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A matemática comercial e financeira nas escolas paroquiais luteranas do Rio Grande do Sul na primeira metade do século XX

Commercial and financial mathematics in the Lutheran parochial schools of Rio Grande do Sul in the first half of the 20th century

Resumo

O artigo discute como a matemática comercial e financeira era ensinada nas escolas paroquiais luteranas do Rio Grande do Sul, durante a primeira metade do século XX, por meio da análise da Segunda Aritmética e da Terceira Aritmética da série Concórdia, editadas pela Igreja Luterana para suas escolas. O aporte metodológico está fundamentado na história cultural e na análise de conteúdo. O Sínodo de Missouri, hoje Igreja Evangélica Luterana do Brasil, iniciou sua missão nas colônias alemãs gaúchas em 1900, fundando congregações religiosas e escolas paroquiais. Essas escolas estavam inseridas num projeto missionário e comunitário que buscava ensinar a língua materna, a matemática e os valores culturais, sociais e religiosos. A matemática comercial e financeira foi abordada de forma contextualizada com a realidade dos alunos, incentivando o desenvolvimento do pensamento proporcional, o cálculo correto de troco e de valores de dívidas, além do estudo de aplicações financeiras envolvendo juros simples.

Palavras-chave
porcentagem comercial; juros simples; série concórdia; ensino da Matemática; escolas paroquiais luteranas gaúchas

Abstract

The article discusses how commercial and financial mathematics was taught in the Lutheran parochial schools of Rio Grande do Sul, during the first half of the 20th century, through the analysis of the Segunda Aritmética and of the Terceira Aritmética of the Concórdia series, edited by the Lutheran Church for their schools. The methodological support is grounded on cultural history and on content analysis. The Missouri Synod, currently the Evangelical Lutheran Church of Brazil, began its mission in the German colonies of Rio Grande do Sul in 1900, by founding religious congregations and parochial schools. These schools were inserted in a missionary and community project that sought to teach the mother tongue, mathematics, and cultural, social and religious values. Commercial and financial mathematics was approached in a contextualized manner in relation to the reality of the students, encouraging the development of the proportional thinking, of the correct calculation of return and debt values, and of the study of financial investments involving simple interest.

Keywords
commercial percentage; simple interest; Concórdia series; mathematics teaching; Lutheran parochial schools in Rio Grande do Sul

1 Introdução

O movimento migratório no Rio Grande do Sul - RS - tem sido objeto de investigações. No âmbito da História da Educação no estado gaúcho, os trabalhos de Arendt (2005)Arendt, I. C. (2005). Representações de germanidade, escola e professor no Allgemeine Lehrerzeitung Für Rio Grande do Sul [Jornal Geral para o Professor no Rio Grande do Sul]. Tese de Doutorado, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, RS, Brasil., Kreutz (1991Kreutz, L. (1991). O professor paroquial: magistério e imigração alemã. Porto Alegre: Ed. da UFRGS; Caxias do Sul: EDUCS., 1994Kreutz, L. (1994). Material didático e currículo na escola teuto-brasileira. São Leopoldo: Ed. UNISINOS., 2008)Kreutz, L. (2008, janeiro/abril). Livros escolares e imprensa educacional periódica dos imigrantes alemães no Rio Grande do Sul, Brasil 1870-1939. Revista Educação em Questão. 31(17), 24-52., Lemke (2001)Lemke, M. D. (2001). Os princípios da educação cristã luterana e a gestão de escolas confessionárias no contexto das ideias pedagógicas no sul do Brasil (1824 – 1997). Canoas: Ed. ULBRA., Rambo (1994Rambo, A. B. (1994). A escola comunitária teuto-brasileira católica. São Leopoldo: Ed. UNISINOS., 1996)Rambo, A. B. (1996). A escola comunitária teuto-brasileira católica: a associação de professores e a escola normal. São Leopoldo: Ed. UNISINOS. e Weiduschadt (2007Weiduschadt, P. (2007). O Sínodo de Missouri e a educação pomerana em Pelotas e São Lourenço do Sul nas primeiras décadas do século XX: identidade e cultura escolar. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, RS, Brasil., 2012)Weiduschadt, P. (2012). A revista “O Pequeno Luterano” e a formação educativa religiosa luterana no contexto pomerano em Pelotas – RS (1931-1966). Tese de Doutorado, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, RS, Brasil. são destaques. Na História da Educação Matemática no RS, destacam-se as pesquisas de Mauro (2005)Mauro, S. (2005). Uma história da matemática escolar desenvolvida por comunidades de origem alemã no Rio Grande do Sul no final do século XIX e início do século XX. Tese de Doutorado, Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, SP, Brasil., Kreutz e Arendt (2007)Kreutz, L., & Arendt, I. C. (Org.). (2007). Livros escolares das escolas de imigração alemã no Brasil (1832-1940). Acervo documental e de pesquisa, Biblioteca UNISINOS, São Leopoldo, RS, 3 CD-ROM., Kuhn (2015)Kuhn, M. C. (2015). O ensino da matemática nas escolas evangélicas luteranas do Rio Grande do Sul durante a primeira metade do século XX. Tese de Doutorado, Universidade Luterana do Brasil, Canoas, RS, Brasil., Silva (2014Silva, C. M. S. (2014). Friedrich Bieri e a matemática para o ensino primário nas escolas teutobrasileiras. Anais do XI Seminário Temático - A constituição dos saberes elementares matemáticos: a aritmética, a geometria e o desenho no curso primário em perspectiva histórico-comparativa, 1890-1970, Florianópolis, SC, Brasil, 22., 2015aSilva, C. M. S. (2015a). A aritmética de Matthäus Grimm no boletim informativo da associação de professores católicos da imigração alemã no Rio Grande do Sul. Anais do XII Seminário Temático - Saberes elementares matemáticos do ensino primário (1890 - 1970): o que dizem as revistas pedagógicas? (1890 – 1970), Curitiba, PR, Brasil, 16., 2015b)Silva, C. M. S. (2015b). A regra de ouro nos livros didáticos para escolas alemãs-brasileiras. Acta Scientiae, 17(ed. especial), 41-59. e Wanderer (2007)Wanderer, F. (2007). Escola e Matemática Escolar: mecanismos de regulação sobre sujeitos escolares de uma localidade rural de colonização alemã no Rio Grande do Sul. Tese de Doutorado, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, RS, Brasil..

