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Resistência ao trabalho interdisciplinar: uma possível interpretação

Resistance to the interdisciplinary work: a possible interpretation

Resumos

O trabalho interdisciplinar remete o indivíduo a uma maturidade profissional e pessoal. Entretanto, essa atuação não está despojada de um contexto social e histórico. As determinações sociais, ideologicamente constituídas, perpassam as atitudes dos indivíduos, bem como sua atuação profissional. O individualismo exacerbado, fruto de um sistema econômico e social, colabora para a formação de uma subjetividade estruturada a partir de mecanismos internos defensivos, que se fazem necessários. Dentre eles, uma negação parcial da realidade e, por conseqüência, uma regressão a estágios narcísicos do desenvolvimento, senão patológicos, suficientes para interferir na formação de vínculos adequados a um sentimento de confiabilidade, que permitam trocas interpessoais. Nesse sentido, pretende-se, com este trabalho, a realização de uma análise de ordem genérica ao ser humano, observando a permeabilidade entre o mundo externo e o mundo interno, isto é, a construção da subjetividade vinculada a uma situação concreta, com seus determinantes históricos, sociais e econômicos. Por fim, reconhecer as resistências ao trabalho interdisciplinar como uma construção histórica e social, e não como especificidade deste ou daquele indivíduo, desta ou daquela profissão e/ou especialidade.

interdisciplinaridade; subjetividade; resistência ao trabalho interdisciplinar


The interdisciplinary work sends the individual to a professional and personal maturity. However, that performance is not deprived of a social and historical context. The social determinations, ideologically constituted transposes the individuals' attitudes, as well as their professional performance. The exacerbated individualism, result of an economic and social system, collaborates on the formation of a subjectivity structured from necessary defensive internal mechanisms. Among them, a partial denial of the reality and consequently a regression to narcissistic stages of the development, if not pathological, it is enough to interfere in the formation of appropriate entails for a reliability feeling that allows interpersonal sharing. In that sense, it is intended with the present work, the accomplishment of an analysis of generic order to the human being, observing the permeability between the internal and external world, that is, the construction of the subjectivity linked to a concrete situation with its historical, social and economic determinants. Finally, to recognize the resistance to interdisciplinary work as a historical and social construction and not, as an specificity of this or that individual, of this or that profession and/or specialty.

interdisciplinarity; subjectivity; resistance to work


ARTIGOS

Resistência ao trabalho interdisciplinar: uma possível interpretação

Resistance to the interdisciplinary work: a possible interpretation

Ocimar Aparecido Dacome

Psicólogo Clínico da Unidade de Psicologia Aplicada, Departamento de Psicologia, Universidade Estadual de Maringá

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: UPA/UEM Av. Mandacaru, 1540 CEP: 87.080-000 Maringá - PR E-mail: sylucoci@wnet.com.br

RESUMO

O trabalho interdisciplinar remete o indivíduo a uma maturidade profissional e pessoal. Entretanto, essa atuação não está despojada de um contexto social e histórico. As determinações sociais, ideologicamente constituídas, perpassam as atitudes dos indivíduos, bem como sua atuação profissional. O individualismo exacerbado, fruto de um sistema econômico e social, colabora para a formação de uma subjetividade estruturada a partir de mecanismos internos defensivos, que se fazem necessários. Dentre eles, uma negação parcial da realidade e, por conseqüência, uma regressão a estágios narcísicos do desenvolvimento, senão patológicos, suficientes para interferir na formação de vínculos adequados a um sentimento de confiabilidade, que permitam trocas interpessoais. Nesse sentido, pretende-se, com este trabalho, a realização de uma análise de ordem genérica ao ser humano, observando a permeabilidade entre o mundo externo e o mundo interno, isto é, a construção da subjetividade vinculada a uma situação concreta, com seus determinantes históricos, sociais e econômicos. Por fim, reconhecer as resistências ao trabalho interdisciplinar como uma construção histórica e social, e não como especificidade deste ou daquele indivíduo, desta ou daquela profissão e/ou especialidade.

Palavras-chave: interdisciplinaridade, subjetividade, resistência ao trabalho interdisciplinar.

ABSTRACT

The interdisciplinary work sends the individual to a professional and personal maturity. However, that performance is not deprived of a social and historical context. The social determinations, ideologically constituted transposes the individuals' attitudes, as well as their professional performance. The exacerbated individualism, result of an economic and social system, collaborates on the formation of a subjectivity structured from necessary defensive internal mechanisms. Among them, a partial denial of the reality and consequently a regression to narcissistic stages of the development, if not pathological, it is enough to interfere in the formation of appropriate entails for a reliability feeling that allows interpersonal sharing. In that sense, it is intended with the present work, the accomplishment of an analysis of generic order to the human being, observing the permeability between the internal and external world, that is, the construction of the subjectivity linked to a concrete situation with its historical, social and economic determinants. Finally, to recognize the resistance to interdisciplinary work as a historical and social construction and not, as an specificity of this or that individual, of this or that profession and/or specialty.

Key words: interdisciplinarity, subjectivity, resistance to work.

REFLEXÕES INTRODUTÓRIAS

Através da Filosofia aprendemos que o ato de pensar humano processa-se através de um debruçar do homem às questões existenciais (de onde viemos, para onde vamos, o que somos, porque somos, etc.), questões essas que o afligiam e certamente o afligem até os dias de hoje.

Nesse processo vamos encontrar a construção de conceitos multifacetados, que vão desde as explicações mitológicas e religiosas, passando às exigências experimentais, demonstrativas e metodológicas da ciência. Se a religião carecia simplesmente de fé para sua validade, a ciência carece, por sua vez, de resultados rigorosamente validados dentro de uma metodologia reconhecida pela própria ciência.

