Acessibilidade / Reportar erro

Ilusão enunciativa na canção

Enunciative illusion in songs

Resumos

Destacam-se neste trabalho as decorrências enunciativas da inevitável presença da fala na linguagem da canção. Ao conceber uma letra, o compositor não apenas propõe um conteúdo, mas também as unidades entoativas (modos de dizer) que figurativizam a melodia e lhe atribuem um valor oral. São essas entoações que fazem do intérprete o foco de toda canção. Além das marcas enunciativas da letra, que muitas vezes já definem um "eu" lírico, as modulações da voz completam para o ouvinte a sensação de que os sentimentos descritos nos versos são vivenciados aqui e agora pelo cantor. Os exemplos aqui citados provêm do repertório brasileiro.

melodia e letra na canção de mercado brasileira; entoação na interpretação do cantor


Study about enunciative results of the inevitable presence of talking in the language of songs. While conceiving the lyrics, the composer not only proposes its content but also voice modulation unities (ways of saying) that imply in melodic depiction, attributing oral value to it. These voice modulations elect the performer as the focus of the song. Besides the enunciative marks of the lyrics, which many times define a lyrical "me" by themselves, voice modulations contribute to the listener's sensations that described feelings in the verses are experienced here and now by the singer. It includes examples from the Brazilian repertory.

melody and lyrics in Brazilian popular music; vocal modulation in the performance of singers


ARTIGOS CIENTÍFICOS

Ilusão enunciativa na canção

Enunciative illusion in songs

Luiz Tatit

USP, São Paulo, SP. tatit@usp.br

RESUMO

Destacam-se neste trabalho as decorrências enunciativas da inevitável presença da fala na linguagem da canção. Ao conceber uma letra, o compositor não apenas propõe um conteúdo, mas também as unidades entoativas (modos de dizer) que figurativizam a melodia e lhe atribuem um valor oral. São essas entoações que fazem do intérprete o foco de toda canção. Além das marcas enunciativas da letra, que muitas vezes já definem um "eu" lírico, as modulações da voz completam para o ouvinte a sensação de que os sentimentos descritos nos versos são vivenciados aqui e agora pelo cantor. Os exemplos aqui citados provêm do repertório brasileiro.

Palavras-chave: melodia e letra na canção de mercado brasileira; entoação na interpretação do cantor.

ABSTRACT

Study about enunciative results of the inevitable presence of talking in the language of songs. While conceiving the lyrics, the composer not only proposes its content but also voice modulation unities (ways of saying) that imply in melodic depiction, attributing oral value to it. These voice modulations elect the performer as the focus of the song. Besides the enunciative marks of the lyrics, which many times define a lyrical "me" by themselves, voice modulations contribute to the listener's sensations that described feelings in the verses are experienced here and now by the singer. It includes examples from the Brazilian repertory.

Keywords: melody and lyrics in Brazilian popular music; vocal modulation in the performance of singers.

1. Introdução

Sabemos que o trabalho com a sonoridade em si já atingiu níveis de elaboração altamente refinados no campo erudito desde que a música instrumental se emancipou da música vocal na Europa do século XVIII. A fabricação de novos e requintados instrumentos atraiu compositores que há muito buscavam soluções acústicas além dos limites determinados pela caixa torácica dos cantores e por suas faculdades articulatórias. A partir de então só tivemos progresso numa história que foi do período barroco até as experiências de vanguarda do século XX e que ainda conheceu um desdobramento de peso em épocas recentes com a chegada do jazz e a incorporação de improvisos virtuosísticos. No Brasil, a linguagem instrumental do choro também alcançou um prestígio semelhante ao do famoso gênero norte-americano, ainda que nem de longe desfrutasse as mesmas condições de divulgação e aceitação internacional.

