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O PENSAMENTO INSTITUCIONALISTA E A PSICOLOGIA ESCOLAR: DESASSOSSEGANDO AS LÓGICAS DO COTIDIANO

El Pensamiento Institucionalista y la Psicología Escolar: desasosegando las lógicas del cotidiano

RESUMO

Este artigo tem como desafio perspectivar a disputa de forças institucionais que atuam no cotidiano escolar com o objetivo de analisar o trabalho do psicólogo na escola e refletir sobre ele. A posição que sustenta este trabalho parte de concepções desenvolvidas pela Psicologia Escolar no que concerne a análises críticas sobre a práticapsinas escolas. Utilizamos ferramental teórico-prático do Movimento Institucionalista como forma de acessar, nas relações cotidianas, o jogo de tessitura das forças instituintes e instituídas e os efeitos de naturalização e normalização dos corpos que habitam esse território. A partir de uma situação vivida no campo escolar, analisaremos algumas forças institucionais que demonstram a necessidade de o psicólogo na escola se manter à espreita de cenas cotidianas em que esses efeitos, de naturalização e normalização, são tensionados.

Palavras-chave:
psicologia escolar; análise institucional; atuação do psicólogo

RESUMEN

En este artículo tiene como desafío perspectiva la disputa de fuerzas institucionales que actúan en el cotidiano escolar con el objetivo de analizar la labor del psicólogo en la escuela y pensar sobre él. La posición que sostiene este trabajo parte de concepciones desarrolladas por la Psicología Escolar en lo que concierne el análisis crítico sobre la práctica psi en las escuelas. Utilizamos las herramientas teórico-práctico del Movimiento Institucionalista como forma de acceder, en las relaciones cotidianas, el juego de tesitura de las fuerzas instituyentes e instituidas y los efectos de naturalización y normalización de los cuerpos que habitan ese territorio. A partir de una situación vivida en el campo escolar, analizaremos algunas fuerzas institucionales que demuestran la necesidad del psicólogo en la escuela mantenerse a la espera de escenas cotidianas en que esos efectos, de naturalización y normalización, son tensionados.

Palabras clave:
psicología escolar; análisis institucional; actuación del psicólogo

ABSTRACT

The challenge of this article is to put into perspective the dispute of institutional forces that act in everyday school life, with the aim of analyzing the work of psychologists at school and reflecting about it. The position that supports this work is based on conceptions developed by School Psychology regarding critical analyzes of the psychologist’s practice in schools. We use theoretical-practical tools from the Institutionalist Movement as a way to access, in everyday relationships, the game of establishment the instituting and instituted forces and the effects of naturalization and normalization of the bodies that inhabit this territory. Based on a situation experienced in the school field, we will analyze some institutional forces that demonstrate the need for the school psychologist to keep on the lookout for everyday scenes in which these effects, of naturalization and normalization, are tensioned.

Keywords:
school psychology; institutional analysis; psychologist performance

“[...] diversos são os microuniversos possíveis,

tantos quanto são as linhas do tempo.”

(Guattari & Rolnik, 1986Guattari, F.; Rolnik, S. (1986). Micropolítica: cartografias do desejo. Rio de Janeiro: Vozes.)

Alguém que já teve a experiência de permanecer um tempo, mesmo que breve, em uma escola, a fim de observar as dinâmicas e relações que lá se dão, certamente se afetou por uma diversidade de ações acontecendo ao mesmo tempo, principalmente nos momentos de entrada e saída, almoço ou recreio: crianças brincando, correndo, gritando, dançando, falando em grupos ou sozinhas, adultos chamando, sinais tocando, um cai de um lado, um levanta de outro, materiais nas costas, no chão, nas mãos etc. Com tudo o que se passa no território escolar, movimentado pelas crianças e adultos que estão ali, um convite pode chegar sorrateiramente e, muitas vezes, captura o olhar e a observação do que se vê: uma certa tendência de focar os exageros, as estranhezas e as faltas, nomeando aquilo que parece muito ou que parece pouco.

Depois de um tempo maior na escola, há o perigo de se convencer de que aquilo que foi nomeado revelaria algo daquilo que se viu, nos levando pela ideia de que sabemos quem é o “mais agitado”, a quem “falta educação”, quem é o “mais tímido”, qual é o “liderado” e qual “lidera”, quem se “comporta mal” e quem se “comporta bem”, e assim por diante, infinitamente. Falamos aqui, portanto, de uma tendência que opera e se objetiva no contexto escolar, deflagrando uma certa forma de pensar que gira em torno de uma medida que estabelece o que seria certo e o que seria errado fazer nesse espaço, ou seja, o modo adequado de lá estar. Habituamo-nos entre aquilo que denominamos como normais e anormais. Tal fato ocorre quase que inevitavelmente, pois é fruto de uma engrenagem intensa presente, também, nos processos de escolarização que constituíram um modo de compreender a escola e os eventos que lá se desenrolam como semelhantes a uma certa ideia de eventos naturais. Essa naturalização está presente no modo que a escola se organiza e nas relações que se configuram no campo escolar e é engendrada em exercícios de práticas normalizadoras, estigmatizantes e meritocráticas. É pela consideração de que essas formas de entender a escola se estabelecem e habitam esse contexto de maneira hegemônica e com valor de absoluto que este artigo é impulsionado.