De uma maneira ou de outra, as respostas concebidas até hoje continuam afligindo o homem, haja vista as inquietações que se avolumam em projetos e teses acadêmicas, buscando nas relações e nos fenômenos materiais e/ou subjetivos as explicações para a existência humana. Seria, por assim dizer, pretensioso demais que uma determinada área do conhecimento reivindicasse para si a tarefa de explicar a existência humana, tarefa talvez impossível de ser realizada.

Recorrendo ao dicionário de Filosofia vamos ter, a respeito, a seguinte definição: "Quando uma coisa existe, ela não é apenas pensada ou imaginada, mas independentemente disso ela é simplesmente em si e por si, na realidade" (Brugger, 1904/1987). Apesar de parecer óbvio, ser-por-si pode remeter a um estado de essência, e portanto é independente da atuação e da percepção humana; entretanto, as dificuldades começam a aparecer quando se começa a questionar o que é realidade , e, mais ainda, em que realidade procuramos entender esse existir .

Partindo do pressuposto de que o homem interage com o seu meio, no intuito de satisfazer suas necessidades, e de que essa atuação se processa no trabalho material e na transformação de seu meio, transformando também esse homem, podemos pensar em uma realidade que se constrói através dessa atuação. Partindo desta realidade construída e determinada historicamente, o indivíduo pode ter a impressão de que ela se fez independentemente de sua interação com este meio, produzindo um estado provisório de alienação e colaborando, assim, para um pensamento que remeta a uma percepção naturalizante do desenvolvimento e da existência humanos, gerando um "estado de consciência", que talvez seja necessário à apreensão de dada realidade.

De fato, esse "estado de consciência" pode produzir relevantes ganhos secundários. Dentre esses podemos especular sobre uma certa indiferença aos acontecimentos sociais, políticos e econômicos que se mostram hostis à realização da satisfação das necessidades humanas. Isso poderia estar a serviço de tendências defensivas contra um sentimento de frustração, dada a impossibilidade de satisfação imediata dessas necessidades, mesmo porque, aos mais desavisados, a possibilidade de uma consciência social eleva ainda mais tais sentimentos, exacerbando a falsa percepção de que as conquistas sociais vêm em detrimento da satisfação individual.

Seria interessante nesse momento (já que estamos falando de sociedade) entender que os vínculos sociais são normatizados por regras que se cristalizam e são determinados pelas necessidades concretas de determinado momento histórico. Seria impossível pensar numa sociedade sem regras sociais (que, teoricamente, são pertinentes a todos os indivíduos, tornando-os, por assim dizer, "iguais") que a delimitem. O difícil, talvez, é se dar conta, na concretude dos fatos, de que essas regras sociais são conseqüência da interação humana com o ambiente e da inter-relação dos indivíduos nesse contexto. Não deixaríamos de experimentar, se assim o fizéssemos, sentimentos ambíguos de poder e medo frente às responsabilidades advindas do nosso papel social. Como conseqüência, poderíamos eleger, ainda que subjetivamente, tutores que "representem" as nossas vontades e principalmente nossas responsabilidades, ainda que ao custo de uma subserviência infantil, como a do filho para com o pai autoritário, resguardando assim nossa fragilidade, que encontraria refúgio num (aparente) sentimento de proteção. Seria como se necessitássemos de uma figura suficientemente forte que nos serviria como modelo de identificação, mas que malogra, pois é extremamente idealizado, dificultando uma consciência mais adequada à realidade.

Tal idealização remeteria a um estado de infantilização, que tem como conseqüência o medo da responsabilidade social, que permeia os indivíduos que compõem essa sociedade; entretanto, estaria sendo extremamente injusto se se depositasse neles todo o ônus de sua atitude. Como já dissemos acima, a consciência da transformação social é de difícil aquisição, haja vista a aparente naturalidade que lhe atribuem. E essa atribuição pode advir da necessidade e das limitações humanas frente as suas realizações, que, em certos momentos, devam permanecer na aparente imobilidade para serem reconhecidas, transcendendo, ainda que na abstração, a realização concreta do trabalho humano.

A estas experiências (a partir do trabalho humano sobre o meio ambiente) poderíamos atribuir aspectos importantes na formação subjetiva do indivíduo, a qual recai nas representações coletivas, e que aqui é entendida como as impressões que permanecem no imaginário social, advindas de acontecimentos significativos da interação humana com o seu ambiente; portanto, construídas na realização concreta da existência, e que acabam por serem reproduzidas no cotidiano, ainda que a sua função material já se faça desnecessária. Por exemplo, se em determinado momento histórico (uma guerra), a escassez de recursos materiais exigiu o estabelecimento de duras medidas de economia, essa pode se manter no imaginário social como conduta indispensável, ainda que esses mesmos recursos sejam restabelecidos. Talvez seja isso que tenha acontecido com os imigrantes europeus que se deslocaram para o Brasil, no período da guerra, já que eles mantiveram semelhantes hábitos de economia, que se transmitiram por várias gerações.

As reflexões até aqui introduzidas nos servem como preâmbulo para se pensar que qualquer tipo de relação social se produz de forma concreta, num determinado momento histórico, mas que não é inteiramente apropriada pela consciência individual, dando uma conotação parcial da realidade, que comprometerá a formação da consciência social. Entendendo que as ações de assistência à saúde, e especificamente na assistência à saúde mental, processam-se através de relações humanas e sociais, é importante levantar alguns aspectos que inviabilizem ou promovam relações mais adequadas e eficazes a essa assistência, que parecem encontrar o seu limite entre o atendimento convencional, regido pelo modelo médico individual, e a necessidade de se buscarem modelos alternativos que possam dar conta das necessidades emergentes da população que padece de sofrimento mental.