Mas independentemente dos estilos, gêneros e metagêneros predefinidos, os músicos passaram a praticar nas últimas décadas todo tipo de fusão rítmica, combinação timbrística, alusão étnica e a aceitar influências de todos os períodos históricos sem se preocupar com o prestígio da sonoridade (popular, erudita, regional, pop etc.) em sua origem. É com esse vasto universo instrumental, ampliado atualmente pelos recursos eletrônicos e pelo contato com numerosas tendências modais procedentes das mais variadas regiões do globo, que o músico atual mantém seu diálogo artístico. Pouco lhe importam em princípio os sentidos gerados pela relação entre melodia e letra e o respaldo oferecido pelas entoações da língua natural. Essas preocupações são da área cancional e só adquiriram relevância especial a partir da invenção do fonógrafo.

Entretanto, não são raros os casos em que, na própria música erudita, os compositores sentem falta da "voz que fala" no âmago da "voz que canta". Tentam, assim, recriar a entoação e os acentos de sua língua materna na elaboração da melodia do canto com o intuito de imprimir traços subjetivos (e étnicos) na forma musical. Muitas vezes, tal recriação tem um sentido de desafio: domesticar a instabilidade das modulações coloquiais. O Sprechgesang praticado por A. Schœnberg no início do século XX, especialmente em Pierrot Lunaire, representa talvez o ápice dessa aventura musical. Mas o uso da fala na música escrita já exibe longa tradição na forma do recitativo, gênero que normalmente conduz os diálogos nas óperas ou simplesmente estabelece o elo narrativo entre suas árias. Em vez do canto melismático, as vocalizações aqui são sempre concebidas de modo silábico (cada nota corresponde a uma sílaba). Segundo o musicólogo Alex Ross, o compositor tcheco Leos Janáček (1854-1928) levou às últimas consequências a participação da fala nas obras musicais, pois pregava que "a melodia não apenas imita as oscilações no tom da fala na conversação como também ilustra as características de cada personalidade no drama" (ROSS, 2009, p.94):

A melodia [para o compositor] deveria seguir os tons e ritmos habituais da fala, às vezes literalmente. Pesquisou nos cafés e em outros lugares públicos, transcrevendo na partitura as conversas ouvidas ao seu redor. Por exemplo, ao dizer "dobrý večer", ou "Boa Noite", a seu professor, um estudante emprega um padrão descendente, uma nota aguda seguida de três notas mais graves. Quando esse estudante dirige a mesma saudação a uma bela criada, a última nota é ligeiramente mais alta do que as outras, para afetar timidez e intimidade. Tais diferenças sutis, pensou Janáček, poderiam engendrar um novo naturalismo operístico. Seria possível mostrar todo um ser numa fotografia instantânea.

2. Unidades entoativas

Se até a música escrita se ressente por vezes da perda do lastro entoativo, não é difícil imaginar o impacto desse desaparecimento no campo da canção cujos principais sentidos dependem do poder persuasivo da voz. Não basta que o cancionista alcance uma coerência musical (harmônica ou motívica), filie-se a um gênero consagrado (blues, samba, toada, rock, bolero etc.) ou mesmo se desprenda dos sistemas habituais de composição com suas escalas diatônicas e cromáticas. Falta-lhe sempre uma etapa de conversão dos segmentos melódicos em inflexões figurativas que só se completa com a criação da letra e, consequentemente, das unidades entoativas.

De fato, a figurativização, processo inerente à composição de canções, responde pelo efeito de fala natural no interior dessas pequenas obras, dando-nos a impressão de que as frases cantadas poderiam também ser frases ditas no cotidiano. Esse processo começa com a atuação do letrista. Cabe a ele definir quantas e quais são as unidades entoativas que "habitam" o continuum melódico.

Tomemos uma canção bem conhecida, como Olhos nos Olhos (Chico Buarque) e cantarolemos a melodia que acompanha os versos citados a seguir. A letra proposta para a primeira frase melódica divide-a em duas unidades entoativas: "(1) Quando você me deixou | (2) meu bem". A primeira cobre o relato do que houve no passado do enunciador e a segunda apenas reforça o seu contato afetivo com o "tu", o receptor da comunicação. Nas duas outras aparições da mesma frase melódica ("Quando você me quiser rever" e "Quando talvez precisar de mim") não há subdivisão entoativa. Ambas se servem de toda a sequência melódica para formular uma hipótese futura sem tonificar o contato com o "tu".

