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Training of early childhood teachers and the conception of democratic education: the Pró-Saber experience1 1 Apoio: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

Resumo

Este artigo traz como objeto de investigação a experiência do Curso Normal Superior do Instituto Superior de Educação Pró-Saber, localizado no Rio de Janeiro. O objetivo foi analisar uma proposta de formação de professores de educação infantil que apresenta algumas particularidades: é baseada na concepção democrática de educação de Paulo Freire e toma como eixos norteadores a formação em serviço e a formação cultural. Trata-se de um estudo de caso, que fez uso de observação, entrevista e questionário como ferramentas metodológicas e buscou respaldo de autores que desenvolvem pesquisas na área. Os dados demonstraram que uma formação que prioriza o processo de autoria, a construção coletiva do conhecimento e a oportunidade de acesso a diferentes expressões culturais em uma perspectiva reflexiva contribui para que os professores se apropriem da própria prática, sintam-se mais seguros, valorizados e comprometidos com a educação enquanto projeto político mais amplo.

Palavras-chave
educação infantil; formação de professores; Pró-Saber; concepção democrática de educação

Abstract

This article investigates the experience of the Curso Normal Superior (Higher Normal Course) of the Instituto Superior de Educação Pró-Saber, located in Rio de Janeiro. The objective was to analyze a proposal for early childhood teachers’ training which is based on Paulo Freire’s democratic conception of education and has as guiding principles the in-service and cultural training. This is a case study, which used observation, interview and questionnaire as methodological tools and sought the support of authors who develop studies in the area. The data showed that a training that prioritizes the process of authorship, the collective construction of knowledge and the opportunity to access different cultural expressions in a reflective perspective contributes to teachers to take ownership of their own practice and to feel safer, valued and committed to education as a broader political project.

Keywords
early childhood education; teacher training; Pró-Saber; democratic conception of education

Introdução

Este artigo é resultado de uma pesquisa realizada entre 2015 e 2016 sobre formação de professores de educação infantil. Embora a temática da formação docente tenha sido recorrente em pesquisas acadêmicas nas últimas décadas, as exigências de melhor qualificação nessa área intensificaram a necessidade de repensar o modelo de formação inicial, instigando pesquisadores a buscar novas perspectivas. O aporte de outras áreas do conhecimento, como filosofia, antropologia e sociologia, contribuiu para colocar o professor em um contexto histórico, cultural e social que dialoga e, em parte, determina seu lugar no mundo e na profissão. “A contribuição de Paulo Freire nesse sentido foi insuperável. O autor ressaltou o quanto o professor é um ser do mundo e não pode ser pensado fora dessa perspectiva” (Cunha, 2013Cunha, M. I. (2013). O tema da formação de professores: trajetórias e tendências do campo na pesquisa e na ação. Educação e Pesquisa, 39(3), 609-625., p. 614). No que tange à educação infantil, após intensos debates e como resultado de muitas lutas, especialmente a partir dos anos 1980, o Brasil conquistou uma legislação consistente e atual, voltada para esse segmento e para o profissional que nele atua. Conforme destaca Kramer, (2005, p. 134)Kramer, S. (Org.). (2005). Profissionais de educação infantil: gestão e formação. São Paulo: Ática. “…em termos legais, podemos afirmar que nunca o Brasil teve uma legislação tão moderna no que se refere à infância”. Mas de que maneira esse avanço teórico tem impactado os modelos de formação vigentes? Em que medida o discurso atual, que traz uma concepção de criança como sujeito social com cultura, saber e identidade, alcança os espaços teóricos da formação?

Verifica-se que, apesar das inúmeras investigações que vêm sendo realizadas sobre a infância, ainda não se evidenciam mudanças efetivas na organização das instituições que atendem às crianças pequenas (Nunes, Corsino, & Kramer, 2011Nunes, M. F., Corsino, P., & Kramer, S. (Orgs.). (2011). Educação infantil e formação de profissionais no estado do Rio de Janeiro (1999-2009). Rio de Janeiro: Ravil.). Pesquisas apontam que, de modo geral, os professores continuam chegando às salas de aula sentindo-se muitas vezes despreparados, inseguros, reproduzindo, por consequência, as práticas mecânicas e relações de autoridade e dominação a que foram submetidos em sua experiência de alunos (Nunes, Corsino, Kramer, 2011Nunes, M. F., Corsino, P., & Kramer, S. (Orgs.). (2011). Educação infantil e formação de profissionais no estado do Rio de Janeiro (1999-2009). Rio de Janeiro: Ravil.; Micarello, 2006Micarello, H. A. L. S. (2006). Professores da pré-escola: trabalho, saberes e processos de construção de identidade. Tese de Doutorado, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.). Estudos também têm evidenciado a cisão entre teoria e prática como um dos principais fatores para que essa sensação de despreparo se mantenha, sobretudo no que diz respeito ao baixo aproveitamento dos saberes experienciais dos professores durante a formação inicial.

Com o intuito de conhecer uma proposta de formação baseada na concepção democrática de educação, a qual presume que o professor assuma um papel de coautor de seu processo formativo, a experiência do Curso Normal Superior (CNS) do Instituto Superior de Educação Pró-Saber (ISEPS), localizado na zona sul da cidade do Rio de Janeiro, foi escolhida como objeto de investigação. A pesquisa, de abordagem qualitativa, se constituiu em um estudo de caso traduzido em descrição analítica, resultado de um ir e vir do campo às reflexões teóricas. A opção pelo curso do Pró-Saber baseou-se no fato de possuir algumas particularidades que tornam essa experiência singular: (i) a instituição optou por oferecer apenas a habilitação em formação de professores para educação infantil; (ii) a formação docente é feita em serviço, e é pré-requisito para ingressar no curso a atuação dos alunos em instituições de educação infantil da rede pública ou conveniada; (iii) a metodologia se baseia na concepção democrática de educação de Paulo Freire, sendo um dos princípios que norteia essa concepção a tomada de consciência da própria prática; (iv) arte e estética têm um viés estruturante na proposta pedagógica, que prioriza uma formação cultural.

Para responder às indagações que nortearam a investigação, buscou-se, em um primeiro momento, compreender as bases teóricas e metodológicas do CNS e seu funcionamento. Será que esse modelo de formação inicial oferece aos profissionais da educação infantil condições para atuar de forma alinhada às concepções de criança e do trabalho nessa etapa da escolaridade produzidos pelas pesquisas educacionais nas últimas décadas? Que princípios norteiam o trabalho? Que especificidades possui a metodologia adotada pela instituição? Em seguida, buscou-se conhecer os resultados que o curso havia produzido na vida dos alunos que por ali haviam passado. Como os egressos compreendiam a metodologia utilizada? Que mudanças a formação havia propiciado nos aspectos profissional e pessoal?

Os recursos metodológicos utilizados para a pesquisa constituíram-se da leitura de documentos legais e internos, realização de entrevistas semiestruturadas, observação de aulas e aplicação de questionário para os egressos. A leitura exploratória dos documentos internos teve como objetivo levantar dados sobre o funcionamento, a estrutura administrativa, as regras, mas também a fundamentação filosófica e teórica que rege o trabalho da instituição. Buscando ouvir os sujeitos envolvidos nesse processo de formação, foram realizadas entrevistas com egressos, professores, coordenadores e diretores do curso3 3 Os nomes dos professores e alunos apresentados neste trabalho são fictícios. . Com os primeiros, as entrevistas visaram identificar o que eles conseguiam aproveitar da experiência de formação na prática docente; com a equipe pedagógica, ampliaram a análise dos dados e possibilitaram compreender aspectos sobre metodologia, organização das aulas, processo seletivo, entre outros.

