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Plasticidade neural: relações com o comportamento e abordagens experimentais

Neural plasticity: relations with behavior and experimental approaches

Resumos

As interações entre os estímulos ambientais e as respostas de um organismo determinam as propriedades comportamentais que lhe garantem adaptação a diferentes situações e individualidade comportamental. A interação organismo-ambiente também diferencia e molda os circuitos neurais, que caracterizam a plasticidade e a individualidade neural do organismo. Os estudos sobre plasticidade neural incluem aqueles que manipulam o ambiente e analisam mudanças em circuitos neurais e outros que enfatizam recuperação comportamental após lesão do sistema nervoso. Diferentes questões relativas à fisiologia e ao comportamento, como também à morfologia, à bioquímica e à genética, são abordadas. Este trabalho procura caracterizar diferentes abordagens no estudo da plasticidade neural, indicando as suas relações com a análise do comportamento e da aprendizagem. A investigação dos efeitos que a interação organismo-ambiente produz sobre os sistemas neurais subjacentes ao comportamento é enfatizada como interessante.

comportamento; plasticidade neural; sistema nervoso; aprendizagem


Behavioral adaptiveness to different situations as well as behavioral individuality result from the interrelations between environmental sitmuli and the responses of an organism.These kind of interrelationships also shape the neural circuits as well as characterize the plasticity and the neural individuality of the organism. Studies on neural plasticity may analyze changes in neural circuitry after environmental manipulations or changes in behavior after lesions in the nervous system. Issues on neural plasticity and recovery of function refer both to physiology and behavior as well as to the subjacent mechanisms related to morphology, biochemistry and genetics. They may be approached at the systemic, behavioral, cellular and molecular levels. This work intends to characterize these kinds of studies pointing to their relations with the analyis of behavior and learning.The analysis of how the environmental-organismic interrelationships affect the neural substrates of behavior is pointed as a very stimulating area for investigation.

behavior; neural plasticity; nervous system; learning


Plasticidade Neural:

Relações com o Comportamento e Abordagens Experimentais11 Apoio Financeiro: CNPq, proc. 300975/89-9; CAPES- Bolsas de Mestrado e Doutorado, (Pós-graduação em Ciências Biológicas-Fisiologia, IB, UNICAMP).

Elenice A. de Moraes Ferrari21 Apoio Financeiro: CNPq, proc. 300975/89-9; CAPES- Bolsas de Mestrado e Doutorado, (Pós-graduação em Ciências Biológicas-Fisiologia, IB, UNICAMP). , Margarete Satie S. Toyoda e Luciane Faleiros

Universidade Estadual de Campinas

Suzete Maria Cerutti

Universidade Estadual de Campinas e Universidade São Francisco

RESUMO - As interações entre os estímulos ambientais e as respostas de um organismo determinam as propriedades comportamentais que lhe garantem adaptação a diferentes situações e individualidade comportamental. A interação organismo-ambiente também diferencia e molda os circuitos neurais, que caracterizam a plasticidade e a individualidade neural do organismo. Os estudos sobre plasticidade neural incluem aqueles que manipulam o ambiente e analisam mudanças em circuitos neurais e outros que enfatizam recuperação comportamental após lesão do sistema nervoso. Diferentes questões relativas à fisiologia e ao comportamento, como também à morfologia, à bioquímica e à genética, são abordadas. Este trabalho procura caracterizar diferentes abordagens no estudo da plasticidade neural, indicando as suas relações com a análise do comportamento e da aprendizagem. A investigação dos efeitos que a interação organismo-ambiente produz sobre os sistemas neurais subjacentes ao comportamento é enfatizada como interessante.

Palavras-chave: comportamento; plasticidade neural; sistema nervoso; aprendizagem.

Relations With Behavior And Experimental Approaches

ABSTRACT - Behavioral adaptiveness to different situations as well as behavioral individuality result from the interrelations between environmental sitmuli and the responses of an organism.These kind of interrelationships also shape the neural circuits as well as characterize the plasticity and the neural individuality of the organism. Studies on neural plasticity may analyze changes in neural circuitry after environmental manipulations or changes in behavior after lesions in the nervous system. Issues on neural plasticity and recovery of function refer both to physiology and behavior as well as to the subjacent mechanisms related to morphology, biochemistry and genetics. They may be approached at the systemic, behavioral, cellular and molecular levels. This work intends to characterize these kinds of studies pointing to their relations with the analyis of behavior and learning.The analysis of how the environmental-organismic interrelationships affect the neural substrates of behavior is pointed as a very stimulating area for investigation.

Key words: behavior; neural plasticity; nervous system; learning.

