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Uma análise exploratória sobre seleção e inclusão no Ensino Superior brasileiro: do mérito herdado ao mérito relacional 1 1 Editor responsável: Helena Sampaio. https://orcid.org/0000-0002-1759-4875 2 2 Normalização, preparação e revisão textual: Maria Thereza S. Lucinio - thesampaio@uol.com.br 3 3 Apoio: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) – processos 308915/2019-4 e303783/2016-8 – FAPERJ - Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro – processo E 262/200.863/2021>

Resumo

Este artigo tem por objetivo propor uma análise exploratória sobre os sentidos do mérito nas políticas de inclusão no ensino superior brasileiro. O estudo focaliza o Enem, o Sistema de Seleção Unificada (Sisu), a Lei de Cotas de 2012 e o Programa de Inclusão com Mérito no Ensino Superior Público Paulista (PIMESP) das Universidades Estaduais Paulistas. O texto inicia-se com uma discussão sobre o mérito, a partir de produções clássicas e contemporâneas, para tratar, em seguida, das mudanças ocorridas nos princípios organizadores das políticas de seleção e acesso ao ensino, que passaram do mérito universal ao mérito relacional. A terceira parte trata de algumas ações institucionais que conjugaram o ENEM, a Lei de Cotas de 2012 e o Sisu como exemplos de articulação entre o mérito universal e o relacional no ingresso. O Pimesp, ao abolir critérios vinculados ao mérito relacional, acabou sendo objeto de muitas críticas. O artigo destaca a necessidade de que a revisão da referida Lei de Cotas, prevista para 2022, preserve este importante mecanismo de inclusão. A expansão do ingresso no ensino superior traz também desafios em relação às políticas de permanência e de egressos para que estas levem em conta a dimensão relacional do mérito.

Palavras-chave
educação superior; ações afirmativas; mérito relacional; ENEM; SISU

Abstract

This article aims to conduct an exploratory analysis of the meanings of merit in inclusion policies in Brazilian higher education. Higher education admission processes are a fertile field for thinking about the issue of merit in our society due to the decisive role education plays in organizing social inequality. The analysis focuses on the National College Entry Exam (ENEM), the most comprehensive selection process in the country, the Unified Selection System (SISU), a mechanism used by most public institutions, the 2012 Quota Law and the Program for Inclusion based on Merit in Public Higher Education in São Paulo (PIMESP) of the São Paulo State Universities. Assuming merit as a value, the text begins by discussing this concept based on classical and contemporary work. It then addresses the process of educational expansion seen in the 20th century and how this movement led to changes in the organizing principles of admission policies and access to education, shifting from universal merit to relative merit. The third part of the text considers the work of Brazilian authors in discussing several institutional actions that combined ENEM, the Quotas Law of 2012, and SISU as examples of interconnection between universal and relative merit in higher education admissions, despite the problems identified concerning retention policies. By abolishing criteria connected to relational merit, PIMESP became the target of criticism. Considering the positive effects generated from the combination of the quota law, ENEM and SISU, the article stresses the need for revising the Law, slated for 2022, to preserve this critical inclusion mechanism. In conclusion, we suggest that expanding enrollment in higher education also implies challenges regarding retention and graduation policies. Therefore, such policies should consider the relative dimension of merit.

Keywords
higher education; affirmative actions; relative merit; ENEM; SISU

Introdução

As sociedades modernas caracterizam-se pela presença de um princípio diferenciado de organização social. A família onde se nasce – ou a origem social de um indivíduo – deixa de ser o principal critério para a definição de sua posição na sociedade – ou seu destino social. Em diferentes países, as configurações distintas de forças sociais definem novos critérios intervenientes nessa relação entre origem e destino, que se organizam, em sua maioria e de certa maneira, em torno das noções de esforço e talento. Na maior parte dos países, esse critério toma a forma de níveis de escolarização, síntese possível e variável da relação entre talento e esforço. Como é de conhecimento de todo professor que já avaliou uma turma de estudantes, a relação entre esses dois pontos é muito tensa e, como mostra Goldthorpe (1997)Goldthorpe, J. H. (1997). Problems of ‘Meritocracy’. In A. H. Halsey, H. Lauder, P. Brown, & S. Wells (Eds.), Education: Culture, Economy, Society (1st ed., Vol. 1). Oxford University Press., torna-se mais complexa com o desenvolvimento e a afirmação da ideologia do mérito4 4 Sobre a meritocracia como “ideologia”, consultar (BARBOSA L. , 1996) . Na peça de Peter Schaffer (1979), que serviu de base para o filme Amadeus (1984), o personagem Salieri expressa sua revolta pela contradição existente entre seu imenso esforço e dedicação moral para agradar “os ouvidos do Senhor” e o talento de um “vagabundo imoral” como Mozart. Na visão de Salieri, era a música de Mozart que efetivamente encantaria os ouvidos divinos. Apesar do anacronismo do problema e da implausibilidade da dúvida – Salieri era provavelmente o músico mais respeitado do seu tempo – a revolta do religioso expressa um dos dilemas que percorre as sociedades modernas: o que merece ser mais valorizado? O talento ou o esforço?

Quando se emprega o termo ideologia, nota-se que ele não corresponde a um conceito capaz de abranger uma realidade complexa como a dos valores sociais, organizados em torno da noção de mérito. Ideologia tende a ser vista como um véu que encobre a “verdadeira” realidade. Por conseguinte, a noção perde qualquer possível valor heurístico, pois não permite desvendar adequadamente as enormes disputas sociais – inclusive aquelas com efeitos materiais, como as diferenças salariais – envolvidas na definição que cada sociedade dá ao mérito. Mas o tratamento da noção de mérito como um valor permite compreender o que Weber já indicava em seus estudos sobre a China e que foi destacado por autores contemporâneos (Barbosa, 2006Barbosa, L. (2006). Meritocracia e igualdade: a ética do desempenho nas sociedades modernas (reimpressão ed.). Editora FGV.; Helal, 2015Helal, D. H. (2015). Mérito, Reprodução Social e Estratificação Social: apontamentos e contribuições para os estudos organizacionais. Organ. Soc., Salvador, 22(73), 251-268.; Walzer, 2003Walzer, M. (2003). Esferas da Justiça. Uma defesa do Pluralismo e da Igualdade. Martins Fontes.). A ideia de recompensar o merecimento é bem antiga na história humana, tendo se corporificado de forma exemplar no sistema rígido de recrutamento dos funcionários públicos na China Imperial. Este processo seletivo oferece as bases empíricas para a criação da tipologia que distingue a ideia de mérito como um dos vários critérios lógicos de ordenação da vida social da noção de mérito como valor dominante entre os princípios de legitimação das desigualdades na sociedade contemporânea, na perspectiva sociológica (Cohn, 1979Cohn, G. (1979). Crítica e Resignação. Fundamentos da Sociologia de Max Weber. T. A. Queiroz.).

Trataremos o mérito como um valor social, como um atributo moral cuja substância é resultado direto de lutas que buscam impor a todos as percepções, crenças e práticas que seriam específicas de um determinado grupo social. O grupo que consegue usurpar essa posição numa sociedade, assume-a como classe ou estamento dominante até que outro(s) grupo(s) venha(m) disputar essa prerrogativa. Quanto mais eficiente for o trabalho institucional de construção da legitimidade dessa dominação, mais natural a regra do jogo social parecerá aos jogadores, mesmo para aqueles em posição menos privilegiada. Isso traz para o estudo do mérito nas sociedades modernas as contribuições de Durkheim e, principalmente, de Weber, tratadas por Raymond (Boudon, 2017Boudon, R. (2017). The Origin of Values: Sociology and Philosophy of Beliefs. Routledge.; Mijs, 2021Mijs, J. J. (2021). The paradox of inequality: income inequality and belief in meritocracy go hand in hand. Socio-Economic Review, 19(1).; Mijs & Savage, 2020Mijs, J. J., & Savage, M. (2020). Meritocracy, Elitism and Inequality. The Political Quarterly, 91(2).).

Dividido em três partes, além desta introdução e dos comentários finais, este artigo tem por objetivo explorar os sentidos do mérito na seleção para o ensino superior. Nossa análise terá como foco principal o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), processo seletivo mais abrangente no país, o Sistema de Seleção Unificada (Sisu), mecanismo utilizado pela maioria das instituições públicas, a Lei de Cotas de 2012 (Lei nº 12.711, 2012Lei nº 12.711 de 29 de agosto de 2012. (2012). Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá outras providências. Presidência da República.) e o Programa de Inclusão com Mérito no Ensino Superior Público Paulista (PIMESP) das Universidades Estaduais Paulistas. Considerando que a abordagem aqui proposta compreende o mérito como valor, entendemos ser necessário iniciar o texto com uma discussão conceitual sobre o valor, a partir da mirada de autores clássicos e contemporâneos das Ciências Sociais. Como as concepções de mérito são historicamente variáveis, a segunda seção tratará do processo de expansão educacional verificado no século XX e das alterações que esse movimento implicou nos princípios organizadores das políticas de seleção e acesso ao ensino superior descritas por Clancy e Goastellec (2007)Clancy, P., & Goastellec, G. (2007). Exploring access and equity in higher education: Policy and performance in a comparative perspective. Higher Education Quarterly, 1(2), 136-154., passando do mérito universal ao mérito relacional. A terceira parte do texto discute algumas ações institucionais que conjugaram o ENEM, a Lei de Cotas de 2012 e o Sisu como exemplos de articulação entre o mérito universal e o relacional no ingresso, a despeito dos problemas em relação às políticas de permanência. O Pimesp, ao abolir critérios vinculados ao mérito relacional, acabou sendo objeto de muitas críticas. Considerando os efeitos positivos observados entre a conjugação da Lei de cotas, do Enem e do Sisu, finalizamos o texto destacando a necessidade de que a revisão da referida Lei, prevista para 2022, preserve este importante mecanismo de inclusão. Compreendemos que a expansão do ingresso no ensino superior traz também desafios que devem ser enfrentados em relação às políticas de permanência e de egressos que levem em conta a dimensão relacional do mérito.