Este artigo tem o propósito de discutir, por meio da análise de livros de Aritmética editados para as escolas paroquiais luteranas do RS, como a matemática comercial e financeira era ali ensinada durante a primeira metade do século XX. Trata-se de um recorte de tese, complementado por pesquisas realizadas durante o estágio Pós-doutoral em um Programa de Pós-Graduação. Como a temática investigada se insere na História da Educação Matemática no estado gaúcho, com a análise de livros didáticos, busca-se na história cultural e na análise de conteúdo o suporte para discussão.

Conforme Chartier (1990)Chartier, R. (1990). A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel., uma questão desafiadora para a história cultural é o uso que as pessoas fazem dos objetos que lhes são distribuídos ou dos modelos que lhes são impostos, uma vez que há sempre uma prática diferenciada na apropriação dos objetos colocados em circulação. Segundo o autor, pode-se dizer que a imprensa pedagógica, aqui representada pelas aritméticas da série Concórdia, foi um veículo para circulação de ideias que traduzem valores e comportamentos que se desejam ensinar – a ideologia luterana, sendo posta em convergência com outras estratégias políticas e culturais no RS.

Chervel (1990)Chervel, A. (1990). História das disciplinas escolares - reflexões sobre um campo de pesquisa. Teoria & Educação, (2), 177-229. considera importante o estudo histórico da cultura escolar para a compreensão dos elementos que participam da produção/elaboração/constituição dos saberes escolares e, em particular, da matemática escolar e sua história. Julia (2001)Julia, D. (2001, janeiro/junho). A cultura escolar como objeto histórico. Revista Brasileira de História da Educação, (1), 9-43. define a cultura escolar como um conjunto de normas que estabelecem conhecimentos a ensinar e condutas a inspirar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos.

Uma investigação com enfoque na análise de conteúdo está sempre procurando um texto atrás de outro texto, um texto que não está aparente já na primeira leitura e que precisa de uma metodologia para ser desvendado. Bardin (2011)Bardin, L. (2011). Análise de conteúdo. (L. A. Reto, & A. Pinheiro, trads., obra original publicada em 1977). São Paulo: Edições 70, Martins Fontes. sugere três etapas para análise de conteúdo: a pré-análise em que se faz a escolha dos documentos e, a partir deles, a formulação de objetivos, de hipóteses e de indicadores para análise (unidades de análise); a exploração dos materiais por intermédio dos indicadores elaborados; e o tratamento dos resultados para interpretação das mensagens e das inferências.

A abordagem da matemática comercial e financeira nas escolas paroquiais luteranas do RS é realizada por meio de uma caracterização dessas escolas e de uma análise qualitativa das edições da Segunda Aritmética e da Terceira Aritmética, ambas da série Concórdia, editadas pela Igreja Evangélica Luterana do Brasil – IELB – para suas escolas paroquiais, na década de 1940. Este estudo está baseado num instrumento de análise de conteúdo construído com cinco unidades de análise1 1 As unidades de análise utilizadas para o estudo das aritméticas da série Concórdia foram: conteúdos (7 categorias), aspectos pedagógicos (8 categorias), processo de ensino e aprendizagem (6 categorias), recursos didáticos (5 categorias), linguagem e aspectos gráfico-editoriais (4 categorias). e suas respectivas categorias, descrito em Kuhn (2015)Kuhn, M. C. (2015). O ensino da matemática nas escolas evangélicas luteranas do Rio Grande do Sul durante a primeira metade do século XX. Tese de Doutorado, Universidade Luterana do Brasil, Canoas, RS, Brasil..

2. As escolas paroquiais luteranas do RS

Com o início do trabalho missionário do Sínodo Evangélico Luterano Alemão de Missouri2 2 Em 1847, um grupo de imigrantes luteranos alemães da Saxônia fundou, no estado de Missouri (Estados Unidos), o Sínodo Evangélico Luterano Alemão de Missouri, Ohio e outros estados, atualmente Igreja Luterana - Sínodo de Missouri (Warth, 1979). no RS a partir de 1900, além das congregações luteranas, começaram a ser fundadas as escolas paroquiais. Para o Sínodo de Missouri, o sucesso da missão passava pela valorização da escola paroquial. Era necessário consolidar um campo religioso e fortalecê-lo investindo na escola, e também influenciar o campo familiar dos seus possíveis fiéis. “A escola paroquial se revelou como uma grande bênção para o bem e o desenvolvimento da Igreja Luterana. As congregações que mantinham escolas paroquiais, geralmente eram as melhores congregações” (Warth, 1979Warth, C. H. (1979). Crônicas da Igreja: fatos históricos da Igreja Evangélica Luterana do Brasil (1900 a 1974). Porto Alegre: Concórdia., p. 195). Por isso, os missourianos cuidaram não somente da formação de ministros como também de professores que atuassem de acordo com a filosofia educacional missouriana, contribuindo para que as escolas paroquiais atingissem seus objetivos como agência missionária e de educação geral.

As escolas paroquiais tinham uma responsabilidade para com a comunidade no sentido de, junto e com ela, promover o crescimento e o desenvolvimento pessoal de todos que a compunham, focando, principalmente, a cidadania. Se a escola formasse o ser humano com postura ética e moral exemplar, ele poderia promover transformações sólidas em seu contexto social e seria um verdadeiro colaborador na seara de Deus e para o governo do mundo. As escolas paroquiais luteranas são assim caracterizadas por Weiduschadt (2007)Weiduschadt, P. (2007). O Sínodo de Missouri e a educação pomerana em Pelotas e São Lourenço do Sul nas primeiras décadas do século XX: identidade e cultura escolar. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, RS, Brasil.:

As escolas eram organizadas de forma multisseriada. As turmas eram compostas de 20 a 40 alunos. Na maioria das vezes, o pastor da comunidade era, ao mesmo tempo, professor. As escolas funcionavam em forma comunitária, ou seja, a comunidade sustentava a estrutura física e mantinham o professor da escola. O prédio era muitas vezes o mesmo local do templo. A ligação entre a escola e a igreja era importante, porque logo no início da formação das comunidades o ensino doutrinário e pedagógico era ressaltado e sua suplementação implicava questões econômicas e culturais para a implementação. O projeto escolar dentro da comunidade religiosa era marcante, a orientação e a obrigação de os pais enviarem os filhos à escola eram quase obrigatórias, com sanções econômicas e morais, caso não concordassem. (pp. 166-168)

