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Por entre tramas e tessituras do espaço urbano “sobre rodas”: tecendo relações entre o esporte e lazer e a pessoa com deficiência física na cidade

Among plots and textures of the urban space “on wheels”: weaving relationships between sport and leisure and the people with physical disabilities in the city

Entre tramas y texturas del espacio urbano “sobre ruedas”: tejer las relaciones entre el deporte y el ocio y la persona con discapacidad física en la ciudad

RESUMO

Analisar como as pessoas com deficiência física, usuárias de cadeira de rodas, percebem o esporte e lazer na cidade é o objetivo desta pesquisa. De abordagem qualitativa, com base etnográfica, o estudo fez uso da observação participante, entrevistas e diário de campo junto a 12 participantes. A investigação construiu duas categorias de análise, uma voltada para a acessibilidade e outra no campo das relações com a sociedade. Os resultados apontam para um cenário corponormativo que territorializa e segrega a pessoa com deficiência física nas experiências de esporte e lazer.

Palavras-chave:
Esporte; Lazer; Cidade; Pessoa com deficiência física

ABSTRACT

Analyzing how people with physical disabilities, wheelchair users, perceive sport and leisure in the city is the objective of this research. With a qualitative approach, based on ethnographic, the study used participant observation, interviews and field diary with 12 participants. The research built two categories of analysis, one focused on accessibility and the other in the field of relations with society. The results point to a corponormative scenario that territorializes and segregates people with physical disabilities in sports and leisure experiences.

Keywords:
Sport; Leisure; City; People with physical disability

RESUMEN

Analizar cómo las personas con discapacidad física, los usuarios de sillas de ruedas, perciben el deporte y el ocio en la ciudad es el objetivo de esta investigación. Con un enfoque cualitativo, basado en la etnografía, el estudio utilizó observación participante, entrevistas y diario de campo con 12 participantes. La investigación construyó dos categorías de análisis, una centrada en la accesibilidad y la otra en el campo de las relaciones con la sociedad. Los resultados apuntan a un escenario corporativo que territorializa y segrega a las personas con discapacidad física en experiencias deportivas y de ocio.

Palabras clave:
Deporte; Ocio; Ciudad; Persona con discapacidad física

INTRODUÇÃO

Como quem tece fios esta pesquisa traz ao debate o diálogo entre a pessoa com deficiência, o esporte e o lazer1 1 Os termos esporte e lazer, ao longo do estudo, se apresentam enquanto sinônimos. Justifica-se por compreender, para além da existência do treinamento e competição, preceitos agonísticos do esporte, a sua coexistência enquanto manifestação lúdica, cultural e política, em referência as experiências de lazer. . A estrutura por onde esses fios se entrelaça, ou seja, a trama por onde este diálogo se apresenta, é o espaço urbano da cidade, cujo interior abriga contornos políticos e ideológicos conflitantes para a pessoa com deficiência.

A problemática que conduz a inquietação em tela está na tessitura de uma realidade construída historicamente para a pessoa com deficiência que aponta para um ambiente de marginalização frente ao acesso a bens sociais, considerando aqui o esporte e o lazer (OMS, 2012OMS: Organização Mundial da Saúde. Relatório mundial sobre a deficiência [Internet]. São Paulo: OMS; 2012 [citado em 2021 Jan 14]. Disponível em: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/44575/9788564047020_por.pdf?sequence=4
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; Oliveira, 2012Oliveira LMB. Cartilha do Censo 2010: pessoas com deficiência [Internet]. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR), Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência (SNPD), Coordenação Geral do Sistema de Informações sobre a Pessoa com Deficiência; 2012 [citado em 2021 Dez 4]. Disponível em: https://bibliotecadigital.mdh.gov.br/jspui/handle/192/754
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). Neste contexto, interpretando o lazer a partir de contradições e conflitos relacionado a forças produtivas e relações de produção (Húngaro, 2008Húngaro EM. Trabalho, tempo livre e emancipação humana: os determinantes ontológicos das políticas sociais de lazer [tese]. Campinas: Universidade Estadual de Campinas; 2008.; Peixoto, 2011Peixoto EMM. Notas introdutórias sobre a teoria e as categorias centrais para a pesquisa da problemática do lazer. Rev HISTEDBR On-Line. 2011;11(41e):332-46. http://dx.doi.org/10.20396/rho.v11i41e.8639913.
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); nota-se, para além da escassez de estudos (Silva et al., 2014Silva JVP, Mendonça TCF, Sampaio TMV. Grupos de pesquisas e enfoque dado ao lazer das pessoas com deficiência na produção científica no brasil. Licere. 2014;17(3):66-98. http://dx.doi.org/10.35699/1981-3171.2014.973.
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; Barbosa et al., 2020Barbosa CM, Rezende EJC, Brito CMD. Pessoas com deficiência e o lazer: uma análise das publicações nas revistas brasileiras LICERE e RBEL. Rev Bras Est Lazer. 2020;7(3):123-39.), uma peculiar condição de não protagonismo junto a este grupo social. Em outros termos o fenômeno do esporte e lazer ganha formatação a partir de uma ótica corponormativa em que outros pensam, sem trabalhar com este grupo tal compreensão (Aitchison, 2009Aitchison C. Exclusive discourses: leisure studies and disabilitty. Leis Stud. 2009;28(4):375-86. http://dx.doi.org/10.1080/02614360903125096.
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).

