción de conocimientos implicado con una posición teórico-política de desnaturalización que considera el pesquisar como forma de acceso a la desmultiplicación causal. Por lo tanto, se busca constituir una posición de análisis, o sea, perspectivar las singularidades del acontecimiento, rondarlo día y noche para fines de adentrarle la carne y romper las evidencias que se asoman a nuestra mirada.

pesquisa; acontecimiento; singularidad


In this work it is attempted to ‘open a window’ and reflect upon the association of research with the concept of event, taking into account some considerations by Foucault (1992) and Deleuze (1999). It is sought to approach some important aspects, such as, the relationship researcher-object, the notion of History, the time revolutions and how the propagation of what is studied occurs in our society and in our own lives. It is also attempted to have a hand-to-hand fight with the ‘virtual dust’ that the digging, turning over and researching impose to researchers, when developing their thoughts based on the notion of event. According to Foucault, turning the research into an event, is an analytical procedure of production of knowledge, together with a theoretical-political position of denaturalization that considers research as a way to take part in the causal demultiplication. Therefore, it is intended to set up an analysis position, that is, to bring into perspective the singularities of event, patrolling it day and night, with the purpose of penetrating its own flesh, in order to break the evidences that can be revealed to us.

Research; event; singularity


DOSSIÊ- EDUCAÇÃO

Pesquisa e acontecimento: o toque no impensado

Research and event: the touch in the not thinking one

Pesquisa y acontecimiento: el toque en lo impensado

Tania Mara Galli FonsecaI; Patrícia Gomes KirstII; Andréia Machado OliveiraIII; Maria Fátima D’ÁvilaIV; Ana Lúcia Mandelli MarsilacV

IProfessora dos Programa de Pós-graduação em Psicologia Social e Institucional e em Informática Educativa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul-UFRGS

IIPsicóloga, Mestre em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul-UFRGS

IIIArtista Plástica, Mestre em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul-UFRGS

IVSocióloga, Mestre em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul-UFRGS

VMestre em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul-UFRGS

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Tania Mara Galli Fonseca. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Programa de Pós-graduação em Psicologia Social e Institucional, Avenida Otto Niemeyer, 2417/115 – Bairro Camaquã, CEP 91910 001, Porto Alegre-RS. E-mail: tfonseca@via-rs.net

RESUMO

Intenta-se, neste texto, abrir uma janela e pensar sobre a relação da pesquisa com o conceito de acontecimento, decorrente de algumas considerações de Foucault (1992) e Deleuze (1999). Deste modo, visa-se tocar em alguns problemas importantes, tais como: a relação pesquisador/objeto, a noção de História, as revoluções do tempo e como se dá a propagação daquilo que estudamos na sociedade e em nossa própria vida. Busca-se também fazer um corpo-a-corpo com a poeira virtual que o escavar-revolver-pesquisar nos impõe quando pensamos a partir da noção de acontecimento. Acontecimentalizar a pesquisa, para Foucault, é um procedimento analítico e de produção de conhecimentos implicado com uma posição teórico-política de desnaturalização que considera o pesquisar como forma de acesso à desmultiplicação causal. Portanto, busca-se constituir uma posição de análise, isto é, perspectivar as singularidades do acontecimento, rondá-lo dia e noite para fins de adentrar-lhe a carne e romper as evidências que se assomam ao nosso olhar.

Palavras-chave: pesquisa, acontecimento, singularidade.

ABSTRACT

In this work it is attempted to ‘open a window’ and reflect upon the association of research with the concept of event, taking into account some considerations by Foucault (1992) and Deleuze (1999). It is sought to approach some important aspects, such as, the relationship researcher-object, the notion of History, the time revolutions and how the propagation of what is studied occurs in our society and in our own lives. It is also attempted to have a hand-to-hand fight with the ‘virtual dust’ that the digging, turning over and researching impose to researchers, when developing their thoughts based on the notion of event. According to Foucault, turning the research into an event, is an analytical procedure of production of knowledge, together with a theoretical-political position of denaturalization that considers research as a way to take part in the causal demultiplication. Therefore, it is intended to set up an analysis position, that is, to bring into perspective the singularities of event, patrolling it day and night, with the purpose of penetrating its own flesh, in order to break the evidences that can be revealed to us.