Mérito como valor

Em nosso país, as disputas sociais em torno de políticas inclusivas nos processos seletivos para o sistema de ensino superior são muito intensas. Os resultados iniciais positivos ainda são bastante desiguais. Nossa abordagem tenta compreender se e de que maneira um princípio meritocrático relativizado e alargado pelas políticas de inclusão pode contribuir para os efeitos democratizantes destas políticas. O Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), tendo em vista a crescente participação dos estudantes e o aumento significativo das instituições que passaram a utilizá-lo como uma referência nos seus processos seletivos, torna-se central para este tipo de análise. Da mesma forma, o Sistema de Seleção Unificada (Sisu) e as formulações políticas e legais sobre cotas e ações afirmativas completam o quadro multidimensional dos processos sociais que informam o acesso ao ensino superior no país.

Sabendo-se o mérito um valor e objeto de inúmeras disputas sociais, não é difícil perceber sua centralidade nos momentos de expansão do ensino superior e de implantação de algumas políticas de inclusão social. A interpretação aqui proposta pretende oferecer uma análise compreensiva das relações existentes entre os valores do mérito, tal como são entendidos no Brasil, as políticas sociais voltadas à expansão dos públicos do sistema de ensino superior e a tradução destes valores em processos e mecanismos específicos com resultados objetivos e mensuráveis – a distribuição social e institucional das matrículas. No nível superior de ensino, espaço onde se asseguram o acesso e a permanência em algumas posições relativamente privilegiadas, a legitimação das trajetórias, através dos valores do mérito, gera enfrentamentos e conflitos, assim como práticas e ações institucionais diversificadas presentes nas políticas de inclusão.

A literatura da ciência política tem importante contribuição, completando as abordagens antropológica e sociológica dos valores. Lamounier (2016)Lamounier, B. (2016). Liberais e Antiliberais: A luta ideológica do nosso tempo. Companhia das Letras. mostra como o desenvolvimento do conceito de ideologia “instaurou uma concepção radicalmente distinta de tudo o que até então se conhecia a respeito da formação e das funções das ideias na sociedade” (p.121). Desttut de Tracy, filósofo francês do final do século XVIII, propôs-se a fundar uma ciência que mostraria que ideias e conceitos abstratos teriam origem nas experiências sensoriais. Marx desenvolveu essa proposta, sustentando que as ideias são profundamente ancoradas na vida social, subordinadas mesmo às relações econômicas vigentes. Se a ideologia aparece, então, como um véu que esconde a verdade, Mannheim, em seu livro Ideologia e Utopia, de 1929, aventou a possibilidade da existência de alguns grupos sociais – nos interstícios das classes principais – que teriam autonomia para desenvolver e elaborar projetos intelectuais aceitáveis pelo conjunto da sociedade. Como indica Lamounier (2016)Lamounier, B. (2016). Liberais e Antiliberais: A luta ideológica do nosso tempo. Companhia das Letras., apenas a partir da crítica de Clifford Geertz (1978)Geertz, C. (1978). A Interpretação das Culturas. Zahar. surgem possibilidades de superar o dualismo entre ciência e ideologia das abordagens marxistas, mesmo em sua versão suavizada, como a do próprio Mannheim.

A perspectiva de Geertz permite conectar o entendimento das ideologias, ideias e concepções com a teoria dos valores desenvolvida por Boudon (2017)Boudon, R. (2017). The Origin of Values: Sociology and Philosophy of Beliefs. Routledge.. O autor desenvolve uma tipologia para organizar as diversas teorias sobre o processo de formação dos valores. No primeiro tipo, estariam incluídas as teorias pós-modernas que, baseadas em Nietzche, definem ideias e valores como ilusões. Entretanto, ainda de acordo com Boudon, a influência de Nietzche, e posteriormente a de Freud, conferiu uma dimensão psicológica à formação dos valores. A teoria marxiana da ideologia forneceria uma dimensão social para isso: alguém valoriza alguma coisa na medida em que essa coisa serve a seus interesses de classe. Mas esses interesses podem ser, e normalmente o são, entendidos incorreta ou ilusoriamente. Novamente, Freud e o inconsciente servem de apoio ao grupo de pós-modernistas. Na compreensão de Boudon (2017)Boudon, R. (2017). The Origin of Values: Sociology and Philosophy of Beliefs. Routledge., Foucault, Lacan e Bourdieu compartilham a perspectiva que entende os valores como ilusões.

A insurgência contra esse relativismo emerge, na pesquisa social recente, de duas fontes principais: os estudos de Habermas e os de Rawls. Ainda que as duas teorias possam ser criticadas pelo seu a-historicismo (Habermas e sua aposta meramente procedural e Rawls por oferecer apenas alguns poucos casos nos quais as respostas dependem totalmente da funcionalidade do bem), ambas apresentam explicações racionais para a formação dos valores. E a teoria cognitiva/judicatória ou – numa livre tradução dos autores – discricionária de Boudon tem como ponto de partida as contribuições de Simmel, Durkheim, Weber e Tocqueville (e, mais anteriormente, de Michel de Montaigne) para estabelecer formas de explicação dos valores, que são contingentes e históricas, a depender das decisões e julgamentos de atores social e historicamente localizados. Contrariamente ao relativismo mencionado na perspectiva pós-moderna, os valores deixam de ser vistos nesta teoria como meramente subjetivos. Tomando Durkheim e Weber como bases estruturantes de seu conceito, Boudon (2017)Boudon, R. (2017). The Origin of Values: Sociology and Philosophy of Beliefs. Routledge. mostra a insistência do primeiro autor, especialmente em As Formas Elementares de Vida Religiosa, em não considerar os valores como simples ilusões. Os valores são apropriados pelos indivíduos, inicialmente porque são partilhados pelos demais membros de suas coletividades e, em seguida, por se mostrarem verdadeiros no sentido de orientarem suas práticas, como também mostra Geertz (1978)Geertz, C. (1978). A Interpretação das Culturas. Zahar.. São sociais e históricos e, portanto, variáveis. De Weber, toma-se o princípio de que toda ação humana tem um sentido que é compreensível, sendo, assim, racional. A sociologia compreensiva de Weber exige, por princípio, que as ações sejam inteligíveis, compatíveis com uma teoria decisionista/voluntarista ou, ainda, racionalista dos valores. Nesse quadro, Boudon (2017)Boudon, R. (2017). The Origin of Values: Sociology and Philosophy of Beliefs. Routledge. propõe uma generalização dos modelos da escolha racional (Rational Choice Theories) numa Sociologia de Modelos Cognitivos, em que o autor se serve da noção weberiana de racionalidade axiológica e constrói uma teoria dos valores. Essa teoria indica que, como no caso da Ética Protestante, os valores (ou a nova ética desenvolvida a partir de Lutero e Calvino, principalmente) orientam as ações dos indivíduos, mas não as determinam. O indivíduo decide ser correto nos seus negócios ou no seu trabalho não porque sua natureza ou a estrutura social assim definiu. Ele o faz porque julga – essa palavra é essencial para Boudon – que esse é o caminho mais adequado aos princípios que guiam sua vida. Trata-se, portanto, de uma teoria essencialmente não determinista, com espaços amplos para o ator social, agente de suas escolhas e do seu destino.

Torna-se interessante notar que, em sua “breve história moral do mérito”, Sandel (2021)Sandel, M. J. (2021). A Tirania do Mérito. Civilização Brasileira. atribui ao já mencionado trabalho de Weber uma espécie de ponte entre o debate religioso e secular sobre o mérito. Ao sair do mosteiro, o debate secular oprimiu a ética da gratidão e da humildade, presente no debate religioso sobre a salvação humana pelo trabalho na terra, e instituiu a versão original daquilo que o autor considera a “arrogância meritocrática”, a qual responsabiliza e culpabiliza o indivíduo pelos seus insucessos. Em suas palavras:

A Ética protestante do trabalho, portanto, não só dá origem ao espírito do capitalismo. Ela também promove uma ética de autoajuda e de responsabilidade pelo destino, convenientes a modos meritocráticos de pensar. Essa ética libera uma torrente de esforço ansioso e energético, que gera grande riqueza, mas ao mesmo tempo revela o lado negativo da responsabilidade de vencer pelo próprio esforço.

(Sandel, 2021Sandel, M. J. (2021). A Tirania do Mérito. Civilização Brasileira., p. 60)

Mas, voltemos à filosofia política, que analisa os princípios de justiça, e à sociologia, que os interpreta, conforme já indicado por Weber, e ao modo como estes princípios orientam as práticas sociais (Dubet, 2020Dubet, F. (2020). O tempo das paixões tristes. Vestígio.; Morrison, 2020Morrison, A. (2020). The Foundations of Distributive Justice: A Morphogenetic Analysis of Gomberg and Fraser. Sociology, 55(2), 227-242.). Os princípios de justiça – ou os valores sociais sobre o que é justo e/ou legítimo – ajudam a definir um sentido para nossas ações e para aquelas dos outros indivíduos com os quais compartilhamos nossas vidas. Eles fazem com que cada um tenha instrumentos capazes de racionalizar os julgamentos sobre a justiça e a justeza de ações individuais ou coletivas, como as políticas. A abordagem sociológica descreve os sentidos regularmente atribuídos a estas ações e analisa sua prevalência, indicando quais seriam as orientações dominantes das ações numa dada sociedade.