O Sínodo de Missouri também tinha uma preocupação acentuada em relação aos recursos didáticos usados nas escolas paroquiais, pois esse material era escasso e a dificuldade era grande em manter um ensino planificado e organizado. Assim, segundo Weiduschadt (2007)Weiduschadt, P. (2007). O Sínodo de Missouri e a educação pomerana em Pelotas e São Lourenço do Sul nas primeiras décadas do século XX: identidade e cultura escolar. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, RS, Brasil., “os livros usados nas escolas paroquiais e utilizados pelos alunos foram produzidos pelas instituições religiosas com objetivo de formar e moldar as condutas e as práticas ao fazer a escolarização das comunidades” (p.41). Dessa forma, por meio dos livros didáticos e dos periódicos, as escolas paroquiais luteranas conseguiram desenvolver uma educação integral cristã em todas as disciplinas, inclusive na Matemática. De acordo com Lemke (2001)Lemke, M. D. (2001). Os princípios da educação cristã luterana e a gestão de escolas confessionárias no contexto das ideias pedagógicas no sul do Brasil (1824 – 1997). Canoas: Ed. ULBRA., o ensino da Palavra de Deus, através da Bíblia, ficava em primeiro lugar, e as demais disciplinas não eram menos prezadas, mas complementavam a educação para servir no mundo.

3 O ensino da Matemática nas escolas paroquiais luteranas do RS

Para Kreutz (1994)Kreutz, L. (1994). Material didático e currículo na escola teuto-brasileira. São Leopoldo: Ed. UNISINOS., o currículo das escolas paroquiais estava organizado de forma que as crianças aprendessem o essencial para o bom entrosamento na vida das comunidades rurais, sob o aspecto tanto religioso e social quanto do trabalho. Havia preocupação em construir o conhecimento vinculado à realidade do aluno. Segundo Schubring (2003)Schubring, G. (2003, julho/dezembro). Relações culturais entre Alemanha e Brasil: “Imperialismo Cultural” versus “Nacionalização”. Zetetiké ,11(20), 9-49., nos primeiros períodos de colonização, para o ensino da Matemática foram usados livros trazidos da Alemanha ou recebidos como doações. Os livros que passaram a ser produzidos no sul do Brasil, no final do século XIX, seguiram as tendências da metodologia da Matemática na Alemanha, porém, adapatando-se à realidade dos colonos no Brasil. Por isso, os teuto-brasileiros tomavam cuidados quanto à elaboração e à impressão de material didático adequado à realidade local e regional.

De acordo com Weiduschadt (2007)Weiduschadt, P. (2007). O Sínodo de Missouri e a educação pomerana em Pelotas e São Lourenço do Sul nas primeiras décadas do século XX: identidade e cultura escolar. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, RS, Brasil., o ensino da Matemática era muito valorizado nas escolas paroquiais luteranas do RS:

Pela necessidade do trabalho e para ser usada na vida cotidiana a matemática era muito valorizada. O ensino da matemática era difundido, pois a criança necessitava ter domínio desse conhecimento para poder usar no dia a dia. Aprendiam os conceitos elementares e práticos da matemática. Em relação à economia eles precisavam aprender fundamentos básicos de matemática para que fosse permitido negociar seus produtos agrícolas. (p. 195)

Com relação ao ensino da Matemática nas escolas paroquiais luteranas, Lindemann (1888)Lindemann, J. C. W. (1888). Amerikanisch-Lutherische Schul-Praxis (2a ed.). Sant Louis: Lutherischer Concordia - Verlag. afirma que nas classes iniciais, não importa muito a aritmética escrita, mas que as crianças entendam intuitivamente a ideia dos números e do sistema decimal. Nos primeiros anos de escola será suficiente que as crianças compreendam os números de 1 a 1000 corretamente, saibam ler e escrever os números e executar os cálculos básicos envolvendo as quatro operações. Nos anos seguintes, devem aprender as quatro operações com todos os números e também os números decimais. Mais adiante, aprendem as frações comuns, unidades de medida, cálculos com preços e percentagem e a solução de tarefas geométricas simples. O treino e memorização de tabelas com unidades de medida, de pesos e moedas devem ser realizadas mais no final da escolarização. [tradução nossa]. (p. 51)

Rambo (1994)Rambo, A. B. (1994). A escola comunitária teuto-brasileira católica. São Leopoldo: Ed. UNISINOS. acrescenta que o cálculo aritmético era um recurso prático indispensável ao indivíduo atuante numa comunidade qualquer ou numa determinada sociedade.

A familiaridade e o manejo do cálculo mental, oral e escrito, ao menos até o nível de juros simples e compostos, da regra de três e outros, representava o mínimo de ferramental, indispensável para a solução dos múltiplos problemas do dia a dia. O colono tinha que saber controlar com certa exatidão suas receitas e despesas. Era preciso fazer previsões mais ou menos confiáveis. A correta administração do orçamento familiar e o gerenciamento da produção da sua propriedade rural requeriam algo além do que uma simples familiaridade abstrata com relações numéricas. Lidando com a terra, era obrigado a saber fazer cálculos aproximados de superfície. Esse fato obrigava a assimilar noções básicas de geometria, além de conhecimentos corretos do sistema métrico. Lidando diariamente com dinheiro, inclusive com empréstimos na rede de agências das caixas rurais, exigia-se habilitação no manejo do cálculo de juros simples e compostos. O trabalho com madeira, com grãos, com banha só podia ser confiável com o domínio dos rudimentos do cálculo volumétrico nas suas mais diversas formas. A familiaridade com os diversos sistemas métricos significava um pré-requisito insubstituível. Um dos aspectos mais positivos no aprendizado do cálculo consistia na sua natureza eminentemente prática. (pp. 154-155)

Sommer (1984)Sommer, A. (1984). Reminiscências da colônia teutônia: estrela décadas 20 e 30. São Leopoldo: Rotermund. Unsere Schule. (1933-1935). Porto Alegre: Casa Publicadora Concórdia. reforça que “já no quarto ano, ensinava-se regra de três, taxa de descontos, juros, cálculos de área e volume, tudo ilustrado com exemplos práticos da vida cotidiana dos colonos e dos comerciantes” (p. 70).