Para conferir maior consistência às informações levantadas e possibilitar a triangulação dos dados, foi elaborado um questionário online, enviado aos ex-alunos. O anonimato dos respondentes foi mantido com o intuito de encorajar as pessoas a se expressarem livremente. A taxa de retorno foi de 36,5%. Apesar da expectativa de um retorno maior, a investigação considerou as respostas obtidas, pois apontaram tendências e expressaram pontos de vista importantes para ratificar ou relativizar dados produzidos por outros instrumentos metodológicos. A observação teve como objetivo verificar de que maneira a metodologia descrita nas entrevistas e nos documentos internos acontecia em sala de aula.

Ao longo do artigo, o Pró-Saber e sua metodologia são apresentados em uma interlocução com os autores que embasaram a investigação. Ao final, são destacados alguns achados da pesquisa buscando oferecer possíveis contribuições para o tema da formação de professores de educação infantil.

O Instituto Pró-Saber e o Curso Normal Superior: aquele lugar é abençoado!

A casa que abriga o Pró-Saber fica no Humaitá, bairro da zona sul da cidade do Rio de Janeiro. Não há letreiros, apenas um muro branco, um portão discreto e uma campainha difícil de encontrar. Em contraste com essa aparência externa acanhada, uma vez franqueado o portão, descobre-se um espaço no qual é difícil ficar indiferente.

A sensação de estar “em casa” e o papel de acolhimento que a organização do espaço exerce foram, de diferentes maneiras, manifestados por vários entrevistados. A maior parte dos móveis é tipicamente residencial, remanescentes da moradia anterior, com mesas, aparadores e armários de madeira. A organização do mobiliário e a decoração criam um ambiente propício a encontros e trocas, conversas e confraternizações (Fotos 1 e 2).

Foto 1
Biblioteca
Foto 2
Área de convivência coberta

A instituição foi fundada em 1987, como Centro de Estudos e Atendimentos Psicopedagógicos Pró-Saber, e funciona como clínica psicopedagógica até os dias atuais. O Pró-Saber foi credenciado como instituição de ensino superior em 2004 e passou a oferecer a licenciatura em Magistério na educação infantil. A primeira turma do CNS foi formada em 2005, e desde então o curso já formou 136 alunos em cinco turmas. O quadro docente atual possui 16 professores, nove permanentes e sete horistas. As aulas acontecem de segunda à sexta-feira, das 19 às 22 horas, e aos sábados pela manhã, quinzenalmente.

A concepção democrática de educação traduzida nos instrumentos metodológicos de Madalena Freire4 4 Madalena Freire é arte-educadora e pedagoga. Dedica-se desde 1981 à formação de professores, especialmente de educação infantil. , coordenadora pedagógica do curso, em diálogo com a psicopedagogia, marca o quadro teórico e filosófico no qual se baseia o trabalho, e, de certa forma, pode ser sintetizada na seguinte declaração de Paulo Freire (2014, p. 95)Freire, P. (2014). Pedagogia do oprimido (57a ed.). Rio de Janeiro: Paz e Terra.: “Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo. Os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo”. Para o autor, a concepção democrática de educação exige no seu ensinar:

  • Rigorosidade metódica – do contrário, não há aprendizagem de verdade nem transformação real do sujeito. Sem isso, não há capacidade de intervir no mundo;

  • Pesquisa – não é uma qualidade a mais no professor, e sim uma qualidade inerente à docência;

  • Respeito aos saberes dos educandos;

  • Ética e estética – decência e beleza de mãos dadas;

  • Corporificação das palavras pelo exemplo;

  • Reflexão crítica e contínua sobre a prática;

  • Reconhecimento e assunção da identidade cultural – talvez uma das tarefas mais importantes da prática educativa seja levar o aluno a assumir-se enquanto ser social e histórico em seu papel transformador.

O educador lamenta a negligência para com os sentimentos, a afetividade e mesmo a materialidade do espaço, ou seja, tudo o que fala ao educando, mas que não é conteúdo curricular. Freire (2004)Freire, P. (2004). Pedagogia da autonomia (29a ed.). São Paulo: Paz e Terra. considera que a escuta, tão importante na relação entre educador e educando, acontece quando o professor fala com seu aluno como sujeito de escuta e não como objeto do seu discurso. Para aprender a escuta de acordo com a concepção democrática, o professor precisa de uma formação que aborde as qualidades necessárias à tal postura, que vai se constituindo na prática. Freire destaca algumas dessas virtudes, entre elas: amorosidade, respeito às diferenças, tolerância, humildade, disponibilidade para a mudança, identificação com a esperança e com a justiça.

Nesse sentido, a dimensão afetiva foi apontada repetidas vezes pelos alunos entrevistados como um diferencial entre o curso do Pró-Saber e as experiências acadêmicas vividas anteriormente. Os alunos começam sentindo-se acolhidos pelo espaço físico.

Por mais cansada que estivesse, por mais complicado que o dia fosse, estar lá era sempre muito bom, porque era como se as energias negativas ficassem todas de fora. O espaço, o ambiente, os funcionários de lá, sempre muito agradáveis.

(Viviane – egressa)

A menção frequente dos entrevistados à sensação de estarem em casa, de não terem vontade de ir embora, pode ser explicada pela intencionalidade de construir um espaço vivo, permeado pelas relações. Certamente “a estética é importante, mas, acima de tudo, faz-se necessário ter pessoas que deem alma ao espaço. Ao ser permeado por relações humanizantes, o espaço constitui-se em morada” (Cosmo, 2013Cosmo, J. (2013). Cuidar do espaço para a identidade e autonomia de um grupo. In A. C. Genescá, & L. A. Cid (Orgs.), Pró-Saber: imaginação e conhecimento (pp. 98-99). Rio de Janeiro: Edições Pró-Saber., p. 98).

O reconhecimento do aluno enquanto ser social e histórico traduziu-se na percepção de acolhimento expressada pelos egressos, e na sensação de terem ali uma identidade. Os entrevistados associaram uma formação humana com o fato de serem reconhecidos em sua singularidade, de serem olhados, ouvidos, abraçados, de sentirem-se respeitados.

A gente não vê isso em lugar nenhum, tratar o humano, olhar olho no olho, conhecer aluno pelo nome, ir na sua escola. E aqui valoriza o olho no olho, o nome de cada um, a história, que cada um traz na bagagem, isso faz com que você troque mais com o outro, e nisso a gente cresce.

(Helena – observadora e egressa)

Somos humanos e tratados como indivíduos sem qualquer preconceito, pelo contrário, estimados e provocados para avançar e acreditar que somos capazes.

(Questionário)

Os depoimentos apontam também que, além de se sentirem acolhidos, cada um se sente desafiado a avançar, superar os próprios limites, através da escuta e da troca. Para Freire (2004)Freire, P. (2004). Pedagogia da autonomia (29a ed.). São Paulo: Paz e Terra., a sensibilidade, o querer bem e a alegria fazem parte do fazer docente e não se opõem ao rigor e à autoridade, nem mesmo à formação científica e aos conhecimentos técnicos necessários ao magistério. Esse reconhecimento contribui para elevar a autoestima e o sentimento de valorização profissional. O calor e o acolhimento que os alunos manifestam encontrar no curso estão em consonância com as ideias do autor, para quem a educação não pode ser uma experiência fria e sem alma, alienada de sentimentos, emoções, desejos e sonhos.