Assim, o mérito é um princípio de justiça que toma diferentes formas segundo as sociedades ou, como indicam Barbosa (1996Barbosa, L. (1996). Meritocracia à brasileira: o que é desempenho no Brasil. Revista do Serviço Público, 120 (3), 58-102., 2006)Barbosa, L. (2006). Meritocracia e igualdade: a ética do desempenho nas sociedades modernas (reimpressão ed.). Editora FGV., Dubet (2020)Dubet, F. (2020). O tempo das paixões tristes. Vestígio., Goldthorpe (1997)Goldthorpe, J. H. (1997). Problems of ‘Meritocracy’. In A. H. Halsey, H. Lauder, P. Brown, & S. Wells (Eds.), Education: Culture, Economy, Society (1st ed., Vol. 1). Oxford University Press. e Mijs (2021)Mijs, J. J. (2021). The paradox of inequality: income inequality and belief in meritocracy go hand in hand. Socio-Economic Review, 19(1)., segundo os espaços sociais. Na esfera das artes e do esporte, o talento parece ser mais apreciado, ao passo que, na educação, valoriza-se o esforço. Ainda assim, não se trata de uma valorização unânime e, menos ainda, percebida e medida igualmente.

As definições legais do mérito associadas às políticas de inclusão representam um determinado estado da correlação de forças sociais no qual prevalece um princípio de mérito mais relacional. No contexto brasileiro, foi possível incluir dimensões das trajetórias sociais dos estudantes (como ter estudado em escola pública ou se declarar preto ou pardo) na avaliação do seu esforço para ingressar no ensino superior. Mesmo assim, a execução destas políticas tem múltiplas facetas que abrem espaços maiores ou menores para os agentes sociais defenderem seus interesses e lutarem por maior ou menor abertura do sistema de ensino.

Em síntese, os valores seriam os princípios de avaliação a partir dos quais os diferentes agentes sociais, individuais ou coletivos orientam suas práticas. O mérito é um destes princípios de avaliação que se transmuta em percepções sociais que julgam e medem se e o quanto uma determinada prática social pode ser considerada legítima, válida, aceitável. O grau de aceitação ou legitimidade destas práticas sociais é resultante dos debates políticos, das movimentações sociais e da capacidade de argumentação e convencimento que cada perspectiva consegue mobilizar. Os processos seletivos para o sistema de ensino superior, foco de nossa análise, constituem um caso particularmente importante destas práticas e um campo especialmente fértil para pensar a questão do mérito na nossa sociedade, devido ao peso decisivo da educação na organização das desigualdades no país.

Em decorrência disso, como veremos a seguir, a concepção de mérito é historicamente variável, e as circunstâncias sociais obrigam um permanente repensar da mesma, distinguindo sua conexão com os demais valores e formas sociais dominantes. Nesse quadro, podemos utilizar esse conceito de valor – mérito, no caso deste artigo – para fazer uma análise compreensiva do processo de seleção num quadro de políticas de inclusão no ensino superior brasileiro. Mas, antes disso, é preciso considerar que a compreensão do mérito como um valor a orientar práticas sociais que, em certos contextos, podem ser legítimas e aceitáveis, como iremos sugerir em relação ao mérito relacional, não é consensual e está sujeita, portanto, a debates e contestações. As contribuições de Sandel (2021)Sandel, M. J. (2021). A Tirania do Mérito. Civilização Brasileira., por exemplo, merecem atenção. Para o autor, qualquer tipo de organização baseada no mérito traz um grande risco porque, na essência, o mérito é antissocial. Na compreensão do autor, o mérito divide, pois é arrogante e punitivo, ao exaltar vencedores e culpabilizar perdedores. Não produz solidariedade e sentimento de pertencimento, fundamentais para qualquer sociedade. “Deixa pouco espaço para a solidariedade que pode surgir quando refletimos sobre a contigência de nosso talento e destino. É isso que faz do mérito uma espécie de tirania, ou regra injusta” (p.38).

A expansão educacional e a permanência das desigualdades

Desde meados da década de 1960, uma série de autores passam a contestar, sobretudo a partir de evidências empíricas, os pressupostos basilares que sustentam a “ideologia” do mérito, segundo a qual posições sociais devem ser ocupadas pelas melhores pessoas de acordo com seu desempenho individual (Barbosa, 1996Barbosa, L. (1996). Meritocracia à brasileira: o que é desempenho no Brasil. Revista do Serviço Público, 120 (3), 58-102.). Em consonância com este entendimento, a expansão das oportunidades educacionais, seja nos países capitalistas, seja nos países socialistas, traria ao menos duas consequências positivas. De um lado, contribuiria para suprir a necessidade de força de trabalho especializada das sociedades urbano-industriais, favorecendo o crescimento econômico e social, e, além disso, aumentaria a equalização das oportunidades, diminuindo o peso da herança social ou da imobilidade social entre gerações. 5 5 Não podemos deixar de mencionar ressonâncias dessa compreensão em relação à Teoria do Capital Humano, que surge na década de 1960 visando compreender o papel da educação para o crescimento econômico observado nos anos pós Segunda Guerra Mundial. Na visão de Schultz, o pensamento econômico à época restringia o conceito de capital aos bens materiais. Para o autor: “(...) o inexplicado crescimento econômico (..) é provocado por formas de capital ainda não identificadas e dimensionadas, constando, principalmente, de capital humano” (Schultz, 1967, p. 81). Capital Humano é, portanto, compreendido como habilidades e conhecimentos adquiridos que elevam a produtividade. O principal investimento deste capital é a educação.

Helal (2015)Helal, D. H. (2015). Mérito, Reprodução Social e Estratificação Social: apontamentos e contribuições para os estudos organizacionais. Organ. Soc., Salvador, 22(73), 251-268. indica que as teorias sobre estratificação social, fortemente influenciadas pelo funcionalismo da segunda metade do século XX, compreendiam que a mobilidade social nas sociedades modernas seria mais influenciada por aspectos de status adquirido do que por variáveis relacionadas às origens socioeconômicas dos indivíduos. Nesse entendimento, a educação tem um papel fundamental no processo de alocação de status, sendo a escolaridade “um meio eficiente e racional de distinguir e selecionar pessoas talentosas, no qual o mais hábil e motivado alcança as mais altas posições” (p. 253).

Hadja e Becker (2016)Hadja, A., & Becker, R. (2016). Education systems and meritocracy: social origin, educational and status attainment. In A. Hadjar, & C. Gross (Eds.), Education Systems and Inequalities: International comparisons (pp. 231-258). University of Bristol. ilustram esse processo como a tríade meritocrática. Numa ponta, há a origem social (O) e, na outra, o destino de classe (D). No meio, encontra-se a Educação (E), a variável de mérito. Quanto maiores forem os ganhos de escolaridade, maiores serão os ganhos e mobilidade sociais. As características atribuídas às pessoas cederiam lugar às conquistas educacionais, baseadas no esforço, mérito, entendido como o motor propulsor da mobilidade social. O desafio deste modelo é universalizar o acesso à educação nos diferentes ciclos educacionais, pois, uma vez garantido este acesso, a equidade social viria com o tempo.

Figura 1
Tríade meritocrática proposta por Hadja e Becker

Boudon (1974)Boudon, R. (1974). Education, opportunity, and social inequality: Changing prospects in Western Society. John Wiley & Sons. identifica nesta dinâmica um paradoxo apontado pelos estudos no campo da Sociologia da Educação:

Durante décadas, tanto cientistas sociais como formuladores de políticas refletiram e atuaram sobre a educação a partir de uma base filosófica otimista: foi acriticamente asssumido que a educação poderia curar todo tipo de problema social e, particularmente, que poderia trazer maior equidade entre os homens. Com o desenvolvimento da Sociologia da Educação, esta visão foi sendo progressivamente revertida, e uma nova filosofia pessismista, emergiu de maneira cada vez mais convincente. (Boudon, 1974Boudon, R. (1974). Education, opportunity, and social inequality: Changing prospects in Western Society. John Wiley & Sons., p. xii) Tradução nossa

A queda na desigualdade de oportunidades educacionais não foi acompanhada por uma maior mobilidade social.

A partir de uma longa série histórica englobando países da Europa, Estados Unidos e Ásia, Mijs (2021)Mijs, J. J. (2021). The paradox of inequality: income inequality and belief in meritocracy go hand in hand. Socio-Economic Review, 19(1). demonstra que as desigualdades na distribuição de renda e patrimônio, que corroboram menor mobilidade social, acentuaram-se nesses países de maneira intensa nos últimos quarenta anos. Essa desigualdade, no entanto, não é percebida pelas pessoas como resultante de processos estruturais mais amplos, mas como uma questão pessoal, relacionada à falta de esforço ou de empenho. Numa pesquisa amostral, que reuniu informações de pessoas de 23 países entre as décadas de 1980 e 2010, o autor demonstra que a crença na meritocracia cresceu de maneira geral, mas com diferenças internas importantes. Países mais desiguais tendem a compreender as desigualdades como fruto do esforço pessoal, ao passo que países menos desiguais as entendem, principalmente, como resultado de processos estruturais. Para Mijs (2021)Mijs, J. J. (2021). The paradox of inequality: income inequality and belief in meritocracy go hand in hand. Socio-Economic Review, 19(1)., as percepções e crenças das pessoas são formadas nos círculos de relacionamento nos quais elas vivem, na relação com seus familiares, colegas de trabalho e amigos. Nesse sentido, a crença na meritocracia não seria algo descolado da realidade, como buscamos mostrar nesse artigo, mas vivido cotidianamente. Retomaremos este ponto ao tratar da micro e da macromobilidade a partir de Dubet (2020)Dubet, F. (2020). O tempo das paixões tristes. Vestígio..