Já a melodia da segunda frase da composição é inicialmente apreendida como unidade entoativa integral: "Me disse pra ser feliz e passar bem". Quando é retomada nas estrofes seguintes, essa mesma melodia desdobra-se em duas unidades entoativas: "(1) Já vai me encontrar refeita | (2) pode crer" e "(1) Cê sabe que a casa é sempre sua | (2) venha sim". As segundas unidades ("pode crer" e "venha sim"), assim como vimos na primeira frase melódica, revigoram mais uma vez o contato com o receptor enquanto as primeiras dão continuidade à narrativa da letra. É de se notar ainda que a unidade entoativa que cobre "Cê sabe que a casa é sempre sua" apresenta-se ligeiramente alterada para acomodar as duas sílabas suplementares que surgiram na concepção da letra. É comum, aliás, que a força de expressão entoativa se sobreponha à forma musical e desfaça a sua métrica.

Quando dispomos de duas ou mais versões de frases linguísticas para a mesma sequência melódica, aumentam sobremaneira as chances de surgirem diferentes unidades entoativas. Há letristas que se especializam em segmentar de forma variada o mesmo fio melódico. O próprio Chico Buarque, em Feijoada Completa, cria quatro variações entoativas para a frase melódica (virtual) que antecede o refrão "E vamos botar água no feijão":

"Salta cerveja estupidamente gelada prum batalhão"

"Uca, açúcar, cumbuca de gelo, limão"

"Joga o paio, carne seca, toucinho no caldeirão"

"Diz que tá dura, pendura a fatura no nosso irmão"

As notas iniciais e finais dessas quatro frases são as mesmas. Também são praticamente as mesmas as notas entre as quais oscila a voz do cantor, no interior de uma sequência harmônica igualmente uniforme. No entanto, o número de sílabas dos versos não obedece a qualquer métrica nem a qualquer regularidade acentual, de tal maneira que o intérprete se vê obrigado a estabelecer ajustes especiais (introduz pausas, altera a figura rítmica, o modo de dizer etc.) para executar as quatro variáveis da mesma melodia virtual. Assim como há diversas pronúncias para realizar o mesmo fonema de uma língua, o que temos aqui são diversas resoluções sonoras para configurar a mesma melodia subjacente.

Por permitirem a comparação das unidades entoativas propostas pelo letrista a partir do mesmo segmento melódico, esses exemplos indicam com toda evidência que a criação das figuras enunciativas faz parte do processo geral de composição e garante a sensação de plausibilidade peculiar a toda canção: a voz que fala permanece por trás da voz que canta. Mas devemos entendê-los como demonstrações quase didáticas de um fenômeno bem mais amplo. Ao propor que a letra segmente uma sequência melódica, o compositor deposita em seus versos não apenas uma configuração de conteúdo (um assunto a ser tratado), mas também um modo de dizer entoativo que substitui a abstração musical pela enunciação concreta de um personagem, normalmente associado à imagem do cantor.

3. Embreagem enunciativa

Acontece que a linguagem da canção ainda possui outra particularidade enunciativa: ao enunciar sua criação, todo compositor prevê que ela será reenunciada pelo intérprete. Mais do que isso, o enunciado-canção jamais prescinde da enunciação do cantor (a não ser nas representações artificiais das partituras ou dos diagramas analíticos) e essa simultaneidade o distingue do mero enunciado linguístico. Para este último caso, existem diversos marcadores discursivos (pronomes, flexões verbais, advérbios) que ora distanciam, ora aproximam o enunciador do seu enunciado. Quando se expressa em primeira pessoa (eu), e convoca automaticamente a segunda (tu), o enunciador simula sua participação direta no texto, subjetivando-o, ou seja, estreitando as relações entre sujeito da enunciação e sujeito do enunciado1 1 Dizemos "simula" porque jamais o sujeito do enunciado corresponde de fato ao sujeito da enunciação. Enunciar significa criar um universo de sentido independente daquele vivido pelo enunciador. Só resta ao sujeito que enuncia produzir efeitos de proximidade ou distanciamento entre ambas as instâncias. (Ver sobre isso FIORIN, 1996, p.42-44) . Quando se expressa em terceira pessoa (ele), que na verdade não se configura propriamente como pessoa e sim como o assunto de que se fala (BENVENISTE, 1976, p.282), o enunciador afasta-se do teor do texto e, com isso, produz a impressão de uma escrita mais objetiva.