As interações organismo-ambiente vivenciadas por um indivíduo determinam fundamentalmente a topografia e a função de suas respostas. As relações entre os eventos ambientais e as respostas do organismo podem estabelecer contingências, ou seja, relações condicionais entre classes de comportamento e as classes de estímulos que lhes são antecedentes ou conseqüentes.

Em cada espécie, os indivíduos têm um repertório comportamental que, de um lado, resulta da interação entre as contingências filogenéticas e ontogenéticas. As contingências filogenéticas atuaram durante a evolução e selecionaram classes de comportamento favoráveis à sobrevivência dessa espécie; as contingências ontogenéticas foram estabelecidas pelas interações particulares desse organismo com o seu ambiente, desde o início do seu desenvolvimento e selecionaram as classes de respostas eficazes para a adaptação a um ambiente que muda constantemente. Neste sentido, pode-se afirmar que o comportamento de um indivíduo é produto de sua história filogenética, ontogenética e cultural (Bussab, 2000; Catania, 1999; Skinner, 1981).

As mesmas pressões evolutivas que determinaram as mudanças na topografia e na função das reações do indivíduo ao ambiente também determinaram alterações na forma, no tamanho e nas funções do sistema nervoso. O processo evolutivo resultou em cérebros com uma abundância de circuitos neurais que podem ser modificados pela experiência (Carlson, 2000). Assim, a interação sistema nervoso-ambiente resulta na organização de comportamentos simples ou complexos que modificam tanto o ambiente como o próprio sistema nervoso. Essa capacidade denota a plasticidade do sistema nervoso, ou seja, a plasticidade neural que está presente em todas as etapas da ontogenia, inclusive na fase adulta e durante o envelhecimento. A capacidade de modificação do sistema nervoso em função de suas experiências, tanto em indivíduos jovens como em adultos, foi reconhecida apenas nas últimas décadas (Rosenzweig, 1996).

O presente trabalho pretende indicar as relações entre os processos comportamentais e a plasticidade neural, caracterizando as abordagens no estudo experimental da plasticidade neural que evidenciam essas relações. Procurar-se-á demonstrar que a plasticidade neural é determinada por interações organismo-ambiente e está diretamente relacionada com a plasticidade comportamental, característica dos processos de aprendizagem e memória (Cerutti, Cintra, Diáz-Cintra & Ferrari, 1997; Cerutti & Ferrari, 1995a, 1995b; Cerutti, Ferrari & Chadi, 1997; Eichenbaum, 1999; Izquierdo, Medina, Vianna, Izquierdo & Barros, 1999; Tsukahara, 1981).

Comportamento e Plasticidade Neural

No estudo do comportamento, um dos princípios básicos afirma que as propriedades funcionais do comportamento são determinadas pelas relações, simples ou complexas, entre os estímulos e as respostas de um organismo (Skinner, 1981). São essas relações que definem as contingências de reforçamento que alteram a freqüência de classes de respostas. Os objetivos primordiais da análise do comportamento relacionam-se com a identificação, a descrição e a programação de relações condicionais que estabelem e controlam a probabilidade de classes de comportamento (Baum, 1999; Catania, 1999).

As pesquisas orientadas por tais objetivos permitiram o acúmulo de um conjunto de dados e procedimentos com sólida fundamentação experimental e conceitual (Catania, 1999), cuja importância abrange não apenas as questões investigadas pela Psicologia, mas também questões de outras disciplinas científicas. Para citarmos um exemplo, a metodologia e os conceitos derivados da análise do comportamento têm fornecido a possibilidade de linhas de base comportamentais adequadas para as investigações dos mecanismos biológicos subjacentes ao comportamento. Assim, a validade do conhecimento científico sobre o comportamento transcende os limites da Psicologia como disciplina científica específica e integra-se a áreas de conhecimento com caráter multidisciplinar. Nesse sentido é que se desenvolveram as disciplinas denominadas Psicofarmacologia, Psicobiologia e Psicofisiologia.

Mais recentemente, o desenvolvimento científico dessas e de outras áreas propiciaram o surgimento de uma nova disciplina científica integradora de metodologias e conceitos neurofisiológicos, psicológicos, farmacológicos, bioquímicos, anatômicos e genéticos: a neurociência. O seu princípio básico é que o ambiente físico e social determina a atividade de células neurais, cuja função, por sua vez, determina o comportamento (Kandel, Schwartz & Jessell, 1995; Strumwasser, 1994). O ambiente fornece estímulos/informações que são captados por receptores sensoriais e convertidos em impulsos elétricos, que são analisados e utilizados pelo sistema nervoso central para o controle de respostas vegetativas, motoras e cognitivas. Essas respostas constituem os padrões comportamentais que atuam sobre e modificam esse ambiente.