Essa base filosófica se traduz no projeto político-pedagógico do curso, organizado de modo que as atividades desenvolvam o rigor metodológico, a reflexão crítica sobre a prática (tanto dos alunos quanto dos professores), de forma ética e estética. O cotidiano vivido pelos alunos do CNS-ISEPS revela que os limites, a disciplina e o estudo intenso não são característicos de uma educação autoritária, mas sim necessários à preservação da liberdade (Freire, 2008Freire, M. (2008). Educador. São Paulo: Paz e Terra.).

Estrutura das aulas e instrumentos metodológicos

Uma das particularidades que despertaram o desejo de aprofundar a investigação diz respeito aos recursos metodológicos utilizados na formação. Para materializar a concepção de educação democrática, as aulas assumem um percurso próprio. Através do trabalho reflexivo coletivo, que consiste em uma espiral de observação, registro, reflexão, avaliação e planejamento, a teoria vai sendo apreendida no fazer e na sua problematização entre pares. O objetivo é que os alunos produzam, ao longo do curso, um conhecimento resultante da teoria na prática, vinculado a um projeto de transformação crítica.

A aula se inicia pela apresentação da pauta das atividades programadas para aquele dia e, em seguida, é feita a chamada. Esta é vista como um dispositivo pedagógico que tem entre seus objetivos destacar não apenas os presentes, mas também os ausentes. Além disso, a chamada pode servir para introduzir a temática ou para chamar à presença para a aula de fato. Uma das professoras entrevistadas afirma que outro objetivo da chamada é ter consciência do grupo que está presente: “Depois que você forma um grupo, todos são peças fundamentais em um quebra-cabeça de construção do conhecimento” (Professora Cristiana).

Segundo a professora, a constituição do grupo exige observação e acompanhamento atento dos docentes, que têm a preocupação de estimular nos alunos o desenvolvimento ou a expressão das qualidades necessárias para o exercício profissional e para a vida, utilizando-se das interações do próprio grupo. Na concepção de leitura freiriana, o mundo é um espaço a ser “lido” e, portanto, o ambiente pedagógico se constitui em um texto a ser interpretado pelo professor. Silêncios, sorrisos, expressões faciais e linguagem corporal compõem esse texto, que o professor precisa aprender a ler.

Retomando a estrutura da aula, após a apresentação das atividades programadas para o dia e a chamada, o professor propõe o que é denominado de pontos de observação – focos de atenção que direcionam os registros imediatos a serem feitos pelos alunos ao longo da aula. Tais focos recaem sobre três aspectos: (i) a própria aprendizagem; (ii) a dinâmica da turma; (iii) a coordenação da aula pelo professor. Todos os alunos têm a tarefa de observar e fazer registros sobre a própria aprendizagem, mas a cada aula é solicitado que um aluno observe a dinâmica, ou seja, como o grupo respondeu aos conteúdos e atividades propostas, e a outro aluno pede-se que observe os aspectos relacionados à condução da aula pelo professor. Esses registros são lidos ao final da aula e se constituem na avaliação para o professor, ajudando-o a adequar seu planejamento.

Além dos registros dos alunos, há um observador que faz parte da equipe docente do curso e é considerado coautor da aula. Sua função, segundo Madalena Freire em entrevista, é iluminar o que o professor não vê. O observador também faz um registro corrido da aula, com ênfase nos aspectos que eventualmente o professor possa ter solicitado, e entrega-lhe esse registro ao final, contribuindo para o processo de avaliação e planejamento docente. Para Ostetto (2012, p. 22)Ostetto, L. E. (Org.). (2012). Educação infantil: saberes e fazeres da formação de professores (5a ed.). Campinas: Papirus., observar uma situação pedagógica requer um olhar “aberto, sensível e acolhedor”, e o exercício da escrita pode contribuir para modificar a forma de olhar as crianças. A autora lembra que o nosso olhar, em geral, está mais focado na falta e na busca de um padrão de comportamento marcado pelo controle do corpo. O exercício da observação ao longo da formação pode contribuir para modificar esse padrão.

Outro componente da aula, a nutrição estética, está alinhado com uma abordagem cultural e com o desenvolvimento de um olhar estético. Esse dispositivo pedagógico é apresentado pela professora Cristiana como

… uma forma de trazer uma inspiração do campo da arte para a aula. Algo que pode ter diretamente a ver com o conteúdo ou não. Pode ser para provocar contemplação, provocar uma emoção, enfim, alguma coisa que você queira compartilhar do campo da arte com as pessoas. Então, a nutrição estética funciona como inspiradora para todo o percurso que eu vou fazer na aula.

Para concretizar esse momento da aula o professor pode lançar mão de recursos como filmes, música, poesia, entre outros, incentivando o grupo a se expressar sobre o que foi despertado em cada um a partir do material apresentado. Em seguida, são desenvolvidas atividades de conteúdo que podem variar em sua forma e, ao final, são lidos os registros sobre os pontos de observação. Esse momento é de suma importância na metodologia, pois, segundo entrevistas com a equipe pedagógica, cumpre, entre outras funções, a de levar os alunos a perceberem como se dá a construção do conhecimento no coletivo, as singularidades na forma de aprender e o exercício da empatia e da cooperação para o crescimento do grupo de maneira harmônica.

Os registros imediatos realizados pelos alunos durante a aula, a partir dos pontos de observação, se convertem em material para a escrita de uma síntese reflexiva como tarefa de casa. O desafio desse exercício foi mencionado diversas vezes pelos alunos entrevistados em função da quantidade de sínteses requisitadas, mas também porque a escrita organiza ideias que muitas vezes estão soltas, sem que o sujeito se dê conta, como é possível constatar no trecho da entrevista a seguir:

Fazer um registro a cada dia foi algo surpreendente. Eu sou fruto de uma educação tradicional. Eu senti muita dificuldade na escrita. Até na construção do pensamento. Eu penso muito antes de falar e na hora da escrita era a mesma coisa. Para mim, as disciplinas que eu tive que escrever mais foram muito difíceis e esse exercício da escrita para mim foi fundamental, até mesmo para passar no concurso.

(Daniel – egresso)

A fala de Daniel encontra eco no questionamento de Ostetto (2012)Ostetto, L. E. (Org.). (2012). Educação infantil: saberes e fazeres da formação de professores (5a ed.). Campinas: Papirus. sobre a dificuldade apresentada pelos professores nesse exercício da escrita. Será que esta dificuldade é decorrente da falta de incentivo em nossa vida escolar para utilizar a escrita como espaço de autoria e reflexão? A autora ratifica que a escrita é um exercício que demanda esforço, disciplina e coragem para estar frente a frente com as próprias dificuldades. Os registros recebem o status de mola central que agiliza o pensamento reflexivo.

O aprendizado do registro é o mais poderoso instrumento na construção da consciência pedagógica e política do educador, pois, quando registramos, tentamos guardar, prender fragmentos do tempo significativamente vivido, para mantê-los vivos como registro de parte de nossa história, de nossa memória.

(Genescá & Cid, 2013Genescá, A. C., & Cid, L. A. (2013). Pró-Saber: imaginação e conhecimento. Rio de Janeiro: Edições Pró-Saber., p. 75)

Para que a síntese reflexiva cumpra papel tão fundamental, o texto é escrito em forma de narrativa – uma comunicação artesanal, portanto única. O registro narrativo possibilita ao professor incluir-se no texto com sua subjetividade, impasses e conflitos, levando seus registros para o campo das possibilidades, uma vez que têm o objetivo de repensar suas práticas. As narrativas articulam o cotidiano ao trabalho reflexivo.