Key words: Research, event, singularity.

RESUMEN

Se intenta, en este texto, abrir una ventana y pensar sobre la relación de la pesquisa con el concepto de acontecimiento, decurrente de algunas consideraciones de Foucault (1992) y Deleuze (1999). De este modo, se visa tocar en algunos problemas importantes, tales como: la relación investigador / objeto, la noción de Historia, las revoluciones del tiempo y como se da la propagación de lo que estudiamos en la sociedad y en nuestra propia vida. Se busca también hacer un "cuerpo a cuerpo" con el polvo virtual que el excavar-revolver-pesquisar nos impone cuando pensamos a partir de la noción de acontecimiento."Acontecimentalizar" la pesquisa, para Foucault, es un procedimiento analítico y de producción de conocimientos implicado con una posición teórico-política de desnaturalización que considera el pesquisar como forma de acceso a la desmultiplicación causal. Por lo tanto, se busca constituir una posición de análisis, o sea, perspectivar las singularidades del acontecimiento, rondarlo día y noche para fines de adentrarle la carne y romper las evidencias que se asoman a nuestra mirada.

Palabras-clave: pesquisa, acontecimiento, singularidad.

A PESQUISA COMO ACONTECIMENTO

Abrir uma janela e pensar sobre a relação da pesquisa com o conceito de acontecimento segundo Foucault (1992) e Deleuze (1999) toca em alguns problemas importantes, tais como a relação pesquisador / objeto, a noção de História, as revoluções do tempo e como se dá a propagação daquilo que estudamos na sociedade e em nossa própria vida.

O pensamento em torno daquilo que estamos fazendo com nossa pesquisa tece a nossa relação com o presente e com as demandas sociais a que somos mais atraídos a imprimir sentido. Se aceitarmos que a revolução é o signo daquilo que fica irradiando na História, colocando-se como motor de novos investimentos para a criação da diferença, na pesquisa, é possível pensar o teor revolucionário do encontro do pesquisador com seu objeto.

Não é possível marcar um lugar específico no tempo do encontro com aquilo que nos gera a vontade de saber e de criar um lugar no mundo ao qual iremos circunscrever nossa fala. A pesquisa não nasce; ela irrompe e nos mergulha em seu magma. De certa forma, podemos admitir que ela já existia em nós, em um diferente e especial estado contraído, e que já habitava a nuvem virtual e contínua de nossa própria duração, à espera de sua atualização; que a pesquisa, enfim, corresponde ao nosso próprio passado, grávido de muitos futuros e devires.

Tratamos, aqui, de uma relação-atração procedente de um remoto tempo, cujas marcas e vestígios operam como potências que nos lançam e relançam no caos do não-saber, no risco de criar e de nos tornarmos artesãos-autores. Neste sentido, pesquisar refere-se a um mergulho no inumano que nos habita, constituindo-se, como nos mostra Foucault (1984),em um acontecimento que significa sempre uma ruptura evidente – a emergência de uma singularidade – e, ao mesmo tempo, uma ruptura de evidências. Falamos, pois, da pesquisa-acontecimento que, irrevogavelmente, remete-nos a uma problematização.

Nesta perspectiva, as práticas que produzimos, por sua vez, devem ser consideradas como o percurso de uma dupla via, uma vez que concernem a um trabalho objetivo e subjetivo, cuja realização ocorre de modo simultâneo e inseparável. Neste modo de produção, já não podemos dissociar sujeito e objeto, subjetivação e objetivação, uma vez que operamos em um nível de trabalho cuja realização somente se torna possível através daquilo que Schwartz (2003) denomina de usos de si. Para além da produção de resultados objetivos, nossas práticas podem indicar em que direção estamos orientando o nosso desejo de transformação, enfim, nelas se explicita em que nos estamos tornando.

Acreditamos que a pesquisa corresponde a fazer renascer o objeto livrando-o sutilmente dos discursos anteriores e inaugurando-o através de nova estética argumentativa. É preciso criar acoplamentos e diálogos entre linguagens, inventar e ativar conexões, enfim, constituir uma rede de múltiplas reverberações.