Defendemos aqui que a qualidade desse tipo de assistência depende das relações, dentro de uma atuação interdisciplinar, que vão ao encontro, o mais próximo possível, da situação do indivíduo portador de doença mental. Defendemos também que essas relações passam por uma mudança (possível) de atitude, que se refletem numa conjuntura concreta e institucional, bem como subjetiva, pertencentes ao imaginário social. Além disso, elas perpassam por resistências, as quais tendem a perpetuar-se em práticas dogmáticas e estáveis, dificultando a flexibilização de conceitos que se fazem mais adequados quanto ao manejo da doença e do doente mental.

Além disso, este trabalho procura levantar algumas questões que nos parecem ser de âmbito geral a todas as especialidades de atuação profissional, mas especificamente na assistência à saúde. É necessário salientar que a análise tem como referência a realização de uma pesquisa1 1 Do autor, monografia apresentada como critério de avaliação do curso de pós-graduação em Saúde Coletiva, em nível especialização pela UEM- Universidade Estadual de Maringá/PR, no ano de 1996, com o título: Trabalho em equipe interdisciplinar na assistência à saúde mental: possibilidades e limites. no município de São Paulo, referente a práticas realizadas na rede municipal de saúde, no período de 1989 a 1992.

Embora acreditemos em avanços no trabalho interdisciplinar, acreditamos também que as reflexões contidas neste artigo ainda se mostram significativas para avaliar as dificuldades nas relações profissionais. Ressaltamos que o trabalho interdisciplinar não se faz pela "simples" contratação de vários profissionais com especialidades diferentes, num mesmo setor. Outrossim, o objetivo deste artigo não é de ordem corporativista, isto é, não há a pretensão de identificar em cada especialidade uma resistência específica, mas sim identificar, através de uma experiência realizada, as disposições internas e externas que propiciam uma atitude resistente frente a uma nova proposta, qual seja o trabalho em equipe interdisciplinar.

ASPECTOS PARA REALIZAÇÃO PRÁTICA DO TRABALHO INTERDISCIPLINAR

A interdisciplinaridade favorece a compreensão de outras dimensões do ser humano que por uma única especialidade não seria possível. Estamos nos referindo aos diversos saberes constituídos que dão, dentro de seu constructo teórico específico, uma leitura suficientemente validada que possa entender o ser humano dentro de determinado contexto. Nesse sentido, cabe ressaltar, que o trabalho interdisciplinar abrange as mais diversas especialidades, entendendo que estas, em última instância, partem de um objetivo único, que é a busca de conhecimento para a transformação e bem estar do ser humano, adequando-o as diversidades impostas pelo meio e, adequando este meio ao próprio homem.

Frente ao exposto, podemos nos questionar: se a finalidade da ciência é proporcionar o bem-estar do ser humano, porque ainda convivemos com tantas distorções e desigualdades, proporcionando um "exército" humano desprovido de condições mínimas de sobrevivência e dignidade? O problema não é de fácil solução; entretanto, sabemos que os determinantes econômicos e suas políticas regionais e mundiais contribuem diretamente para esta situação. Assim, estes determinantes (econômicos) não podem ser analisados em separado da construção de parte da subjetividade humana. As formas de relações humanas baseadas num modelo econômico que tem como motivação a competitividade, visando, como conseqüência, aparentemente secundária (talvez a mais importante), estabelecer relações de poderes entre dominado e dominador, acabam por favorecer a necessidade de submeter determinado tipo de conquista, que no nosso caso refere-se aos saberes constituídos, ao controle de certos segmentos sociais comprometidos com o poder, e, portanto, destituídos de uma representatividade, que visem à apropriação social destas conquistas.

Neste sentido, seria de se esperar que uma determinada classe social (a dominante) propusesse a produção de políticas ideológicas visando a uma formação de opinião, no âmago das massa populares, que evite a organização e a cooperação dos diferentes segmentos sociais. A departamentalização da ciência, constituída nas universidades e agremiações corporativistas, dispostas em conselhos, regulamenta e fragmenta as ações dos seus profissionais, que se vêem fazendo parte de um mercado de trabalho segundo o modelo vigente. Descaracterizam, assim, os objetivos dos distintos saberes, para constituírem o objetivo de determinado interesse. "A verdade que elas (as especialidades) procuram, às vezes encontram, é uma verdade em si e para si, que nada mais diz a ninguém ou, pelo menos, que renunciou a assumir a função primordial da vinculação do homem com o mundo onde ele reside." (Japiassu, 1979)

E nem poderia ser diferente, haja vista os saberes estarem "proibidos" de serem veiculados, em nome de uma "ética" que justifica o "sigilo", por constituir um know how pessoal, fazendo parte apenas de uma demanda do mercado e não das conquistas da humanidade. Quebrar essa modalidade de atitude implica romper com o modelo vigente, que se fundamenta por relações extremamente cristalizadas em bases narcísicas, isto é, um investimento no eu, em detrimento do outro. E estas relações narcísicas podem encontrar seu fundamento na própria banalização do ser humano. Frente a um mercado extremamente competitivo, o que importa é que cada um tome para si mesmo a responsabilidade pela sua sobrevivência. O outro passa a constituir um perigo iminente, mobilizando sentimentos destrutivos contra a própria espécie, como uma forma de delimitar um "nicho" de sobrevivência.