Propomos, a princípio, marcar e esclarecer uma posição que compõe nossa crítica na análise sobre o exercício da prática psi nas escolas do Brasil a partir de problematizações propostas no campo da Psicologia Escolar. Em seguida, nos encaminharemos para uma breve apresentação do ferramental teórico-prático institucionalista na definição dos conceitos de instituição, instituído e instituinte, para que, por fim, seja possível utilizar esse ferramental para discutir uma situação vivida na escola, em que estão em jogo a função do psicólogo e os lugares historicamente estabelecidos entre os alunos e professores. Buscamos, com esse percurso, experimentar uma forma de pensamento sobre o território escolar em sua multiplicidade cotidiana, por meio da articulação de alguns elementos presentes nas posições teórico-práticas da Psicologia Escolar e do Institucionalismo.

MARCAS DOS FAZERES DA PSICOLOGIA NA ESCOLA

Sabemos que uma concepção da Psicologia que frequentemente se apresenta nos pedidos e ofertas presentes no campo escolar está relacionada a um modo de atuação que busca resolver problemas que dizem respeito ao comportamento dos alunos indisciplinados e com algum tipo de dificuldade no processo de escolarização. Tal concepção se afirma a partir de uma ideia de que as práticas psi se caracterizam justamente por cuidar daquilo de que os professores não dão conta. De uma maneira geral, as ofertas interventivas dos profissionais psi na escola foram engendrando-se nos pedidos dos professores, ou em uma necessidade estatal de governo da infância (Lima, 2012Lima, L. A. G. (2012). Ascensão e queda da infância: um estudo sobre a concepção de criança na psicanálise de Durval Marcondes e seus impactos na psicologia brasileira. In: M. H. S. Patto (Ed.), Formação de psicólogos e relações de poder: sobre a miséria da psicologia(pp. 81-106). São Paulo: Casa do Psicólogo.).

Para aqueles que habitam a vizinhança entre a Psicologia e a Educação, seja concretamente, no território escolar, ou nos estudos acadêmicos, não é novidade que a participação da Psicologia influenciou, e influencia até hoje, as concepções acerca das questões que rondam os professores, os alunos e suas famílias no que diz respeito aos conflitos que emergem na escola (Machado & Souza, 2010Machado, A. M.; Souza, M. P. R. (2010). (Eds.). Psicologia Escolar: em busca de novos rumos(5ª ed.). São Paulo: Casa do Psicólogo .).

O aparato técnico da Psicologia entra no jogo da análise de questões e problemas escolares para esclarecer, iluminar as questões, as causas, as soluções e desvendar determinados segredos que impedem um certo ideal de desenvolvimento do alunado, deslocando as análises para os ares enigmáticos da subjetividade e dos problemas psicológicos. Nas palavras do autor Julio Groppa Aquino (2014Aquino, J. G. (2014). O controverso lugar da psicologia na educação: aportes para a crítica da noção de sujeito psico-pedagógico. Psicologia: ensino & formação, 5(1), 5-19.) “plausível seria, portanto, admitir que há uma incessante investida colonizadora das práticas educacionais pelos discursos psi, em especial, nas últimas décadas” (p. 6). Dessa maneira, há alguns pontos importantes a serem resgatados, não só por marcarem o encontro entre esses dois campos, mas também por culminarem nas práticas que se efetivam concretamente na escola na atualidade, afetando a vidas das pessoas.

Na primeira metade do século XX, formalizou-se uma lógica de intervenção da Psicologia no território escolar. Naquela época, instituíram-se equipamentos que operavam como uma política pública de educação, denominados Serviços de Higiene Mental Escolar - SHME (Lima, 2012Lima, L. A. G. (2012). Ascensão e queda da infância: um estudo sobre a concepção de criança na psicanálise de Durval Marcondes e seus impactos na psicologia brasileira. In: M. H. S. Patto (Ed.), Formação de psicólogos e relações de poder: sobre a miséria da psicologia(pp. 81-106). São Paulo: Casa do Psicólogo.). As questões que se manifestavam na escola eram entendidas como um problema que poderia ser resolvido pela ação de um profissional portador de um saber especializado a partir da aplicação de uma técnica sobre o indivíduo e seu funcionamento psíquico - os segredos da personalidade. A compreensão que predominava tinha no sujeito o eixo central do problema e o que antes era resolvido por meio de formas diversas de punição foi sendo deslocado para um entendimento de terapêutica, de cura, de restituição ou obtenção de uma “normalidade”. A partir de um diagnóstico do rendimento escolar, determinavam-se os sujeitos desajustados que, por esse motivo, deveriam ser tratados, a fim de adequarem-se ao que se esperava de um aluno no processo de escolarização. As dificuldades expressadas nos alunos com baixo rendimento escolar eram entendidas como características anormais do sujeito e, por esse motivo, demandavam tratamento. Os problemas apresentados na escola tornaram-se, por conseguinte, “terapeutizáveis” (Lima, 2012Lima, L. A. G. (2012). Ascensão e queda da infância: um estudo sobre a concepção de criança na psicanálise de Durval Marcondes e seus impactos na psicologia brasileira. In: M. H. S. Patto (Ed.), Formação de psicólogos e relações de poder: sobre a miséria da psicologia(pp. 81-106). São Paulo: Casa do Psicólogo.). O sucesso da intervenção dos SHME era verificado a partir da modificação e superação dos comportamentos escolares daqueles considerados desajustados.