Por sua vez, em aproximação ao cenário urbano, destaca-se que o não protagonismo, em assuntos que lhe dizem respeito é marcado não só pelo que aparenta ser uma estrutura social que privilegia a pessoa sem-deficiência. Diz respeito a algo mais profundo, compactuado socialmente ao longo dos tempos, no processo de interação social e internalização de costumes, e apresentado materialmente na morfologia dos espaços urbanos. Em específico se refere ao tensionamento da urbe às conformações de produção e reprodução da vida social, voltadas ao sistema produtivo, e seu consequente significado à pessoa com deficiência, considerada historicamente como não produtiva (Gleeson, 1999Gleeson B. Geographies of disability. London: Routledge; 1999. http://dx.doi.org/10.4324/9780203266182.
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; Oliver, 1996Oliver M. Understanding disability: from theory to practice. New York: St. Martin’s Press; 1996. http://dx.doi.org/10.1007/978-1-349-24269-6.
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; Russell e Malhotra, 2002Russell M, Malhotra R. Capitalism and Disability. Social Regist. 2002;38:211-28.; Imrie, 2005Imrie R. Opression, disability and access in the built environment. In: Shakespeare T, editor. The disability reader: social science perspectives. New York: Continuum; 2005. p. 129-46.).

Do universo das pessoas com deficiência física2 2 O Decreto 5.296/04 destaca a deficiência física como: “[...] alteração total ou parcial de um ou mais segmentos do corpo [...] apresentando-se sob a forma de paraplegia, paraparesia, monoplegia, monoparesia, tetraplegia, hemiparesia, amputação ou ausência de membro, paralisia cerebral, membros com deformidade congênita ou adquirida, [...]” (Brasil, 2004, s/p). , especialmente daquelas que utilizam exclusivamente a cadeira de rodas para se locomover, pesquisas em torno do acesso e participação ao esporte e lazer na cidade apresentam ponto de vista análogo. De modo geral, um panorama urbano comprometido com a ordem social dominante de dificuldades e barreiras para seu acesso (Brittain et al., 2020Brittain I, Biscaia R, Gerard S. Ableism as a regulator of social practice and disabled peoples’ self-determination to participate in sport and physical activity. Leis Stud. 2020;39(2):209-22. http://dx.doi.org/10.1080/02614367.2019.1694569.
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). E, em específico, entendimento e percepção de atores e atrizes sociais, destacada por interpretações voltadas a: exclusão de espaços públicos voltados para esta vivência lúdica (Hunger et al., 2004Hunger D, Squarcini CFR, Pereira JMA. A pessoa portadora de deficiência física e o lazer. Rev Bras Ciênc Esporte. 2004;25(3):85-100.; Silva et al., 2018Silva JVP, Silva DS, Sampaio TMV. Parques esportivos como espaço ou lugar de inclusão ou exclusão de pessoas com deficiência física e visual. Licere. 2018;21(1):108-34. http://dx.doi.org/10.35699/1981-3171.2018.1788.
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; Cassapian e Rechia, 2014Cassapian MR, Rechia S. Lazer para todos? Análise de acessibilidade de alguns parques de Curitiba, PR. Cad Ter Ocup. 2014;22(1):25-38. http://dx.doi.org/10.4322/cto.2014.004.
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); situações de discriminação e preconceito que afetam a plena participação nessas práticas (Cantareli, 1998Cantareli EMB. Barreiras sócio-culturais e o lazer da pessoa deficiente: um estudo do grupo FCD [dissertação]. Campinas: Universidade Estadual de Campinas; 1998.; Goulart, 2007Goulart RR. As viagens e o Turismo pelas lentes do Deficiente Físico praticante de Esporte Adaptado [dissertação]. Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul; 2007.; Pereira et al., 2019Pereira LSS, Brito CMD, Rodrigues AAC. O lazer da pessoa com deficiência física em belo horizonte: um estudo preliminar. Licere. 2019;22(4):340-64. http://dx.doi.org/10.35699/1981-3171.2019.16272.
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); e, a identificação de outros horizontes que tornam possíveis a relação entre pessoas, com e sem deficiência, demonstrando um poder educativo do lazer no diálogo e reflexão acerca de pensamentos e atitudes preconceituosas (Foganholli e Gonçalves, 2015Foganholli C, Gonçalves L Jr. Lazer de pessoas com deficiências. Licere. 2015;18(2):59-95. http://dx.doi.org/10.35699/1981-3171.2015.1115.
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).