Do mesmo modo que o comportamento altera a probabilidade de outros comportamentos (Catania, 1999), a atividade neural altera a probabilidade das funções neurais. Uma das evidências para este fato é que tanto as situações de mera exposição à estimulação ambiental quanto às situações de treinamento sistemático em aprendizagem resultam em alterações no comportamento e nos circuitos neurais (Rosenzweig, 1996). Ou seja, subjacentes aos processos comportamentais de aprendizagem e de memória encontram-se as alterações funcionais e morfológicas que ocorrem no sistema nervoso e que caracterizam a plasticidade neural (Cuello, 1997). Desse modo, verifica-se que os processos comportamentais e os processos de plasticidade neural possuem relações mais estreitas e complexas do que se supôs durante muito tempo.

Em resumo, considera-se que tal como o ambiente diferencia e modela a forma e função das respostas de um organismo, a interação organismo-ambiente também diferencia e molda circuitos e redes neurais. Cada indivíduo tem um padrão comportamental característico, resultante de sua história pessoal de reforçamento, assim como tem um sistema nervoso com características próprias, resultantes também de sua história de interação com o ambiente externo. Essas características do sistema nervoso atribuem uma individualidade neural ao indivíduo que se relaciona, conseqüentemente, com a sua individualidade comportamental (Kandel & Hawkins, 1992).

Plasticidade Neural: Abordagens Experimentais

Numa forma abrangente, plasticidade neural pode ser definida como uma mudança adaptativa na estrutura e nas funções do sistema nervoso, que ocorre em qualquer estágio da ontogenia, como função de interações com o ambiente interno ou externo ou, ainda, como resultado de injúrias, de traumatismos ou de lesões que afetam o ambiente neural (Phelps, 1990).

De acordo com Pia (1985), o termo plasticidade foi introduzido por volta de 1930 por Albrecht Bethe, um fisiologista alemão. Plasticidade seria a capacidade do organismo em adaptar-se às mudanças ambientais externas e internas, graças à ação sinérgica de diferentes órgãos, coordenados pelo sistema nervoso central (SNC). Os trabalhos pioneiros de Santiago Ramón y Cajal e Eugênio Tanzi (citados por Rosenzweig, 1996) sobre regeneração neural apresentam relações mais diretas entre plasticidade e o sistema nervoso. Como assinala Rosenzweig (1996), Tanzi, propôs a hipótese de que durante a aprendizagem ocorreriam mudanças plásticas em junções neuronais enquanto que Cajal aventou a possibilidade de que o exercício mental poderia causar maior crescimento de ramificações neurais.

Na literatura recente, os estudos sobre a plasticidade do sistema nervoso podem ser classificados como pertencentes à categoria daqueles que manipulam o ambiente e analisam as mudanças morfológicas e/ou funcionais em circuitos neurais, denominados de estudos de plasticidade neural ou à categoria de estudos que enfatizam as mudanças comportamentais após traumatismos ou lesão do sistema nervoso, denominados de recuperação de função (Kolb & Whishaw, 1989). Nestes casos, agudamente, ocorrem mudanças no tecido nervoso que têm como função a manutenção da homeostasia do organismo, além de promover a cicatrização e o reparo tecidual (Finger & Almli, 1982; Kolb & Whishaw, 1989). Ao mesmo tempo, pode haver um período em que se observa uma ausência ou diminuição na freqüência de uma ou mais classes de comportamentos. Assim, o termo recuperação de função refere-se à situação em que se observa aumento na freqüência ou magnitude de um comportamento após um período de freqüência ou magnitude zero, como conseqüência de trauma, intervenção cirúrgica ou lesão do sistema nervoso.

As questões relativas à plasticidade neural têm sido analisadas tanto ao nível molecular, focalizando mecanismos e processos celulares, como também ao nível de sistemas neurais e comportamentais. Dentre essas questões, destacam-se as referentes ao desenvolvimento neural, à recuperação de função e à reorganização morfofuncional de circuitos neurais correlacionados com a aprendizagem, consolidação de memória ou com lesões neurais (Morris, Kandel & Squire, 1988; Weinberger & Diamond, 1987). Na investigação das relações entre plasticidade neural e comportamento, verificam-se diferentes níveis de análise comportamental, incluindo desde a análise de respostas específicas que são aprendidas e memorizadas, até a avaliação de padrões comportamentais mais complexos, envolvidos na recuperação de função (Phelps, 1990; Rosenzweig, 1996; Silva, Giese, Federov, Frankland & Kogan, 1998).