Essa atuação, que visava à dimensão individual como forma de trabalhar com os problemas demandados pela instituição escolar e, em última análise, pelo Estado e pela sociedade, perdurou como prática, via os SHME, de meados dos anos 1930 até o início da década de 1970. A configuração da intervenção se dava, desse modo, com o objetivo de solucionar e suprimir problemas que atrapalhavam o andamento da escolarização e a harmonia no cotidiano escolar. Para tanto, o trabalho necessitava de um fundamento, um padrão de adequação que norteasse a adaptação do alunado a uma forma dominante de conceber a escola sobre disciplina, ritmo de aprendizagem, apreensão dos conteúdos, leitura e escrita corretas e exames de verificação.

Nesse sentido, as intervenções pretendiam ajustar aquilo que parecia exceder nos indivíduos à expectativa de andamento e respostas para um bom funcionamento da sala de aula e da escola. Essa lógica se tornou hegemônica nas práticas de saúde que faziam fronteira com a educação, de modo que a gramática do discurso científico presente na Psicologia incidiu profundamente na definição dos indivíduos em si mesmos, operando em um plano de compreensão dos sujeitos isoladamente do contexto social e político. É, portanto, sob efeito de individualização que se firma uma primazia da compreensão dos aspectos psicológicos como via de entendimento dos problemas que emergem da escola. Sobre a definição de aspectos decisivos de normalidade e anormalidade, na obra Os anormais, de Foucault (2001Foucault, M. (2001). Os anormais: Curso no Collège de France (1974-1975) (E. Brandão, Trad). São Paulo, Martins Fontes. Traduzido do original publicado em 2001.), encontramos articulações que relacionam a força do saber psiquiátrico na argumentação e produção de verdade sobre o sujeito e a sua relação com a delinquência (Foucault, 2016Foucault, M. (2016). Em defesa da sociedade: curso Collège de France (1975 - 1976) (M. E. A. P. Galvão, Trad). São Paulo: Martins Fontes. Traduzido do original publicado em 1997.). É a partir do levantamento de características desde a infância que se configura o que, nos termos de Foucault (2001)Foucault, M. (2001). Os anormais: Curso no Collège de France (1974-1975) (E. Brandão, Trad). São Paulo, Martins Fontes. Traduzido do original publicado em 2001., seria o indivíduo a ser corrigido, demandando domínios disciplinares, como a Pedagogia e a Psicologia.

Na tentativa de romper com a ideia de que há algo nos sujeitos que deve ser reparado, ajustado e corrigido para que o processo de escolarização funcione, Patto (2012Patto, M. H. S. (2012). Formação de psicólogos e relações de poder: sobre a miséria da psicologia. São Paulo: Casa do Psicólogo .), Machado (2009Machado, A. M. (2009). Educação inclusiva: de quem e de quais práticas estamos falando?. In: C. R. Baptista (Ed.), Inclusão e Escolarização: múltiplas perspectivas(pp. 127-134). Porto Alegre: Mediação.), Machado e Souza (2010) e Rocha (2002Rocha, M. L. (2002). Educação em tempos de tédio. In: E. Tanamachi; M. Proença; M. Rocha (Eds.), Psicologia e Educação: desafios teóricos-práticos(2ª ed., pp. 185-208). São Paulo: Casa do Psicólogo .) formularam críticas ao explicitar uma concepção de Psicologia que contribuiu, e permanece contribuindo, maciçamente para a responsabilização dos problemas de todo um sistema institucional em um único sujeito, seja ele o aluno, o professor, a mãe, o pai. Aquilo que se apresentava como prática do profissional psi em relação aos pedidos e intervenções na escola começou a ser questionado e analisado na reflexão de teóricos ligados à área da Psicologia Escolar. Não que houvesse uma psicologia Escolar, assim como outra Hospitalar ou Familiar. Essa nomeação, que dá contorno a uma certa área - Psicologia Escolar - criava um campo em que era possível disputar concepções sobre a ação da psicologia em contextos escolares.

Na esteira da crítica a um modo de pensar presente na atuação do psicólogo, o esforço principal era fazer funcionar uma concepção que compreendesse a escola como um campo de multiplicidades e multideterminado, recusando-se tanto a individualizar as questões do contexto escolar, social e político quanto a culpabilizar os sujeitos nos quais os problemas se manifestam (Eizirik, 2009Eizirik, M.F. (2009). Dispositivos de inclusão: Invenção ou espanto?. In: C. R. Baptista(Ed.), Inclusão e Escolarização: múltiplas perspectivas(pp. 31-41). Porto Alegre: Mediação.). Esse campo de saber da Psicologia fez um giro sobre a compreensão da escola e dos sujeitos que a compõem.

Compreender e compor com a reflexão sobre as críticas produzidas na área da Psicologia Escolar nos convoca a problematizar o modo de fazer do psicólogo na escola: como atuar a partir dos saberes psi sem perpetuar uma lógica instituída no cotidiano? Refletir sobre essa questão implica incluir os efeitos produzidos pela prática da Psicologia na escola a partir de uma crítica, ou até mesmo de uma recusa, à manutenção de um fazer que isola os atravessamentos históricos, políticos, econômicos e sociais da análise de todo o campo escolar.

Considerando o cenário apresentado, a elaboração desse artigo é animada pelo desafio de fortalecer, em nossas análises, o movimento institucional na orientação dos trabalhos do psicólogo na escola. Utilizaremos, para tanto, alguns saberes da corrente teórica do Institucionalismo.