Daquilo que é posto fica evidente uma relação atravessada por uma radicalidade que ultrapassa as potências do corpo unicamente. O que se desvela avança sobre a própria constituição da subjetividade deste grupo social, construída e reforçada no processo das relações sociais. Deste modo, ao mesmo tempo em que esporte e lazer que se insinuam objetificados, afetando diretamente a sua interpretação como patrimônio cultural, coexiste uma racionalidade que lança justificativas para uma inferioridade entre pessoas com e sem deficiência.

De tal questão transcorre a necessidade de investigações relacionadas com a de melhoria de serviços que auxiliem a inclusão em seu sentido pleno a este público. Significa dizer que sob um ponto de vista de contraposição a uma possível lógica de alienação (no sentido das experiências de esporte e lazer não serem algo construído pela pessoa e sim para a pessoa) existe uma carência de debates que identifiquem experiências que as elevem a um potencial transformador; partindo dos sentidos dos valores, que são culturais e históricos, e inseridos sob um plano histórico concreto.

Assim, na necessidade de estudos que busquem compreender esse movimento (entre pessoa, cidade, esporte e lazer), dialogando com os conflitos e contradições que disputam espaços, rompem barreiras e contam experiências humanas, questiona-se: como este grupo social, em seu aspecto peculiar de locomoção, observa o horizonte do esporte e lazer na cidade?

O presente artigo, parte de um trabalho maior, cumpre função ao propor catalisar novas fronteiras contra a exclusão social e atomização das pessoas com deficiência na participação da vida pública. E, a partir do que foi exposto, o objetivo deste estudo se constitui em: analisar como as pessoas com deficiência física, usuárias de cadeiras de rodas, percebem o esporte e lazer na cidade.

METODOLOGIA

Esta pesquisa procura assumir metodologicamente um caminho que envolve o reconhecimento dinâmico, histórico, político e ideológico das pessoas com deficiência, no que diz respeito ao esporte e lazer, considerando o universo das Ciências Sociais sob a perspectiva da investigação qualitativa. Ao assumi-la enquanto abordagem nos apegamos a um termo geral que por meio de um conjunto de técnicas procura apreender sentidos e significados de uma realidade social observada, utilizando para isso contato aprofundado com seu objeto de estudo (Molina, 2010Molina V No. Etnografia: uma opção metodológica para alguns problemas de investigação no âmbito da Educação Física. In: Triviños ANS, Molina V No, editores. A pesquisa qualitativa na educação física: alternativas metodológicas. Porto Alegre: UFRGS/Sulina; 2010. p. 113-46.).

Ao compreender a pesquisa como uma intervenção em uma prática cotidiana, vivendo, observando e situando o campo no contexto percorrido, se caminha para o estudo do tipo etnográfico. Classificada como um tipo de abordagem qualitativa, tendo como objeto de estudo interações, crenças, comportamentos sociais, envolvidos na participação e interação social utiliza estratégias de observação participante, registro de campo e entrevista em profundidade (Denzin e Lincoln, 2006Denzin NK, Lincoln Y. Handbook of qualitative research. Thousand Oaks: Sage; 2006).

Considerando que tais elementos da rotina etnográfica não são entes isolados, ao contrário, se sobrepõem e se inter-relacionam ao longo do processo de investigação; observa-se que o estudo foi realizado a partir da aproximação3 3 Existe uma gradação neste sentido em que é necessária uma espécie de “rito metodológico” ao adentrar o campo. Questões como: primeiro contato, conhecimento do espaço a ser pesquisado, conhecer pessoas e ganhar sua confiança e organização de trabalho são alguns destes elementos que interligados a uma rotina de trabalho e a constante reflexão orientam a tentativa metodológica. (vivendo, observando e situando) às práticas cotidianas de pessoas com deficiência física praticantes regulares de esporte.