Recursos como esses se mantêm nas letras de canção, mas acompanhados, como vimos, de uma ação enunciativa muito especial da linha do canto. Se a letra se desenvolve em primeira pessoa, as inflexões melódicas reforçam a conexão dos enunciados com o enunciador. Este não apenas diz "eu", mas também "entoa" concomitantemente suas emoções como qualquer falante em suas locuções diárias. Se a letra relata algo em terceira pessoa, os contornos entoativos impedem que o efeito de objetividade se imponha com plenitude. Os sentimentos atribuídos a "ele" são infletidos pelas modulações vocais do intérprete, portanto, do "eu". Tudo que a letra desconecta da enunciação, a melodia se encarrega de reconectar. Lembremos da canção Domingo no Parque (Gilberto Gil), cuja intensa expressão melódica do intérprete (eu) elimina qualquer possibilidade de isenção enunciativa, ainda que a letra se construa em terceira pessoa e tente se ater aos fatos e à descrição dos sentimentos que geraram a crise entre "João", "José" e "Juliana". Não se pode negar que o aumento progressivo da tensão emocional que afeta o personagem "José" (ele) se manifesta claramente nos contornos melódicos realizados pelo eu-cantor, configurando um caso típico de embreagem2 2 O conceito de embreagem se opõe ao de debreagem. Enquanto este último representa o desligamento da instância de enunciação pela construção do enunciado, com seus pronomes independentes (mesmo o "eu" do enunciado já não corresponde mais ao "eu" da enunciação), a embreagem diz respeito aos recursos de religamento à enunciação, de reconexão do "eu" ou "ele" ao sujeito que enuncia. (GREIMAS e COURTÉS, 2008, p.159-162).

Essa embreagem, na verdade, responde por um dos principais efeitos de sentido associados à linguagem da canção: a ilusão enunciativa.3 É graças a ela que o ouvinte vincula, quase automaticamente, os conteúdos da letra ao dono da voz. Como vem sempre recortada pela letra, a melodia cancional é uma sequência virtual de unidades entoativas que se atualiza no canto dos intérpretes e garante a subjetivação constante da obra. Por mais variados que sejam os assuntos tratados no texto, a melodia se encarrega de aproximá-los da persona do cantor. Por isso, conscientes do impacto causado pela ilusão enunciativa, os intérpretes costumam escolher canções com cujas letras realmente se identificam. A melodia não permite que os temas sejam focalizados de maneira neutra sem envolvimento emocional.

Por mais que os recursos linguísticos mostrem uma voz em terceira pessoa, o ouvinte não deixa de ouvir as entoações emitidas pelo "eu" (intérprete). Lupicínio Rodrigues tem uma canção bastante conhecida cuja letra instaura, de início, a voz da terceira pessoa (ela): Ela disse-me assim: / "Tenha pena de mim, vai embora!". As aspas que englobam este último verso já assinalam, na escrita, uma equivalência entre "ela" e "eu", ou seja, eu digo agora o que ela disse anteriormente. No canto, a emissão da frase melódica, dividida em duas unidades entoativas ("Tenha pena de mim" e "vai embora!"), reforça ainda mais a atuação do emissor (intérprete) no tempo presente. É essa embreagem que atenua o efeito de distanciamento locutivo anunciado pela terceira pessoa e faz da canção um ato permanentemente ligado ao hic et nunc.

Se o canto tem o poder de transformar o "ele" em "eu", uma vez que os sentimentos atribuídos à terceira pessoa são modulados na voz da primeira, a expressão direta do "eu" na letra de uma canção, algo bastante corriqueiro, aguça a reconstituição do momento enunciativo e produz no ouvinte a ilusão de que o intérprete fala de si como ser humano: a personagem cancional se confunde com a personagem do mundo. Ao identificar-se com esse personagem do mundo, o ouvinte presta solidariedade aos intérpretes, acompanhando o seu sofrimento nas canções passionais ou compartilhando com eles as alegrias das canções de encontro. Sabemos que são os cantores que revelam ao público o mundo interno, extremamente sensível, das canções, mas, se considerarmos a tendência à embreagem radical dessas pequenas obras, temos que admitir que também compete a esses intérpretes criar efeitos de vida extracancional.