O MOVIMENTO INSTITUCIONALISTA COMO INSPIRAÇÃO

A ideia central presente na corrente de pensamento institucionalista, também chamada de Movimento Institucionalista, é a busca constante em romper com formas totalitárias de pensar as relações humanas. Segundo Baremblitt (2002Baremblitt, G. (2002). Compêndio de análise institucional e outras correntes: teoria e prática (5ª ed.). Belo Horizonte: Instituto Félix Guattari., p. 54), o “institucionalismo é a expressão de um questionamento da hegemonia do pensamento científico como tal”. Trata-se de uma perspectiva composta por diversas teorias, experiências e práticas, sempre ligadas ao compromisso com a transformação social. Fazem parte do Movimento Institucionalista a Análise Institucional, a técnica do Grupo Operativo, a Psicoterapia Institucional, a Pedagogia Institucional e a Esquizoanálise (Pereira, 2007Pereira, W. C. C. (2007) Movimento Institucionalista: principais abordagens. Estudos e Pesquisa em Psicologia, 7(1), 10-19.).

O institucionalismo defende a fertilidade de todos os saberes que se apresentam em estado prático, isto é, atividades que se realizam no cotidiano da vida, segundo a concepção de que tudo é social e historicamente constituído (Baremblitt, 2002Baremblitt, G. (2002). Compêndio de análise institucional e outras correntes: teoria e prática (5ª ed.). Belo Horizonte: Instituto Félix Guattari.; Rodrigues, 1999Rodrigues, H. B. C. (1999). Notas sobre o paradigma institucionalista. Preâmbulo político-conceitual às aventuras de ‘sócios’ e ‘esquizos’ no Rio de Janeiro. Transversões (Escola de Serviço Social da UFRJ), n. único, 169-199.). Essa concepção busca romper com a naturalização das experiências, dos fenômenos que vivemos e das instituições que nos constituem como sociedade e, também, como indivíduos. Por instituição, entende-se uma série de valores, uma ordem e diversas regras que podem ser declaradas concretamente ou não, mas que, de qualquer maneira, objetivam-se regendo a vida dos sujeitos.

Pelo empenho dos autores da Análise Institucional, diferencia-se, portanto, o conceito de instituição de outros significados que aparentemente lhe são sinônimos, como estabelecimento e organização (Rossi & Passos, 2014Rossi, A.; Passos, E. (2014) Análise institucional: revisão conceitual e nuances da pesquisa-intervenção no Brasil. Revista EPOS, 5(1), 156-181.). A instituição é justamente uma rede de práticas reguladas que se conserva ao longo do tempo, instituindo as formas de viver; é aquilo que entendemos como forma única de nos relacionarmos com as experiências que temos na vida, por exemplo: o trabalho, o casamento, a polícia, o hospital e a própria escola. Para os autores que pensam o institucionalismo, a instituição é composta por forças que atuam concretamente na realidade, a partir da tensão e disputa entre o instituído e o instituinte. A atuação dessas forças revela a dimensão institucional das relações sociais que se constitui em constante movimento.

O instituído é compreendido a partir das regras que se conservam ao longo da história, engendrando as práticas que são exercidas no campo social. Dessa perspectiva, a concepção de que o professor como sujeito portaria um saber total sobre o seu alunado admite uma relação de saberes que se hierarquiza totalitariamente entre um sujeito e outro, tanto na escola quanto em outros espaços educacionais. Essa hierarquização nomeia o modo como a relação professor-aluno é entendida ao discutirmos aprendizagem, escolarização, indisciplina e dificuldades escolares, portando em si um exemplo da dimensão instituída no campo da Educação. Nesse sentido, a força instituída se manifesta a partir de uma ordem social estabelecida a partir de valores históricos que tendem a conservar os procedimentos habituais de previsão econômica, social e política (Lourau, 2004Lourau, R. (2004). O instituinte contra do instituído. In: S. Altoé (Ed.), Analista Institucional em tempo integral(pp. 47-65). São Paulo: Hucitec.).

De outra parte, por instituinte entende-se a força que impulsiona os questionamentos, os conflitos e desacomoda o que já está instituído. A força instituinte é aquela, então, que opera modificações nos contornos das instituições, sendo marcada pela constante criação e ruptura nas práticas e nos modos de pensar que tendem a se perpetuar ao longo do tempo. Sendo assim, o Institucionalismo oferece um instrumental bastante pertinente para analisar e refletir sobre aquilo que vai se conservando, naturalizando-se nas práticas e saberes do campo social e, por assim ser, como parte do mesmo movimento, aquilo que vai criando rupturas, contestação e processos de modificação.

A tendência do instituído em se manter nos mostra os tensionamentos que o instituinte opera ao produzir rupturas. Nesse sentido, não se toma o instituído como ruim e o instituinte como bom, mas sim ressalta-se aquilo que tende a permanecer e aquilo que força derivas.

Discutir aquilo que se denomina como dimensão institucional traz à baila tensões que se referem a um jogo de forças entre aquilo que está estabelecido historicamente e que cria um modo de pensar e que, no funcionamento do próprio jogo, possibilita rompimentos e inaugurações na estrutura das relações sociais. Essas tensões referem-se a um constante movimento entre forças instituídas e forças instituintes e ao cuidado em relação às capturas realizadas pelas metamorfoses nas estratégias de dominação em que um novo instituído tende a ser um ato incendiário que, na verdade, pode torna-se “o prenúncio de uma futura sede de Corpo de Bombeiros” (Rodrigues, 1999Rodrigues, H. B. C. (1999). Notas sobre o paradigma institucionalista. Preâmbulo político-conceitual às aventuras de ‘sócios’ e ‘esquizos’ no Rio de Janeiro. Transversões (Escola de Serviço Social da UFRJ), n. único, 169-199., p. 177).