À medida que construímos a arquitetura de nosso objeto, somos nós próprios que também somos constituídos. Fazemos um corpo-a-corpo com a poeira virtual que o escavar-revolver-pesquisar nos impõe. Através de inúmeras provocações e de tantas escolhas, que se encontram ora imersas no silêncio que precede sua enunciação e escrita, ora urgentes e emergentes de nossas vivências, cujo transbordamento exige significação, vimos a saber, pela experimentação, que aquilo que éramos não seremos mais.

A partir do momento em que nos atrevemos a escrever de forma singular, é possível trazermos a público a experiência de afecção. A referida afecção faz nascer um espetáculo e com ele a contaminação e o entusiasmo por mais sabermos daquilo em que diferimos e daqueles que nos acompanham.

Reconhecemos então, segundo as palavras de Benjamin (1984), que

este fôlego infatigável é a mais autêntica forma de ser da contemplação. Pois, ao considerar objeto nos vários estratos de sua significação, ela recebe ao mesmo tempo, um estímulo para o recomeço perpétuo e uma justificação para a intermitência do seu ritmo. Ela não teme, nessas interrupções, perder sua energia, assim como o mosaico, na fragmentação caprichosa de suas partículas, não perde sua majestade (p. 50).

Bergson (1990) tece comparações entre a afecção e a simples percepção. Para o filósofo, a percepção impõe a afecção no sentido de que algo vai ser mais valorizado e percebido com maior intensidade. A percepção, desprovida de maiores conseqüências, é uma ação banalizada sobre as coisas, enquanto a afecção seria, em primeiro lugar, a ação das coisas sobre nós. A percepção faz com que o mundo passe pelo sujeito e a afecção faz com que o sujeito seja adentrado e obrigatoriamente receba o referente.

Cria-se, então, a onda, o vírus ou mesmo a radiação; radiação que faz do tempo um campo complexo, pois se transmite em todas as direções e desmantela os abismos entre passado e futuro com a fluência de um interesse e de uma indagação.

Já não se pode pensar em quando, pois já faz parte do corpo o objeto, ou melhor, o corpo do pesquisador se fez filtro da relação do mundo com o objeto: em tudo o que vemos - no cinema, a cada livro, em alguns sonhos - procuramos saídas para a problematização que nos enreda. O exercício de mediação ou o corpo como filtro faz surgir na existência do pesquisador a vida de um outro. Uma sensação relativa ao estranhamento que se espalha em nós pode ser identificada nos momentos em que lemos um texto escrito por nós, ali, em alguns instantes, e nos tornamos perplexos, sentindo-nos de fato atingidos pela diferenciação. Como foi possível?

Na busca de sentido para a fração de mundo"escolhida" já não mais podemos observar o fora; tudo o que conseguimos é apreciar a nós mesmos em processo de desfiguração, como dúvida, entregues ao pensamento e na pista do vestígio da melhor palavra. Precisamos libertar a pressão do mundo em nós ou, como diria Foucault, liberar violências da história no próprio corpo. Aventurar registros e ficcionalizar. Sabemos que aquilo que o pesquisador diz se liga a certa cadeia discursiva daquilo que já foi dito e que o ver e o falar compõem o território no qual o saber é operado (Foucault, 1992). Já o poder se produz bem na separação entre o olho e a palavra. Entre o olho e a palavra ou a matéria física e a gramática, as estratégias de promoção de sentido são produzidas. Buscar um sentido para as coisas vistas é um ato, antes de tudo, de investimento de desejo. O poder, neste sentido, modela o desejo e faz com que o sujeito diga o que acredita ter visto. Aquilo que é dito sobre certa coisa vista é a verdadeira coisa, verdade esta que se ergue e esvai na própria produção discursiva.

Assim, o acontecimento torna a linguagem possível com suas cargas apreendidas, com seu potencial de fazer enunciar, com a sedução que vai conduzindo o desejo e transmutando-o em palavra e em conceito e, finalmente em suporte para que o objeto possa constituir-se na tessitura da problematização.