Há alguns exemplos históricos desse aproveitamento máximo da ilusão enunciativa no universo da canção brasileira. Quando Aurora e Cármen Miranda cantavam "Nós somos as cantoras do rádio / Levamos a vida a cantar", a célebre marchinha de João de Barro, Alberto Ribeiro e Lamartine Babo, os ouvintes se deliciavam com a impressão "verdadeira" de que as personagens principais dessa canção específica haviam protagonizado numerosas outras músicas difundidas pelo mais importante meio de comunicação da época. Mais que isso, em Cantores do rádio, elas falavam por todos os artistas do rádio que encantavam o cotidiano dos ouvintes. Anos depois, nas vozes de Chico Buarque, Maria Bethânia e Nara Leão, essa composição provoca o mesmo efeito de embreagem em sua versão para o filme Quando o Carnaval Chegar, de Cacá Diegues. O público não tinha dúvida novamente de que os intérpretes falavam de si.

Conhecendo intuitivamente esse dom particular da canção, os autores já chegaram a produzir música para um intérprete exclusivo. A dupla Erasmo e Roberto Carlos compôs Meu Nome é Gal, composição que, ao ser entoada pela famosa cantora, ressoa em nossos ouvidos como "verdade" absoluta: "Meu nome é Gal / E desejo me corresponder / Com um rapaz que seja o tal / Meu nome é Gal". Claro que, se há alguma verdade, ela é relativa. O desejo de se "corresponder com um rapaz que seja o tal", por exemplo, é pura invenção dos compositores, como, de resto, ocorre em todas as letras do repertório cancional. A singularidade dessa canção está em realizar não apenas uma fusão entre "ela" (a personagem Gal) e "eu" (a dona da voz), mas também entre "eu" e essa cantora brasileira específica, de tal maneira que ninguém mais pôde reinterpretá-la em outros contextos. Trata-se, portanto, de um caso de embreagem e ilusão enunciativa quase plenas.

Na mesma linha de exploração desse recurso figurativo, mas permanecendo explicitamente no domínio da ficção, temos outra gravação de Gal Costa, desta vez celebrizando a figura de Gabriela criada por Jorge Amado. A Modinha para Gabriela, composta por Dorival Caymmi, já trazia em seus versos marcas enunciativas: "Quando eu vim pra esse mundo / Eu não atinava em nada / Hoje eu sou Gabriela". A associação entre "eu" e Gabriela (ela) já está explícita na letra, mas a intensificação dessa embreagem e dessa ilusão enunciativa se dá quando o ouvinte estabelece uma verdadeira fusão entre a possível voz de Gabriela e a voz efetiva da intérprete. Alguns mitos começam então a povoar o imaginário do público: Gabriela só poderia cantar como Gal Costa; a feição da intérprete tem os contornos da atriz Sônia Braga que, por muito tempo, encarnou a personagem na televisão e no cinema; Gabriela é Gal Costa, que tem o corpo de Sônia Braga e ainda diz: "Eu nasci assim, eu cresci assim, eu sou mesmo assim, vou ser sempre assim". E o mundo interno e externo da canção se confundem porque seus personagens falam e agem pela voz da intérprete que é, ao mesmo tempo, sujeito do enunciado-canção (Gabriela), sujeito da enunciação (eu, a dona da voz) e sujeito físico (Gal Costa, Sônia Braga, Juliana Paes ou qualquer outra representação artística da personagem).