Em sua realização a pesquisa contou com os devidos cuidados éticos e foi aprovada pelo Comitê de Ética da Universidade Católica de Brasília, processo CAAE: 65274317.0.0000.0029.

Caracterizações do campo de pesquisa: a cidade e os participantes

Ao assumir a ideia de cidade, meio urbano e sua condição de acesso e circulação, como campo desta análise nos aproximamos do universo da pesquisa, o Distrito Federal. Nesse sentido a sua história não é muito diferente do conjunto de desdobramentos e características constituídas nas cidades brasileiras (Brasil, 2012Brasil. Lei nº 12.587. Institui a Política Nacional de Mobilidade urbana [Internet]. Diário Oficial da União; Brasília; 4 jan 2012 [citado 2022 Mar 4]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12587.htm
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), porém possui algumas peculiaridades. Sobre o planejamento e expansão da cidade para Brasília estava planejado, por exemplo, apenas a região do Plano Piloto, plano urbanístico inicial da Capital elaborado por Lúcio Costa, e somente após sua consolidação é que passariam a serem consideradas as outras cidades autônomas. Entretanto, os altos fluxos migratórios resultantes da dinâmica social do País modificaram tal planejamento. Embora tenha havido a tentativa política de contenção do afluxo populacional, com ações do governo local sobre as ocupações urbanas da população de baixa renda, acabou por fortalecer a especulação imobiliária e, consequentemente, privilegiar a informalidade. Nascem aí as “cidades-satélites”, para abrigar os operários pioneiros e conter as invasões, retratos de um crescimento desigual e descontrolado da população (Paviani, 2007Paviani A. Geografia Urbana do Distrito Federal: evolução e tendências. Espaço & Geograf. 2007;10(1):1-22.; Ribeiro e Tenório, 2015Ribeiro RJC, Tenório GS. Estrutura social e organização social do território. In: Ribeiro RJC, Tenorio GS, Holanda F, Ribeiro LCQ, editores. Brasília: transformações na ordem urbana. 1ª ed. Rio de Janeiro: Letra Capital; 2015. p. 176-200.).

Em relação aos participantes, ao incursionar nas cidades satélites do Distrito Federal, em direção a associações, grupos e centros de atendimento às pessoas com deficiência – a partir de entidades cadastradas no Ministério Público do Distrito Federal e Territórios – foram extraídos contatos e indicações acerca de potenciais participantes, que foram pré-selecionados. A participação no estudo utilizou como critério único de seleção: assiduidade dos participantes às atividades oferecidas pelos próprios espaços (indicada por gestores, professores, coordenadores e técnicos esportivos); disponibilidade para conversas e encontros envolvendo a pesquisa; ter mais de três anos de lesão; e, condição da deficiência (participantes que utilizassem a cadeira de rodas como equipamento exclusivo de locomoção).

Os 12 participantes selecionados, autodeclarados do sexo masculino e com idades entre 22 e 48 anos (denominados PCD´s), eram praticantes das modalidades rúgbi em cadeira de rodas, atletismo, basquete e natação. Estes atores sociais foram acompanhados em seus respectivos grupos, ao longo dos anos de 2016 e 2017, por meio de observação participante e registros de campo. Ademais, de forma consentida e reservada, responderam a uma entrevista semiestruturada, sendo esta gravada e, posteriormente, transcrita para análise. Os dados coletados, após triangulação, serviram de produto de análise sendo agrupados em blocos temáticos e, por meio de evidências empíricas e teóricas, desdobrados para a confecção de categorias de análise.

Dos contatos que marcaram o percurso de encontros, compartilhamento de valores e experiências perante essa necessidade humana de expressão lúdica na cultura foram construídas as seguintes categorias de análise: a) Trajetória e o acesso aos espaços esportivos e de lazer; e, b) O que são visualizados nesses espaços e a relação com as situações colocadas.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Trajetória e acesso aos espaços esportivos e de lazer

Após perceber algumas relações entre a cidade e a pessoa com deficiência um conjunto de informações se aproximaram em função da perspectiva do esporte e lazer. Inicialmente procurou-se reconhecer como os participantes experimentam este fenômeno social na cidade no sentido de trajetória e acesso aos seus espaços. Do que se revelam, a chegada aos espaços aponta para discursos que parecem ir ao encontro de um mesmo observatório. Em comum, o reconhecimento da dificuldade na trajetória e o acesso aos espaços, descritos primeiramente pelo meio de transporte utilizado; e, em segundo lugar, na dificuldade em sua chegada.