De certa forma, as lições registradas deixam de ser um evento particular para tornar-se experiência compartilhada: autor, personagens e interlocutores encontram no texto um ponto para diálogo e elaboração de reflexões acerca das próprias vivências. Assim, narrar não é um compromisso individual, mas um compromisso eticamente orientado com o mundo.

(Ferreira, Prado, & Aragão, 2015Ferreira, L. H., Prado, V. T., & Aragão, A. M. F. (2015). A formação do professor por suas narrativas: desafios da docência. Revista Hipótese, 1(4), 204-227., p. 213)

As autoras consideram que as reflexões pessoais são produzidas socialmente; carregam, portanto, o coletivo e voltam a ele em um gesto de partilha. A escola pode ser, de fato, espaço privilegiado para o exercício da escrita autoral e de práticas colaborativas tão necessárias para a construção de autonomia e liberdade cidadã. Buscou-se então compreender, com o auxílio das entrevistas, em que consistiam esses registros, a frequência com que ocorriam e de que maneira os alunos percebiam os efeitos dessa escrita.

… quando você faz o registro, está estudando também, vai revendo coisas que aconteceram durante a aula que você vai refletindo, e é importante. Porque quando você faz o registro e lê para os outros amigos durante a aula, isso é uma forma também de que todos participem do teu pensamento, aceitando ou não, mas é uma forma de socializar o que está pensando. Isso também faz com que não só você cresça, mas todos em volta.

(Lara, egressa)

… esse pensar da reflexão acho que é o grande diferencial, que é a partir da reflexão, a partir do registro que você se dá conta do processo, seja do processo de aprendizado como um todo, ou seja do seu próprio processo.

(Felipe, observador)

Os depoimentos apresentados demonstram que o exercício do registro reflexivo é uma forma de se apropriar dos conhecimentos e de compartilhar com seus pares. Essas sínteses parecem se caracterizar por uma retomada da experiência vivida com o distanciamento necessário para compreender as situações de outra maneira e perceber modos distintos de agir. Revisitar certezas sedimentadas e quebrar o velho para acolher o novo. A pesquisa realizada por Ferreira, Prado & Aragão (2015, p. 210)Ferreira, L. H., Prado, V. T., & Aragão, A. M. F. (2015). A formação do professor por suas narrativas: desafios da docência. Revista Hipótese, 1(4), 204-227. apontou que o registro de experiências vividas e narradas “pode alterar a percepção dos professores sobre seu cotidiano de trabalho e permitir a produção, apropriação e circulação de novos saberes educacionais”.

A narrativa é, portanto, um exercício do sujeito histórico-social, que ali se expressa na escolha do que narra e do que silencia. Em convesas com a turma em andamento durante a pesquisa, abordou-se a questão da escrita ao longo do curso. As respostas demonstraram que a escrita é valorizada desde o início. As sínteses são guardadas como material de estudo, pois incluem a articulação com a própria prática, as possibilidades de levar a teoria estudada para o cotidiano e os aportes do professor da disciplina.

O ciclo virtuoso da metodologia se configura então em uma espiral, em que a observação direcionada e a reflexão sobre o que se observou constituem a base para a avaliação e o planejamento, tanto do professor quanto do aluno.

Uma teoria da pessoalidade dentro da teoria da profissionalidade 5 5 Expressão utilizada por Nóvoa (2009, p. 22): “Trata-se de construir um conhecimento pessoal (um autoconhecimento) no interior do conhecimento profissional e de captar o sentido de uma profissão que não cabe apenas numa matriz técnica ou científica”.

Muito se tem dito sobre a impossibilidade de separar as dimensões pessoal e profissional e sobre a ideia de que o que somos atravessa o que ensinamos. Sendo a formação um processo subjetivo, Cunha (2013, p. 619)Cunha, M. I. (2013). O tema da formação de professores: trajetórias e tendências do campo na pesquisa e na ação. Educação e Pesquisa, 39(3), 609-625. reconhece que “… essa experiência inclui as trajetórias de vida, os referentes culturais e os valores sociais em um amálgama de possibilidades de construção da profissionalidade docente, sendo entendida como a profissão em ação”.

Diante da dificuldade que os professores costumam encontrar para identificar seus saberes profissionais e a origem destes, a palavra amálgama parece ser uma chave. No Dicionário Online de Português(2018), amálgamaAmálgama. (2018). In Dicionário Online de Português. Recuperado de https://www.dicio.com.br/amalgama/
https://www.dicio.com.br/amalgama/...
significa “Mistura; fusão perfeita de coisas ou pessoas distintas que formam um todo: É sinônimo de fusão, liga, mistura”. O processo formativo tem como uma das funções trazer à consciência a composição da própria “liga”, e cada um possui a sua. Um dos elementos dessa fusão (de crenças, valores, experiências) é a representação que o futuro professor traz de sua experiência enquanto aluno. Estudos têm concluído que os professores, quando se veem de frente a uma turma de alunos, tendem a agir de acordo com tais representações e que “… esse saber herdado da experiência escolar anterior é muito forte, que ele persiste através do tempo e que a formação universitária não consegue transformá-lo nem muito menos abalá-lo” (Tardif, 2012Tardif, M. (2012). Saberes docentes e formação profissional (14a ed.). Petrópolis: Vozes., p. 20).

O autor destaca que os professores são trabalhadores que permanecem imersos no seu espaço de trabalho por aproximadamente 16 anos, no lugar de alunos. O resultado dessa imersão se manifesta no conjunto de certezas, representações e crenças sobre escola e ensino com que chegam ao campo de atuação: “E, quando começam a trabalhar como professores, são principalmente essas crenças que eles reativam para solucionar seus problemas profissionais” (Tardif, 2012Tardif, M. (2012). Saberes docentes e formação profissional (14a ed.). Petrópolis: Vozes., p. 261).

Sendo difícil identificar os componentes de um amálgama, pode-se inferir que, no tocante aos saberes do ofício docente, tal liga comporta um nível de complexidade prenhe de possibilidades, desdobrando-se na necessidade de um trabalho sobre si mesmo, de autorreflexão, no período da formação, conforme Nóvoa (2009)Nóvoa, A. (2009). Professores: imagens do futuro presente. Lisboa: Educa.. O trabalho a que o autor se refere tem como objetivo trazer à luz da consciência (e, portanto, ao alcance da mudança) os filtros cognitivos sociais e afetivos – oriundos das histórias de vida e do percurso escolar – que terão predomínio na prática quando os docentes se lançarem na profissão.

Nesse sentido, o CNS-ISEPS se estrutura sobre três eixos, que se complementam e intercomunicam ao longo dos três anos de duração do curso: resgate, aprofundamento e ressignificação. O primeiro ano é dedicado justamente ao trabalho de resgate reflexivo da história de vida, especialmente das memórias escolares do aluno/professor. Durante a investigação, esse mergulho na própria subjetividade foi descrito como indispensável para a ressignificação das experiências vividas pelos alunos, proporcionando conhecimento de si mesmo e empoderamento pessoal e profissional. O trabalho de resgate pelo qual os alunos passam parece contribuir para identificar padrões autoritários e adultocêntricos6 6 A expressão “adultocentrismo” vem sendo utilizada por pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento para designar, em analogia ao etnocentrismo, uma abordagem da infância e do mundo social e cultural a partir do ponto de vista do adulto (Kramer, 2005, p. 129). em sua prática, dos quais não se davam conta.

Uma das aulas que mais me chocou foi sobre o desenho, da Madalena, que ela pediu para fazermos um desenho que a gente lembre que tenha desenhado na infância e acho que 90% da turma fez o mesmo desenho.