Registra-se que os primeiros 30 anos de existência das escolas paroquiais luteranas no RS foram marcados pela carência de materiais didáticos e pela progressiva adoção dos 4 manuais de Büchler, tanto em alemão, quanto em português, para as aulas de Matemática. No periódico Unsere Schule3 3 Na década de 1930, a IELB começou a publicar um periódico pedagógico dirigido às escolas paroquiais, chamado Unsere Schule (Nossa Escola) (1933), afirma-se “que os livros de aritmética de Büchler (editora Rotermund)4 4 A editora Rotermund, de São Leopoldo editava e publicava o material didático relacionado ao Sínodo Rio-Grandense (Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil – IECLB). são usados na maioria das nossas escolas e que a mesma editora lançou recentemente um novo manual: meu livro de contas, por W. Nast e L. Tochtrop”[tradução nossa] (p. 6).

Porém, na mesma edição, esse manual é analisado criticamente, apontando a necessidade de livros com princípios missourianos morais e educacionais, com uso de princípios pedagógicos modernos e adaptados às condições nacionais.

Por isso, o Sínodo de Missouri começou a produzir seus próprios livros de Aritmética na década de 1930. No periódico Unsere Schule, faz-se referência aos novos livros de aritmética: “o Sínodo decidiu que será editado neste ano um trabalho completo de aritmética. Os professores Frederico Strelow, Albert Brückmann e Max Öhlwein foram contratados para realizar o trabalho” [tradução nossa] (Unsere Schule, 1934, p. 14). Este trabalho completo de Aritmética foi a série Ordem e Progresso, pois, em edições posteriores, o mesmo periódico fez divulgação da Primeira Aritmética e da Segunda Aritmética dessa série.

A edição e a publicação do material didático específico para as escolas paroquiais luteranas gaúchas, com base em princípios morais e educacionais idealizados pela IELB, foram realizadas pela Casa Publicadora Concórdia5, de Porto Alegre/RS. Para as aulas de Matemática, foram publicadas duas séries: a série Ordem e Progresso, lançada na década de 1930, pela divulgação feita no periódico Unsere Schule; e a série Concórdia, lançada na década de 1940. Cada série é composta pela Primeira Aritmética, Segunda Aritmética e Terceira Aritmética.

A partir do instrumento de análise de conteúdo construído com cinco unidades de análise e suas respectivas categorias, fundamentado em Bardin (2011)Bardin, L. (2011). Análise de conteúdo. (L. A. Reto, & A. Pinheiro, trads., obra original publicada em 1977). São Paulo: Edições 70, Martins Fontes. e descrito em Kuhn (2015)Kuhn, M. C. (2015). O ensino da matemática nas escolas evangélicas luteranas do Rio Grande do Sul durante a primeira metade do século XX. Tese de Doutorado, Universidade Luterana do Brasil, Canoas, RS, Brasil., realiza-se a análise da Segunda Aritmética (1948)Série Concórdia: Segunda Aritmética. (1948). Porto Alegre: Casa Publicadora Concórdia. e da Terceira Aritmética (1949)Série Concórdia: Terceira Aritmética. (1949). Porto Alegre: Casa Publicadora Concórdia., ambas da série Concórdia, nas quais se encontraram registros da matemática comercial e financeira. Embora as duas aritméticas não possuam autoria declarada, acredita-se que os autores dessas obras tenham sido professores das escolas paroquiais luteranas, devido a referências feitas no periódico Unsere Schule sobre os responsáveis pela elaboração dos livros de Aritmética.

Analisando essas aritméticas com o instrumento de análise elaborado, identificaram-se os conteúdos relacionados à matemática comercial e financeira, os aspectos pedagógicos e os processos de ensino e aprendizagem mobilizados pelos seus autores.

4 A matemática comercial e financeira nas aritméticas da série Concórdia

A Segunda Aritmética da série Concórdia possui 96 páginas e traz como principais unidades de estudo: numeração 1 - 1000; números até 10.000; números além de 10.000. Nessa aritmética se encontraram problemas envolvendo operações comerciais relacionados com situações de compra e de venda, em diferentes contextos, como se pode observar no Quadro 1:

Quadro 1
Problemas sobre operações comerciais

Os três problemas descritos no Quadro 1 envolvem operações comerciais em contextos de compra ou de venda, explorando o cálculo correto de troco, de lucro ou de dívidas. Cálculos desse tipo eram importantes para que, no futuro, os alunos das escolas paroquiais luteranas pudessem gerenciar suas operações de compra e venda e não fossem logrados. Destaca-se que o problema 2 não apresenta pergunta em seu enunciado, ficando subentendida nele a ideia de calcular o troco. Situações semelhantes são observadas em outros problemas propostos na edição da Segunda Aritmética, cabendo ao aluno deduzir a pergunta a partir do contexto apresentado.

No Quadro 2, descreve-se um exercício sobre escrituração, encontrado na Segunda Aritmética.

Quadro 2
Escrituração

O exercício de escrituração apresentado no Quadro 2 traz informações sobre as entradas e as saídas no mês de março, provavelmente relacionadas ao orçamento familiar de um agricultor. A partir dessas informações se propõe o cálculo do total de entradas, do total de saídas e do saldo final, envolvendo, de forma contextualizada, frações decimais. Esse tipo de exercício tinha sua importância, pois, de acordo com Rambo (1994)Rambo, A. B. (1994). A escola comunitária teuto-brasileira católica. São Leopoldo: Ed. UNISINOS., se esperava que a escola desse suporte para que os futuros colonos realizassem a correta administração do orçamento familiar e o gerenciamento da produção da sua propriedade rural.