Diversos estudos na abordagem da estratificação social, bastante forte nos Estados Unidos e com núcleos significativos no Brasil, como o IESP/UERJ, mostram que, apesar dos diversos ciclos de expansão dos diferentes níveis de ensino, as desigualdades sociais permanecem ou até aumentam (Alon, 2009Alon, S. (2009). The Evolution of Class Inequality in Higher Education: Competition, Exclusion, and Adaptation. American Sociological Review, 731-755.; Sandel, 2021Sandel, M. J. (2021). A Tirania do Mérito. Civilização Brasileira.) e o efeito da origem social continua um definidor do destino social (Carvalhaes & Ribeiro, 2019Carvalhaes, F., & Ribeiro, C. (2019). Estratificação horizontal da educação superior no Brasil: Desigualdades de classe, gênero e raça em um contexto de expansão educacional. Tempo Social, revista de sociologia da USP, 31(1), 195-233.). Como afirmou Helal (2015)Helal, D. H. (2015). Mérito, Reprodução Social e Estratificação Social: apontamentos e contribuições para os estudos organizacionais. Organ. Soc., Salvador, 22(73), 251-268., “a realidade nos mostra que a sociedade moderna não é tão meritocrática como se preconiza” (p. 256).

Em relação ao ensino superior, Reay et al. (2005)Reay, D., David, M. E., & Ball, S. (2005). Degrees of choice: Class, race, gender and higher education. Trentham Books Limited. apontam que a expansão neste nível de ensino no Reino Unido trouxe como consequência novas formas de desigualdades sociais, as quais devem ser compreendidas considerando a estratificação do sistema educacional, que se acentua à medida que mais pessoas acessam o terceiro grau. Um dos propósitos do livro seria contestar o princípio meritocrático que, ao celebrar a amplitude do acesso ao ensino superior, valoriza a imparcialidade do sistema educacional. Há, segundo os autores, razões para otimismo e para pessimismo. De fato, a ampliação do sistema educacional do ensino superior propiciou a formação terciária de grupos, tais como estudantes pobres, minorias étnicas, pessoas mais velhas, entre outros, para os quais o acesso a este nível de ensino era praticamente improvável. No entanto, esta ampliação acentuou as distinções internas nos sistemas de educação superior, a chamada estratificação horizontal (Carvalhaes & Ribeiro, 2019Carvalhaes, F., & Ribeiro, C. (2019). Estratificação horizontal da educação superior no Brasil: Desigualdades de classe, gênero e raça em um contexto de expansão educacional. Tempo Social, revista de sociologia da USP, 31(1), 195-233.), produzindo e evidenciando hierarquias em termos do prestígio das Universidades e Faculdades frequentadas por estudantes pobres e aquelas frequentadas por alunos das classes médias e altas, os chamados excluídos no interior (Bourdieu & Champagne, 2003Bourdieu, P., & Champagne, P. (2003). Os excluídos do interior. In P. B. (coord.), A Miséria do Mundo (pp. 481-486). Editora Vozes.).

Os estudos de Bourdieu seriam um conjunto de pesquisas destinado a demonstrar a quebra dos ideais meritocráticos embutidos na Revolução Francesa, segundo Mijs. Ainda na linha mais crítica e pessimista, o autor (Mijs, 2016Mijs, J. J., & Savage, M. (2020). Meritocracy, Elitism and Inequality. The Political Quarterly, 91(2).) detalha que, segundo demonstra a literatura, as instituições educativas poderiam distorcer o ideal meritocrático, as oportunidades meritórias seriam definidas por condições sociais e qualquer definição de mérito beneficia sempre algum grupo. Todo este agregado de estudos mostraria a impossibilidade de se atingir o ideal meritocrático. No entanto, assim como nosso estudo num plano mais modesto, o autor estabelece um programa de pesquisas sobre as formas sociais pelas quais os valores do ideal meritocrático perpassam as relações sociais, informando práticas e escolhas.

Neste quadro da permanência das desigualdades, Clancy e Goastellec (2007)Clancy, P., & Goastellec, G. (2007). Exploring access and equity in higher education: Policy and performance in a comparative perspective. Higher Education Quarterly, 1(2), 136-154. identificam traços comuns na agenda de acesso ao ensino superior de diferentes países, refletidos em três princípios de organização de políticas de seleção para o sistema de ensino superior que evidenciam tensões entre o mérito e as normas igualitárias. O primeiro seria o do “mérito herdado”, prevalente no século XIX, em que as características adscritas (posição social, conexões familiares, raça, gênero etc.) seriam determinantes e tidas como legítimas para o acesso ao ensino superior. Progressivamente, ao longo do século XX, o “mérito herdado” cedeu lugar à igualdade de direitos. Assim, políticas para a ampliação do acesso ao ensino superior para aqueles que se graduavam no ensino médio, independente de suas marcações de origem, foram observadas em diferentes países. Por considerar a igualdade de direitos como princípio de seleção, essa ideia seria classificada como de mérito universal. No entanto, como mencionado nas páginas anteriores, o princípio da igualdade foi sendo desafiado pela persistência das condições de origem nos destinos escolares, em relação, por exemplo, ao acesso aos cursos e às instituições mais prestigiosas. No final do século XX e início do século XXI, substituiu-se o princípio da igualdade de direitos pela equidade de oportunidades. É nesse contexto que se enquadram políticas de admissão diferenciada (cotas, etc.). Torna-se importante salientar que nem todas as políticas para o ensino superior dos países seguiram este percurso histórico, que não deve, pois, ser compreendido como um padrão. O ponto a ser enfatizado é que quando o princípio da equidade passa a configurar as políticas de acesso e permanência, há uma redefinição do próprio conceito de mérito.

Uma resposta é refefinir o mérito como a distância entre os diferentes níveis educacionais alcançados pelos estudantes e as diversas desvantagens (handicaps no original) enfrentadas por eles em termos de suas características pessoais, familiares, regionais ou de experiências escolares.

(Clancy & Goastellec, 2007Clancy, P., & Goastellec, G. (2007). Exploring access and equity in higher education: Policy and performance in a comparative perspective. Higher Education Quarterly, 1(2), 136-154., p. 139)

Define-se, assim, o mérito relacional como um conceito que conjuga o princípio da igualdade (no acesso) e o da diferença (handicaps) na estrutura de oportunidades.

A este respeito, ex-reitores de duas das mais prestigiosas Universidades norte-americanas (Princeton e Harvard) advogam que um processo seletivo baseado exclusivamente em critérios quantificáveis e universais pode ser um grande problema na busca por estudantes talentosos, independentemente de suas origens. Estes dirigentes institucionais, Bowen e Bok (2004)Bowen, W. G., & Bok, D. (2004). O Curso do Rio: Um estudo sobre a ação afirmativa no acesso à universidade. Garamond., defendem ações afirmativas nos processos de admissão na perspectiva similar à discutida acima. Todavia, não as justificam pelas razões mais conhecidas, tais como reparar desigualdades históricas, de exclusão etc., mas pelo fato de que estas políticas de inclusão beneficiam a Universidade como um todo, incluindo, neste conjunto, alunos não cotistas, professores e funcionários. Possuir um corpo discente com diferentes origens, talentos e experiências constitui um ganho para o desenvolvimento de todos, sobretudo para os não cotistas. Há uma inversão do argumento em favor de políticas afirmativas na admissão e sobre o mérito. A questão aqui passa a ser os efeitos positivos das cotas para os que não são cotistas e para a universidade em geral. Um episódio, relatado pelos autores, ilustra este ponto. Um famoso educador negro comentou em uma reunião que seu filho estava sendo considerado para uma prestigiosa premiação na pós-graduação.

“Meu filho”, disse o professor, “não precisa de consideração especial; é tão talentoso que conseguirá se fazer sozinho” (...) Apesar disso, seria possível questionar a conclusão tirada pelo pai. “Seu filho se sairá muito bem”, disse outra pessoa presente à reunião. “Mas a questão não é essa. Talvez ele não precise de nós, mas nós precisamos dele!” [ênfase adicionada].

(Bowen & Bok, 2004Bowen, W. G., & Bok, D. (2004). O Curso do Rio: Um estudo sobre a ação afirmativa no acesso à universidade. Garamond., p. 403)

Retomando as considerações de Clancy e Goastellec (2007)Clancy, P., & Goastellec, G. (2007). Exploring access and equity in higher education: Policy and performance in a comparative perspective. Higher Education Quarterly, 1(2), 136-154., se os talentos são distribuídos aleatoriamente entre os grupos sociais e lugares, cabe às instituições de ensino a responsabilidade de desenvolverem processos admissionais que sejam proativos na busca destas pessoas onde quer que estejam, reduzindo o efeito das escolhas educacionais. Todavia, como os próprios autores sugerem, o percurso ainda é longo. Nas mais prestigiosas instituições que compõem a chamada “Ivy League” norte-americana, que oferecem generosos programas de acesso e de permanência para jovens talentosos de origens desfavorecidas, a inclusão e a permanência deste grupo não alteraram profundamente a estratificação observada dentro dos sistemas educacionais do ensino superior (Clancy & Goastellec, 2007Clancy, P., & Goastellec, G. (2007). Exploring access and equity in higher education: Policy and performance in a comparative perspective. Higher Education Quarterly, 1(2), 136-154., p. 141). Conforme demonstra Sandel (2021)Sandel, M. J. (2021). A Tirania do Mérito. Civilização Brasileira., em Yale e Princeton, apenas um em cada cinquenta estudantes vem de uma família pobre (20% mais pobres), e a porcentagem de filhos e filhas da classe trabalhadora e de pobres que estudam em Yale, Princeton e Harvard (as chamadas Big Three) permanece hoje a mesma de 1954. Como crítico da noção de mérito, Sandel (2021)Sandel, M. J. (2021). A Tirania do Mérito. Civilização Brasileira. propõe uma alternativa radical para lidar com um problema tão persistente: seleção por meio de loteria.