E parece que esse "nicho" de sobrevivência encontra seu respaldo em ações individualizadas, nas quais o eu encontra refúgio na aparente segurança das ações isoladas, pois tem como premissa que a exposição o colocaria em situação de inferioridade, se não pela sua fragilidade quanto à consistência teórico/prática, como uma forma de armar um suposto "inimigo" a partir da apreciação de seu também suposto saber. A interdisciplinaridade, portanto, pode configurar-se como prática perigosa, levando-se em consideração o contexto competitivo referido, pois leva a uma aparente fragilização individual. Por outro lado, reforça significativamente os vínculos interpessoais: é o corpo social que ganha força e reconhecimento, já que se processa numa articulação dos diversos saberes. Como conseqüência temos uma prática questionadora, pois, paradoxalmente, ao expor os limites e potencialidades de cada especialidade, proporciona aos profissionais a possibilidade de intercâmbio e completude de suas ações. Desta forma, o trabalho interdisciplinar só pode ser reconhecido em sua prática. Trata-se de uma nova postura, e, como nova, de certa forma, "amedrontadora". O trabalho interdisciplinar obriga o profissional a submeter as técnicas a uma modalidade de relações e não o contrário. Isso implica tornar as técnicas secundárias, desnudando os profissionais, chamando-os para um campo de incertezas. Para tanto, medidas cautelares devem ser levadas em consideração, a fim de criar condições mínimas de trabalho. Levando-se em consideração a prática já realizada, cabe, neste momento, discorrer sobre o caminho percorrido e as medidas necessárias à sua viabilidade.

VIABILIZANDO O PROCESSO

Uma das condições necessárias à atuação interdisciplinar é ter os objetivos bem definidos. Para tanto, deve-se conhecer previamente as condições físicas e os recursos humanos para, posteriormente, criar estratégias que conduzam à formulação dos objetivos que irão definir a função institucional do órgão em questão. Isso implica direcionar as ações dentro de um contexto que se pretende atingir, e que faz parte de uma estrutura mais ampla, isto é, de diretrizes políticas, entendendo-as como um conjunto de ações que são reproduzidas e ganham representação nas relações sociais.

As diretrizes políticas têm a finalidade de compor um quadro de acolhimento às ações que se pretendem realizar, dando respaldo ao profissional que comporá as equipes interdisciplinares. A formação dessas equipes carecerá de vínculos estáveis necessários, que se produzirão através de uma relação de estabilidade empregatícia , haja vista que o trabalho em equipe interdisciplinar tem como premissa uma exposição do profissional frente a seus colegas e superiores, e o receio de que possa vir a ser penalizado devido a sua postura ideológica e técnica, o que colocaria em risco o andamento do trabalho. Esta estabilidade vem, também, atender à continuidade de aperfeiçoamento profissional, considerando-se que o profissional não passa, simplesmente, pelo exame classificatório; muito mais que isso, ele recebe e continuará recebendo um investimento, em termos de capacitação em serviço, que favorece o amadurecimento profissional e pessoal.

O profissional tem que necessariamente se expor, pois esta é a única forma de reconhecimento qualitativo dos recursos humanos que existe em uma equipe. É a partir daí que novas estratégias de capacitação e atuação serão realizadas e redirecionadas, visando sempre atender ao compromisso com a proposta de trabalho em equipe interdisciplinar. A confiabilidade do profissional se reflete na solidez das diretrizes políticas que incrementam o processo: se tais diretrizes políticas estiverem em cumplicidade com as necessidade do coletivo, o profissional percebe-se como parte desse coletivo. Suas ações, necessariamente, deverão transcender os vínculos pessoais hierárquicos característicos das instituições, isto é, o comprometimento é com a proposta, e não com este ou aquele chefe.

Esse comprometimento baseia-se na universalidade da proposta, que pretende atingir todos os profissionais, compreendendo a conscientização da importância mútua e recíproca das diferentes especialidades em questão. Percebemos, então, que o trabalho interdisciplinar possui uma lógica diferente, isto é, para se firmar não depende da exclusão dos resistentes; depende, sim, da superação das resistências, para que esse mesmo profissional possa se integrar à proposta.

PARA ALÉM DO TECNICISMO

O conceito de interdisciplinaridade deve fazer parte da prática cotidiana, deve ser incorporado nas ações efetivas, deve deixar de ser mera abstração. É o conceito concreto, real. Sendo assim, não podemos deixar de argüir sobre a formação acadêmica dos profissionais em questão, que, como já dissemos, possui uma lógica estabelecida, que visa atender a uma demanda de mercado, como um produto que se apresenta como acabado. O trabalho interdisciplinar, mais do que uma atuação, coloca em confronto os valores sociais, pois questiona o saber institucionalizado, entendido como acabado, e que compromete a possibilidade de se ter uma perspectiva mais totalizadora do indivíduo. Assumir a necessidade da contínua capacitação é admitir o dinamismo da sociedade. É perceber as necessidades emergentes em determinado momento histórico. Poderíamos dizer que é a prática da inclusão, pois procura realizar um trabalho em consonância com as possibilidades do profissional, referentes à incorporação de suas teorias e técnicas às necessidades da população, que, sem dúvida alguma, deve colocar-se em uma postura ativa no processo.

Não duvidamos da importância e da necessidade da tecnologia específica nos serviços de assistência. Entretanto isso não basta, para uma proposta mais abrangente. A proposta de um trabalho interdisciplinar não consiste em reunir tecnólogos, mas em promover a atuação participativa, reflexiva, contribuindo para a formação de seus atores pensantes, questionadores, e não apenas reprodutores do sistema. Daí podem emergir novas possibilidades, até então difíceis de serem pensadas, como por exemplo a de se trabalhar com os serviços de assistência à saúde mental em uma proposta antimanicominal, desinstitucionalizadora.