No Quadro 3, observa-se um exercício relacionado a uma nota de compra

Quadro 3
Nota de compra

O exercício mostrado no Quadro 3 propõe o preenchimento correto de uma nota de compra de mercadorias numa casa comercial. Era necessário que o aluno calculasse o gasto total na compra de cada mercadoria através da multiplicação de um número inteiro por uma fração decimal e depois, por meio de uma soma de frações decimais, determinasse o valor total da nota. O desenvolvimento deste tipo de exercício com os alunos das escolas paroquiais luteranas está relacionado com o fato de que, segundo Dreher (1999)Dreher, M. N. (1999, julho/dezembro). O desenvolvimento econômico do Vale do Rio dos Sinos. Estudos Leopoldenses - Série História, 3(2), 49-70., cada picada6 6 Organização social na qual se encontravam o templo (católico ou luterano, as confissões religiosas às quais pertenciam os imigrantes alemães), a escola, o cemitério, a residência do professor ou do padre/pastor, o salão de festas comunitárias e a casa comercial (Dreher, 1999). abrigava uma casa comercial, para a qual eram vendidos os excedentes de produção e adquiridos os bens não produzidos na comunidade.

No Quadro 4, a partir de uma fatura, propõe-se a determinação do preço de compra e de venda de cada artigo.

Quadro 4
Compras e vendas

O excerto mostrado no Quadro 4 traz os dados de uma fatura de compra realizada por um negociante. Propõe-se determinar o preço de compra de cada artigo e o de venda, sabendo que o lucro em cada artigo deve ser a décima parte do preço pago na compra. É uma atividade em que está subentendida a ideia de calcular o preço de venda com 10% de lucro sobre o preço de compra de cada artigo. Conforme Lindemann (1888)Lindemann, J. C. W. (1888). Amerikanisch-Lutherische Schul-Praxis (2a ed.). Sant Louis: Lutherischer Concordia - Verlag., as tarefas escolares deveriam levar em conta a vida prática, pois, no futuro, a criança precisaria realizar cálculos de preços, determinar o lucro ou o prejuízo em transações comerciais. Ressalta-se que esta edição traz outras propostas de ensino, envolvendo faturas ou notas de compras no contexto das colônias alemãs gaúchas.

A Terceira Aritmética da série Concórdia tem 143 páginas e apresenta como principais unidades de estudo: frações decimais e sistema métrico; frações ordinárias; regra de três; porcentagem; porcentagem comercial; juros; razão e proporção; geometria prática.

Na edição da Terceira Aritmética se encontraram mais registros relacionados com a matemática comercial e financeira. Identificaram-se excertos associados com operações comerciais, porcentagem comercial, juros e regra de sociedade. No Quadro 5, apresenta-se um problema relacionado com transações comerciais, envolvendo operações com frações decimais.

Quadro 5
Problema sobre transações comerciais

O excerto descrito no Quadro 5 se refere a uma operação comercial comum nas colônias alemãs do RS. Desde as origens da colonização alemã no RS, as trocas de mercadorias se fizeram por permuta. A universalidade e a perenidade do sistema, nascido da ausência de capital mobiliário e de moeda circulante, eram características da colônia O colono trazia seu excedente de produção para a venda na casa comercial, da qual levava sua contrapartida em artigos fabricados ou em gêneros alimentícios. Roche (1969)Roche, J. (1969). A colonização alemã e o Rio Grande do Sul (Vol. 1 e Vol. 2). Porto Alegre: Editora Globo. revela, “trazia um saco de feijão, uma lata de banha ou uma dúzia de ovos se apenas precisava de pouca coisa; trazia mais se previa grandes compras” (p. 411). As trocas se fizeram, de início, à vista. Depois, certos comerciantes abriram contas correntes a seus fregueses acreditados. “Levavam, na receita, os ovos ou o toucinho, e, na despesa, o sal, o açúcar, o café e os tecidos, era já um embrião de crédito” (Roche, 1969Roche, J. (1969). A colonização alemã e o Rio Grande do Sul (Vol. 1 e Vol. 2). Porto Alegre: Editora Globo., p. 412). Observa-se que o problema apresenta oito produtos levados por um freguês para a casa comercial (venda) e seis produtos que ele compra, com os seus respectivos preços unitários. Era preciso calcular o valor correspondente a cada mercadoria em função da quantidade vendida ou comprada, o valor total de venda e o valor total de compra, para, então, determinar quanto dinheiro sobrava para o freguês.

Na quinta unidade de estudo da Terceira Aritmética, propõe-se a “porcentagem comercial”: peso bruto, tara e peso líquido; lucros e perdas; compras e vendas; descontos. No Quadro 6, ilustra-se a proposta de estudo para peso bruto, tara e peso líquido.

Quadro 6
Peso bruto, tara e peso líquido

Após desenvolver a ideia de porcentagem, explorar cálculos sobre porcentagens, cálculo da taxa e cálculo do valor nominal, a Terceira Aritmética apresenta o estudo da porcentagem comercial. Inicialmente, desenvolve-se a ideia de peso bruto ou total, tara e peso líquido, a partir de uma caixa de sabão, conforme observado no Quadro 6. Exploram-se também cálculos percentuais em problemas relacionados com diferentes contextos de operações comerciais, associados aos conceitos de peso bruto, de tara e de peso líquido. A proposta de estudo desses conceitos reforça o desenvolvimento da matemática em seus aspectos informativo e utilitário para os alunos das escolas paroquiais luteranas gaúchas do século passado.

No Quadro 7, apresenta-se a proposta de estudo para lucros e perdas, encontrada na Terceira Aritmética.

Quadro 7
Lucros e perdas

A aplicação da porcentagem em situações envolvendo lucros ou perdas é introduzida através de uma sistematização sobre preço de compra, preço de custo e preço de venda. Em seguida, apresentam-se exemplos relacionados com lucros ou perdas. Verifica-se que, nos dois primeiros exemplos, se calcula o lucro ou o prejuízo a partir do preço de compra e da taxa percentual sobre ele na operação de venda. Na resolução, observa-se a tomada da taxa percentual em relação a Cr$ 100,00 e o desenvolvimento do pensamento proporcional, fazendose a dedução da multiplicidade (Cr$ 100,00) para a unidade (Cr$ 1,00) e da unidade para a multiplicidade (preço de compra), valendo-se da divisão e da multiplicação como operações inversas, no cálculo do preço de venda com lucro ou prejuízo.