Esses casos extremos indicam que a força locutiva das canções nunca foi segredo para os cancionistas. Ao contrário, os compositores e intérpretes costumam dosá-la habilmente com o intuito de aumentar ou diminuir a fronteira entre o sujeito do canto e os sujeitos do conteúdo cantado. Ao diminuí-la, como vimos, conseguem intensificar significativamente nossa ilusão enunciativa. Mesmo que o intérprete não concorde ou não se identifique com o conteúdo transmitido, é comum que tolere a inevitável ação da embreagem por pura solidariedade à composição escolhida. Diz a cantora Jussara Silveira em entrevista a Patrícia Palumbo:

Outro dia, eu estava ensaiando

Nunca

, do Lupicínio Rodrigues. (Cantando) "Saudade, diga a esse moço, por favor, como foi sincero o meu amor... Nunca, nem que o mundo caia sobre mim, nem se Deus mandar, nem mesmo assim, as pazes contigo eu farei..." É lindo, é bem escrito, é bem-feito, mas eu não acreditaria nisso para a minha vida pessoal. [...] Mas acredito na canção. (PALUMBO, 2007, p.80)

A intérprete manifesta plena consciência de que faz parte do seu trabalho conviver com a tendência figurativa peculiar a qualquer composição. As marcas enunciativas contidas nas letras (aquelas que fazem alusão ao "eu-aqui-agora"), incrementadas pelas unidades entoativas e pela própria linha vocal, índice de um corpo sensível, estão sempre apontando para o dono da voz e revelando de certo modo o seu comprometimento com tudo que diz. E o papel da melodia é tão determinante que, muitas vezes, prescinde das informações linguísticas. Jussara Silveira atesta isso quando, na mesma entrevista, declara: "Não falo inglês, e muitas vezes não entendia o que ela [Billie Holiday] dizia. Mas, pelo jeito que cantava, eu sabia o que ela queria dizer". (PALUMBO, 2007, p.76)

4. Critérios cancionais

A sensibilidade cancional se nutre da linguagem musical a ponto de muitas vezes adotá-la como critério de qualidade de suas criações. Mas ocorre certo "excesso musical" quando a linha da voz se vê em concorrência com os demais naipes instrumentais, perde sua função protagonista e deixa de responder pelos valores figurativos da canção. É quando não mais reconhecemos as unidades entoativas e, por conseguinte, perdemos a ilusão de que os conteúdos e os sentimentos emitidos pela voz são partes e manifestações do corpo de alguém. Caímos então no campo da música lato sensu ou no trabalho com a sonoridade em si a que nos referimos no início deste estudo.

A adoção exclusiva de critérios musicais para a avaliação das canções já demonstrou sua completa inadequação de princípios. Os cancionistas em geral sequer exibem intimidade com a música escrita ou com a tradição musicológica. São peritos em estabelecer relações entre melodia e letra e em produzir ilusões enunciativas, o que já delineia um outro domínio de experiência e pede outros modelos de descrição baseados na indagação fundamental: o que garante a compatibilidade entre o que é dito (letra) e a maneira de dizer (melodia)? Os próprios elementos musicais, como harmonia, ritmo, timbre e textura sonora, são agentes que colaboram, às vezes até decisivamente, na integração desses dois componentes modulados pela voz, mas são recursos a serviço do canto.

O campo cancional também não se confunde com o da música popular instrumental que tem na capacidade de improviso dos artistas sua força motriz. Essa música faz parte do programa de diversas universidades brasileiras, em geral com currículos importados dos EUA onde os estudos jazzísticos já possuem longa tradição. Trata-se de um progresso diante dos antigos centros de estudos musicais que elegiam as produções "eruditas" (clássicas, cultas, escritas, não importa o nome) como as únicas merecedoras de atenção acadêmica ou científica. Mas apenas indiretamente contribui para os estudos cancionais, uma vez que só levam em conta a sua face melódica e, evidentemente, a participação do arranjo na criação.