O ser humano começa, assim, a ser considerado, do ponto de vista concreto, como potencialidade de transformação a partir de sua atuação; logo, necessariamente incluído no processo. Não cabem, assim, mais justificativas que colaborem para sua reclusão (tanto do paciente quanto dos profissionais), em instituições fechadas e estigmatizadas, condenados às penúrias do cárcere, ainda que não criminosos, como é o caso dos doentes mentais. As práticas na assistência à saúde mental em instituições fechadas há muito vêm sendo questionadas. A "tecnologia" empregada, muitas vezes, subentende uma prática coercitiva. De fato, o trabalho realizado de maneira estanque propicia a produção e a reprodução de vínculos calcados nas relações de poder ou está a serviço dessa produção e dessa reprodução.

As especialidades isoladas tendem, sob o pretexto de se manterem atualizadas e necessárias, a exacerbar a própria importância, em detrimento de outras especialidades. Na lógica da subtração, todo profissional é entendido como uma ameaça dentro das leis de mercado. Não é incomum profissionais afins, mas de especialidades diferentes, competirem, de forma duvidosa em termos éticos, por determinada clientela. No caso da saúde, o próprio indivíduo é visto como mercadoria, simplesmente como meio de acumulação de capital.

Essa situação cria uma contradição, ou seja, o ser humano é avaliado dentro de uma ótica reducionista, perdendo o referencial de sua realidade; logo, impossibilitado de se reconhecer como agente transformado, e de promover às satisfações de suas necessidades.

A ciência expandiu suas fronteiras teóricas, mas, paradoxalmente, acabou também por restringir a atuação de seus atores. No caso do atendimento à saúde mental, os procedimentos que deveriam proporcionar um alívio ao sofrimento psíquico acabam sendo iatrogênicos. O doente mental, não percebido como demanda histórica, produzido numa realidade social, e, arbitrariamente concebido dentro das determinações de um modo de produção, perde seu status de ser humano; logo , perde sua identidade, seus direitos e deveres, e principalmente sua liberdade de expressão e de locomoção. Torna-se um representante das relações tidas como perniciosas, pois fica à margem do ideal imposto pelo sistema. Para tanto, deve ficar recluso, tendo como algoz um suposto saber (o da doença mental, representado pelos saberes constituídos), reconhecido pela ciência e institucionalizado pela política vigente.

É extremamente perigoso que cada especialidade comece a reivindicar para si a verdade, pois, nessa linha de raciocínio, nenhuma verdade seria concebida se contrariasse o dogma dessa ou daquela especialidade. Os resultados das pesquisas realizadas teriam um fim em si e seriam pré-determinados, tendendo a esgotar-se, devido às distorções e à incongruência que dessa prática adviriam. Se perdurarem as práticas isoladas, tenderemos a um reducionismo tal, e tão adverso, que será impossível resgatar a confiança na ciência. Assim, diremos que nos restam dois caminhos: ou realizamos um trabalho isolado, negando assim a existência humana construída historicamente ou trabalhamos em parceria com outros profissionais, sem negar, conseqüentemente, as especificidade de cada área, mas integrando-as em prol da construção do conhecimento, resgatando a confiabilidade e a credibilidade da ciência e, assim, do ser humano.

IMPLICAÇÕES SUBJETIVAS IMPEDITIVAS DO TRABALHO INTERDISCIPLINAR

Já é uma constatação que as determinações históricas vão estabelecendo relações extremamente complexas, que, por serem institucionalizadas, ganham por assim dizer, um respaldo político que normatiza a qualidade dos vínculos, no sentido de se manter um determinado status quo. Entretanto, não podemos pensar numa normatização que se firme apenas por pressões externas ao indivíduo. Admitimos que ocorram processos internos, isto é, que as normas estabelecidas acabem por ser internalizadas, fazendo parte da personalidade individual dos membros de determinada sociedade. Tais normas internalizadas operam como mediadores entre o mundo interno e o mundo externo, no intuito de garantir a esses indivíduos um manejo adequado da realidade.

Entretanto, partimos da premissa de que as transformações que se processam no mundo interno não acompanham as transformações que ocorrem no mundo externo. No campo subjetivo, as transformações tendem a ser mais lentas, haja vista carecerem primeiramente da necessidade de uma linguagem adequada, que dê sentido ao fenômeno que se apresenta como novo. Entendemos que toda e qualquer espécie viva esteja dotada de mecanismos defensivos quanto à integridade pessoal e da espécie, e que esses mecanismos se procedem por comportamentos de fuga e ataque, sinalizados quando alguma situação se coloca como perigosa, ou estranha às estruturas de ação construídas. Nessa linha de raciocínio, é de se esperar que o "novo" seja sempre visto com certa desconfiança, quando não ignorado, e mesmo rechaçado com agressividade.

No caso do ser humano dotado de inteligência, podemos transpor o desconhecido também para o campo do pensamento, das idéias, do imaginário, considerando que a criança, ao nascer, vai construindo seu mundo interno através das experiências, qualitativas e quantitativas, com o seu mundo externo, e que esse vai sendo gradativamente reconhecido, isto é, consideremos que os recursos psíquicos e orgânicos impõem barreiras necessárias a uma apropriação paulatina, que vai dando sentido, ao mesmo tempo em que ocorrem condições para uma internalização dessas experiências, produzindo, assim, uma estrutura que chamamos de eu.