(Rafaela – aluna da turma em andamento)

A situação descrita pela aluna deixou marcas justamente por ter desvelado o que parecia natural, tornando-a consciente do processo alienante pelo qual havia passado e que repetia com seus alunos até então. Para aprender a olhar o outro para além do aparente é necessário ser capaz de ver a si mesmo.

O eixo de resgate, característico do primeiro ano do curso, contribui não só para a conscientização de padrões que o professor traz em sua bagagem, mas também para uma sensação de acolhimento, aspecto unanimemente citado nas entrevistas e no questionário.

O Pró-Saber não te forma só na área acadêmica, ele te forma também como ser humano, ele te escuta. E o que está dentro de você ainda te impedindo de crescer, ele ajuda a esclarecer. Qual é o lugar de escola que quer te escutar? Só conhecimento não basta para o ser humano evoluir. Porque aqui existem momentos em que vão acolher a sua alma.

(Lara – egressa)

A memória não tem apenas a função de evocar o passado, mas de colocar o presente em uma perspectiva crítica. Segundo Kramer (2007)Kramer, S. (2007). Por entre as pedras: arma e sonho na escola (3a ed.). São Paulo: Ática., é a rememoração que permite romper a condição de autômato do homem, e é na linguagem que se encontra o poder de rememoração da história. Através dela se tece a história no presente. As lembranças dos alunos/professores são compartilhadas por meio de narrativas orais e escritas em sala de aula. Essa arqueologia da memória também contribui para o exercício da empatia e da tolerância com as diferenças, e só pode acontecer em um ambiente onde o sujeito se sinta livre e acolhido. “É essa memória que alicerça a consciência histórica, política e pedagógica desse sujeito” (Freire, 2008Freire, M. (2008). Educador. São Paulo: Paz e Terra., p. 410). Esse entrecruzamento do tempo rompe com a crença de um destino imutável perante um passado igualmente imutável.

A criança e o cotidiano na educação infantil: hoje eu construo a aula junto com as crianças

As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, estabelecidas em 17 de dezembro de 2009, pela Resolução nº 5 da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação (CNE/CEB), constituem documento norteador com objetivo de orientar as instituições de educação infantil na organização e no desenvolvimento de seu projeto político-pedagógico e a elaboração de políticas públicas para a formação de professores. As práticas pedagógicas dessa etapa, como afirma o artigo 9º da Resolução, devem ser baseadas em experiências e ter como eixos norteadores do trabalho as interações e brincadeiras. As estratégias para a aprendizagem, segundo o documento, são as diferentes linguagens, como artes plásticas, poesia, música, teatro, fotografia, tecnologias da comunicação, entre outras.

Em consonância com o documento, Tiriba, Barbosa, & Santos (2013)Tiriba, L., Barbosa, S. N., & Santos, N. (2013). O cotidiano da educação infantil: buscando interações de qualidade. In S. Kramer, M. F. E. Nunes, M. C. Carvalho (Orgs.), Educação infantil: formação e responsabilidade (pp. 279-298). Campinas: Papirus. defendem a necessidade de estabelecer entre as crianças, e entre estas e os adultos, interações de qualidade que possibilitem uma prática humanizadora. As autoras definem prática humanizadora como aquela que institui um cotidiano criativo, amoroso e que legitima a participação das crianças. Essa prática demanda um professor que se veja como responsável e consciente de que a produção de uma rotina de autoritarismo ou liberdade depende da organização desses espaços e tempos. Levar esta perspectiva em conta é preparar cuidadosamente espaços e rotinas para que garantam o respeito ao ritmo, ao interesse e à inventividade das crianças. Essa postura significa romper com o instituído, ou seja, com as práticas adultocêntricas em que os desejos e o olhar das crianças não são considerados, mas sim a submissão e a aplicação de regras e conteúdos preestabelecidos pelos adultos, em uma relação verticalizada.

Buscando compreender se a passagem pelo curso havia produzido mudanças no cotidiano com as crianças, os alunos foram indagados se percebiam alguma diferença entre seu trabalho antes e depois do curso. Respeito foi uma palavra constantemente mencionada nas falas dos entrevistados e também nas respostas do questionário – respeito à cultura da criança, ao ritmo de cada uma e aos seus limites.

Hoje eu vejo o quanto a criança tem de possibilidades e o quanto você deve deixar ela tentar e fazer.

(Rafaela – aluna da turma em andamento)

Antes eu tinha uma postura tradicional. O meu olhar em relação à criança é outro, de ouvir, de olhar para criança com um olhar mais sensível, no que ela está precisando ser estimulada, encorajá-la. … quando a criança chega à creche ela traz uma bagagem dentro de si e nós temos que levar em consideração essa bagagem que a criança traz, suas vivências sua cultura.

(Jade – aluna da turma em andamento)

As falas indicam que a criança é vista como única em sua singularidade e que precisa ser considerada como sujeito ativo de seu desenvolvimento. As práticas engessadas e uma rotina que não considera o interesse e a curiosidade infantil terminam por torná-la muda e invisível. Para que o discurso da criança como produtora de cultura, cidadã de direitos, protagonista do processo de aprendizagem seja uma realidade, é necessário um professor responsável por mediar o conhecimento e criar interações de qualidade, atento às iniciativas das crianças e curioso como elas. Um dos entrevistados descreve o princípio de construção da autoria, que vai se desenvolvendo ao longo da formação:

… a criança como produto e produtora de cultura, aquela que pode, que tem a possibilidade não pela falta, mas sim aquela que constrói a todo momento e é construída pela cultura também. Eles sempre focaram na produção. Tem que ser da criança. Então em uma concepção de educação democrática a professora não vai poder pegar a mão da criança e colocar ali como que para finalizar o trabalho. (Daniel – egresso)

A abordagem sociocultural adotada pelos docentes da instituição investigada contribui para que os professores situem a criança em seu contexto, se interessem por sua história, respeitando suas limitações e estimulando suas potencialidades. A partir das entrevistas e observações foi possível constatar que os professores do Pró-Saber compreendem a educação infantil como espaço de viver experiências através de brincadeiras e interações, com respeito ao ritmo e à produção dos pequenos, mas sobretudo como lugar de ser feliz.

Se a pré-escola tem como desafio resistir a uma perspectiva escolarizante, a creche ainda tem muito presente a marca da função social de assistência. Uma das alunas relata que se surpreendeu com as possibilidades no trabalho com bebês e que o exercício de observação e de abertura sensível ao longo do curso a ajudou a perceber o potencial latente das crianças da sua turma do berçário.

Uma coisa que sempre me encucou muito era como fazer isso com o berçário. A gente percebe que é possível, tem possibilidades, tem brechas e eles vão dando as pistas e aí sim, você precisa ter esse olhar muito apurado, que a gente vai desenvolvendo através da nutrição estética, das observações. Observação com foco, mais aberta, isso tudo vai fazendo com que você fique mais sensível e mais atenta aos movimentos e interesses da criança.

(Rafaela – aluna da turma em andamento)

Guimarães (2009, p. 105)Guimarães, D. (2009). Na creche, o diálogo como ética: caminhos para o diálogo com bebês. In S. Kramer (Org.), Retratos de um desafio: crianças e adultos na educação infantil (pp. 95-108). São Paulo: Ática. aponta o olhar como referência nas interações com os bebês. “O mergulho nas possibilidades das coisas e no chamamento do mundo é conduzido e possibilitado pelo olhar, que muitas vezes vai do objeto para o adulto e deste para o objeto, quando a criança está indo em direção ao novo”.