Acerca do meio de transporte, que conduz ao espaço esportivo e de lazer, o carro parece prevalecer sobre outras formas de transporte urbano, segundo aponta o discurso dos participantes a seguir:

Não tem nada aqui perto de casa. Às vezes para sair me vejo obrigado a ir de ônibus por conta do dinheiro, mas se pudesse eu ia só de carro por conta da mobilidade e segurança. No tempo e na acessibilidade a gente sai ganhando. Costumo ir sozinho (PCD 7).

Vou tudo de carro. Tudo fica no centro. Acho que sem o carro eu “entrego o resto de minhas pernas” (risos). O carro é minhas pernas (sic). De ônibus é complicado demais (PCD 11).

O deslocamento cotidiano para acesso a equipamentos culturais, estes geralmente nas zonas centrais da cidade, destaca uma característica do Distrito Federal (Ribeiro e Tenório, 2015Ribeiro RJC, Tenório GS. Estrutura social e organização social do território. In: Ribeiro RJC, Tenorio GS, Holanda F, Ribeiro LCQ, editores. Brasília: transformações na ordem urbana. 1ª ed. Rio de Janeiro: Letra Capital; 2015. p. 176-200.). Nesta movimentação o carro é como dá a entender o participante 11, “quase como uma perna” em um evidente sinal da importância do transporte para se locomover na cidade em momentos de esporte e lazer. Para aqueles que utilizam, ou já utilizaram o ônibus, as críticas, sintetizada pelo participante (PCD 12):

Hoje sabemos que toda a frota do DF tem elevadores para o deficiente, mas o tempo todo quebra e problemas. Isso é coisa que já vem de longa data. Melhorou em algumas coisas porque antes não tinha nada, mas a precariedade é grande. Nossa luta inclusive vai no caminho de buscar melhorias e qualidade para o transporte coletivo (PCD 12).

Sobre o transporte coletivo foi percebido que a maioria dos participantes, oriundos de cidades satélites, enfrentava uma dualidade envolvendo a dependência e não apropriação encontrada em um mesmo território, no que diz respeito ao acesso a equipamentos culturais (Paviani, 2007Paviani A. Geografia Urbana do Distrito Federal: evolução e tendências. Espaço & Geograf. 2007;10(1):1-22.). Em um dos registros de campo ficou evidente que o “[...] constante atraso de horário, falta de limpeza, inoperância dos elevadores e a necessidade de pedir ajuda, prejudicavam o desenvolvimento de um pertencimento naquilo relacionado a atividades de esporte e lazer” (DIÁRIO DE CAMPO, reg. 3 – 21abr2017).

Outro ponto, relativo ao acesso nos espaços, traz à tona novos discursos em que se destaca: mesmo chegando com carro e, na maioria dos casos, acompanhados, barreiras arquitetônicas e sociais são encontradas. Ao serem perguntados como faziam quando chegavam aos espaços em discussão, algumas percepções trazem aos seguintes apontamentos:

É o deslocamento e por onde a cadeira anda né. Quando saímos tem também os bebedouros que não alcançamos, muito comum em quadras esportivas que frequentamos e os banheiros e estruturas em geral que precisam ter espaço para passar a cadeira, outra coisa que não é fácil (PCD 6).

Foi em um clube que fui e disseram que tinha ajudante para o deficiente. Só esqueceram de combinar com a calçada. Você imagina: o caminho cheio de pedras e uma inclinação danada. Tiveram que me empurrar e essa cadeira deslizando. Foi desconfortável demais. Outra que enfrento quase diariamente é a rampa de acesso à quadra de esporte, íngreme demais (PCD 11).

Eu uso do jeito que dá. Na frente de casa tem uma pista de caminhada, por exemplo, e eu de vez em quando passo por lá. As guias são muito altas e algumas irregularidades a gente vê, mas vai passando por cima dessas coisas (PCD 2).