A compreensão da linguagem cancional não depende igualmente das classificações por gênero, em geral realizadas pela musicologia ou pela etnomusicologia, e muito menos do conceito de autenticidade como parâmetro de valorização das canções entre si. Conscientes disso, Jules Chancel e Yann Plougastel, organizadores do Dictionnaire de la Chanson Mondiale, publicado pela Larousse em 1996, abrem o grande volume francês dizendo que sua seleção de verbetes não se baseia em gêneros. Seja "blues, country, soul, funk, rock, grunge, trash metal, pop, reggae, rap, salsa, saudade, fado, flamenco, opereta, samba, canção "rive gauche", canção de protesto, tecno, trip hop ou raggamuffin", o que importa aos autores é que a obra tenha a "voz como fio condutor". Tal enfoque já é bem significativo pois mostra que os organizadores identificaram uma área de produção estética autônoma cuja imensa relação de representantes precisa ser compilada. Também é significativo o fato de levarem em conta os artistas fartamente difundidos pela mídia após o término da Segunda Guerra Mundial (1946), quando a indústria fonográfica se encontrava totalmente consolidada. Essa canção evolutiva, portadora, entre outros, dos traços de linguagem destacados aqui, sempre esteve intimamente ligada à tecnologia de gravação.

Os processos de compatibilidade entre melodia e letra já foram por nós detalhados em outros trabalhos (TATIT, 1994, 1996, 1997 e TATIT e LOPES, 2008). Eles explicam por que melodias desaceleradas e com ampla exploração de tessitura sugerem letras que descrevem sentimentos de falta ou, ao contrário, melodias movimentadas, centradas no refrão e outros procedimentos reiterativos, favorecem a composição de letras que celebram encontros ou estados de comunhão. Neste momento, queremos apenas enfatizar os fenômenos de embreagem melódica que respondem pela eterna ilusão enunciativa provocada pelas canções.

Essa ilusão é responsável, entre outras coisas, pelo aumento progressivo, a partir dos anos 1960, dos cantores-compositores em todo o mundo. A força enunciativa da canção sempre foi tão imperiosa que, antes dessa década, se dizia: música do Frank Sinatra, do Carlos Gardel, do Cauby Peixoto, da Ângela Maria, quando, na verdade, esses artistas limitavam-se a interpretar faixas criadas por compositores "profissionais" (contratados pelas gravadoras para esse fim). Mas o efeito bumerangue da voz era irresistível: para os ouvintes, os cantores realmente "falavam de si". Não é difícil entender que essa instância enunciativa tenha exercido forte atração nos compositores dessa época, especialmente naqueles que se sentiam aptos a veicular a própria obra. Mais importante que a voz intensa do cantor profissional, a essa altura já superada pelos bons microfones e pela nova tecnologia de amplificação e gravação, surgia então a voz original do compositor, sujeito daquelas entoações e daqueles sentimentos descritos na letra. Bob Dylan, Joan Baez e a estupenda dupla Lennon & McCartney tornaram essa prática habitual para o grande público.

No Brasil, o fenômeno dos cantores-compositores se generalizou na era dos festivais. Como em todo período de transição, seus agentes ainda hesitavam na adoção da nova ordem. No célebre Festival da Record de 1966, Chico Buarque arriscou interpretar A Banda para a plateia e obteve sucesso em boa medida pela imediata identificação do tema tratado com sua figura de autor. Ela, a banda, era incontestavelmente uma construção do "eu" (Chico Buarque), tanto na canção como fora dela. Todavia, para "garantir" a eficácia da apresentação, entrava logo em seguida a cantora (Nara Leão), acompanhada por uma pequena fanfarra, e executava novamente as estrofes. No mesmo período era comum ouvirmos em diversos programas da rede Record Disparada, a música concorrente do mesmo Festival, na voz de Geraldo Vandré, com suas credenciais de enunciador "verdadeiro", e, em seguida, na voz de Jair Rodrigues, o intérprete que havia encarnado o autor durante o famoso concurso. No ano seguinte, a transição já tinha praticamente se consumado. Edu Lobo, Gilberto Gil e Caetano Veloso, considerados até então como compositores que raramente cantavam, assumiram por fim a interpretação de suas obras. Edu Lobo ainda teve o apoio da cantora Marilia Medalha para executar o seu Ponteio, mas Gilberto Gil e Caetano Veloso assumiram de vez o lugar do cantor (Domingo no Parque e Alegria, Alegria, respectivamente).