Como parte daquilo que se estabelece no cotidiano, entendemos que o processo de naturalização é um efeito característico no movimento institucional, que se utiliza de uma certa noção de natureza para explicar os fenômenos que nos acontecem. Machado (1994Machado, A. M. (1994). Crianças de classe especial: efeitos do encontro entre a saúde e a educação (2ª ed.). São Paulo: Casa do Psicólogo .) nos ajuda a compreender esse efeito quando explica que a naturalização é uma forma de estagnar as relações e afirmar que aquilo que se manifesta nos sujeitos é original e espontâneo, ou seja, se manifestaria naturalmente, independentemente de qualquer tipo de atravessamento ou influência externa ao corpo do próprio sujeito. É justamente nesse sentido que uma certa lógica institucional opera: a ideia de efeito é retirada e substituída por uma explicação causal ou natural dos eventos assistidos. Assim, o sujeito é responsabilizado por tudo aquilo que não o acomoda às regras da escola, demandando doravante tratamento para tal inadequação. O efeito de naturalização remonta, portanto, à produção histórica como algo a ser respondido ou justificado via uma suposta natureza do sujeito, que se tornaria, no caso do trabalho do psicólogo na escola, o foco. A forte tendência individualizante que permeia a formação do profissional da Psicologia e as padronizações presentes no processo de escolarização fazem recair sobre os alunos, os professores e o funcionamento das famílias a necessidade de identificar, neles, problemas psíquicos. A naturalização é força no jogo institucional e se institui negando que aquilo que se apresenta no cotidiano seria efeito desse próprio jogo.

A proposta institucionalista busca rever a relação entre o objeto e as práticas, a fim de destituir o estatuto naturalizado do objeto tomado pelos fazeres instituídos. Há então que questionar a função e a posição que o psicólogo pode ocupar nessa relação, que é uma relação agonística, isto é, “ao mesmo tempo, de incitação recíproca e de luta” (Foucault, 1995Foucault, M. (1995). Microfísica do poder (11ª ed, R. Machado, Org. Trad.). Rio de Janeiro: Graal. Publicado em 1979., p. 245). Nesse território, sustentamos uma direção de trabalho para o psicólogo na escola.

Considerar e acessar o movimento institucional demanda compreender as implicações políticas e históricas engendradas nas práticas cotidianas e o seu encadeamento com os efeitos produzidos concretamente nas relações dos sujeitos na escola. A perspectiva do Movimento Institucionalista defende a análise e a ação a partir do direcionamento político de uma posição que se implica com a produção do mundo que habita. Para essa perspectiva, a escola é compreendida a partir das lógicas e jogos presentes no cotidiano e o que funda as intervenções é justamente a possibilidade de provocar e desacomodar o que está tomado como dado, revolvendo os lugares estabelecidos historicamente e partindo do pressuposto de que a naturalização dos processos requer que questionemos, inclusive, a forma como nossos saberes se instituem e produzem efeitos.

O TRABALHO DO PSICÓLOGO NA ESCOLA: O COTIDIANO COMO OPORTUNIDADE

Ao promover questões sobre a função do psicólogo na escola a partir de uma certa problematização que o Institucionalismo faz em relação ao jogo de forças que se opera no cotidiano, propomos fazer funcionar um olhar institucionalista na análise de uma situação vivida na escola e que nos permite perceber, na função do psicólogo na escola, a atitude de garimpar possíveis brechas em uma certa racionalidade instituída que impede a percepção do movimento constante na criação das situações. Metodologicamente, optamos por apresentar essa situação em formato de narrativa, trazendo algumas cenas1 1 As situações apresentadas se referem a momentos vividos com um aluno em uma escola da rede particular da cidade de São Paulo, em que uma das autoras desempenhava o cargo de psicóloga escolar. A narrativa completa, assim como a discussão que ela propiciou, está na íntegra na dissertação A prática do psicólogo escolar: um olhar institucionalista para as pequenas-grandes recusas (Veronese, 2016). em que as forças instituídas e instituintes impelem e conduzem as relações que são estabelecidas com os sujeitos. Essa narrativa foi construída a partir de uma experiência2 2 O texto se apresenta em primeira pessoa, referindo-se à voz da psicóloga. em que, no jogo de agentes escolares diretos, havia uma professora e uma psicóloga que acompanhavam e refletiam sobre o processo de escolarização de um dos alunos do Ensino Fundamental I.

Em uma conversa em que a professora abordou com Daniel o comprimento do seu cabelo sugerindo que o cortasse, o menino, de largada, avisou: “Tenho um segredo! Não posso cortar meu cabelo...”. A professora não entendeu e fez algumas perguntas para continuar a conversa. Daniel pediu para que ela se abaixasse e disse em tom baixo, bem perto de seu ouvido, o segredo.