Desvendar por onde entrar no mar dos fluxos do nosso contemporâneo entregando o corpo à sua correnteza, possivelmente possa fazer o mundo falar. Marcar as folhas de papel em branco se transforma, assim, em estancamento do tempo e de sua transmutação em dobragens da ciência e da produção existencial. Ao frearmos o tempo, conferimos-lhe mais força: um vigor que sintetiza muitos outros encontros e que eclode ao acaso da inspiração que se torna marca. Travar uma passagem e alavancá-la em direção a si mesmo fazem nascer uma linguagem onde somos capazes e temos poder de integrar o redemoinho do acontecimento.

O entendimento da pesquisa como acontecimento confere-lhe espaços vazios, distâncias e ausências, e sua conclusão cronológica só poderá vir a ser a continuidade da operação de problematização, porquanto entendemos, juntamente com Deleuze (1999), que mais importante do que resolver o problema é o modo como o colocamos. "Colocação e solução do problema estão quase se equivalendo aqui: os verdadeiros grandes problemas são apenas colocados quando resolvidos" (op.cit., p.9). Neste sentido, como nos ensina o filósofo, a história dos homens, tanto do ponto de vista da teoria quanto da prática, é a constituição de problemas. É aí que fazemos história, sendo que a tomada de consciência dessa atividade é como a conquista da liberdade. Mais do que isto, trata-se de nos encontrarmos com as vertigens do devir sempre ventando, para que possamos manter o chamado ao presente e a porosidade necessária para entender o ato de pesquisar como um trampolim para a vida.

PESQUISAR O ACONTECIMENTO

As práticas sociais podem ser olhadas como as marcas dos dentes do tempo no corpo da história, como vestígios de uma herança que "não é uma aquisição, um bem que se acumula e solidifica: é antes um conjunto de falhas, de fissuras, de camadas heterogêneas que a tornam instável, e do interior ou debaixo, ameaçam o frágil herdeiro" (Foucault, 1979, p.17). Nelas se acumula uma memória social e coletiva, o que as inscreve na ordem não do tempo da sucessão linear, e sim, no da duração, entendida não como um instante que substitui outro instante, mas como "progresso contínuo do passado que rói o futuro e incha avançando" (Bergson, 1964, p.44). Nesta perspectiva, o passado, que incessantemente cresce, também se conserva indefinidamente. Acompanha-nos por inteiro a cada instante e acomoda-se como um revestimento, um lençol colado ao avesso de nosso corpo, que olha tanto para dentro como para fora, pele -cobertura e forro -, membrana sensível, fronteira grudada aos próprios nervos, osso e carne: eis o que chamamos de corpo, superfície subjetiva singular, em constante atividade para resolver-se em relação a um determinado estado das forças em correlação que lhe são imanentes. Desse plano de composição não basta conhecer as proveniências herdadas das vivências, enfim daquilo que fomos e que está sempre ali, inclinado sobre o presente que se lhe vai juntar; é preciso que se considere também o afrontamento de suas marcas, seu estado de luta no jogo casual das dominações de umas sobre as outras. Torna-se necessário aquele olhar que leva em consideração a contínua erosão das regras sociais, não por guerras espetaculares de Estado, mas por práticas referidas como microbianas, que se referem aos sujeitos como terminais de consumo da rede de poderes-saberes. Estes sujeitos se encontram alocados no social como pontos moleculares a partir dos quais alguma fissura se alarga, outra é vedada, na interminável e impossível tarefa de estabelecer o controle social a partir de um centro irradiador. Antes do que uma ampla e reta estrada, são um labirinto de muitas entradas, muitos feixes em bifurcação, impulsionados por um modo rizomático de expansão e conexão regido pela lógica da fuga e de infinitas associações.

Acontecimentalizar a pesquisa refere-se ao que Foucault considera como um procedimento analítico e de produção de conhecimentos implicado com uma posição teórico-política de desnaturalização. Para o autor, a acontecimen-talização aponta para uma ruptura evidente com a tendência de busca de uma constante histórica ou um traço antropológico, ou ainda uma evidência se impondo da mesma maneira para todos.