O cenário que parece homogêneo, de dificuldades e obstáculos que afetam negativamente a possibilidade de utilização autônoma e segura de espaços e equipamentos urbanos de esporte e lazer, acompanha em observação prática, estudos envolvendo a temática em outras cidades do território nacional (Cantareli, 1998Cantareli EMB. Barreiras sócio-culturais e o lazer da pessoa deficiente: um estudo do grupo FCD [dissertação]. Campinas: Universidade Estadual de Campinas; 1998.; Goulart, 2007Goulart RR. As viagens e o Turismo pelas lentes do Deficiente Físico praticante de Esporte Adaptado [dissertação]. Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul; 2007.; Silva et al., 2018Silva JVP, Silva DS, Sampaio TMV. Parques esportivos como espaço ou lugar de inclusão ou exclusão de pessoas com deficiência física e visual. Licere. 2018;21(1):108-34. http://dx.doi.org/10.35699/1981-3171.2018.1788.
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; Cassapian e Rechia, 2014Cassapian MR, Rechia S. Lazer para todos? Análise de acessibilidade de alguns parques de Curitiba, PR. Cad Ter Ocup. 2014;22(1):25-38. http://dx.doi.org/10.4322/cto.2014.004.
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; Pereira et al., 2019Pereira LSS, Brito CMD, Rodrigues AAC. O lazer da pessoa com deficiência física em belo horizonte: um estudo preliminar. Licere. 2019;22(4):340-64. http://dx.doi.org/10.35699/1981-3171.2019.16272.
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). Escada, sanitários sem adaptação, corredores estreitos, adaptações malfeitas nas guias das calçadas e falta de telefones adaptados para um grupo que promovia encontros de lazer na cidade de Campinas/SP (Cantareli, 1998Cantareli EMB. Barreiras sócio-culturais e o lazer da pessoa deficiente: um estudo do grupo FCD [dissertação]. Campinas: Universidade Estadual de Campinas; 1998.); inacessibilidade arquitetônica em parques esportivos em Campo Grande/MS (Silva et al., 2018Silva JVP, Silva DS, Sampaio TMV. Parques esportivos como espaço ou lugar de inclusão ou exclusão de pessoas com deficiência física e visual. Licere. 2018;21(1):108-34. http://dx.doi.org/10.35699/1981-3171.2018.1788.
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); não acesso a banheiros e falta de ônibus adaptado em viagens realizadas por membros de um time esportivo de Caxias do Sul/RS (Goulart, 2007Goulart RR. As viagens e o Turismo pelas lentes do Deficiente Físico praticante de Esporte Adaptado [dissertação]. Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul; 2007.); ausência de acessibilidade de um grupo de cadeirantes em parques de Curitiba/PR (Cassapian e Rechia, 2014Cassapian MR, Rechia S. Lazer para todos? Análise de acessibilidade de alguns parques de Curitiba, PR. Cad Ter Ocup. 2014;22(1):25-38. http://dx.doi.org/10.4322/cto.2014.004.
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); e, barreiras físicas junto a pessoas que engajam em atividades de esporte e lazer na cidade de Belo Horizonte/MG (Pereira et al., 2019Pereira LSS, Brito CMD, Rodrigues AAC. O lazer da pessoa com deficiência física em belo horizonte: um estudo preliminar. Licere. 2019;22(4):340-64. http://dx.doi.org/10.35699/1981-3171.2019.16272.
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) são exemplos de uma exclusão socioespacial relacionada a um processo material.

Todavia o que os estudos empíricos e o plano da aparência não revelam diz respeito à importância de se conhecer como as leis que orientam as relações de produção capitalista indicam formas de como apreendemos o real (Peixoto, 2011Peixoto EMM. Notas introdutórias sobre a teoria e as categorias centrais para a pesquisa da problemática do lazer. Rev HISTEDBR On-Line. 2011;11(41e):332-46. http://dx.doi.org/10.20396/rho.v11i41e.8639913.
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). No âmbito do lazer para o público objeto do estudo trata-se de como a questão material opera um sistema discursivo capacitista que reforça, mesmo que não intencionalmente, processos de exclusão (Brittain et al., 2020Brittain I, Biscaia R, Gerard S. Ableism as a regulator of social practice and disabled peoples’ self-determination to participate in sport and physical activity. Leis Stud. 2020;39(2):209-22. http://dx.doi.org/10.1080/02614367.2019.1694569.
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). Indicativos iniciais nesta direção implicam em reconhecer como o acesso à cidade, e o lazer neste contexto, passa a envolver um complexo quadro de questões estruturais de divisão do trabalho e redes de relações sociais que naturalizam o desempenho e o comportamento individual.

Do ponto de vista prático, há que se relembrar o papel dos espaços de enclausuramento como hospitais, centros de reabilitação e escolas especiais enquanto primeiros locais indicativos de esporte e lazer para este público (Aitchison, 2009Aitchison C. Exclusive discourses: leisure studies and disabilitty. Leis Stud. 2009;28(4):375-86. http://dx.doi.org/10.1080/02614360903125096.
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). Por extensão o papel do Estado, a respeito de serviços sociais e sua especialização, que acabou amplificando o processo de segregação. Ao acentuar discursos que justificavam o confinamento espacial, e nele as práticas de esporte e lazer como medidas profilática de terapia e reabilitação, separam ainda mais os laços sociais do plano urbano (Russell e Malhotra, 2002Russell M, Malhotra R. Capitalism and Disability. Social Regist. 2002;38:211-28.).