Dubet (2020)Dubet, F. (2020). O tempo das paixões tristes. Vestígio. mais uma vez nos auxilia a compreender a persistência das desigualdades e como esta é vivenciada pelas pessoas em suas ações, como já sugerido em Mijs (2021)Mijs, J. J. (2021). The paradox of inequality: income inequality and belief in meritocracy go hand in hand. Socio-Economic Review, 19(1).. De acordo com o autor, vivemos a transição de um mundo articulado por um sistema de desigualdades de classe social para um sistema de desigualdades múltiplas. Uma das consequências dessa transformação é que o Estado, sem abandonar o sistema geral de proteção instaurado pelo sistema de classe, desenvolve uma série de políticas públicas que acompanham a multiplicação das desigualdades. No caso da educação superior, podemos mencionar as políticas de ação afirmativa voltadas para pobres, pretos, pardos, indígenas, dentre outros grupos, baseadas no princípio da equidade de oportunidades. O que de fato acontece, na visão do sociólogo francês, é que “ao se abrir, a escola mudou o modo de produção das desigualdades” (Dubet, 2020Dubet, F. (2020). O tempo das paixões tristes. Vestígio., p. 44).

A abertura das escolas para pessoas que antes não frequentavam esses espaços diluiu a desigualdade no acesso, mas não reduziu as desigualdades ao longo do percurso. Assim, torna-se importante diferenciar a micromobilidade, os pequenos deslocamentos dentro da estrutura social, da macromobilidade, as grandes mudanças entre gerações. Diz-nos o autor:

(...) em função da massificação de diplomas de ensino superior, o nível escolar para a contratação aumentou bastante de uma geração para outra. Para atingir o mesmo nível social de seus pais, os jovens devem proceder a investimentos escolares mais seletivos e mais longos do que aqueles de seus pais. Mas, essa mobilidade ascendente dentro do sistema escolar não é acompanhada por uma mobilidade profissional; os jovens ascenderam na ordem escolar e não se deslocaram na ordem dos empregos. Eles podem, assim, igualar o nível escolar de seus pais e decair na ordem de qualificações profissionais.

(Dubet, 2020Dubet, F. (2020). O tempo das paixões tristes. Vestígio., p. 48)

A micro e a macromobilidade são como discos a girar em diferentes rotações. No sistema das desigualdades múltiplas, o disco da micromobilidade gira veloz, ao passo que o das grandes desigualdades é bem mais rígido e vagaroso. Trabalhos que se utilizam de longas séries históricas, tais como os de Mijs (2021)Mijs, J. J. (2021). The paradox of inequality: income inequality and belief in meritocracy go hand in hand. Socio-Economic Review, 19(1). e Piketty (2014)Piketty, T. (2014). O Capital no século XXI. Intrínseca., no plano internacional, e o de Souza (2018)Souza, P. F. (2018). Uma História de Desigualdade: a concentração de renda entre os mais ricos no Brasil 1926-2013. Hucitec., para o Brasil, demonstram que a concentração de renda e de patrimônio dos mais ricos tem crescido nas últimas décadas, a despeito das mudanças sociais, políticas e econômicas ocorridas. O problema, adverte Dubet (2019)Dubet, F. (2020). O tempo das paixões tristes. Vestígio., é que as sociedades atuais, ao celebrarem o mérito e a performance como princípios de atribuição de status, fazem com que os indivíduos vivenciem as desigualdades como fracassos pessoais.

Voltemos às decepções geradas pela democratização escolar, notadamente, ao acesso ao ensino superior. Como já mencionado, o modo de produção das desigualdades alterou-se com a massificação, pois não existe mais uma barreira no acesso, mas há pequenas desigualdades que vão sendo produzidas no percurso das escolhas educacionais. Trabalhos como o de Reay et al. (2005)Reay, D., David, M. E., & Ball, S. (2005). Degrees of choice: Class, race, gender and higher education. Trentham Books Limited. vão nesta direção. Ao analisarem as escolas e seus habitus, os autores demonstram a existência de uma “tremenda diferença na maneira como as escolas privadas e públicas provêm informações sobre carreiras e sobre o ensino superior” (Realy et al., 2005Reay, D., David, M. E., & Ball, S. (2005). Degrees of choice: Class, race, gender and higher education. Trentham Books Limited., p. 39). Esse tipo de análise corrobora o trabalho de Dubet e Martuccelli (2006)Dubet, F., & Martuccelli, D. (2006). A l'école . Sociologie de l'expérience scolaire. Seuil., que evidencia o efeito das diferentes experiências nas instituições escolares na definição das trajetórias sociais dos estudantes. As conclusões de Lucas (1999)Lucas, S. R. (1999). Tracking Inequality: stratification and mobility in American High Schools. Columbia University., em pesquisa com escolas norte-americanas, apontam para a mesma direção. Para o autor, o comportamento proativo dos pais das classes médias, os quais possuem as maiores oportunidades informacionais para navegar num sistema estratificado e dele obter vantagens, é a principal razão para a manutenção e aprofundamento das desigualdades. Se, por um lado, a chamada “parentalidade superprotetora”, como define Sandel (2021)Sandel, M. J. (2021). A Tirania do Mérito. Civilização Brasileira., traz vantagens, por outro, pode também gerar consequências emocionais negativas para os filhos.

Estes estudos tendem a mostrar a segunda dimensão mencionada por Mijs sobre o fato de que o próprio funcionamento do sistema escolar contribuiria para minar e distorcer o ideal meritocrático. Também indicariam a forma pela qual os recursos sociais dos mais ricos ou educados permitem a apropriação de oportunidades desiguais para ter mérito.

No final do percurso, como sugere Dubet (2020)Dubet, F. (2020). O tempo das paixões tristes. Vestígio., pequenas desigualdades podem se tornar grandes desigualdades. Para o sociólogo francês, boa parte dos ressentimentos e indignações de nossos dias repousa no fato de que desigualdades, anteriormente percebidas como sociais, como parte do sistema de desigualdade de classes, agora são percebidas como discriminações injustas ou fracassos pessoais. Nas palavras de Sandel (2021)Sandel, M. J. (2021). A Tirania do Mérito. Civilização Brasileira., estes fracassos seriam a expressão visível da tirania do mérito, na qual responsabilidades, que antes eram compreendidas como sendo do governo ou de empresas, passam a ser atribuídas aos indivíduos, com graves consequências para as políticas de bem-estar social. Nesse sentido, a massificação do ensino pode amplificar o sentimento de desigualdade vivido pelas pessoas, “pois não nos comparamos àqueles que estão mais longe de nós, mas àqueles que estão relativamente mais perto” (Dubet, 2020Dubet, F. (2020). O tempo das paixões tristes. Vestígio., p. 31). Como a lista é ampla, ficaremos com alguns exemplos. Brancos vivem mal porque negros e minorias tiram proveito das políticas afirmativas do Estado. Operários perdem empregos porque são substituídos por imigrantes. Homens perdem suas posições e dignidades porque as mulheres tomaram seus lugares. Em suma: “O inimigo é o assistido pelo sistema social” (Dubet, 2020Dubet, F. (2020). O tempo das paixões tristes. Vestígio., p. 93).

Na próxima seção, desenvolveremos alguns exemplos e exploraremos situações em que o mérito universal e relacional se entrecruzam a partir de políticas para o Ensino Superior, focando especialmente as formas de seletividade presentes no Enem, na lei de Cotas e no Sisu.

As cotas, o ENEM, o SISU: espaços para mérito relacional?

Em nosso país, as disputas sociais em torno de políticas de cotas, que buscaram implantar a concepção relacional do mérito nos processos seletivos para o sistema de ensino superior, foram muito intensas. Mesmo com resultados iniciais positivos, como o aumento da participação de negros, pobres e mulheres no ensino superior brasileiro, a pesquisa indica que a ocupação de vagas nos diferentes cursos e as chances de formatura ainda são bastante desiguais entre esses grupos (Balbachevsky et al., 2019Balbachevsky, E., Sampaio, H., & Andrade, C. (2019). Expanding Access to Higher Education and Its (Limited) Consequences for Social Inclusion: The Brazilian Experience, in Social Inclusion. Social Inclusion, 7(1), 7-17.; Barbosa, 2019Barbosa, M. L. (2019). Democratização ou massificação do Ensino Superior no Brasil? Rev. educ. PUC-Camp., 24(2), 240-253.). No quadro da abordagem escolhida, torna-se cada vez mais essencial compreender se e de que maneira um princípio meritocrático relativizado e alargado pelas políticas de inclusão pode ter efeitos democratizantes no acesso ao ensino superior. Para isso, examinaremos algumas dimensões do processo seletivo realizado por meio do ENEM e seu aproveitamento pelo SISU.

O Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), “foi criado em 1998 com a finalidade de avaliar o desempenho dos estudantes brasileiros ao final do Ensino Médio. A partir de 2009, foram implementadas algumas mudanças para contribuir com a democratização das oportunidades de acesso à universidade, visto que a partir desse ano, o exame passou a ser utilizado como mecanismo de seleção para o ingresso no ensino superior” (Figueiredo et al., 2014Figueiredo, E., Nogueira, L., & Santana, F. (2014). Igualdade de oportunidades: Analisando o papel das circunstâncias no desempenho do ENEM. RBE, 68(3), 373–392., p. 381). Esta transformação da finalidade do exame coloca alguns problemas técnicos. No entanto, a crescente participação dos estudantes e o aumento significativo das instituições que passaram a utilizar o Enem como uma referência essencial nos seus processos seletivos atestam a aceitação e legitimidade do exame entre os agentes sociais relevantes. Foram 4,6 milhões de estudantes em 2010, atingindo 9,4 milhões em 2014. Desde 2020, observa-se redução expressiva no número de participantes, seja pela pandemia, seja pela maneira como o atual governo caracteriza este exame, o que pode colocar em risco seu potencial como referência em processos seletivos. 6 6 De acordo com matéria da Folha de São Paulo (18/11/2021), o presidente Jair Bolsonaro falou o seguinte diante de denúncias de que haveria interferência nas provas do Enem: “Olha o padrão do Enem no Brasil. Pelo amor de Deus. Aquilo mede algum conhecimento? Ou é ativismo político e na questão comportamental” Em 2020, 6,1 milhões de estudantes se inscreveram para o exame, ante somente 3,1 milhões em 2021.

Já o Sistema de Seleção Unificada (Sisu), criado em 2010 pelo governo federal, buscava oferecer caminhos de acesso facilitado e centralizado às instituições públicas de Ensino Superior. Assim como o uso do Enem, o Sisu não é obrigatório, mas já foi adotado pela grande maioria destas instituições, entre as federais, principalmente, mas também em algumas estaduais (Nogueira et al., 2017Nogueira, C. M., Nonato, B., Ribeiro, G., & Flontino, S. (2017). Promessas e limites: O Sisu e sua implementação na Universidade Federal de Minas Gerais. Educação em Revista, (33), 61-90.).

Como indicam Santos e Scopinho (2016)Santos, E. F., & Scopinho, R. A. (2016). Desigualdades Raciais, Mérito e Excelência Acadêmica: Representações Sociais em Disputa. Psicologia: Ciência e Profissão, 36(2), 267-279., as formulações políticas e legais sobre cotas e ações afirmativas expressam as representações sociais (valores dominantes na sociedade brasileira, segundo a perspectiva deste artigo) sobre os indivíduos e sua posição social. A implantação das políticas de ação afirmativa foi resultante das demandas históricas de movimentos sociais, bem como de iniciativas institucionais desenvolvidas independentemente. As primeiras ações de reserva de vagas para estudantes de escola pública, pretos e pardos foram adotadas em 2002, inicialmente pela UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e depois por outras instituições públicas. A disseminação dessas inciativas pontuais, no entanto, era comprometida por questionamentos jurídicos em relação à constitucionalidade do sistema de cotas. A segurança jurídica e a legitimidade vieram uma década depois, quando o plenário do Supremo Tibunal Federal (STF) decidiu por unanimidade que as cotas eram constitucionais (Heringer, 2014Heringer, R. (2014). Um balanço de 10 anos de políticas de ação afirmativa no Brasil. Tomo (UFS), 1, 13-29.; Schwartzman, 2015). Dois meses após a decisão do STF, em 29 de agosto de 2012, o Congresso aprovou a Lei de cotas (Lei nº 12.711, 2012Lei nº 12.711 de 29 de agosto de 2012. (2012). Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá outras providências. Presidência da República.), a qual:

(...) estipula que até 2016 pelo menos 50% das vagas das instituições federais de educação superior sejam reservadas para estudantes de escola pública. Dentro deste percentual, também são levados em conta a renda familiar e a autoclassificação racial, definindo um percentual de cotas para pretos, pardos e indígenas de acordo com a sua presença em cada unidade da federação, seguindo os dados do IBGE.

(Heringer, 2014Heringer, R. (2014). Um balanço de 10 anos de políticas de ação afirmativa no Brasil. Tomo (UFS), 1, 13-29., p. 23)

Para nossa análise, a comparação feita por Santos e Scopinho (2016)Santos, E. F., & Scopinho, R. A. (2016). Desigualdades Raciais, Mérito e Excelência Acadêmica: Representações Sociais em Disputa. Psicologia: Ciência e Profissão, 36(2), 267-279. entre a política de cotas federal e uma das propostas, criada também em 2012 pelo Conselho de Reitores das Universidades Estaduais de São Paulo (CRUESP) e intitulada Programa de Inclusão com Mérito no Ensino Superior Público Paulista (PIMESP), expressa de forma muito adequada as diferentes concepções do lugar do mérito nos processos seletivos das universidades públicas. Permite, ainda, identificar pontos importantes de resistência às políticas, em especial no que diz respeito à dimensão de inclusão racial.

Embora o programa paulista tivesse objetivo semelhante ao da Lei de Cotas (Lei nº 12.711, 2012), a saber, o de atingir em 4 anos (2016) 50% de vagas reservadas aos estudantes provenientes de escolas públicas, das quais 35% estariam destinadas a estudantes pretos, pardos e indígenas, de acordo com porcentagem estabelecida pelo Censo de 2010, ele percorria um caminho diferente. O programa propunha a criação de uma etapa intermediária, o Instituto Comunitário Ensino Superior (ICES), com dois anos de estudos num período intermediário para os grupos de estudantes pretos, pardos e indígenas, além daqueles com níveis baixos de renda. O ingresso nas Universidades estaduais paulistas dar-se-ia após esse período de estágio, a depender do desempenho acadêmico e das vagas ofertadas pelas universidades ao programa. O Pimesp, no sentido utilizado neste artigo, articula-se a partir da noção de mérito universal, estendendo para seu público-alvo o ingresso no ensino superior após o estágio. A igualdade de alunos de escolas públicas, pretos, pardos e indígenas em relação aos seus pares mais abastados seria alcançada após este período de nivelamento.

A proposta paulista não foi aceita, e as universidades estaduais optaram por diferentes formas e níveis de bônus. Tal como salientado pelas autoras Santos e Scopinho (2016)Santos, E. F., & Scopinho, R. A. (2016). Desigualdades Raciais, Mérito e Excelência Acadêmica: Representações Sociais em Disputa. Psicologia: Ciência e Profissão, 36(2), 267-279.:

Esta proposta está assentada sobre a premissa de que determinados grupos têm a capacidade de ingressar na universidade e outros não. A proposição deste “estágio” pré-universitário acena para uma política conservadora e segregacionista.

(p. 276)

Por outro lado, verifica-se que a Lei de cotas (Lei nº 12.711, 2012) se aproxima bastante da concepção relacional do mérito, ao buscar estabelecer a concorrência pelas vagas entre pessoas com trajetórias sociais similares, entre as quais poderia haver uma comparação mais justa, como observado por uma das entrevistadas pelas autoras “você tem que ser um pouco desigual no início para depois todo mundo poder estar igualzinho assim” (Santos & Scopinho, 2016Santos, E. F., & Scopinho, R. A. (2016). Desigualdades Raciais, Mérito e Excelência Acadêmica: Representações Sociais em Disputa. Psicologia: Ciência e Profissão, 36(2), 267-279., p. 274). Como mencionado, subjaz à política de bônus uma perspectiva de mérito universal, não relativizado pelas diferentes condições e pontos de partida dos estudantes. Temos, então, concepções diferentes que organizam políticas distintas de ampliação do acesso.

O Enem como processo seletivo

Para além das noções sobre quem teria o direito de acesso ao ensino superior, seria importante considerar o Enem como o processo seletivo mais legítimo do país (em função dos milhões de candidatos que se apresentam a cada ano) e o funcionamento do Sisu como um mecanismo para a distribuição das vagas no sistema público. Por se tratar de um exame universal, isto é, aplicado no mesmo formato para todos os estudantes, pode-se indicar que a perspectiva que orienta a elaboração e a aplicação do Enem é aquela do mérito universal, em que todos os estudantes são submetidos ao mesmo exame, independentemente das trajetórias individuais e sociais.

Como seria de se esperar, um exame universal torna explícitas as desigualdades de oportunidades educacionais. São inúmeros os estudos que mostram este fato. Tomando apenas um (Figueiredo et al., 2014Figueiredo, E., Nogueira, L., & Santana, F. (2014). Igualdade de oportunidades: Analisando o papel das circunstâncias no desempenho do ENEM. RBE, 68(3), 373–392.), verifica-se a existência de um abismo social entre o grupo de estudantes com posição social mais baixa (menor escolaridade materna e menor renda) e aqueles que se encontram nas posições mais elevadas:

De um modo geral, o conjunto de oportunidades do primeiro grupo (baixo) é cerca de 130 vezes menor do que o segundo grupo (alto). Em sentido complementar; (...) a possibilidade de um aluno pertencer ao nível mínimo de renda estar entre os 5% melhores no exame é de 45 vezes menos que os alunos que fazem parte da faixa superior da renda.

(Figueiredo et al., 2014Figueiredo, E., Nogueira, L., & Santana, F. (2014). Igualdade de oportunidades: Analisando o papel das circunstâncias no desempenho do ENEM. RBE, 68(3), 373–392., p. 386)

Os autores demonstram também que a baixa qualidade das escolas públicas seria a grande vilã na construção deste abismo de desigualdade social. Quando se compara o desempenho de estudantes com origem familiar semelhante, observa-se que aqueles que passaram por escolas públicas têm notas significativamente mais baixas. Este aspecto merece destaque, pois é possível fazer políticas que melhorem a qualidade destas escolas (Paul & Barbosa, 2008Paul, J.-J., & Barbosa, M. (2008). Qualidade docente e eficácia escolar. Tempo Social, 20 (1), 119-133.; Silva & Barbosa, 2012Silva, N. d., & Barbosa, M. (2012). Desempenho individual e organização escolar na realização educacional. Sociol. Antropol., 2(4).). Não se trata de um “dado da natureza”, mas o resultado de ações sociais e políticas públicas que se exprimem num modo de funcionamento destas escolas.