As pesquisas em plasticidade neural, segundo os critérios propostos por Kolb & Whishaw (1989), enquadram-se em três categorias gerais: (a) metabólicas: que analisam alterações da atividade metabólica em áreas corticais e subcorticais, tanto no mesmo hemisfério em que se localizam as lesões (ipsilaterais) quanto no hemisfério oposto (contralaterais); (b) neuroquímicas: que focalizam as alterações funcionais nas sinapses, investigando processos/mecanismos que aumentam a síntese de neurotransmissores, a liberação de neurotransmissores ou a potencialização das respostas pós-sinápticas, em decorrência de situações estimuladoras, de aprendizagem ou de lesões e (c) morfológicas: que caracterizam e enfatizam as modificações na estrutura das sinapses e neurônios, tais como a regeneração e ramificação de axônios, aumento do tamanho de corpos celulares, do número de dendritos, do número de neurônios e de sinapses. Essas categorias não são exclusivas e podem ser combinadas em um mesmo estudo.

A classificação de Kolb & Whishaw (1989) é didática e, assim, será por nós utilizada para caracterizar diferentes tipos de questões e de abordagens experimentais à plasticidade do sistema nervoso e evidenciar que a análise comportamental é parte fundamental dessas investigações. Em qualquer investigação, uma análise comportamental válida deverá garantir que: (a) o comportamento observado após a lesão mantém as suas características topográficas e funcionais existentes numa linha de base pré-lesão; (b) a recuperação de um comportamento não interfere negativamente na ocorrência de outros comportamentos; e (c) o comportamento apresenta regularidade de freqüência e se mantém a longo-prazo.

Alterações no Sistema Nervoso e experiência

O interesse pelos efeitos da experiência, do treino e do exercício sobre o cérebro já aparece em relatos do século XVIII. Experimentos de Bonnet e Malacarne (Bonnet 1779-1783; conforme citado por Rosenzweig, 1996) indicaram que os cérebros de animais que recebiam treinamento sistemático durante anos tinham um cerebelo mais desenvolvido, com maior número de circunvoluções. Contudo, os conceitos e proposições relacionando plasticidade do SNC e comportamento, somente foram provados experimentalmente a partir da década de 1960. Isso se deve a um grupo de pesquisadores da Universidade da Califórnia, em Berkeley, que iniciou uma profícua linha de investigações cujos procedimentos e questões experimentais, embora sem que soubessem na época, como afirma Rosenzweig (1996), eram similares àqueles de seus desconhecidos predecessores.

O procedimento básico de Rosenzweig e colaboradores (Rosenzweig, Krech, Bennett & Diamond, 1962) utilizou o arranjo de gaiolas-viveiro diferentes daquelas comumente encontradas em biotérios, contendo animais em conjunto ou alojados individualmente. No arranjo ambiental utilizado as gaiolas-viveiro eram maiores e ofereciam uma grande quantidade e variedade de estímulos, tais como objetos de formas diferentes, espelhos, rodas de atividade, escadas, além de diferentes possibilidades para conseguir alimento. Observou-se, consistentemente, que, em diferentes idades, a interação com esses ambientes ricos em estimulação resulta em alterações específicas do SNC. Entre essas alterações estavam incluídos o aumento na espessura das camadas do córtex visual, no tamanho de corpos neuronais e de núcleos dos corpos neuronais, no número de sinapses e na área das zonas de contato sináptico, no número de dendritos e de espinas dendríticas, no volume e no peso cerebral, além de alterações em níveis de neurotransmissores. Em resumo, todas as características morfológicas e funcionais de áreas corticais sofreram alterações importantes em função da mera exposição e da interação com ambientes que fornecem diversidade de estímulos (Rosenzweig, 1996).

A manipulação das condições de estímulo, restringindo-as, como nos estudos de privação sensorial (Hubel & Wiesel, 1965), ou otimizando-as, como nos estudos de exposição a ambientes considerados ricos em estimulação (Krech, Rosenzweig & Bennett, 1960; Rosenzweig, 1996) constitui uma das abordagens clássicas no estudo da plasticidade neural. Esses estudos mostraram novas e interessantes perspectivas para a análise dos efeitos da experiência sobre o sistema nervoso.

O Professor Hendrik Van der Loos foi também um pioneiro no que se refere à análise de alterações corticais em função de estimulação ou privação de sensações providas pelas vibrissas em roedores. As vibrissas de camundongos são importantes receptores de estimulações sensoriais do ambiente, tais como vibração, contato, pressão e deslocamento. A mobilidade das vibrissas constitui um componente básico da resposta de exploração nesses animais. Tais receptores periféricos têm projeções específicas para regiões corticais, onde possuem uma representação topográfica, com áreas em proporções correspondentes à sua importância funcional. As características anátomo-funcionais das regiões de representação topográfica dos folículos das vibrissas no córtex somatossensorial de camundongos adultos variam, assim, em função da quantidade e qualidades de estimulação.