“O Daniel ganhou o meu respeito”, foi isso que escutei dessa professora que se via às voltas do que fazer com seu aluno na sala de aula. Menino de nove anos, filho caçula de um casal que trabalhava em uma agência de banco; aluno do terceiro ano do Ensino Fundamental da escola; cabelos cacheados compridos que caíam no rosto, magro, alto, olhos grandes e azuis, boca vermelha e dentes grandes; paciente de psiquiatra, de psicopedagoga, de fonoaudióloga, de neurologista e de geneticista.

Entrou na escola no segundo ano do Ensino Fundamental, ensaiava a escrita alfabetizada e suas professoras aproveitavam os momentos em que ficava acordado na sala de aula para tentar desenvolver alguma atividade pedagógica. Daniel tomava muitos remédios e estudava no período da tarde, sentia muito sono, quando estava acordado prestava atenção no material colorido e chamativo dos colegas: apontadores, lápis e estojos; principalmente das meninas.

Fato é, não é fácil ser aluno: atividades, horários, disposição para estar em grupo, informações novas, ser avaliado a todo o momento e, ainda, desenvolver-se da forma esperada. Fato também é que a presença de Daniel na escola - um ambiente que conta com a engrenagem regulada em uma justa medida - trazia a necessidade de lidar com certas intensidades desagradáveis. Ele chegava atrasado, dormia na sala de aula, não conseguia acordar e, ainda, não escrevia nas atividades que lhe eram propostas.

Muitas vezes, a impressão que tínhamos era de que seu corpo não cabia ali. Era como um menino “descabelado” no meio de outros muito bem “penteados”. A presença dessa criança, somada ao funcionamento da escola, nos convidava a pensar de forma antagônica: os outros e o Daniel. Sua postura e comportamento provocavam na equipe técnica pensamentos conclusivos que flertavam com a ideia de falta de motivação e falta de vontade de aprender. Diversas reuniões com as professoras - que mantinham contato com o aluno - foram recheadas com falas que facilmente poderiam ser resumidas na necessidade de implicá-lo com seu aprendizado, assim como a sua família, ou seja, esbarravam na falta de algo. Era isso que lhe faltava, implicação. A dúvida quanto ao que fazer convocava a necessidade de descobrir uma causa e, consequentemente, identificar os agentes causadores. Quem eram os responsáveis por nossas dúvidas?

Os encaminhamentos encontrados e, portanto, possíveis de serem pensados pela equipe técnica reagiam à dúvida como quem responde uma pergunta de forma a encerrá-la. Como efeito, os pedidos produzidos pela escola foram maciçamente endereçados à família do aluno: mais uma troca de roupa, acompanhamento sistemático da lição de casa, estudo diário do que havia sido tratado na sala de aula e até mesmo visita ao cabeleireiro para ajeitar o “visual” do menino. Parecíamos precisar dessas providências para trabalhar com Daniel.

“Nada é natural, tudo é sócio-historicamente instituído”3 3 Optamos por iniciar esta parte do texto com a frase que a autora Heliana Conde Rodrigues chama de fórmula do pensamento institucionalista, mesmo sabendo da advertência que ela mesma faz quanto a essa síntese. Entendemos que essa frase possibilita alçar a discussão que traz à baila os efeitos de naturalização que nos interessam neste momento, podendo contribuir para o esclarecimento da presença das lógicas institucionais nas relações cotidianas. Rodrigues (1999) aponta a frase como insuficiente, ao articulá-la às ideias de Deleuze e Foucault no que compete à noção do termo instituição. Sobre isso, ver Rodrigues (1999). (Rodrigues, 1999Rodrigues, H. B. C. (1999). Notas sobre o paradigma institucionalista. Preâmbulo político-conceitual às aventuras de ‘sócios’ e ‘esquizos’ no Rio de Janeiro. Transversões (Escola de Serviço Social da UFRJ), n. único, 169-199., p. 172). É retomando essa premissa que iniciamos o percurso desta discussão. Nas palavras de Patto, destacadas por Coimbra (2011Coimbra, C. M. B. (2011). Práticas de estranhamento, indignação e resistência. Psicologia USP, 22(3), 579-586., p. 581), há práticas diárias que são equivalentes a “pequenos assassinatos cotidianos”, quando regidas por uma lógica que se presta como estatuto de verdade, estabelecendo, sutil ou descaradamente, normas, medidas e padronizações para a existência dos sujeitos.

Na narrativa apresentada, as dúvidas que permearam a equipe técnica e, principalmente, a professora de Daniel foram engendradas a partir de ideias que expressam uma forma historicamente concebida sobre o aluno e a sua relação com os conteúdos formais oferecidos pela escola: tudo correria bem se um aluno que cursava o terceiro ano do ensino fundamental conseguisse acompanhar as atividades propostas em sala de aula. Se já fosse alfabetizado e tivesse condições de sinalizar suas confusões e dúvidas sobre o conteúdo aplicado, a tarefa do professor seria ajudá-lo a enfrentar os desafios da aprendizagem, percorrendo um caminho em certa medida já conhecido. Esse processo expressaria um curso normal ou natural do aluno no terceiro ano que, quando interrompido, provoca dúvida e desconforto. Quando algo escapa do que é esperado, o desconforto convoca a força da naturalização dos processos, escancarando sua função de justificação e amenização das tensões (Machado, 1994Machado, A. M. (1994). Crianças de classe especial: efeitos do encontro entre a saúde e a educação (2ª ed.). São Paulo: Casa do Psicólogo .). Nesse sentido, uma dúvida, sendo percebida como um desconforto, rapidamente é deslocada para o âmbito das certezas de um saber já existente sobre o outro que determina um ponto normalizador e ordenador de formas singulares de vida: o sujeito passa a ser visto como aquele que se encaixa ou não se encaixa com um modelo idealizado. Dentro dessa chave de análise em que a distância entre aquilo que é tomado como o que deveria ser e aquilo que se efetua nas relações é critério, promovem-se operações de oposição, tais como: o adequado versus o inadequado, o bom versus o mau, o que aprende versus o que não aprende e tantas outras (Machado, 1994). A concepção que analisa as coisas a partir de um suposto ponto normal tem, em sua história, a função de regulação dos corpos.