Outro aspecto mencionado nas entrevistas com os egressos foi o fato de terem adquirido maior consciência da importância do próprio trabalho e consequentemente da responsabilidade que carregam. Os entrevistados reafirmaram o compromisso com as marcas que sabem que vão deixar na vida de cidadãos de pouca idade, cientes de que seu trabalho afeta a criança para a vida, e não apenas durante o período letivo passado com ela.

Talvez em consequência da sensação de acolhimento que declararam ter sido tão marcante, grande parte dos egressos manifestou uma mudança na compreensão da infância e na forma de olhar as crianças, assumindo um olhar mais responsável, respeitoso e amoroso. A formação cultural, marca basal do curso, também foi apontada como uma das grandes contribuições para essa mudança.

E isso eu aprendi lá, a questão de valorizar a cultura que cada criança traz de casa. Acho que é isso que eles queriam que a gente entendesse; a forma como eles lidavam com a gente, assim nós teríamos de lidar com o aluno, com o que ele traz de casa.

(Marcia – egressa)

A formação cultural: eu não sabia que Picasso tinha se inspirado nas máscaras africanas!

A formação cultural tem sido proposta como caminho fundamental para ajudar o professor a construir um cotidiano marcado por acolhimento sensível, escuta, criatividade e respeito à diversidade. Kramer (2005)Kramer, S. (Org.). (2005). Profissionais de educação infantil: gestão e formação. São Paulo: Ática. aponta essa formação em uma perspectiva humanizadora, “… que pode favorecer experiências com a arte, a literatura, a música, o cinema o teatro, a pintura, os museus, as bibliotecas e que é capaz de nos humanizar e fazer compreender o sentido da vida além da dimensão didática do cotidiano” (Kramer, 2005Kramer, S. (Org.). (2005). Profissionais de educação infantil: gestão e formação. São Paulo: Ática. p. 223).

Se entendemos o papel do professor não como mero transmissor de conteúdo, mas como mediador de culturas, é necessário que a formação ofereça oportunidades para esse profissional ser um produtor de cultura ao mesmo tempo que nela é produzido, de maneira crítica e reflexiva. Vivemos em um mundo multicultural, e as diferenças, em vez de serem vistas como enriquecedoras, têm se transformado em barreiras na convivência entre os homens (Carvalho, 2001Carvalho, C. (2001). Cidadania cultural e formação de professores. Educação e Realidade, 26(2), 75-87. Recuperado de http://seer.ufrgs.br/index.php/educacaoerealidade/article/view/26139/15254
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). É no espaço da escola, no convívio com as diferenças, que se constrói a democracia e a cidadania. O contato – ou a convivência – com a cultura acumulada ao longo da história humana suscita reflexões sobre o sentido da vida e sobre o nosso papel na sociedade, possibilitando o estreitamento das relações humanas (Kramer, 1998Kramer, S. (1998). O que é básico na escola básica? Contribuições para o debate sobre o papel da escola na vida social e na cultura. In S. Kramer, & M. I. Leite (Orgs.), Infância e produção cultural (pp. 11-24). Campinas: Papirus.).

É importante destacar o lugar de onde a formação cultural é abordada neste trabalho. Para Carvalho (2016)Carvalho, C. (2016). Quando a escola vai ao museu. Campinas: Papirus., o conceito de cultura pode indicar aquilo que identifica um grupo social ou indivíduo, portanto, “…parece ser um bom instrumento para compreender as diferenças entre os homens e as sociedades”, uma vez que o humano é um ser de cultura (Carvalho, 2016Carvalho, C. (2016). Quando a escola vai ao museu. Campinas: Papirus., p. 23). Na perspectiva da autora, embora a cultura tenha sido utilizada como instrumento de estratificação social – especialmente no século XX, quando houve marcadamente a separação entre a cultura das elites e a popular –, esse conceito hierarquizante vem sendo problematizado. A cultura mundializada trouxe certa permeabilidade entre os mundos ditos de alta cultura e o da cultura de massa. Se antes a tradição e as artes eram vistas como fonte de legitimidade cultural, hoje o fenômeno de circulação de públicos e de um consumo cultural eclético evidencia que estas instâncias se diluem em um hibridismo. Autores contemporâneos entendem que não se pode mais falar em uma cultura legítima única, e defendem uma “coexistência plural das manifestações culturais” (Carvalho, 2016Carvalho, C. (2016). Quando a escola vai ao museu. Campinas: Papirus., p. 31). Com base nesses pressupostos foram analisados os dados produzidos no trabalho de campo.

Conforme mencionado anteriormente, a abordagem cultural do CNS-ISEPS assume papel central, tanto na proposta pedagógica quanto para os alunos. Em função dessa centralidade, uma das perguntas que norteou a investigação era: como um curso para formar professores de educação infantil poderia abordar a arte sem um cunho instrumentalizador ou hierarquizante? O Pró-Saber compreende a arte e as manifestações culturais como direito humano, constituinte do sujeito, que, segundo Madalena Freire (2008)Freire, M. (2008). Educador. São Paulo: Paz e Terra., é sensível, estético e em constante busca pelo belo. A preocupação em propiciar o contato com a arte e as manifestações culturais atravessa a instituição e o curso de diferentes maneiras e confere uma marca, um posicionamento claro em relação à importância atribuída ao desenvolvimento de um olhar sensível. O cuidado estético com o espaço físico, a nutrição estética como dispositivo pedagógico nas aulas e uma disciplina denominada Alfabetização Cultural evidenciam a relevância desse aspecto no projeto político-pedagógico da instituição. A professora Marília destaca que o conceito de alfabetização em que se baseiam, apesar da polêmica em torno da expressão, é de Paulo Freire, segundo o qual somos eternos aprendizes e estamos em formação a vida inteira.

A disciplina Alfabetização Cultural foi percebida de maneira unânime pelos alunos e ex-alunos do curso como indispensável, não só para a vida profissional, mas para uma formação humana, reiterando as ideias defendidas por teóricos que sustentam a pesquisa nesse campo (Carvalho, 2001Carvalho, C. (2001). Cidadania cultural e formação de professores. Educação e Realidade, 26(2), 75-87. Recuperado de http://seer.ufrgs.br/index.php/educacaoerealidade/article/view/26139/15254
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, 2016Carvalho, C. (2016). Quando a escola vai ao museu. Campinas: Papirus.; Ostetto, 2012Ostetto, L. E., & Leite, M. I. (2012). Arte, infância e formação de professores (7a ed.). Campinas: Papirus.; Kramer, 1998Kramer, S. (1998). O que é básico na escola básica? Contribuições para o debate sobre o papel da escola na vida social e na cultura. In S. Kramer, & M. I. Leite (Orgs.), Infância e produção cultural (pp. 11-24). Campinas: Papirus., 2005Kramer, S. (Org.). (2005). Profissionais de educação infantil: gestão e formação. São Paulo: Ática., entre outros). A disciplina é oferecida ao longo dos seis semestres do curso, quinzenalmente, e parte do programa é cumprido através da frequência a eventos culturais diversos, tais como cinema, teatro, museus. As atividades propostas visam:

… proporcionar um mergulho nas diferentes linguagens artísticas, ampliar a inserção no espaço público cultural, provocar o estranhamento em relação aos conhecimentos consolidados, despertar a vontade de saber mais sobre as formas que adultos e crianças têm de se expressar no mundo e sobre o mundo, entrelaçar a memória individual com a memória coletiva e com a História, problematizar o conceito de cultura e as concepções de arte e cultura presentes nas instituições de ambientes culturais, analisar criticamente produções culturais voltadas para o público infantil, descobrir e planejar maneiras de ampliar a experiência das crianças com diferentes manifestações culturais.