O estudo de Welker, Rao, Dorfl, Melzer & Van Der Loos (1991) é um exemplar dos estudos que analisam os substratos neurais da experiência com estímulos sensoriais. Camundongos receberam implantes de minúsculas peças de metais em um número restrito de vibrissas, as quais foram estimuladas passivamente por pulsos de ondas eletromagnéticas (40 mseg, 9-Hz) a cada 70 mseg. Os períodos de estimulação passiva duraram 1, 2 ou 4 dias. A seguir tiveram um teste de estimulação ativa pela exposição por 45 minutos a uma gaiola nova, contendo vários pedaços de madeira. Como os autores estavam interessados em analisar o que acontecia nos neurônios corticais desses animais, utilizaram um marcador radioativo de atividade e de metabolismo neuronal que era injetado alguns minutos antes da sessão de exploração. Utilizaram para isso uma substância similar à glicose, a 2-Deoxi-D-Glicose (2-DG) que, embora seja captada pelas células, não é metabolizada e fica nelas acumulada. Essa forma foi escolhida para detectar as alterações na atividade metabólica neuronal durante a exploração de um ambiente novo. Nessa situação os animais submetidos à estimulação passiva das vibrissas, em comparação com os animais-controle, apresentaram menor ativação neuronal ao nível do córtex somatossensorial e do tronco encefálico. Ao mesmo tempo, principalmente nas áreas vizinhas às colunas corticais, ocorreram alterações na síntese e na liberação do GABA (ácido-gama-amino-butílico), o principal neurotransmissor inibitório no sistema nervoso. Esses resultados mostram que a estimulação imposta ao organismo resultou em alterações de processos celulares no SNC, que são indicativas de mecanismos que caracterizam a plasticidade neural. Ou seja, as diferentes interações do organismo com uma classe de eventos ambientais foram correlacionadas com mudanças no SNC.

Recuperação de Função e Lesões Neurais no SNC

O SNC é considerado como o produto biológico mais elaborado e complexo da nossa história evolutiva. Os bilhões de neurônios e correspondentes conexões sinápticas, associados às células da glia, formam uma rede neural complexa que faz a integração funcional de estruturas neurais diferentes e, muitas vezes, distantes (Moonen & cols., 1990). Quando o cérebro sofre traumatismos, causados por pancadas ou lesões decorrentes de disfunções circulatórias, como em casos de acidentes vasculares cerebrais ou de intervenções cirúrgicas, podem ocorrer perdas neuronais e distúrbios funcionais nessa rede neural. Nesses casos, as alterações de função ocorrem não apenas nas áreas diretamente afetadas, mas também em outros sítios neurais direta ou indiretamente conectados a elas. Como resultado final são observados prejuízos comportamentais e cognitivos (Cerutti e cols., 1997; Cuello, 1997).

Por essas razões, os estudos de recuperação de função após lesões ou traumas neurais, que abordam a análise de casos clínicos e de modelos animais da plasticidade neural, constituem um outro conjunto importante de investigações (Cuello, 1997; Finger & Almli, 1982; Geschwind, 1984; Stein, Finger & Hart, 1983). No laboratório, os estudos experimentais com animais que avaliam a organização estrutural do SNC após lesões fornecem modelos úteis para o estudo dos mecanismos, das mudanças anatômicas e funcionais subjacentes à recuperação de função ( Kolb & Whishaw, 1989).

Recuperação de alterações comportamentais induzidas por lesão no SNC

Diferentes classes de comportamento motor têm sido analisadas no estudo da reorganização do substrato neuroanatômico da recuperação comportamental após lesão no SNC. A locomoção, por exemplo, constitui uma dessas classes comportamentais. A organização de padrões locomotores ocorre a partir de estímulos espaciais e proprioceptivos, que são processados e integrados pelos dois hemisférios cerebrais, em áreas corticais somatossensoriais e motoras bem como em outras estruturas que compõem os sistemas motores (medula espinhal, tronco encefálico, cerebelo, tálamo, núcleos da base). Toda essa integração neural envolve uma modulação neuroquímica muito sutil com a ação de diferentes neurotransmissores, dentre os quais a dopamina tem uma função primordial. Um conjunto importante de neurônios que sintetizam e liberam a dopamina encontra-se na substância negra (SNe), uma estrutura localizada no mesencefálo. Esses neurônios dopaminérgicos projetam-se para os núcleos da base e seus axônios constituem o sistema dopaminérgico negroestriatal. Se houver lesão na SNe em apenas um dos hemisférios, ocorrerá um desequilíbrio inter-hemisférico na modulação dopaminérgica da motricidade, resultando em dificuldades de locomoção e no aparecimento de um comportamento rotacional em torno de si mesmo, contínuo, estereotipado e assimétrico. A análise desse comportamento rotacional induzido por lesões no sistema motor tem sido útil para estudo de neuroplasticidade e, inclusive, como modelo animal de patologias como a síndrome de Parkinson (Schwarting & Huston, 1996).