Depois disso entramos na era dos compositores-cantores com tal vigor que quase desapareceram os novos intérpretes (apenas intérpretes) masculinos. Para compensar, as cantoras, que ainda não compunham tanto como hoje, mantiveram considerável hegemonia por pelo menos três décadas nesse privilegiado lugar enunciativo de mediação entre autores e público. Avizinha-se agora o período das compositoras-cantoras, aquelas que desejam ampliar ainda mais o efeito de verdade que já inspiram como donas da voz, apresentando-se também como donas da criação. Querem, portanto, o aproveitamento total da ilusão enunciativa que sempre provocaram em suas execuções vocais.

Notas

Recebido em: 22/08/2012

Aprovado em: 13/12/2013

Luiz Tatit é professor Titular do Departamento de Linguística da F.F.L.C.H. da U.S.P. e autor dos livros Semiótica da Canção: Melodia e Letra (Ed. Escuta, 1994), O Cancionista: Composição de Canções no Brasil (Edusp, 1996), Musicando a Semiótica: Ensaios (AnnaBlume, 1997), Análise Semiótica Através das Letras (Ateliê, 2001), O Século da Canção (Ateliê, 2004), Todos Entoam:Ensaios, Conversas e Canções (Publifolha, 2007), Elos de Melodia e Letra (Ateliê, 2008), este em colaboração com Ivã Carlos Lopes, e Semiótica à luz de Guimarães Rosa (Ateliê, 2010). Em sua atividade como músico, lançou seis discos com o Grupo Rumo e, posteriormente, os álbuns-solo Felicidade (1998), O Meio (2000), Ouvidos Uni-vos (2005), Rodopio-CD e DVD (2007) e Sem Destino (2010), todos pela gravadora Dabliú.

  • BENVENISTE, Emile. Problemas de linguística geral Trad. Maria da Glória Novak e Luíza Neri. São Paulo: EDUSP, 1976.
  • FIORIN, J. L. As astúcias da enunciação São Paulo: Ática, 1996.
  • GREIMAS, Algirdas Julien; COURTÉS, Joseph. Dicionário de semiótica Trad. Alceu Dias Lima et alii. São Paulo: Contexto, 2008.
  • PALUMBO, Patrícia. Vozes do Brasil. v.2. São Paulo: DBA Artes Gráficas, 2007.
  • ROSS, Alex. O resto é ruído: escutando o século XX Trad. Claudio Carina e Ivan Weisz Kuck. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
  • TATIT, Luiz. Semiótica da canção: melodia e letra São Paulo: Escuta, 1994.
  • ______. O cancionista: composição de canções no Brasil São Paulo: EDUSP, 1996.
  • ______. Musicando a semiótica: ensaios São Paulo: AnnaBlume, 1997.
  • TATIT, Luiz; LOPES, Ivã Carlos. Elos de melodia e letra São Paulo: Ateliê Editorial, 2008.
  • 1
    Dizemos "simula" porque jamais o sujeito do enunciado corresponde de fato ao sujeito da enunciação. Enunciar significa criar um universo de sentido independente daquele vivido pelo enunciador. Só resta ao sujeito que enuncia produzir efeitos de proximidade ou distanciamento entre ambas as instâncias. (Ver sobre isso FIORIN, 1996, p.42-44)
  • 2
    O conceito de embreagem se opõe ao de debreagem. Enquanto este último representa o desligamento da instância de enunciação pela construção do enunciado, com seus pronomes independentes (mesmo o "eu" do enunciado já não corresponde mais ao "eu" da enunciação), a embreagem diz respeito aos recursos de religamento à enunciação, de reconexão do "eu" ou "ele" ao sujeito que enuncia.
  • 3
    Essa expressão já foi utilizada pela semiótica como decorrência do processo de "embreagem" (GREIMAS e COURTES, 2008, p.161) nos textos verbais. No contexto deste estudo, ela é retomada como efeito de sentido provocado pelo canto. A presença da voz jamais permite que o enunciado-canção se afaste do seu processo da enunciação.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      30 Maio 2014
    • Data do Fascículo
      Jun 2014

    Histórico

    • Aceito
      13 Dez 2013
    • Recebido
      22 Ago 2012
    Escola de Música da UFMG Escola de Música da UFMG. Av. Pres. Antônio Carlos, 6627 - Pampulha. Cep: 31270-010 - Belo Horizonte - MG - Brazil
    E-mail: permusiufmg@gmail.com