Nos outros dois exemplos, calcula-se a taxa percentual de lucro ou a taxa percentual de prejuízo a partir do preço original e do lucro ou do prejuízo sobre ele na operação de venda. Na resolução, observa-se o desenvolvimento do pensamento proporcional, fazendo-se a dedução da multiplicidade (preço original) para a unidade (Cr$ 1,00) e da unidade para a multiplicidade (Cr$ 100,00), valendo-se da divisão e da multiplicação como operações inversas, para determinação da taxa percentual em relação a Cr$ 100,00 na operação de venda com lucro ou prejuízo. No exemplo 4, com Cr$ 100,00 lucraram-se Cr$ 12,00, logo, a taxa percentual de lucro foi de 12%.

Ressalta-se que nos exemplos desenvolvidos ficam subentendidas as ideias de acréscimo (ou taxa de aumento) nas operações comerciais envolvendo lucro, e de desconto (ou taxa de desconto) nas operações comerciais que resultam em prejuízo. O livro também propõe a resolução de problemas envolvendo lucros ou perdas em diferentes contextos comerciais da realidade dos alunos das escolas paroquiais luteranas gaúchas, destacando-se o uso de números mistos para representação de taxas percentuais não inteiras, como observado no problema 1 do Quadro 7.

A Terceira Aritmética ainda propõe o estudo das operações de compra e de venda a partir do preço de venda, como mostra o Quadro 8.

Quadro 8
Compras e vendas

O exemplo descrito no Quadro 8 propõe a determinação do preço de compra de uma mercadoria a partir do preço de venda e da taxa percentual de lucro na operação comercial. Na resolução, observa-se a relação inicial entre Cr$ 120,00 do preço de venda e Cr$ 100,00 do preço de compra devido à taxa percentual de lucro de 20%. Na continuidade, realiza-se a dedução da multiplicidade para a unidade e da unidade para a multiplicidade (preço de venda), valendo-se da divisão e da multiplicação como operações inversas, para determinação do preço de compra. Ainda são propostos problemas em diferentes contextos da realidade dos alunos e relacionados a operações de compra e de venda, com taxa percentual de lucro ou taxa percentual de prejuízo, para cálculo do preço original.

No Quadro 9, são explorados problemas envolvendo descontos em operações comerciais:

Quadro 9
Descontos

No estudo de operações envolvendo descontos, observam-se exemplos em duas situações diferentes. No primeiro exemplo, o preço de custo do fogão e o percentual de desconto na compra à vista são conhecidos, sendo necessário calcular o preço pago após o desconto. Observa-se que na resolução são apresentadas duas possibilidades. Na primeira, calcula-se o valor do desconto a partir dos 5%, desconta-se esse valor do preço de custo, obtendo-se o preço a pagar. Na segunda forma de resolução, considerando-se o desconto de 5% na compra à vista, paga-se 95% do preço de custo do fogão, calculando-se diretamente o preço a pagar a partir desse percentual. No segundo exemplo, sabem-se a taxa percentual de desconto e o valor correspondente ao desconto, sendo preciso determinar o preço da fatiota sem desconto, ou seja, o preço original. Ressalta-se que os dois exemplos, além de explorarem os conceitos de porcentagem, desenvolvem o pensamento proporcional com a dedução da multiplicidade para a unidade e da unidade para a multiplicidade. No Quadro 9, ainda se apresenta um exercício para cálculo da porcentagem de desconto em artigos masculinos que estão em liquidação, conhecendo-se o preço antigo e o preço de promoção. Acrescenta-se que, de acordo com Kreutz (1994)Kreutz, L. (1994). Material didático e currículo na escola teuto-brasileira. São Leopoldo: Ed. UNISINOS., o processo pedagógico deveria partir sempre da realidade dos alunos, concorrendo para uma inserção mais efetiva deles nessa mesma realidade.

A sexta unidade de estudo da Terceira Aritmética da série Concórdia são os “juros”. O estudo é introduzido por uma explanação teórica, com a definição de termos importantes da matemática financeira, utilizados nos cálculos envolvendo juros: capital (c), taxa (i), juro (j) e tempo (t, d ou m). São usadas três simbologias diferentes para representar o tempo: t para o tempo em anos, m para o tempo em meses e d para o tempo em dias. Destaca-se que a taxa é definida como o lucro de Cr$100,00 em um ano, ideia essa aplicada no estudo da porcentagem nesta edição da Terceira Aritmética. Ressalta-se que, atualmente, a taxa de juros é definida como a porcentagem aplicada sobre a quantia emprestada por determinado tempo.

A Terceira Aritmética desenvolve separadamente o procedimento de cálculo do juro, da taxa, do capital e do tempo. No Quadro 10, apresenta-se a proposta de estudo para o cálculo do juro simples.

Quadro 10
Cálculo do juro

Verifica-se que, no Quadro 10, estão descritos três exemplos com o cálculo do juro simples comercial, sendo que o exemplo 1 apresenta o tempo medido em anos, e os exemplos 2 e 3 trazem o tempo medido em meses e em dias, respectivamente. Nesses exemplos, o livro apresenta a solução racional e a solução comercial para o cálculo do juro simples. Na solução racional, inicialmente, observa-se a tomada da taxa percentual em relação a Cr$ 100,00 para um período anual (1 ano, 12 meses ou 360 dias). Em seguida, realiza-se a dedução da multiplicidade (Cr$ 100,00) para a unidade (Cr$ 1,00) e da unidade para a multiplicidade (capital), fazendo-se os cálculos proporcionais ao tempo de cada aplicação financeira. A solução comercial é feita por meio da expressão algébrica para cálculo do juro simples: j = c × i × t100 , observando-se que a variável t é substituída por m ou d, conforme o tempo está medido em meses ou em dias, havendo ainda a necessidade de transformações proporcionais no denominador da expressão algébrica (x 12 ou x 360), pois ela é definida para o tempo medido em anos.

No exemplo 2 e em exercícios propostos para cálculo do juro, verifica-se o uso de frações ordinárias ou de números mistos para representação de taxas percentuais não inteiras. O mesmo acontece na representação de períodos de tempo não inteiros. Junto com o cálculo do juro, o livro propõe o estudo da “cronologia” com a intenção de explorar o cálculo do juro simples exato, segundo se pode observar no problema 1 descrito no Quadro 10.