Na narrativa, é possível perceber como essa operação se configura, principalmente nos efeitos decorrentes da presença de um aluno que desviava do esperado. Retomando: “muitas vezes, a impressão que tínhamos era de que seu corpo não cabia ali. Era como um menino “descabelado” no meio de outros muito “bem penteados” - aqui, um aspecto do menino atrai a explicação para o desconforto e, portanto, torna-se terreno fértil para o funcionamento de uma lógica que se encerra na caracterização de opostos, que, neste caso, produz pedidos com a finalidade de adequação ao que supõe ser o correto e eficiente.

Entretanto, algo acontece quando, em meio a esse funcionamento, Daniel fala sobre si, desencadeando questões que freiam a concepção ideal que estava em curso. Uma ruptura, a professora se afeta e cria-se, no encontro cotidiano, uma possibilidade de fazer valer o singular: o menino anuncia um segredo, fala e faz algo. Dá-se visibilidade às multiplicidades em jogo desde a presença desse menino na escola. Um acontecimento se dá e desacomoda os lugares estabelecidos, impedindo que Daniel seja tragado por um funcionamento que automatiza as relações que se estabelecem na escola em nome de um modo de habitar esse espaço. Daniel cria uma entrada com a sua professora e rompe as concepções instituídas que lhe concediam um lugar e uma finalidade de ser naquele contexto. Aqui, o fazer da criança convoca um movimento de singularização afetando a professora, que se reposiciona no jogo das forças instituídas.

A fala do menino convoca a professora a se abaixar e ouvir, abrindo uma pequena brecha no funcionamento aparentemente ajustado da organização escolar. Faz-se, então, via a insistência do singular que carrega dramas, sonhos, ideias, pensamentos, capacidades e posicionamentos, a abertura de uma outra dimensão. Nesse sentido, a situação porta em si a saída de um invólucro instituído, por meio, inicialmente, do encontro entre uma professora e um aluno. Acreditamos que, aí, anuncia-se uma força instituinte que serve de disparadora para desassossegar uma lógica que implica o saber total sobre o outro, isto é, há um segredo. Dessa maneira, a existência de um segredo já é suficiente para saber que não se sabe tudo.

A singularidade, a partir do ferramental teórico-prático do Institucionalismo, é algo sempre presente que, embora esteja sujeita a ser tragada no jogo de forças entre instituído e instituinte, não deixa de existir. Se algo já acontece quando a ação de Daniel cria um movimento, o que mais está implicado em sua fala ao anunciar um segredo?

Há a presença de um segredo e, via essa fala, há uma inscrição da criança em seu lugar de existir que produz um efeito discursivo na lógica institucional. O segredo enunciado por Daniel carrega deslocamentos que o fazem ser respeitado - “Daniel ganhou o meu respeito”. Nesse sentido, a ação do menino impede justamente que o segredo possa ser pensado a partir da sua significação instituída como uma dimensão individual, que diz do íntimo de um sujeito. O segredo dito à professora desloca todos, força a reflexão da implicação dos agentes e dos lugares no jogo das relações e, por esse motivo, é um acontecimento. Sendo um acontecimento, o segredo, que historicamente foi confessado ao psicólogo, pois a ele caberia desvendar os segredos da alma e da personalidade do sujeito, produz um efeito que deflagra uma possível direção para o trabalho da psicologia na escola: estar à espreita de cenas cotidianas que rompam com mecanismos instituídos pela naturalização dos processos. Não caberia à psicóloga ser a protagonista dessas cenas. A professora, ao relatar à psicóloga que Daniel ganhou respeito, mostra a força de derivação em uma cena cotidiana.

Dessa maneira, entendemos que há a presença de uma força instituinte nas cenas apresentadas na narrativa a partir da emergência de um acontecimento que se expressa na atitude de Daniel. É da fala da criança em uma situação cotidiana que o “efeito segredo” é produzido e, com força instituinte, apresenta-se por deslocar as certezas e as naturalizações operadas nas relações. Torna-se, portanto, uma pista do movimento institucional, dando-nos a ver as amplificações, ressonâncias e conexões dos processos que constituem o que está em jogo no território escolar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir das reflexões apresentadas no percurso deste artigo, entendemos que as situações que fogem daquilo que se espera que aconteça no cenário escolar remetem a uma expectativa idealizada do processo de escolarização. Assim que algo - uma característica, um comportamento, uma fala - irrompe nesse processo idealizado, o desconforto aparece na expressão de uma falta. A ideia de nomear algo como falta - caracterizada pelo que deveria acontecer, mas ainda não aconteceu - parte da naturalização em que se institui o que é ser aluno na escola.