Mesmo ponderando a transição de uma época para outra, considerando os processos de reestruturação do capital, se mantém em essência como o modo de produção continua organizando o espaço social, expondo processos onde se mostram presentes padrões de desigualdade e marginalidade como os relatados. Sob este aspecto a inacessibilidade acaba se tornando um novo instrumento institucional no lugar dos espaços de enclausuramento. De caráter estrutural, e de fronteira física mais fluída se comparados aos espaços de enclausuramento citados, ao restringir espacialmente a pessoa com deficiência, continua, mesmo dentro de uma nova configuração organizacional, reforçando uma representação estereotipada desse sujeito.

O que são visualizados nesses espaços e a relação com as situações colocadas

Das barreiras já apresentadas, de transporte, sociais e arquitetônicas outro ponto é notado no território da cidade, destacando, de maneira mais aproximada, a forma como a sociedade lida com a deficiência no universo das práticas de esporte e lazer. Situações no campo das atitudes, impedimentos que afetam a segurança, tranquilidade e o sentimento de pertencimento nos espaços de esporte e lazer foram narradas nas seguintes falas:

É difícil. Muitas vezes percebemos que as pessoas ficam incomodadas com a nossa presença. Sinto que não é por mal e nem fico perdendo tempo com isso, mas percebo que isso afeta alguns. Quando nossa equipe viaja, por exemplo, procuramos ir para lugares que já temos o costume de ir. Para evitar constrangimentos (PCD 2).

Acredito que muita coisa pode ter melhorado. Mas tem lugares que eu vou que eu me sinto diminuído. Me sinto péssimo em chamar atenção quando podia ser diferente (PCD 7).

Eu vou na força do grupo mesmo. Sem eles ficaria em casa. Entendo que as pessoas têm boa vontade até, mas a desinformação ainda é muito grande. A acessibilidade é muito precária em qualquer espaço pretendido para o lazer e aí fica naquela base do improviso (PCD 4).

Gosto muito de praticar esportes. É uma coisa que ajuda muito na minha qualidade de vida e na minha autoestima. Só que para achar isso aqui (fala do grupo) foi difícil demais. A impressão que fica é de que não existe espaço para a gente (PCD 10).

Dos registros que salientam o incômodo e a sensação dos participantes, de serem diminuídos ou não aceitos nos lugares, duas questões podem ser colocadas. Primeiramente ao fato onde mesmo percebendo a presença de sinais de uma organização coletiva – acerca do papel exercido pelos grupos enquanto espaços que possibilitam e buscam acesso a manifestações de esporte e lazer – não restam dúvidas em como é ainda a pessoa que tem de se adaptar ao ambiente, e não o contrário. E, em aproximação, o conjunto de comportamentos e impressões que remetem a consolidação de um poder de verdade que coloca em condições de subalternidade quem não corresponde ao consenso corponormativo.

Nesse horizonte a realidade observada não se diferencia do conjunto de estudos que envolvem o tema (Cantareli, 1998Cantareli EMB. Barreiras sócio-culturais e o lazer da pessoa deficiente: um estudo do grupo FCD [dissertação]. Campinas: Universidade Estadual de Campinas; 1998.; Goulart, 2007Goulart RR. As viagens e o Turismo pelas lentes do Deficiente Físico praticante de Esporte Adaptado [dissertação]. Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul; 2007.; Cassapian e Rechia, 2014Cassapian MR, Rechia S. Lazer para todos? Análise de acessibilidade de alguns parques de Curitiba, PR. Cad Ter Ocup. 2014;22(1):25-38. http://dx.doi.org/10.4322/cto.2014.004.
http://dx.doi.org/10.4322/cto.2014.004...
; Pereira et al. 2019Pereira LSS, Brito CMD, Rodrigues AAC. O lazer da pessoa com deficiência física em belo horizonte: um estudo preliminar. Licere. 2019;22(4):340-64. http://dx.doi.org/10.35699/1981-3171.2019.16272.
http://dx.doi.org/10.35699/1981-3171.201...
), incluindo possibilidades de enfrentamento da realidade (Foganholli e Gonçalves, 2015Foganholli C, Gonçalves L Jr. Lazer de pessoas com deficiências. Licere. 2015;18(2):59-95. http://dx.doi.org/10.35699/1981-3171.2015.1115.
http://dx.doi.org/10.35699/1981-3171.201...
).