Morgan, Nomikos e Huston (1991) analisaram as mudanças no sistema dopaminérgico negroestriatal subjacentes à recuperação da simetria do comportamento rotacional em ratos induzido por lesão. Usaram injeção unilateral de uma substância que provoca a morte de neurônios dopaminérgicos do sistema negroestriatal. Após as lesões, foram analisadas diferentes categorias de comportamento, incluindo a não ocorrência, a diminuição ou a manutenção do comportamento assimétrico durante os testes. Os animais que mostraram recuperação do comportamento de rotação, ou seja, a diminuição da assimetria, reduziram o número de rotações ipsilaterais à lesão e, com o tempo, aumentaram o número de rotações contralaterais. A análise histológica usou um marcador neuronal retrógrado (captado nos terminais das fibras pré-sinápticas e transportado até o corpo celular), injetado nos núcleos da base. Assim, foi possível observar que os animais que mostraram a recuperação comportamental apresentaram maior número de células marcadas na SNe. Esses dados sugeriram que os axônios remanescentes à lesão desenvolveram ramificações e estabeleceram novos contatos sinápticos, um dos processos que caracterizam a plasticidade pós-lesão. Ou seja, após a lesão ocorreu uma recuperação comportamental correlacionada com mecanismos celulares e processos fisiológicos relacionados com a formação de novas sinapses e alterações funcionais daquelas sinapses remanescentes.

Desenvolvimento, aprendizagem e correlatos neuroanatômicos pós-lesão

O desenvolvimento do sistema nervoso é caracterizado por mudanças que normalmente são consideradas como evidências da plasticidade do sistema. Durante a embriogênese são gerados números excessivos de neurônios e, por isso, uma grande parte desses é eliminada por um processo de morte celular que é regulado geneticamente e que resulta num ajuste fino da população neuronal (Oliveira, 1999). Após o nascimento, ocorre a regulação da população e da circuitaria neuronal em momentos que são considerados períodos críticos no desenvolvimento. Ou seja, durante esses períodos são definidas tanto a sobrevivência de neurônios que estabeleceram contatos sinápticos eficientes quanto a manutenção dessas sinapses. Essa regulação da circuitaria neural resulta de uma coordenação sutil e complexa entre as atividades dos elementos pré- e pós- sinápticos, que garantem a integridade e a plasticidade do neurônio.

Muitas vezes, o conceito de períodos críticos é usado como justificativa para a existência de maior plasticidade neural ou de maior capacidade de reorganização e de recuperação funcional em cérebros jovens, em comparação com cérebros adultos. Foi nesse sentido que Brabander, Van Eden e De Bruin (1991) investigaram se haveria diferenças de aprendizagem entre ratos que sofreram lesões do córtex pré-frontal medial no período neonatal ou na idade adulta. A análise da manutenção da função comportamental avaliou o comportamento de escolha entre os braços do labirinto em T, com alternação a cada tentativa, inicialmente com um intervalo de zero segundos (sem atraso) e com intervalo de 15 segundos (com atraso). Foram investigadas as mudanças neuroanatômicas em dois sistemas neurais com conexões ao córtex pré-frontal medial: uma projeção talâmica e uma projeção de fibras dopaminérgicas (sistema dopaminérgico meso-cortical) da área tegmental ventral do mesencéfalo. Ambos os sistemas têm um denso padrão de axônios que se projetam para as áreas pré-frontais, transmitindo informações cruciais para o córtex pré-frontal. Foi usado um marcador neuronal anterógrado (captado ao nível do corpo celular e transportado pelo axônio até sua terminação pré-sináptica) para analisar essas projeções. Esse marcador foi injetado nos núcleos neuronais cujos axônios se projetam para o córtex pré-frontal. Após o teste de alternação espacial com atraso, os animais foram sacrificados e os cérebros foram processados para a obtenção de cortes cerebrais, marcação imunohistoquímica e análise de axônios dopaminérgicos.

Os ratos que sofreram lesões bilaterais neonatais mostraram desempenho similar aos animais-controle. Ao contrário, os ratos que foram lesados quando adultos mostraram maior número de erros no teste do labirinto em T, não alcançando o critério de aprendizagem. A maioria das lesões realizadas no período neonatal não apresentou uma indicação morfológica precisa, exceto como uma cicatriz, enquanto que todas as lesões realizadas em ratos adultos, foram visíveis como uma cavidade limitada por tecido glial. A análise morfológica também não revelou perda de células dopaminérgicas, tanto após as lesões neonatais, quanto na idade adulta. Contudo, em todos os ratos com lesões neonatais, foi observado um aumento da densidade dos axônios dopaminérgicos em todas as camadas do córtex, acompanhado por um aumento de ramificação dos axônios e uma maior quantidade de vesículas sinápticas, em comparação com os animais controles. O aumento dos axônios e das vesículas pode ser uma indicação de maior atividade dopaminérgica ou de um acúmulo de dopamina nos terminais pré-sinápticos. Em resumo, esses dados indicam a ocorrência da plasticidade neural em dois momentos do desenvolvimento ontogenético, demonstrando uma capacidade reorganizadora mais efetiva do sistema nervoso quando as lesões ocorreram precocemente, logo após o nascimento.