Boa parte desta literatura indica o duplo impacto da origem familiar e da baixa qualidade de setores do sistema de ensino. Uma outra linha de pesquisa, que investiga o acesso às informações básicas sobre a própria existência do Enem, é particularmente importante para estudos sobre a legitimidade dos processos seletivos. Muitos estudantes, suas famílias e mesmo alguns professores desconhecem os procedimentos e as possibilidades do Enem como porta de entrada para políticas de inclusão, ou ignoram a própria existência do exame, como atestam os trabalhos de Heringer (2013)Heringer, R. (2013). Expectativas de acesso ao ensino superior: Um estudo de caso na Cidade de Deus, Rio de Janeiro. Edição da autora., Souza (2020)Souza, G. K. (2020). Caminhos para o ensino superior: Expectativas de estudantes do Ensino Médio em escolas públicas na Bahia e Rio de Janeiro [Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação]. Universidade Federal do Rio de Janeiro. e Teixeira e Pires (2021)Teixeira, C. F., & Pires, A. (2021). Nível de informação e conhecimento sobre políticas de inclusão no ensino superior: O caso deestudantes de camadas sociais distintas do município de Limeira/SP. Educação Temática Digital, 23(2), 506-533..

No entanto, da perspectiva de nossa análise, o Enem, a partir da Lei de cotas de 2012, parece ter uma plasticidade maior no sentido de possibilitar a conjugação do mérito universal com o relacional. Tomada por si mesma, a nota do Enem significa uma visão universal de mérito, sem considerar as condições sociais de organização das trajetórias escolares. Ainda assim, seu aproveitamento pelas instituições públicas que atendem aos critérios da lei das cotas é uma efetiva aplicação prática da concepção relacional do mérito. Pode-se afirmar o mesmo em relação às instituições privadas, já que o Enem é também utilizado para a concessão de bolsas do Programa Universidade para Todos (Prouni). Como se sabe, as bolsas do Prouni são dirigidas aos estudantes pobres (renda per capita de até 1,5 salário mínimo para bolsa integral e de até 3 salários mínimos para bolsas parciais), e a distribuição das bolsas deve acompanhar o percentual de autodeclarados indígenas, pardos ou pretos, de acordo com o último Censo do estado onde se localiza a IES. Em princípio, a ideia de medir o mérito a partir das condições sociais é respeitada. Mesmo que existam casos de fraudes ou de escolas públicas colonizadas pelas classes médias (o que cria condições distintas nestas escolas), o princípio que orienta a comparação é mantido. A proposta inclusiva das políticas de ação afirmativa se mantém, como se pode confirmar pelo alargamento da presença dos chamados “novos estudantes” no ensino superior. No entanto, os limites dessas políticas, evidenciados pela proporção limitada de vagas reservadas em relação ao número potencial de candidatos, permanecem sem alterar ‘o mérito universal.

O Sisu e a agência individual: crença no mérito e no acesso aos cursos “possíveis”

O caso do Sisu apresenta diferenças importantes quanto aos seus impactos inclusivos, mesmo considerando sua articulação com a Lei de Cotas e com o Enem. É o que sugerem Nogueira et al. (2017)Nogueira, C. M., Nonato, B., Ribeiro, G., & Flontino, S. (2017). Promessas e limites: O Sisu e sua implementação na Universidade Federal de Minas Gerais. Educação em Revista, (33), 61-90., a partir de informações sobre a implementação do Sisu na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Dentro desta instituição, houve mudanças nos padrões de matrícula, desistência e mesmo evasão, o que pode produzir redução de oportunidades e desperdício causado pelo não preenchimento de vagas nos cursos menos prestigiados. Por outro lado, a promessa de aumentar as chances de mobilidade dos jovens para que pudessem estudar em qualquer parte do país se viu limitada, como mostram os autores.

Por mais que a plataforma online do Sisu ofereça a possibilidade de o candidato se inscrever em qualquer curso de qualquer instituição do país, na prática, poucos têm condições de se deslocar e se manter em locais distantes da residência. Seriam necessários um aprimoramento considerável das políticas de assistência estudantil e uma ampliação da divulgação de informações sobre elas junto aos candidatos no momento da inscrição para que se compensassem, em alguma medida, as desigualdades existentes entre os estudantes no que se refere às suas condições objetivas para se deslocar pelo país.

(Nogueira et al., 2017Nogueira, C. M., Nonato, B., Ribeiro, G., & Flontino, S. (2017). Promessas e limites: O Sisu e sua implementação na Universidade Federal de Minas Gerais. Educação em Revista, (33), 61-90., p. 87)

Neste quadro, se o Enem abre portas à concepção relacional do mérito através de seu aproveitamento em políticas de ação afirmativa, sua articulação com o Sisu e a Lei de Cotas pode ter, em muitos casos, o efeito inverso. As vagas reservadas nem sempre são aproveitadas porque seus potenciais ocupantes não têm condições econômicas e sociais de se mudarem para o lugar onde poderiam estudar. Mais uma vez, são criadas situações que poderiam perfeitamente ser resolvidas com boas políticas para residência estudantil e permanência ao longo dos cursos.7 7 Um balanço sobre políticas de permanência no ensino superior público brasileiro pode ser visto em (DIAS, TOTI, SAMPAIO, & POLYDORO, 2020) Em relação à inclusão social dos estudantes, os autores apontam que o maior número de inscritos no processo seletivo proporcionado pelo Sisu elevou a nota de corte dos cursos, provocando uma “superseleção” no interior das cotas: “em vários cursos [68% dos cursos oferecidos no 1 semestre de 2015], a nota mínima para aprovação tem sido maior em algumas mobilidades de cotas do que para a ampla concorrência” (Nogueira et al., 2017Nogueira, C. M., Nonato, B., Ribeiro, G., & Flontino, S. (2017). Promessas e limites: O Sisu e sua implementação na Universidade Federal de Minas Gerais. Educação em Revista, (33), 61-90., p.81). A portaria do MEC nº 1.117, de novembro de 2018, corrigiu essas distorções ao estabelecer que “caso o estudante, inscrito na modalidade de reserva de vagas na forma da Lei nº 12.711, possua nota para ser selecionado por ampla concorrência, será selecionado nessa modalidade e sua inscrição é retirada do cômputo de inscrições as vagas reservadas” (Portaria nº 1.117, 2018Portaria nº 1.117 de 1 de novembro de 2018. (2018). Altera a Portaria Normativa MEC nº 18, de 11 de outubro de 2012, e a Portaria Normativa MEC nº 21, de 5 de novembro de 2012. Ministério da Educação/ Gabinete do Ministro.).

Ademais, aumentou a porcentagem de alunos cujo ensino médio foi realizado em escolas federais, as quais possuem maior seletividade no ingresso e estudantes de origem social mais elevada. As promessas do Sisu seriam factíveis se acompanhadas de outros investimentos, ainda pouco visíveis no horizonte das políticas brasileiras para educação.

O Sisu fornece elementos para reforçar nosso argumento de que a ideia do mérito relacional vem ganhando espaço como legitimadora dos processos seletivos para a entrada na universidade. Como mostra o já citado estudo de Nogueira e colaboradores (2017), é possível identificar o desenvolvimento de estratégias de escolha para os cursos e instituições. Apesar do tom crítico dos autores, a existência destas estratégias indica que estes jovens conhecem as regras do jogo e sabem jogar com elas a seu favor. Isto as torna legítimas: os estudantes orientam suas escolhas – mesmo que seja na direção dos cursos possíveis e não dos mais desejados – de forma a garantir sua entrada no ensino superior. Legitimar uma regra é atribuir autoridade a ela, por razões afetivas, tradicionais ou racionais-legais. No Sisu, ocorre uma legitimação racional-legal, em que a regra seletiva é obedecida porque é racionalmente entendida e usada. Gostando-se ou não desta regra, ela é um dos parâmetros de acesso ao mundo do ensino superior e a todos os benefícios a ele associados. Os jovens pobres sabem disso, e exatamente como seus contemporâneos de outros grupos sociais, organizam estratégias em torno da ideia de que precisam se esforçar e dar o seu máximo para conseguir merecer a universidade.