Nesta proposta de estudo se destaca o emprego da solução racional para o cálculo do juro, a qual é pouco usada na Educação Básica. Atualmente, predomina a solução comercial, pois a expressão algébrica para cálculo do juro simples, j = c × i × t100 , costuma ser utilizada nos anos finais do Ensino Fundamental, e a expressão j = c · i · t , geralmente, é empregada no Ensino Médio com a taxa percentual na forma unitária, como por exemplo,i = 5% = 5100 = 0,05.

Após desenvolver o cálculo do juro, a Terceira Aritmética sistematiza o cálculo da taxa no sistema de juro simples, como descrito no Quadro 11.

Quadro 11
Cálculo da taxa

Observa-se, no Quadro 11, que, no cálculo da taxa, o livro também enfatiza a resolução racional. Realiza-se a dedução da multiplicidade (capital) para a unidade (Cr$ 1,00) e da unidade para a multiplicidade (Cr$ 100,00), fazendo-se os cálculos proporcionais ao tempo de cada aplicação financeira. Registra-se que a taxa percentual é determinada em relação a Cr$ 100,00 para um período anual, e representada por números mistos quando ela não for inteira. Os problemas propostos no livro exploram o cálculo da taxa com o tempo expresso em anos, em meses e em dias, considerando períodos comercias e períodos exatos.

No Quadro 12, desenvolve-se o cálculo do capital no sistema de juro simples, empregando-se a solução racional:

Quadro 12
Cálculo do capital

No cálculo do capital do exemplo 1, conhecidos os juros da aplicação financeira, a proposta inicial do livro é deduzir o valor correspondente à taxa de juros anual sobre Cr$ 100,00. Na continuidade, realiza-se a dedução da multiplicidade (juros sobre Cr$ 100,00) para a unidade (Cr$ 1,00), e da unidade para a multiplicidade (juros sobre o capital), fazendo-se os cálculos proporcionais ao tempo da aplicação financeira para determinar o capital.

Observa-se que no exemplo 2 se informa o montante da aplicação, e a dedução do valor inicial corresponde à taxa de juros anual sobre Cr$ 100,00 somada com Cr$ 100,00. Em seguida, propõe-se a dedução da multiplicidade (juros sobre Cr$ 100,00 + Cr$ 100,00) para a unidade (Cr$ 1,00) e da unidade para a multiplicidade (juros sobre o montante), fazendo-se os cálculos proporcionais ao tempo da aplicação para encontrar o capital.

Ressalta-se que os problemas propostos no livro para cálculo do capital, considerando o período comercial ou o período exato, informam os juros ou o montante em diferentes contextos associados à realidade dos alunos das escolas paroquiais luteranas gaúchas.

A proposta de cálculo do tempo, na Terceira Aritmética, é apresentada no Quadro 13:

Quadro 13
Cálculo do tempo

No cálculo do tempo no sistema de juro simples são propostos três exemplos, com o tempo medido em anos, em meses e em dias, respectivamente, de acordo com o observado no Quadro 13. Na resolução pela forma racional, observa-se a tomada da taxa percentual em relação a Cr$ 100,00 para um período anual (1 ano, 12 meses ou 360 dias). Na continuidade, realiza-se a dedução da multiplicidade (Cr$ 100,00) para a unidade (Cr$ 1,00), e da unidade para a multiplicidade (capital), fazendo-se os cálculos proporcionais ao tempo de cada aplicação financeira. Os problemas propostos exploram o cálculo do tempo considerando períodos comerciais e períodos exatos, utilizando-se a representação da taxa de juros e do tempo com números mistos. De acordo com Rambo (1994)Rambo, A. B. (1994). A escola comunitária teuto-brasileira católica. São Leopoldo: Ed. UNISINOS., lidando diariamente com dinheiro, inclusive com empréstimos na rede de agências das caixas rurais, exigia-se habilitação no manejo do cálculo de juros para o futuro agricultor.

No Quadro 14, apresenta-se a proposta de estudo para a regra de companhia ou regra de sociedade na Terceira Aritmética. Ressalta-se que, na atualidade, esse conteúdo é pouco explorado na Educação Básica.

Quadro 14
Regra de companhia ou regra de sociedade

No estudo da regra de companhia são apresentados três casos, como descrito no Quadro 14. No primeiro caso, em que os capitais são desiguais e os tempos iguais, inicialmente se determina a soma dos capitais que produzem o lucro total. Em seguida, realiza-se a dedução da multiplicidade (capital total) para a unidade e da unidade para a multiplicidade (capital correspondente ao primeiro sócio), valendo-se da divisão e da multiplicação como operações inversas. Esse procedimento é repetido para determinação do lucro de cada integrante da sociedade. Observa-se que, no primeiro caso, os lucros são proporcionais aos capitais investidos.

No segundo caso, em que os capitais são iguais e os tempos desiguais, inicialmente se determina a soma dos tempos que geram o lucro total. Continua-se fazendo a dedução da multiplicidade (tempo total) para a unidade, e da unidade para a multiplicidade (tempo correspondente ao primeiro sócio), valendo-se da divisão e da multiplicação como operações inversas. Esse procedimento também é repetido para determinação do lucro de cada integrante da sociedade. Verifica-se que, no segundo caso, os lucros são proporcionais aos tempos de investimento.

No terceiro caso apresentado, os capitais e os tempos são desiguais. Na resolução do exemplo, inicialmente, determina-se o produto dos capitais investimentos pelos tempos de investimento, obtendo-se o capital total na unidade de tempo que produz o lucro total. Em seguida, realiza-se a dedução da multiplicidade (capital total na unidade de tempo) para a unidade, e da unidade para a multiplicidade (capital total correspondente ao primeiro sócio), valendo-se da divisão e da multiplicação como operações inversas. Para determinação do lucro de cada integrante da sociedade, se realiza o mesmo procedimento. Observa-se que, neste terceiro caso, os lucros correspondem proporcionalmente aos produtos dos capitais investidos e dos tempos de investimento. Ressalta-se que, nos três casos, a soma dos lucros correspondentes a cada sócio deve resultar no lucro total da sociedade.