Efeitos a longo prazo de lesões neurais sobre a interação neurônio-glia e a aprendizagem

Além de toda a importância da função neuronal, deve-se lembrar que o tecido neural é constituído de um agregado complexo de células que constitui uma rede de comunicação entre os neurônios e a neuroglia. A literatura tem colocado ênfase crescente no fato de que neurônios e células gliais atuam como uma unidade fisiológica com função fundamental na organização neural do comportamento. As células gliais sempre foram consideradas elementos importantes do microambiente neural por participarem em processos durante o desenvolvimento neural e na regulação do meio extracelular neural. Porém, apenas recentemente surgiu uma maior compreensão das complexas interações neurônio-astrócito/microglia e de sua participação no desenvolvimento de plasticidade de conexões sinápticas e, consequentemente, em processos de plasticidade neural e de aprendizagem (Aldskogius & Kozlova, 1998; Cerutti & Ferrari, 1995b; Moonen & cols, 1990; Ridel, Malhotra, Privat & Gage, 1997).

A correlação entre ativação de células da glia e recuperação do SNC fundamenta-se na presença de substâncias tróficas na área da lesão (Cerutti & Chadi, 2000; Chadi, Cao, Pettersson & Fuxe, 1994). As interações astroglia/microglia exercem papel fundamental em mecanismos tróficos de neurônios no SNC. Os neurônios que sofreram danos liberam secreções que estimulam as microglias que, por sua vez, interagem com os astrócitos e induzem a produção de outras substâncias tróficas. Todas essas respostas são importantes para manter a homeostase local e garantir a sobrevivência do neurônio.

Nesse contexto, as funções dos astrócitos têm recebido grande atenção (Bignami, 1984). Recentemente, Cerutti, Ferrari & Chadi (1997) demonstraram aumento no número de astrócitos, quatro meses após a lesão massiva de tecido neural do telencefálo de pombos. Essa lesão provoca perda transitória do comportamento alimentar, associada a alterações imediatas na postura e no ciclo sono-vigília. Por isso, os animais são mantidos em ambiente controlado e alimentados no bico, três vezes por dia até a recuperação de comportamento alimentar que ocorre cerca de um mes depois da lesão. Os pombos foram sacrificados quatro meses após a lesão e os cérebros preparados para análise por técnicas de marcação imunohistoquímica. Foi observada uma maior marcação para a proteína ácida fibrilar de glia (GFAP) no tálamo (núcleo rotundus) dos animais com lesão, indicando uma significante presença de astrócitos. Inversamente, a marcação de neurofilamentos, para identificação de neurônios íntegros, indicou que os animais lesados apresentaram menor número de neurônios. Esse dado é muito interessante por sugerir que nesse momento, longo tempo após a lesão, as funções de astrócitos estariam diretamente relacionadas aos processos de plasticidade neural.

Essas análises estendem as observações de Cerutti e cols. (Cerutti, Cintra, Diáz-Cintra & Ferrari, 1997; Cerutti & Ferrari, 1995a) sobre a aprendizagem de discriminação dos pombos destelencefalados. Após a recuperação de comportamento alimentar, pombos foram treinados em discriminação operante sucessiva, com luz vermelha no disco correlacionada com reforçamento em esquema de razão-variável e luz amarela no disco, correlacionada com extinção. Os pombos lesados aprenderam a discriminação operante após um treinamento mais longo para a aquisição da resposta de bicar o disco e para alcançar o critério de estabilidade do comportamento discriminativo, em comparação aos pombos-controle. Porém, na condição de reversão da discriminação, os pombos lesados não alcançaram os critérios de aprendizagem e de estabilidade do comportamento discriminativo. Esses resultados comportamentais foram correlacionados com análises histológicas (com marcação de fibras mielínicas e de corpos celulares, seguida de morfometria quantitativa em estruturas das vias visuais) que mostraram (a) padrões anormais na orientação dos axônios (fibras neurais) e na organização das camadas neuronais características do teto óptico (estrutura importante para o processamento visual em aves) e (b) uma reducão significativa no número de neurônios, inversamente relacionada a um aumento no número de vasos sanguíneos, observada no tálamo (núcleo rotundus, região que transmite informações para as áreas visuais do telencéfalo). Tais alterações morfológicas foram interpretadas como evidências de mecanismos de plasticidade neural. Diferentes mecanismos celulares estão envolvidos na manutenção do neurônio e no fortalecimento de seus contatos sinápticos e conseqüente funcionalidade. O aumento da vascularização possivelmente constitui um mecanismo compensatório para o sistema, no sentido de garantir o suprimento energético adequado para a sobrevivência e funcionalidade dos poucos neurônios restantes após a lesão.