Entenderemos, então, as construções psíquicas partindo de uma necessidade de entrar em contato com a realidade e, posteriormente, de exercer um controle satisfatório sobre ela, no sentido de manejá-la para satisfação das necessidades do indivíduo, ao mesmo tempo em que se permite a manutenção de vínculos sociais aceitáveis, no mínimo, de convivência amistosa, o que nem sempre é possível. Logo, a formação de vínculos interpessoais é condição sine qua non, desde o nascimento, para que o indivíduo possa manter contato com a realidade, e a qualidade desses vínculos é de suma importância para o favorecimento da saúde mental.

Entretanto, cabe ressaltar que nos primórdios do desenvolvimento ontogênico do psiquismo humano, grande parte das necessidades encontram na fantasia e na alucinação a possibilidade de sua satisfação, que também, em grande parte, encontra malogro, impulsionando o indivíduo cada vez mais a interagir com o seu meio concreto, para conseguir, no mundo real, o que de fato precisa. Visto o deficitário nível de desenvolvimento, fisiológico e psíquico, em que se encontra o recém-nascido, é necessário, por assim dizer, que haja um eu externo que satisfaça as suas necessidades. Nesse percurso, esse eu externo começa por interagir com a criança de forma quase indissociável, para posteriormente tornar-se um outro, conseqüentemente construindo a percepção do eu, localizado no espaço e no tempo, em relação aos objetos da realidade.

Para que esse processo se realize, os vínculos iniciais devem manter-se com um mínimo de confiabilidade possível, através da qual a criança possa manejar mecanismos de introjeção e projeção, isto é, o indivíduo adulto deve ser suficientemente confiável para servir de modelo de identificação e ideal, que permita tanto uma projeção para o futuro quanto a incorporação das regras que normatizem as ações para realizar suas conquistas, que pertencem a esse futuro.

Podemos dizer que existe uma predisposição interna no sentido de promover no indivíduo a busca e o investimento em determinados objetos que possam satisfazer suas necessidades, aliviando o sentimento desprazeroso de insatisfação. Entretanto, quando o objeto não é suficientemente adequado à satisfação, e muitas vezes, pelo contrário, impede de maneira extremamente frustrante essa satisfação, o indivíduo pode tender a permanecer num estágio que a psicanálise denomina de narcisismo primário, que é o investimento libidinal no próprio corpo, em um momento em que o objeto ainda não é indiferenciado. Ao permanecer o estabelecimento desta qualidade de vínculo com o objeto, somos propensos a prognosticar um estágio de alienação patológica designada como esquizofrenia. A maioria das pessoas, no entanto, acaba por diferenciar-se do objeto original (relativo à própria mãe), visto que esse se coloca como suficientemente bom na relação.

Parece-nos adequado, nesse momento, remetermo-nos às relações sociais (ainda que entendamos essas relações primárias (mãe/filho) como sociais), que, amparadas por ideologias, distorcem a realidade, produzindo no imaginário social uma forma estática de pensamento e conduta. O que queremos dizer com isso é que, quando mesmo partindo de uma relação primária adequada, a sociedade não fornece uma continuidade que permita serem desenvolvidos vínculos de confiabilidade com o sistema social, político e econômico, o indivíduo tende, para a própria seguridade, a retornar ao narcisismo. Uma vez estabelecido o objeto e o investimento nesse, não podemos mais recorrer à terminologia de um narcisismo primário, e sim secundário. Nesse caso há um retorno ao eu do investimento libidinal, que, por sua vez, é retirado do objeto. Até aí, em nosso entender, não há problemas, pois todos necessitamos de um determinado quantum de energia narcísica, que será utilizada na própria construção da identidade. Entretanto, se as relações sociais são estabelecidas numa proposta individualista, as provisões narcísicas excedem a sua função necessária, enfraquecendo e até mesmo impedindo a produção de novos vínculos, no que diz respeito às trocas afetivas.

Estando os vínculos interpessoais enfraquecidos, ou mesmo impedidos de se consolidarem, a atividade psíquica pode tender a retornar a mecanismos ilusórios e fantasísticos, e, incentivados por uma realidade social calcada na competitividade exacerbada, promovem o que podemos chamar de "criação de inimigos" (ainda que, mas não só, imaginários), tornando-se assim um ciclo vicioso. Nessa linha de raciocínio, as trocas, se não impossíveis, ficam muito difíceis de acontecer. O "inimigo" torna-se potencial, em qualquer esfera de relacionamento, e principalmente nas relações profissionais, em que a lógica do mercado produz uma competitividade ainda mais acirrada.

Assim, podemos supor que frente ao isolamento, fruto de um ciclo vicioso, proporcionado pelas relações sociais, as provisões narcísicas fazem-se cada vez mais necessárias, pois cada vez menos eficazes.

Sendo assim, a busca pela supremacia faz-se vital, no sentido mesmo de salvaguardar a integridade psíquica, e essa busca, impedida, por questões subjetivas, de ser ampliada nas relações sociais, volta-se num processo individualizado de formação.

Tomando como referência os profissionais que atuam na assistência à saúde mental, podemos supor que as provisões narcísicas formem sua base na simples incorporação de teorias e técnicas de maneira acrítica2 2 Quando nos referimos a "maneira acritica", isto não significa que igualemos o indivíduo a uma máquina. Queremos dizer que a aceitação e a incorporação de determinada construção ideológica não se faz sem conflitos, mas que, fomentadas certas resistências, esse conflitos ficam impedidos de serem explicitados, ou melhor, reconhecidos e percebidos como transponíveis. Este estado pode permanecer por tempo indeterminado. Diríamos que o conflito ficaria latente até que determinadas condições internas e externas propiciassem certa maturidade necessária ao enfrentamento da situação. Paradoxalmente, isso representa um esvaziamento do indivíduo, que, por falta de modelos, deixa-se levar pela falsa idéia, ainda que conveniente, da inquestionabilidade dos saberes instituídos.