(Genescá & Cid, 2013Genescá, A. C., & Cid, L. A. (2013). Pró-Saber: imaginação e conhecimento. Rio de Janeiro: Edições Pró-Saber., p. 29)

Buscando compreender a presença de uma disciplina com foco específico na formação cultural, as entrevistas com a equipe pedagógica abordaram a função de tal disciplina e o modo como se concretizam as atividades. A professora Cristiana explicou que “a arte é valorizada pelo que ela provoca, de cada um se ver, reconhecer aspectos que muitas vezes racionalmente não nos damos conta”. Na busca por uma formação humanizada, assinalada pela fundadora da instituição em entrevista, a educação estética possibilita ir além da dimensão cognitiva e do trabalho intelectual, mobilizando a percepção e os sentidos do sujeito.

Na entrevista, a professora da disciplina Alfabetização Cultural explicou que, em um processo de formação, a proposta é que essas saídas tenham um cunho reflexivo; deste modo, antes das atividades externas há uma contextualização.

… tinha um preparo antes. Nós vamos assistir Deborah Colker. Por quê? Quem é? … Aí foi toda uma aula específica sobre ela, apresentando os passos únicos que são só da coreografia dela. E quando fomos ao Teatro Municipal veio uma pessoa que cantava ópera há 50 anos atrás contar toda história do Teatro, como era na época.

(Teresa – egressa)

Foi maravilhoso! Você não ia apenas para saídas culturais, você fazia um trabalho pré na sala de aula. A professora trazia por exemplo Monet. Falávamos sobre Monet, o que a gente conhecia sobre e depois ia para a exposição. Então era assim que funcionava: você relacionava a teoria com a prática, que eram as saídas culturais.

(Lara – egressa)

Lara e Teresa descrevem o trabalho de preparação que era feito antes das saídas culturais com o intuito de “ajudá-los a olhar” e não em um sentido de dirigir o olhar, influenciar as opiniões. Os alunos entendem que saber um pouco sobre a vida de Monet, de Tarsila ou de Frida7 7 Claude Monet (1840-1926) – pintor francês impressionista; Tarsila do Amaral (1886-1973) – pintora brasileira, representante do movimento modernista; Frida Kahlo (1907-1954) – pintora mexicana. ajudava a contextualizar historicamente o que viam, contribuía para uma reflexão crítica.

Após as atividades externas, a aula também é dedicada à troca de impressões, sentimentos e reflexões acerca do que foi vivenciado, fazendo a experiência coletiva enriquecer a individual. Essa partilha configurada em um conjunto de narrativas é o que possibilita a transformação da vivência individual em experiência coletiva. Nesta perspectiva, a arte precisa estar presente nos currículos de formação de professores não através do ensino de técnicas e receitas, mas na forma de experiências estéticas que adquiram sentidos construídos coletivamente (Ostetto & Leite, 2012Ostetto, L. E., & Leite, M. I. (2012). Arte, infância e formação de professores (7a ed.). Campinas: Papirus.). O que importa, então, não é o quanto se conhece sobre as diversas formas de expressão cultural, mas o efeito que elas causam.

Nesse sentido, defendo a necessidade urgente de professores e profissionais da educação poderem ter sua formação cultural aprimorada, emancipada, expandida criticamente para além de treinamentos formais, por meio de experiências reais vividas em museus e outros espaços de cultura, para que possam conhecê-los, aprender com eles, aprender com a história guardada, falada ou calada nesses espaços, com seus objetos, e para que possam compartilhar tais experiências com crianças, jovens e adultos com quem estejam naquele momento convivendo em escolas dos mais diferentes tipos e instâncias.

(Kramer, 1998Kramer, S. (1998). O que é básico na escola básica? Contribuições para o debate sobre o papel da escola na vida social e na cultura. In S. Kramer, & M. I. Leite (Orgs.), Infância e produção cultural (pp. 11-24). Campinas: Papirus., p. 211)

Um dos objetivos do trabalho de campo era verificar se a formação cultural tinha alguma influência, do ponto de vista pessoal e profissional, na vida dos egressos e de que maneira a disciplina dialogava com as diferentes culturas que cada um trazia. O que significou para os alunos o acesso a ambientes culturais que muitos desconheciam? Fez diferença terem ido juntos a esses espaços? As atividades desenvolvidas na disciplina repercutiram no trabalho com as crianças? E na vida pessoal?

Na percepção dos entrevistados, uma das primeiras mudanças que as atividades propiciaram foi no próprio conceito de cultura e na apropriação do direito de frequentar espaços culturais – que não eram compreendidos antes como próprios.

Desmistificou que os espaços visitados não são para mim.

(Questionário)

Alfabetização Cultural foi como um trampolim de coragem, porque ficávamos sempre muito tímidas, às vezes passava na rua e via alguma obra de arte, alguém cantando alguma coisa e ficava meio assim “Ah não, isso aí não é para mim” tinha aquele bloqueio. Depois que fomos ao Teatro (Municipal do Rio de Janeiro) acho que foi quando abriram as cortinas literalmente, porque foi uma abertura mesmo para a sensibilidade. E aí nós educadores como pessoas nos tornamos sensíveis, automaticamente nos tornamos sensíveis também na prática. Acontece tudo ao mesmo tempo.

(Maíra – aluna da turma em andamento)

Percebe-se um movimento de “olhar para dentro” ao mesmo tempo que se olha para fora. À medida que os alunos do CNS-ISEPS iam vivendo as experiências e tendo contato com culturas e linguagens diversas, afirmaram que iam percebendo o quanto todo esse processo ampliava sua visão de mundo e de si mesmos. O desconforto que um choque cultural poderia provocar ou a hierarquização de um tipo de cultura em detrimento de outras levou a indagar de que maneira as culturas dialogavam durante as aulas.

Dialoga, dialoga. … Eu acho que o Pró-Saber, a partir desse olhar sensível em cima da cultura, da vivência de cada um, quis ampliar essa cultura, porque valoriza isso, sabe que é importante para o ser humano.

(Lara – egressa)

Porque, às vezes, você está acostumando só naquele mundinho ali, que é da televisão. Então acho que abre um leque de possibilidades para você enriquecer suas escolhas. … Não tem esse preconceito, muito pelo contrário. O professor acolhe o que ela sabe, e aí vai fazendo uma junção das duas coisas.

(Luana – observadora e egressa)

Então a arte aqui é como se fosse a porta de entrada para o mundo. Tem gente que não tem acesso nenhum. Chega aluna aqui que nunca foi num teatro, nunca foi num museu; aí amplia.

(Helena – observadora e egressa)

Os depoimentos indicam que a percepção dos alunos não é de invasão ou imposição cultural, mas de ampliação no leque de escolhas e nas possibilidades de fruição. Segundo Carvalho & Porto (2013, p. 134)Carvalho, C., & Porto, C. (2013). Crianças e adultos em museus e centros culturais. In S. Kramer, M. F. Nunes, & M. C. Carvalho (Orgs.), Educação infantil: formação e responsabilidade (pp. 133-150). Campinas: Papirus., “se poucas pessoas têm acesso a obras clássicas, isso não significa, necessariamente, que não as queiram em sua vida, mas sim que são privadas de conhecê-las”. A ampliação das referências culturais pelo acesso a museus, exposições, teatro, espetáculos de música, entre outros, através de experiências reflexivas e vividas coletivamente, foi percebida pelos entrevistados como a abertura de uma janela para o mundo.