Ruptura das evidências, essas evidências sobre as quais se apóiam nosso saber, nossos conceitos, nossas práticas. (...) Consiste em reencontrar as conexões, os encontros, os apoios, os bloqueios, os jogos de força, as estratégias, etc. que, em dado momento, formaram o que em seguida funcionará como evidência, universalidade, necessidade (Foucault, 2003, p.339).

Tal procedimento de desmultiplicação causal consiste em analisar as práticas não como um fato de instituição ou efeito de ideologia, mas desde os múltiplos processos de práticas simultâneas que concorreram para criar as condições de sua emergência. Neste sentido, trata-se de situar as práticas como emergentes de uma certa correlação de forças em um dado espaço-tempo social e atribuir-lhes uma múltipla causação, uma gênese complexa a partir de determinado acontecimento do qual se produzem como um dos seus possíveis efeitos singulares. Trata-se de romper com a tendência de atribuição de causalidade única, para construir um "poliedro de inteligibilidade", cujo número de faces não está previamente definido e nunca pode ser concluído. Trata-se, sobretudo, de operar um modo de análise que, antes de se articular a uma analítica da verdade, conjuga-se a uma ontologia do nosso próprio presente.

Assim, o pesquisador deve saber buscar conhecimento a respeito das condições que, em dado momento, tornaram possíveis determinadas práticas.

Trata-se de fazer a análise de um regime de práticas – as práticas sendo consideradas como o lugar de encadeamento do que se diz e do que faz, das regras que se impõem e das razões que se dão, dos projetos e das evidências. (...) Analisar programações de conduta que têm, ao mesmo tempo, efeitos de prescrição em relação ao que se deve fazer e efeitos de codificação ao que se deve saber (Foucault, 2003, p.338).

Trata-se, pois, de expor à luz, objetivar, determinadas práticas que se contraem e escondem nas coisas e que nossa consciência não concebe. Sobretudo, trata-se de considerar que não há objetos naturais, tampouco coisas, e que os objetos e as coisas não são senão correlatos das práticas. Neste modo de operar a análise,"o que é feito, o objeto, se explica pelo que foi o fazer em cada momento da história; enganamo-nos quando pensamos que o fazer, a prática, se explica a partir do que é feito" (Veyne, 1988, p.257).

Nosso pesquisar deve considerar que as práticas não são as coisas, mas estão nas coisas, apresentam-se sempre sob amplos drapeados e neles se ocultam como a parte imersa do icerberg - abaixo, portanto, da linha de visibilidade. Pesquisá-las implica em desprendê-las das formas e dos objetos de que se encontram impregnadas; implica, ainda, em conferir-lhes existência a partir daquilo que está feito e que dobra em si o que foi o seu próprio fazer-se. Neste ponto incide e ativa-se o olhar do observador-pesquisador, para, em uma operação de desdobragem, rachadura ou estiramento, dar a ver naquele ente-organismo – então exposto em suas vísceras -, as multiplicidades que lhe são imanentes e que se encontram ali, insuspeitas, tecidas tal qual trama muito bem urdida a ponto de ser confundida com um espécie de natureza. O que importa em nossa tendência a genealogias é evidenciar que extrair o fazer do feito, a evolução do evoluído, as virtualidades do atualizado, requer operações cognitivas que não se assentam somente em modos racionais. A razão fala sobre o que ignora, sobre objetivações que desconhece, e atua sobre a forma, desde o seu exterior, tomando-a como um conjunto de relações entre elementos da matéria bruta. É-lhe pertinente uma relação externa com o objeto do qual tenta aprender o descontínuo e o imóvel.

A inteligência não é feita para pensar a evolução, no sentido próprio da palavra, isto é, a continuidade de uma mudança que seja pura continuidade. (... ) a inteligência tem a representação do devir como série de estados, cada um dos quais é homogêneo com ele próprio e por conseqüência não muda. (... ) a inteligência deixa fugir o que há de novo em cada momento da história. Não admite o imprevisível ... não seria possível descobrir que sua origem está na obstinação em tratar o vivo como se fosse inerte, e em pensar toda a realidade, por mais fluida que seja, sob a forma de sólido definitivamente fixado. (... ) A inteligência é caracterizada por uma natural incompreensão da vida (Bergson, 1964, p. 175).