Isto é conveniente, porque adequar-se a um saber tido como supremo (mitificação do saber científico) remete à ilusão de fazer parte dessa supremacia.

Assim, o trabalho interdisciplinar pressupõe a exposição do indivíduo, deflagrando os seus limites, tornando-se perigoso, pois justamente compromete este estado narcísico. Desta forma, criam no indivíduo a impressão de um ser indefeso, frente a um mundo arbitrariamente imposto como hostil. Frente a esse perigo, é de se supor que as defesas sejam erigidas contra qualquer pessoa ou sistema que venha propor mudanças. A proposta de trabalho interdisciplinar pode soar como uma ameaça, como um convite à batalha. O que, na verdade, o é. O problema é que o inimigo tornou-se difuso, potencial, recaindo sempre na pessoa que estiver mais próxima, que pode ser o colega de trabalho ou mesmo o usuário do serviço.

O acúmulo intenso de provisões narcísicas pode estar em direta relação com sentimentos de medo, com a sensação iminente de poder ser verdadeiramente destruído a qualquer momento. Logo, por trás de uma arrogância intelectual e profissional esconde-se uma personalidade imatura e, portanto, infantil. O saber institucionalizado coloca-se no lugar do pai, protetor e punidor, mas que permanece externo ao indivíduo, ganhando uma dimensão fantasmática, e por vezes persecutória. Estando o profissional subordinado a esse saber institucionalizado, não se percebe no direito de questioná-lo, e torna-se agente passivo do processo, cabendo-lhe apenas a função de reproduzir o que lhe foi dado. No caso do usuário, a situação não parece muito diferente: a ele cabe receber, também de forma inquestionável, o tratamento.

A identidade estabelecida em bases narcísicas parece estar destinada a manter-se num fim em si, isto é, destituída de um ser para o outro, para um ser em si. Mesmo assim, trata-se da tentativa de um reconhecimento incondicional do outro, mas com o único intuito de livrar-se do sentimento de ameaça, que por ventura esse outro possa produzir. Nesse sentido, a incorporação do rótulo, tanto do profissional como do paciente, acaba proporcionando a ilusão de se possuir uma identidade aceita pelo outro, que de uma forma ou de outra lhe confere um status. Assim, por exemplo, o ser psicólogo se basta em si, é uma identidade inquestionável, da mesma forma como ser psiquiatra, fonoaudiólogo, etc. Respaldado pelos seus saberes, o intercâmbio pode ser visto como invasão, abalando a identidade constituída. Igualmente, por parte do paciente, ser esquizofrênico, obsessivo compulsivo, portador de transtorno de humor, etc., implica "colar" em si uma identidade que está em concordância com a expectativa do outro, mas, como já foi dito, condicionada em bases narcísicas. Dessa forma, ao mesmo tempo em que o outro me aceita, ele também perde toda importância para o eu, pois o objeto fica impedido de investimento libidinal.

Dessa forma, cabe a idéia de que cada um sabe o que tem que fazer, pois os papéis já estão previamente definidos, e causa espanto alguém reportar-se a um profissional de especialidade diferente. Tanto isto abala o profissional que requer o auxílio quanto aquele que é procurado. O primeiro, porque percebeu a sua limitação; o segundo, porque vislumbra a incompletude do outro e passa a perceber-se como necessário, mas desprovido de um nível de maturidade para intercambiar a relação. O rompimento das relações narcísicas pode se mostrar doloroso, pois desidealiza o referencial teórico/técnico, joga o indivíduo no campo das incertezas, da ameaça de desintegração da identidade. É que até aqui os papéis estavam bem definidos, segundo a "fórmula": "Eu sou o médico e você é o paciente; o seu papel é estar doente, o meu é tratá-lo, e nos daremos muito bem se um não interferir no que o outro faz." Essa "fórmula" pode muito bem estender-se de profissional para profissional.

No campo subjetivo, esta conduta pode ter-se firmado num momento em que as especialidades buscavam uma autonomia, uma identidade que lhes emprestasse um status de ciência, mas que se cristalizou, perpetuando-se, ainda que as necessidades exijam outra prática, e assim se fazem pelos resultados que não aparecem de forma efetiva.

Propor uma mudança nas práticas de assistência, nesse caso específico, da saúde mental é também romper com esta subjetividade. Tarefa difícil, pois, como já dissemos, as transformações subjetivas tendem a não acompanhar as transformações concretas, que se processam em necessidades emergentes. Frente ao desconhecido, parece prevalecer a conduta de defesa ou de ataque, mas que permanece no nível do individualismo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A realização de um trabalho interdisciplinar, em todos os segmentos da sociedade, e especificamente na assistência à saúde mental, faz-se imperioso, devido a necessidades concretas e necessidades subjetivas.

As necessidades concretas estabelecem-se num contexto em que as realizações efetivas deixam a desejar, no sentido de serem criadas condições adequadas de promoção à saúde mental. O indivíduo percebido e analisado de forma fragmentada fica submetido a uma intervenção também fragmentada. O estabelecimento de diagnósticos parciais pode provocar o perigo de rotulação, deixando seqüelas sociais muitas vezes permanentes, e o que pode ser pior é a incorporação passiva desse rótulo pelo indivíduo, que, como já dissemos, faz-se como única identidade de referência possível.