Implicações dos Estudos de Plasticidade Neural

De um modo geral, pode-se afirmar que a análise da plasticidade neural e de recuperação de função, em suas diferentes abordagens, tem sido realizada por meio de investigações que utilizam métodos de análise do comportamento aprendido associados à metodologia neurobiológica, principalmente à de lesão e/ou estimulação neural. O desenvolvimento histórico desse conhecimento biomédico tem sido claramente ligado ao uso de animais, principalmente mamíferos e aves, na pesquisa básica sobre aspectos plásticos do SNC e processos biológicos relacionados com os comportamentos, aprendizagem e memória.

As últimas quatro décadas do século XX culminaram com a chamada década do cérebro nos anos 90 e constituem um período fascinante no que concerne à identificação de processos de plasticidade neural, à busca de mecanismos subjacentes a esses processos e às interrelações com as mudanças comportamentais (Rosenzweig, 1996; Strumwasser, 1994). Os avanços recentes no conhecimento da biologia molecular têm levado a novas perspectivas em termos de controle de mecanismos de plasticidade neural. O próprio conceito de sinapse sofreu uma modificação na medida em que passou a ser considerado como um processo de comunicação neuronal, bidirecional e automodificável (Jessell & Kandel, 1993). As interações sinápticas entre neurônios envolvem interação elétrica e química complexas, que dependem do meio extracelular e de sistemas especiais de receptores celulares (Izquierdo, 1992; Izquierdo & cols, 1999). A ativação desses mecanismos receptores desencadeiam sistemas de sinalização intracelular, envolvendo segundo-mensageiros que podem regular canais iônicos, coordenar mecanismos de ativação e de fosforilação de proteínas e, ainda, modificar proteínas regulatórias da transcrição gênica. A ativação de mecanismos de transcrição gênica e de regulação de síntese protéica vão resultar em maior disponibilidade de proteínas que serão utilizadas como o material básico da célula. Assim, maior síntese proteica pode garantir mudanças estruturais de longa duração nas sinapses, contribuindo tanto para a função e comunicação sináptica, quanto para a organização funcional de circuitos locais. Sem dúvida alguma, as aplicações e implicações de todo esse conhecimento constituem desafios para todos aqueles interessados em comportamento e sistema nervoso.

Conclusão

As considerações desenvolvidas no texto e as evidências experimentais que as suportam indicaram que os mecanismos subjacentes à plasticidade neural e à recuperação de função têm bases similares e constituem uma área de muito interesse para pesquisas em neurociências e comportamento.

Os tipos de abordagens à plasticidade neural e à recuperação comportamental foram discutidos pela análise de alguns estudos da área. Assim, foi possível verificar que a busca de correlações entre lesão no SNC, alterações neuronais e recuperação comportamental permitiu verificar a ocorrência de mudanças morfológicas e funcionais das estruturas nervosas relacionadas com o comportamento. Os estudos referentes à plasticidade neural demonstraram que o SNC é mais plástico do que se acreditava.

Ao mesmo tempo, é possível afirmar, conforme se procurou exemplificar no texto, que as pesquisas nessa área têm produzido dados coerentes e indicativos de como o comportamento pode alterar a morfologia e a função do sistema nervoso e vice-versa. O resultado geral é um belíssimo e instigante conjunto de resultados, com possibilidades de aplicação em diferentes aspectos clínicos comportamentais e neurológicos, principalmente referentes ao desenvolvimento e ao envelhecimento.

Recebido em 25.01.2000

Primeira decisão editorial em 28.03.2000

Versão final em 03.07.2001

Aceito em 12.11.2001

2 Endereço: Elenice A. de Moraes Ferrari, Laboratório de Sistemas Neurais e Comportamento, Departamento de Fisologia e Biofísica, IB, UNICAMP, Cidade Universitária Prof. Zeferino Vaz, 13083-970, Campinas, SP, Brasil. Fax: 019-2893124; e-mail: elenice@obelix.unicamp.br

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    Apoio Financeiro: CNPq, proc. 300975/89-9; CAPES- Bolsas de Mestrado e Doutorado, (Pós-graduação em Ciências Biológicas-Fisiologia, IB, UNICAMP).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Abr 2002
    • Data do Fascículo
      Ago 2001

    Histórico

    • Revisado
      03 Jul 2001
    • Recebido
      25 Jan 2000
    • Aceito
      12 Nov 2001
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