É assim que o acontecimentalizar na pesquisa busca deslocar o foco dos objetos instituídos no campo do conhecido, para uma direção construcionista que potencializa a vida pela imersão no acaso, pelas intensidades no lugar das representações. Não parte de uma intenção – representação de um mundo preexistente subjugado – e sim, de uma intenção autopoiética com vistas à produção dos sentidos. Constitui-se nos agenciamentos, nos acoplamentos de ações, tempos e espaços, nos modos de subjetivação. A inserção do acontecimentalizar na pesquisa produz uma investigação sem produtor e sem produto, sem sujeito e sem objeto, pois ambos são produzidos no mesmo processo que é guiado pela névoa do impessoal-virtual.

Se tomarmos o pesquisar desde parâmetros da modernidade, vamos nos defrontar com uma espécie de lógica que toma o tempo como um agregado numérico, com direção linear e teleológica a desenvolver sua perpétua flecha cartesiana de passado-presente-futuro. Nosso caso e nosso modo, felizmente, não comportam tal equívoco. Precisamos construir acessos à desmultiplicação causal segundo Foucault (1979), ou seja, analisar os múltiplos processos que constituem um acontecimento. Precisamos constituir uma posição de análise para fazer pousar o nosso olhar em um sem-número de faces do acontecimento singular; precisamos perspectivar as singularidades do acontecimento, rondá-lo dia e noite para fins de adentrar-lhe a carne e romper as evidências que se assomam ao nosso olhar. Isto significa que, para melhor ver, precisamos lutar com nossa própria visão, perfurar nossos olhos para fazê-los ir além dos contornos, dos regulamentos, das normas. Precisamos desaprender o que temos sido, aproximarmo-nos da névoa que rodeia cada ente, para entendê-la como o écran que, ao mesmo tempo que nos impede de ver, prolonga a nossa alma no interior das coisas. Precisamos perder a visão do que víamos, cegar com a vista, para, como nos ensina Fernando Pessoa através de José Gil (2000), apreender a existência das coisas, agir sobre o sentido já constituído das coisas, visando desagregá-lo.

Fragmentar, separar, singularizar as coisas equivale a diferenciá-las umas das outras. ‘Compreendi que as coisas são reais e todas diferentes umas das outras;/ Compreendi isto com os olhos, nunca com o pensamento./ Compreender isto com o pensamento seria achá-las todas iguais (Gil, 2000, p. 23).

Assim é que afirmar a vida é também deixá-la diferenciar-se, singularizar-se; é, igualmente, amar as coisas sem fusionar-se ou identificar-se com elas; é afirmar o princípio de nossa própria diferenciação para que venhamos a amar a diferença como exterior a nós, uma vez que, segundo as palavras de Gil "sou-eu-mesmo sempre no exterior de mim, eu que aspiro à exterioridade absoluta" (2000, p. 28). Nossa pesquisa, desta forma, coloca-nos diante de paradoxos, pois viemos a saber, através de nosso modo de fazê-la, que"quanto mais uma coisa é ela mesma, mais ela se diferencia, pois a intensificação da singularidade implica a intensificação de todas as diferenças" (Gil, p. 30).

Trata-se de fazer renascer o objeto; livrá-lo de sua anterioridade discursiva, inaugurar uma nova estética argumentativa; de vasculhar o cristalizado, buscar-lhe as multiplicidades intensivas, aquilo que se produziu na ordem do intempestivo. Trata-se, ainda, de atualizar a história, conferir fissuras à linearidade temporal, abrir o presente para as singularidades. Benjamin (1984) sugere-nos que, para manter a integridade do que estamos pesquisando, devemos analisar os extremos e montar um mosaico que preserve as diferenças. Precisamos cultivar um olhar de medusa que nos permita acessar a pré-história do objeto, bem como sua pós-história. Estas aludem ao tempo, mas são em si mesmas intemporais. Não se referem a encadeamentos cronológicos, mas a afinidades internas sustentáveis, apesar de qualquer distância que separe as duas épocas. Nossa pesquisa, assim, seria marcada pelo primado do fragmentário e emerge como um mosaico composto de estilhaços de idéias, arrancadas de seu contexto original.