Como conseqüência, podemos estabelecer a formação de um segmento social improdutivo, alheio às transformações sociais, incapacitado nos seus direitos de cidadania, tornando-se os indivíduos reclusos do mundo externo e interno. E um questionamento que se nos apresenta é: que necessidade teria um determinado conhecimento científico em produzir indivíduos improdutivos e incapacitados? Assim percebemos que, isoladamente, as especialidades tenderiam ao próprio fracasso, visto que pouco ou nada contribuem para soluções de problemas tão complexos, e de importância vital para a sociedade.

O atuar isoladamente provoca um desempenho limítrofe entre a mediocridade e a prepotência, impedimentos que cerceiam o desenvolvimento de resultados efetivos do valor frente à demanda na assistência, o que provoca o descrédito e o desrespeito da população. O suposto saber deixa o indivíduo desprovido de instrumentos que possam levá-lo a formular de maneira mais abrangente uma leitura da realidade, ficando à mercê de ideologias dominantes, mantendo-o num conformismo desastroso, pois contrário às transformações sociais, pelos seus atores sociais.

Do ponto de vista da subjetividade, o isolamento profissional impossibilita "ver o outro" em sua dimensão mais realística. Em conseqüência, impossibilita estabelecer uma identidade própria, pois a dificuldade de perceber o "outro diferente" nivela as pessoas segundo os rótulos impostos, gerando expectativas de atuação, de si mesmo e do outro, segundo o imaginário social.

As relações baseiam-se no vínculo com os rótulos e não com as pessoas, permitindo uma homogeneização de cada especialidade, que abre caminho para construções fantasísticas, impedindo a maturidade profissional. As diferenças individuais são deixadas de lado; o indivíduo perde a sua condição de humano, e é tratado como coisa. Estabelece-se um ambiente propício para regressões narcísicas, visto que o indivíduo desprovido de sua atuação no meio, com ser humano, fica desprovido também de uma parcela de seu eu, procurando, assim, um auto-investimento, em detrimento das relações objetais, gerando um círculo vicioso.

Necessariamente, as relações tendem a se estabelecer de forma perversa, pois remetidas a fases anteriores do desenvolvimento genital. A produtividade, se não estagnada, dá lugar a uma agressividade destrutiva. A idéia de diferente ou do novo é percebida como ameaçadora, pois, desconhecida, dá vazão a mecanismos projetivos das próprias partes destruídas do eu. O outro diferente é reconhecido sempre como inimigo, a menos que se comporte segundo os padrões estigmatizados.

O trabalho interdisciplinar na assistência à saúde mental reivindica a retomada dos vínculos objetais, tornando-se doloroso, pois impõe ao indivíduo a necessidade de suportar frustrações que advêm desses vínculos. Impele o indivíduo ao reconhecimento da realidade, provocando a dissolução das fantasias, a partir do que se procura desfazer o mito do "eu suficiente".

Assim, não podemos esperar transformações imediatas, a partir de mudanças políticas, apenas. Essas, por assim dizer, podem vir a se tornar fundamentais na elaboração de novas representações sociais, que possuem o caráter mediador entre as construções subjetivas e a realidade posta com suas necessidades emergentes. Entretanto, essas representações sociais carecem de crédito junto à população assistida e principalmente junto ao corpo técnico de profissionais que atendem a essa demanda. Necessitam de uma proposta confiável e de continuidade, que fortaleça as relações interpessoais. Trata-se do estabelecimento de normas suficientemente protetoras, no que diz respeito à agregação social, passíveis de serem incorporadas pelos seus atores, fazendo parte de sua subjetividade. Propomos um novo "círculo vicioso", no qual o fortalecimento do eu abra campo para a exposição pessoal, produzindo uma constante produção de novos vínculos, que, por sua vez, estabeleçam cada vez mais a incorporação de objetos significativos, necessários à produção de uma identidade capaz de proceder mudanças, atuando no meio de forma adequada, no intuito de satisfazer as necessidades individuais em equilíbrio com as necessidades sociais.

Recebido em 08/11/99

Revisado em 11/05/00

Aceito em 30/05/00

  • Brugger, W. (1987). Dicionário de Filosofia São Paulo: EPU, (Trabalho original publicado em 1904).
  • Japiassu, H. (1976). Interdisciplinaridade e patologia do saber Rio de Janeiro: Imago.
  • Endereço para correspondência:

    UPA/UEM
    Av. Mandacaru, 1540
    CEP: 87.080-000
    Maringá - PR
    E-mail:
  • 1
    Do autor, monografia apresentada como critério de avaliação do curso de pós-graduação em Saúde Coletiva, em nível especialização pela UEM- Universidade Estadual de Maringá/PR, no ano de 1996, com o título:
    Trabalho em equipe interdisciplinar na assistência à saúde mental: possibilidades e limites.
  • 2
    Quando nos referimos a "maneira acritica", isto não significa que igualemos o indivíduo a uma máquina. Queremos dizer que a aceitação e a incorporação de determinada construção ideológica não se faz sem conflitos, mas que, fomentadas certas resistências, esse conflitos ficam impedidos de serem explicitados, ou melhor, reconhecidos e percebidos como transponíveis. Este estado pode permanecer por tempo indeterminado. Diríamos que o conflito ficaria latente até que determinadas condições internas e externas propiciassem certa maturidade necessária ao enfrentamento da situação.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Mar 2011
    • Data do Fascículo
      Mar 2000

    Histórico

    • Aceito
      30 Maio 2000
    • Recebido
      08 Nov 1999
    • Revisado
      11 Maio 2000
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