Na edição da Terceira Aritmética da série Concórdia também se encontraram exercícios para preenchimento de faturas, variando a quantidade de mercadorias e os respectivos preços, de documentos de dívidas, de notas promissórias e de duplicatas, mudando-se nomes, importâncias e datas. Segundo Rambo (1994)Rambo, A. B. (1994). A escola comunitária teuto-brasileira católica. São Leopoldo: Ed. UNISINOS., a familiaridade e o manejo do cálculo, ao menos até o nível de juros, da regra de três e outros, representavam o mínimo de ferramental, indispensável para a solução dos múltiplos problemas do dia a dia das gerações de colonos.

Ressalta-se que esta abordagem da matemática comercial e financeira era proposta para os primeiros cinco anos da escolarização primária nas escolas paroquiais luteranas gaúchas e que, atualmente, esses conhecimentos matemáticos são desenvolvidos a partir dos anos finais do Ensino Fundamental.

5 Considerações finais

Tendo por base os referenciais da história cultural e da análise de conteúdo, investigouse o ensino da matemática comercial e financeira nas escolas paroquiais luteranas do RS, analisando-se as edições da Segunda Aritmética e da Terceira Aritmética da série Concórdia, editadas pela IELB para suas escolas, na primeira metade do século XX.

Com a análise realizada, observou-se que a abordagem da matemática comercial e financeira aconteceu através do estudo de operações comerciais de compra e de venda, de porcentagem comercial, de juros simples, de regra de companhia ou regra de sociedade e de documentos fiscais (notas fiscais, faturas, duplicatas e notas promissórias). Predominaram propostas de ensino contextualizadas com a realidade dos alunos das escolas paroquiais luteranas, incentivando-se o desenvolvimento do pensamento proporcional e do pensamento percentual em operações comerciais com lucro ou com prejuízo, explorando-se também o cálculo correto de troco e de dívidas e, em aplicações financeiras, envolvendo juros simples.

O estudo da porcentagem comercial aconteceu em diferentes contextos relacionados com: peso bruto, tara e peso líquido; lucros e perdas; compras e vendas; descontos. Nos exemplos, nos exercícios e nos problemas analisados sobre porcentagem comercial, se verificou que a taxa percentual é determinada em relação a Cr$ 100,00, explorando-se o pensamento proporcional com a dedução da multiplicidade para a unidade e da unidade para a multiplicidade, valendo-se da divisão e da multiplicação como operações inversas.

Nos cálculos do juro simples se observou a solução racional e a solução comercial. A solução racional é o procedimento de cálculo utilizado na porcentagem comercial e o desenvolvimento do pensamento proporcional. O livro explorou este procedimento no cálculo do juro, da taxa, do capital e do tempo. A solução comercial é desenvolvida através da expressão algébrica para cálculo do juro simples: j = c × i × t100, observando-se que a variável t é substituída por m ou d, conforme o tempo está medido em meses ou em dias. Verificaram-se problemas sobre juro simples, envolvendo períodos comerciais e períodos exatos e com o emprego de números mistos ou de frações ordinárias na representação de taxas de juros e do tempo, predominando a aplicação da solução racional. Ressalta-se que, atualmente, na Educação Básica predomina a solução algébrica sobre a solução racional no estudo dos juros simples, o que deixa de ser mais uma oportunidade para o desenvolvimento do pensamento proporcional.

No estudo da regra de companhia ou regra de sociedade, um conteúdo pouco desenvolvido na Educação Básica atualmente, o pensamento proporcional foi explorado nos três casos: capitais desiguais e tempos iguais (os lucros são proporcionais aos capitais investidos); capitais iguais e tempos desiguais (os lucros são proporcionais aos tempos de investimento); capitais e tempos desiguais (os lucros correspondem proporcionalmente aos produtos dos capitais investidos e dos tempos de investimento).

A análise das aritméticas da série Concórdia, direcionada para as escolas paroquiais luteranas gaúchas, na primeira metade do século XX, permitiu um adentramento na cultura escolar num lugar e num tempo determinados, identificando a abordagem da matemática comercial e financeira nesse contexto, contribuindo para a história da Educação Matemática e provocando uma reflexão sobre a atual forma de ensino desses conteúdos nas escolas de Educação Básica.

  • 1
    As unidades de análise utilizadas para o estudo das aritméticas da série Concórdia foram: conteúdos (7 categorias), aspectos pedagógicos (8 categorias), processo de ensino e aprendizagem (6 categorias), recursos didáticos (5 categorias), linguagem e aspectos gráfico-editoriais (4 categorias).
  • 2
    Em 1847, um grupo de imigrantes luteranos alemães da Saxônia fundou, no estado de Missouri (Estados Unidos), o Sínodo Evangélico Luterano Alemão de Missouri, Ohio e outros estados, atualmente Igreja Luterana - Sínodo de Missouri (Warth, 1979Warth, C. H. (1979). Crônicas da Igreja: fatos históricos da Igreja Evangélica Luterana do Brasil (1900 a 1974). Porto Alegre: Concórdia.).
  • 3
    Na década de 1930, a IELB começou a publicar um periódico pedagógico dirigido às escolas paroquiais, chamado Unsere Schule (Nossa Escola)
  • 4
    A editora Rotermund, de São Leopoldo editava e publicava o material didático relacionado ao Sínodo Rio-Grandense (Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil – IECLB).
  • 5
    Fundada em 1923, atuava na edição de livros e de periódicos relacionados à literatura religiosa e escolar da IELB. Foi a primeira e a única redatora da IELB, existente até os dias atuais. Antes de sua fundação, os livros e os periódicos eram impressos pela Concordia Publishing House nos Estados Unidos e enviados ao Brasil.
  • 6
    Organização social na qual se encontravam o templo (católico ou luterano, as confissões religiosas às quais pertenciam os imigrantes alemães), a escola, o cemitério, a residência do professor ou do padre/pastor, o salão de festas comunitárias e a casa comercial (Dreher, 1999Dreher, M. N. (1999, julho/dezembro). O desenvolvimento econômico do Vale do Rio dos Sinos. Estudos Leopoldenses - Série História, 3(2), 49-70.).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2017

Histórico

  • Recebido
    31 Mar 2016
  • Aceito
    21 Dez 2016
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