É no cotidiano, naquilo que há de mais corriqueiro nas relações entre os sujeitos, que todo o jogo social e político se estabelece e se apresenta. Entende-se, portanto, que se trata de uma compreensão do cotidiano como uma grande possibilidade de exercício da política, ou seja, um campo para a reflexão e o reconhecimento da produção de efeitos diversos e formas instituídas de fazer ou lidar com as experiências que temos. É nas vivências cotidianas, portanto, que as condições para uma reflexão e análise institucional se apresentam. Nesse sentido, em qualquer campo em que se deem os encontros e as relações entre os sujeitos, apresentam-se as condições necessárias para o exercício de uma análise institucional (Lourau, 2004Lourau, R. (2004). O instituinte contra do instituído. In: S. Altoé (Ed.), Analista Institucional em tempo integral(pp. 47-65). São Paulo: Hucitec.). Se é no encontro cotidiano que os efeitos de naturalização, por um lado, engendram as relações professores/alunos, estabelecendo as posições que convocam os sujeitos, por outro lado, é na expressão desses mesmos efeitos que se configura o campo de intervenção, via a perspectiva institucionalista. É ainda nessa dimensão de uma vida ordinária, em que as práticas são ensejadas, que se pode produzir variação naquilo que Aquino (2014Aquino, J. G. (2014). O controverso lugar da psicologia na educação: aportes para a crítica da noção de sujeito psico-pedagógico. Psicologia: ensino & formação, 5(1), 5-19.) anuncia criticamente como o legado psi que se autoriza, num pretenso fazer científico, a antecipação da construção do desvelamento daquilo que são os itinerários existenciais.

Compreender a vivência cotidiana como uma oportunidade para o exercício da política significa implicar-se com o que se produz no mundo, agir a partir de uma convocação no jogo social, comprometendo-se em todos os espaços por onde quer que se circule (Veronese, 2016Veronese, L. A. A. (2016). A prática do psicólogo escolar: um olhar institucionalista para as pequenas-grandes recusas (Dissertação de Mestrado). Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo - USP, SP. Recuperado dehttps://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47131/tde-20042017-152849/pt-br.php
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). Dessa forma, concordamos, com a análise que Marazina (2015Marazina, I. V. (2015). Pensando sobre o operador intervenção. Vínculo (Revista do NESME), 12(1), 19-23. Recuperado dehttps://www.redalyc.org/pdf/1394/139446857004.pdf
https://www.redalyc.org/pdf/1394/1394468...
) apresenta sobre posições que distinguem a técnica aplicada na intervenção e aquilo que a sustenta efetivamente. Para a autora, que se pronuncia a partir de uma perspectiva institucionalista, “a possibilidade técnica do bom fazer se coloca em segundo lugar em relação ao que sustenta uma intervenção: a vontade política” (Marazina, 2015, p. 22, grifo da autora). A intervenção desprovida da dimensão política tende à especialidade técnica somente, restringe-se à boa intenção, ao bom fazer, como destaca a autora.

Pensar a intervenção a partir de uma dimensão política é recusar-se a deixar de fora a própria posição diante das convocações sociais e dos atravessamentos institucionais, econômicos e históricos a que todos estamos sujeitos. É, ainda, refletir sobre os efeitos que se produzem no campo quando se intervém e, mais, é esmiuçar elementos que direcionam o fazer, aquilo que nos sustenta na ação. Nesse sentido, realizar uma intervenção é colocar em análise, também, as próprias implicações com o campo social em que as práticas se engendram.

Por fim, entendemos que a ação do psicólogo na escola a partir da perspectiva institucionalista implica levar a cabo, no movimento institucional, as rupturas, as recusas e a própria dispensa do lugar de especialista e de especialidade. De uma psicologia adjetivada como Escolar, esse trabalho cria um campo de atuação e discussão que, articulando-se com a direção política da Análise Institucional, dá relevo às práticas institucionais que se estabelecem entre a Psicologia e a Educação (Machado, Lerner, & Fonseca, 2017Machado, A. M.; Lerner A. B. C.; Fonseca, P. F. (2017). Movimentos Políticos e Discursivos em Psicologia e Educação: fragmentos de uma história. In A. M. Machado; A. B. C. Coutinho; P. F. Fonseca (Eds.), Concepções e proposições em Psicologia e Educação: a trajetória do Serviço de Psicologia Escolar do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (pp. 159-172). São Paulo, SP: Blucher.).

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  • 1
    As situações apresentadas se referem a momentos vividos com um aluno em uma escola da rede particular da cidade de São Paulo, em que uma das autoras desempenhava o cargo de psicóloga escolar. A narrativa completa, assim como a discussão que ela propiciou, está na íntegra na dissertação A prática do psicólogo escolar: um olhar institucionalista para as pequenas-grandes recusas (Veronese, 2016).
  • 2
    O texto se apresenta em primeira pessoa, referindo-se à voz da psicóloga.
  • 3
    Optamos por iniciar esta parte do texto com a frase que a autora Heliana Conde Rodrigues chama de fórmula do pensamento institucionalista, mesmo sabendo da advertência que ela mesma faz quanto a essa síntese. Entendemos que essa frase possibilita alçar a discussão que traz à baila os efeitos de naturalização que nos interessam neste momento, podendo contribuir para o esclarecimento da presença das lógicas institucionais nas relações cotidianas. Rodrigues (1999) aponta a frase como insuficiente, ao articulá-la às ideias de Deleuze e Foucault no que compete à noção do termo instituição. Sobre isso, ver Rodrigues (1999).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    10 Jul 2019
  • Aceito
    11 Abr 2020
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