Com o objetivo de concluirmos nossa reflexão, sem a intenção de finalizá-la, podemos dizer que nosso intento com a pesquisa requer mais do que uma catalogação das formas tomadas em suas diversidades e quantidades. Tornar visível aquilo que está dobrado no avesso das aparências requer, como nos mostra Deleuze através de Bergson (1964), que à inteligência se junte a intuição, considerada esta como a possibilidade de simpatia com o objeto, a ponto de captar as tendências que o atravessam e regulam a sua existência e devires. Tratar-se-ia, sempre, da recorrência aos usos de si, da memória contraída do corpo, e do deslocamento dos objetos de sua instantaneidade para o que lhes confere uma duração no tempo, operação cognitiva e afetiva que nos leva a ultrapassar o estado da experiência em direção às condições da experiência. Assim, o problema do conhecer implica sempre na convergência da objetividade e da subjetividade, da observação externa e interna, implicando-se a procedimentos que posicionam sujeito e objeto em enervantes continuidade e reciprocidade. Fazer durar o objeto implica, paradoxalmente, decompô-lo, desmisturá-lo. Trata-se de perseguir sua duração através das tendências múltiplas que o marcam e traçar sua continuidade e diferenciação contínuas. Fazê-lo durar significa ativar virtuais multiplicidades para que se produza o seu próprio devir, pois, se um objeto dura, ele está sujeito a uma evolução que não se efetua a partir de uma associação, mas de uma dissociação, de uma divergência de esforços.

Com Bergson (1964) aprendemos que o movimento evolutivo da vida se processa como dispersão, sendo que própria vida pode ser considerada como uma tendência que se desenrola em direções divergentes entre as quais o seu impulso se partilhará. É neste sentido que se implica o conhecer com a invenção da própria vida; conhecer cuja ética se entrelaça com o alargamento das possibilidades do olhar que analisa, com a liberdade do corpo sensível e pensante e com a astúcia da inteligência que fabrica instrumentos e meios para obter resoluções exitosas e auto-organizativas em meio às problematizações das situações conflitivas do existir. Conhecer arrasta, assim, o sujeito não apenas enquanto razão e funcionalidade. A objetivação se efetua desde os filtros do sujeito conhecedor e das possibilidades de seu corpo em deixar-se afetar pelo inumano e impensado. O conhecer possui, portanto, como seus correlatos, o toque no impensado e o amor à exterioridade absoluta.

Recebido em 25/02/2005

Aceito em 07/06/2006

  • Benjamin, W. (1984). Origem do drama barroco alemão São Paulo: Brasiliense.
  • Bergson, H. (1964). A evolução criadora Rio: Delta.
  • Bergson, H. (1990). Matéria e memória: ensaios sobre a relação do corpo com o espírito São Paulo: Martins Fontes.
  • Deleuze, G. (1999). Bergsonismo São Paulo: Editora 34.
  • Foucault, M. (1984). O que é iluminismo? Em E. Carlos Henrique. Michel Foucault: Dossier Rio: Taurus.
  • Foucault, M.( 1979). Microfísica do poder Rio: Graal.
  • Foucault, M. (1992). As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas São Paulo: Martins Fontes.
  • Foucault, M. (2003). Estratégia, poder-saber. Em M. Barros de Motta (Org.), Ditos e escritos IV (pp. 85-127). Rio de Janeiro: Forense-Universitária.
  • Gil, J. (2000). Diferença e negação na poesia de Fernando Pessoa  Rio de Janeiro: Relume-Dumará.
  • Schwartz, Y. (2003, 12 de maio). Conferência de Abertura do Seminário Trabalho e Saber, realizado na UFES/Belo Horizonte.
  • Veyne, P. (1988). Como se escreve a história e Foucault revoluciona a história Brasília: Editora UnB.
  • Endereço para correspondência

    Tania Mara Galli Fonseca. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Programa de Pós-graduação em Psicologia Social e Institucional, Avenida Otto Niemeyer, 2417/115 – Bairro Camaquã, CEP 91910 001, Porto Alegre-RS.
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Mar 2007
    • Data do Fascículo
      Dez 2006

    Histórico

    • Aceito
      07 Jun 2006
    • Recebido
      25 Fev 2005
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