A legitimidade da ideia meritocrática ou o valor do mérito

O resultado positivo destas estratégias e a entrada em qualquer curso ou segmento do ensino superior reforçam a legitimidade da ideia meritocrática e se associam a outras narrativas sobre as trajetórias individuais. As novas exigências feitas pela entrada num ambiente que pode ser até hostil (Almeida, 2009), o reforço da ideia do “eu me viro” (Pires et al., 2019Pires, A., Romão, P., & Varollo, V. (2019). O Programa Bolsa Família e o acesso e permanência no ensino superior: a importancia do eu me viro. Revista Brasileira de Educação [Artigo aprovado para publicação].), as alianças e o apoio mútuo, são elementos que forjam a experiência universitária destes novos estudantes. A entrada para o ensino superior associa tanto as estratégias pessoais e familiares quanto os custos econômicos, sociais e psicológico, especialmente para os estudantes menos próximos da cultura acadêmica. Há uma literatura importante sobre o sofrimento enfrentado por estes estudantes na sua experiência universitária, que são muitas vezes submetidos a situações de discriminação ou preconceito (Bovério, 2014Bovério, M. A. (2014). PROUNI:Estudo multicasos com bolsistas beneficiários (estudantes e egressos) de sete instituições de ensino superior do Estado de São Paulo [Tese de doutorado]. Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Faculdade de Ciencias e Letras, Campus de Araraquara.; Piotto, 2014Piotto, D. C. (2014). Camadas populares e universidades públicas: Trajetórias e experiências escolares. Pedro & João Editores.; Pires et al., 2019Pires, A., Romão, P., & Varollo, V. (2019). O Programa Bolsa Família e o acesso e permanência no ensino superior: a importancia do eu me viro. Revista Brasileira de Educação [Artigo aprovado para publicação].; Ribeiro, 2018Ribeiro, F. d. (2018). Preconceito e ProUnistas: “Seu lugar não é aqui” [Tese Programa de Pós-Graduação em Psicologia]. Pontifícia Universidade Católica de Campinas.), ou têm que desenvolver atitudes e comportamentos para serem valorizados no ambiente escolar (Lahire, 1997Lahire, B. (1997). Sucesso escolar nos meios populares. Atica.). Apesar de discriminações e dificuldades causadas pela ausência de melhores políticas e ações institucionais, os jovens negros e pobres, assim como seus colegas mais privilegiados, partilhariam um sentimento de que houve esforços recompensados para chegar a este ponto.

Entretanto, a dimensão social merece atenção num ponto destacado por Dubet (2015)Dubet, F., & Martuccelli, D. (2006). A l'école . Sociologie de l'expérience scolaire. Seuil.: assim como a massificação do acesso ao ensino superior não significa necessariamente uma democratização do mesmo, a entrada na universidade é feita por portas distintas (Barbosa, 2015Barbosa, M. L. (2015). Destinos, Escolhas e a Democratização do Ensino Superior. Política & Sociedade, 14(31), 256-282.). Como já mencionado, formam-se hierarquias acadêmicas, que valorizam desigualmente cursos, instituições, modalidades e tipos de diplomas. Esta estrutura de oportunidades é apropriada de forma muito distinta pelos grupos sociais (Prates & Barbosa, 2015Prates, A. A., & Barbosa, M. O. (2015). A expansão e as possibilidades de democratização do ensino superior no Brasil. Cadernos CRH, 28(74), 327-339.; Santos et al., 2020Santos, C. T., Lima, R. G., & Carvalhaes, F. (2020). O perfil institucional do sistema de ensino superior brasileiro após décadas de expansão. In M. L. Barbosa, A expansão desigual do ensino superior no Brasil. Appris.). Assim, a hierarquia acadêmica se constrói como hierarquia social, com forte impacto na reprodução das desigualdades.

Isso significa que, apesar da prevalência de uma perspectiva relacional do mérito nas políticas de inclusão e na ampliação do acesso ao ensino superior, não se produz uma organização meritocrática dos estudantes durante seus cursos tampouco dos egressos. A diminuição das desigualdades de acesso não se traduz em expansão de oportunidades similares. Mais do que os processos seletivos, o funcionamento institucional do sistema de ensino superior parece ser agente de desigualdade. Fator de uma estratificação horizontal entre estudantes e egressos, o sistema de ensino superior funcionaria como um dos motores das desigualdades múltiplas, geradoras de ressentimentos e culpas individualizadas, num tempo de paixões tristes (Dubet, 2020Dubet, F. (2020). O tempo das paixões tristes. Vestígio.).

Comentários finais

Como os demais valores, o mérito é uma representação daquilo que a sociedade preza e julga moralmente correto e justo. E assim como a sociedade comporta múltiplas representações de seus ideais, o mérito é um valor historica e socialmente variável. Desde a antiguidade, pessoas foram julgadas, positiva ou negativamente, por seus atos e por suas realizações. Entretanto, quando o esforço e o talento passam a ser, idealmente, um critério de localização das pessoas nas hierarquias sociais e se associam à escolarização, o mérito ganha espaço na discussão científica sobre as desigualdades modernas. Sai o gladiador vencedor ou o músico genial para dar lugar ao estudante bem sucedido que consegue um bom emprego, com renda mais alta, prestígio e até poder.

Mas, como se sabe muito bem, um estudante bem sucedido não é simples resultado do talento, como supõe, em certa medida, a ideia do mérito universal. Também não é ‘apenas’ o desfecho de trajetórias de grande esforço familiar e pessoal. Um estudante bem sucedido precisa, além de uma família que acredite e possa investir no seu sucesso, de uma escola de qualidade, capaz de ensinar a todos os alunos independentemente de sua origem social. São as condições sociais do sucesso, que se combinam com os investimentos familiares e o esforço individual.

Assim, quando o mérito está associado aos resultados ou ao desempenho educacional, o sentido socialmente atribuído a ele se altera. Nas sociedades democráticas, é possível acompanhar esta evolução na tipologia feita por Clancy e Goastellec (2007)Clancy, P., & Goastellec, G. (2007). Exploring access and equity in higher education: Policy and performance in a comparative perspective. Higher Education Quarterly, 1(2), 136-154.: passa-se do mérito herdado (muito mais patrimonial que propriamente meritocrático) ao mérito universal (perfeito, quando os competidores são todos parte da elite educada) para se atingir o mérito relacional, expressão do esforço diferencial feito por familias distintas socialmente.

Obviamente, trata-se de valores, ideais, percepções morais e arquiteturas simbólicas que, apesar de imperfeitos e criticáveis, como tem sido demonstrado por uma literatura muito significativa, são incorporados em políticas públicas, ações institucionais e, considerando a perspectiva aqui adotada, nas decisões individuais de buscar entrada no ensino superior. Na prática, o Enem encarnaria uma perspectiva mais universalista do mérito, associada ao talento e independente de posição social. A dimensão do esforço diferencial, a ideia no mérito relacional, afirma-se no aproveitamento do desempenho do Enem combinado com os critérios sociais e raciais estabelecidos pela lei de cotas e pelo Prouni. Ainda assim, vimos que a conjugação do Enem, Lei de Cotas e Sisu, quando não acompanhadas por políticas de permanência, pode ter o efeito inverso de não preenchimento de vagas em alguns cursos. O período de nivelamento, previsto pelo Pimesp, seria, entre os exemplos tratados neste texto, aquele que mais se afasta do mérito relacional.

As formas relacionais do mérito que orientam as políticas de abertura do acesso e de financiamento estudantil são indicativas de avanços na concepção das políticas públicas de inclusão. Considerando a importânca que a Lei de Cotas teve no sentido de propiciar segurança legal e instrumentos para a adoção de políticas de acesso que dialoguem com o chamado mérito relacional, entendemos que sua revisão, prevista para 2022, deva garantir a continuidade da referida Lei, com eventuais aprimoramentos.

Entretanto, a igualdade de oportunidades não se restringe ao acesso: além de aperfeiçoamentos necessários na mensuração e qualidade das provas e mecanismos de distribuição dos alunos, é fundamental desenvolver políticas de permanência dos estudantes mais eficazes e melhor desenhadas, reduzindo as taxas altíssimas de abandono escolar do nosso sistema, garantindo maior número de estudantes nas formaturas e formas de acompanhamento dos egressos que levem em conta o sentido relacional do mérito. Ou seja, políticas que incorporem o reconhecimento do esforço diferenciado feito por estudantes provenientes de distintas posições e grupos sociais.

  • 2
    Normalização, preparação e revisão textual: Maria Thereza S. Lucinio - thesampaio@uol.com.br
  • 3
    Apoio: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) – processos 308915/2019-4 e303783/2016-8 – FAPERJ - Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro – processo E 262/200.863/2021>
  • 4
    Sobre a meritocracia como “ideologia”, consultar (BARBOSA L. , 1996Barbosa, L. (1996). Meritocracia à brasileira: o que é desempenho no Brasil. Revista do Serviço Público, 120 (3), 58-102.)
  • 5
    Não podemos deixar de mencionar ressonâncias dessa compreensão em relação à Teoria do Capital Humano, que surge na década de 1960 visando compreender o papel da educação para o crescimento econômico observado nos anos pós Segunda Guerra Mundial. Na visão de Schultz, o pensamento econômico à época restringia o conceito de capital aos bens materiais. Para o autor: “(...) o inexplicado crescimento econômico (..) é provocado por formas de capital ainda não identificadas e dimensionadas, constando, principalmente, de capital humano” (Schultz, 1967, p. 81). Capital Humano é, portanto, compreendido como habilidades e conhecimentos adquiridos que elevam a produtividade. O principal investimento deste capital é a educação.
  • 6
    De acordo com matéria da Folha de São Paulo (18/11/2021), o presidente Jair Bolsonaro falou o seguinte diante de denúncias de que haveria interferência nas provas do Enem: “Olha o padrão do Enem no Brasil. Pelo amor de Deus. Aquilo mede algum conhecimento? Ou é ativismo político e na questão comportamental”
  • 7
    Um balanço sobre políticas de permanência no ensino superior público brasileiro pode ser visto em (DIAS, TOTI, SAMPAIO, & POLYDORO, 2020Dias, C. E., Toti, M. S., Sampaio, H., & Polydoro, S. J. (2020). Os serviços de apoio pedagógico aos discentes no esnisno superior brasileiro. Pedro & João Editores.)

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Editor responsável: Helena Sampaio. https://orcid.org/0000-0002-1759-4875

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    30 Nov 2021
  • Revisado
    30 Nov 2021
  • Aceito
    17 Jan 2022
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