A concretização dessas atividades proporcionou também a compreensão de que o ser cognoscente não aprende apenas cognitivamente, mas de maneira integral, com o corpo e as dimensões afetiva e estética. Os alunos declararam outro entendimento de cultura: como direito do cidadão, um direito que permite trocar, dialogar e questionar a realidade da qual fazemos parte, que nos forma e que queremos transformar. Porém, conforme destaca Carvalho (2001)Carvalho, C. (2001). Cidadania cultural e formação de professores. Educação e Realidade, 26(2), 75-87. Recuperado de http://seer.ufrgs.br/index.php/educacaoerealidade/article/view/26139/15254
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, a formação de professores não tem valorizado essa possibilidade

A experiência cultural suscita perguntas, provoca a reflexão crítica de valores e contribui não só para a formação do profissional de educação, mas do sujeito. E a escola, em geral, não tem valorizado ou se utilizado desse aspecto em sua possibilidade de formação de profissionais da educação. (p. 76)

Considerações finais

No desenvolvimento da pesquisa foi possível perceber que o professor possui um conhecimento acerca da profissão que paradoxalmente desconhece, ou muitas vezes desvaloriza. Em inúmeros depoimentos os egressos declararam que, dentre os benefícios de ter passado pelo curso, um deles foi poder dar nome ao que já sabiam e faziam. Essa percepção contribuiu para o empoderamento e a elevação da autoestima, indicando que o encontro da teoria com a prática ajuda o professor a construir um repertório pessoal de alternativas para enfrentar a realidade do cotidiano, fortalecendo a confiança no próprio trabalho. Esse repertório de saberes experienciais pode conferir voz e representatividade ao profissional da educação que tem sido relegado a um papel passivo de executor das teorias criadas longe do chão da escola.

O registro na forma de narrativa, atividade recorrente na formação do grupo aqui investigado, constitui processo de autoria que marca posicionamentos diante da realidade e caminhos escolhidos pelo professor em seu trabalho. Conforme destacam Ferreira, Prado, & Aragão (2015)Ferreira, L. H., Prado, V. T., & Aragão, A. M. F. (2015). A formação do professor por suas narrativas: desafios da docência. Revista Hipótese, 1(4), 204-227., a postura reflexiva diante do cotidiano não é um gesto natural do educador, mas uma prática social que precisa ser desenvolvida. A pesquisa demonstrou que, apesar de trabalhoso, o registro regular e reflexivo (aquele sobre o qual o escritor volta a se debruçar e analisar) traz um potencial emancipador, pois permite a tomada de consciência de pensamentos, sentimentos e valores que norteiam seu trabalho. “O registro permite romper a anestesia diante de um cotidiano cego, passivo ou compulsivo, porque obriga a pensar” (Freire, 2008Freire, M. (2008). Educador. São Paulo: Paz e Terra., p. 58).

O fato de serem estimulados a encontrar a própria voz ao longo do curso, além do trabalho árduo que a formação demanda, certamente contribui para que os egressos se sintam mais confiantes e valorizados enquanto sujeitos. Tal conquista foi creditada à formação humana, e a dimensão afetiva ganha destaque nesse processo. Cabe ressaltar que este aspecto se configura como uma contribuição do Pró-Saber para os cursos de formação de professores: o resgate da afetividade, a fim de derreter a frieza do puro intelectualismo, ousando falar de afeto na academia, pois, conforme ensina Freire (1997, p. 8)Freire, P. (1997). Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar. São Paulo: Olho D’água., “É impossível ensinar sem a capacidade forjada, inventada, bem cuidada de amar”.

Faz-se necessário destacar que o fato de o curso contar com apenas uma turma contribui para a aproximação entre o corpo docente e os alunos, bem como para um acompanhamento individualizado e, ao mesmo tempo, um olhar sobre o grupo. Além do número reduzido de alunos, a habilitação única, que permite a formação em serviço e a partilha de experiências, foi apontada como inconveniente para os que desejavam exercer a profissão em outro segmento.

O trabalho de campo também demonstrou que o CNS-ISEPS possibilita que os alunos tomem consciência do seu papel e da importância da intencionalidade na ação pedagógica para a produção de um cotidiano participativo, significativo e amoroso com as crianças. A concepção de infância e educação infantil alinhada com os documentos orientadores, e adotada pela instituição, parece levar os educadores a considerar as crianças como sujeitos no processo educativo, desenvolvendo um olhar e uma escuta atenciosos.

Percebeu-se também que uma formação cultural e estética contribui para que os professores ampliem o leque de possibilidades no trabalho com as diferentes linguagens. O estímulo à autoria e as experiências culturais no processo formativo do grupo investigado modificaram a prática dos alunos. Vários depoimentos demonstraram o desejo de partilhar com as crianças as descobertas que iam realizando. Esse desejo de compartilhar e transformar o cotidiano com as crianças, bem como as mudanças nos próprios hábitos de lazer familiar expressas nos depoimentos, confirmam que uma formação que inclua a dimensão cultural e estética favorece a quebra de um ciclo de exclusão sociocultural, ainda marcante na sociedade brasileira. Há muito a ser feito com relação a esse viés da formação docente; são necessárias políticas educacionais que incluam a dimensão cultural de maneira sistematizada e problematizadora nos cursos de formação. Da mesma forma, políticas públicas que valorizem, priorizem e organizem o acesso permanente a diferentes manifestações culturais podem contribuir para atenuar o quadro de desigualdade social no país e devolver aos cidadãos e cidadãs o direito de partilhar e enriquecer-se culturalmente.

Diante do exposto, é possível afirmar que políticas educacionais que respeitem a autonomia do professor e não condicionem sua liberdade – sem excluir uma fundamentação teórica consistente – criam condições favoráveis para que cada profissional encontre sua forma, adequada à sua realidade e que permitirá que o trabalho tenha por resultado a aprendizagem efetiva dos alunos. Não obstante, a pesquisa evidenciou que no processo de formação de professores não deveria estar ausente a dimensão afetiva, incluindo uma formação cultural e uma articulação entre teoria e prática de maneira mais efetiva.

Por último, vale lembrar que a formação é direito de todos os professores e que o eixo norteador de uma proposta de formação que considere os saberes e valores dos profissionais é a reflexão crítica sobre a prática, com a cultura atravessando todo o processo formativo e a possibilidade de estabelecer momentos de troca entre os pares na construção do conhecimento.

  • 1
    Apoio: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
  • 2
    Normalização, preparação e revisão textual: Mônica Silva (Tikinet) – revisão@tikinet.com.br
  • 3
    Os nomes dos professores e alunos apresentados neste trabalho são fictícios.
  • 4
    Madalena Freire é arte-educadora e pedagoga. Dedica-se desde 1981 à formação de professores, especialmente de educação infantil.
  • 5
    Expressão utilizada por Nóvoa (2009, p. 22)Nóvoa, A. (2009). Professores: imagens do futuro presente. Lisboa: Educa.: “Trata-se de construir um conhecimento pessoal (um autoconhecimento) no interior do conhecimento profissional e de captar o sentido de uma profissão que não cabe apenas numa matriz técnica ou científica”.
  • 6
    A expressão “adultocentrismo” vem sendo utilizada por pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento para designar, em analogia ao etnocentrismo, uma abordagem da infância e do mundo social e cultural a partir do ponto de vista do adulto (Kramer, 2005Kramer, S. (Org.). (2005). Profissionais de educação infantil: gestão e formação. São Paulo: Ática., p. 129).
  • 7
    Claude Monet (1840-1926) – pintor francês impressionista; Tarsila do Amaral (1886-1973) – pintora brasileira, representante do movimento modernista; Frida Kahlo (1907-1954) – pintora mexicana.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    03 Jan 2018
  • Aceito
    23 Jan 2018
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