Um panorama destes achados pode ser colocado a partir das seguintes situações. No estudo de Pereira et al. (2019)Pereira LSS, Brito CMD, Rodrigues AAC. O lazer da pessoa com deficiência física em belo horizonte: um estudo preliminar. Licere. 2019;22(4):340-64. http://dx.doi.org/10.35699/1981-3171.2019.16272.
http://dx.doi.org/10.35699/1981-3171.201...
, por exemplo, na tentativa de compreender como se daria o engajamento em esporte e lazer na cidade de Belo Horizonte (MG), foi identificado junto a 10 pessoas com deficiência física, usuárias de cadeiras de rodas, narrativas ligadas a atitudes negativas e preconceituosas da sociedade. Entre a indignação e a compreensão, em relação às atitudes das pessoas ao lidar com a pessoa com deficiência, prevaleceu a observação de desconforto e incômodo, com vistas a uma representação deturpada da deficiência nesse processo relacional. Já no estudo de Foganholli e Gonçalves (2015Foganholli C, Gonçalves L Jr. Lazer de pessoas com deficiências. Licere. 2015;18(2):59-95. http://dx.doi.org/10.35699/1981-3171.2015.1115.
http://dx.doi.org/10.35699/1981-3171.201...
, p. 89), com base na fenomenologia, foram observadas “[...] possibilidades de rompimento com preconceitos, ideias mal-formadas ou impressões equivocadas” em práticas ligadas ao lazer. Para a autora e autor as práticas sociais onde pessoas possam interagir coletivamente trazem consigo o desenvolvimento de um processo educativo que, por sua vez, dialoga diretamente com a manutenção ou transformação de uma realidade.

Embora sejam de grande importância tais achados, que identificam, denunciam e buscam saídas frente ao conjunto de arbitrariedades notadas por parte deste grupo social, identifica-se a necessidade de avançar dos fatores causais externos ao processo que materializa situações percebidas, no campo das relações sociais, de discriminação e preconceito. Ao contrário existe um risco neste sentido, de idealizar o comportamento da sociedade em um plano abstrato, sem problematizar as transformações sociais e a modificação estrutural das relações sociais. Ou, porventura, pensar o lazer em torno de um virtuosismo, capaz de enfrentar por si só esquemas socialmente constituídos que produzem o comportamento individual. Diz respeito a um processo de desistorização que traz como ameaça uma naturalização de regimes excludentes. Uma reflexão que se constrói, portanto, é que estudos não se abstenham de discutir as “forças internas”, concretas, pelas quais se desencadeiam e se estimulam as antinomias que levam ao processo de exclusão desta parcela da população frente ao esporte e lazer.

Sobre isto Húngaro (2008)Húngaro EM. Trabalho, tempo livre e emancipação humana: os determinantes ontológicos das políticas sociais de lazer [tese]. Campinas: Universidade Estadual de Campinas; 2008. aborda a questão do modo de produção capitalista e a importância da categoria trabalho para o entendimento da vida social e do fenômeno lazer. Chama atenção que, a partir do momento em que a produção material da vida social se torna predominante, uma reflexão histórico-sistemática se impõe necessariamente. Em seu turno, enquanto um elo entre o lazer e a pessoa com deficiência, Mike Oliver desenvolve a ideia de um processo de hegemonia, que sob o efeito da categoria trabalho produz a deficiência enquanto desvantagem. Para o autor a diferenciação, que coloca a pessoa com deficiência em desvantagem, é produzida de uma forma particular. Uma exclusão social e econômica a partir do advento do capitalismo: “[...] como um problema individual que requer tratamento médico” (Oliver, 1996Oliver M. Understanding disability: from theory to practice. New York: St. Martin’s Press; 1996. http://dx.doi.org/10.1007/978-1-349-24269-6.
http://dx.doi.org/10.1007/978-1-349-2426...
, p. 127, tradução do autor).

Do que provoca este olhar conceitual, tendo em vista a busca por superação dos regimes excludentes, passa-se a analisar que a percepção dos sujeitos, embora legítimas, necessitam progredir no sentido de lançar luz sobre uma realidade sócio-histórica onde formas ocultas de dominação e exploração passam a caracterizar o status moral do indivíduo marcado, estigmatizado. Implica dizer que as práticas de esporte e lazer ao se fundamentar historicamente no campo das relações do trabalho e do tempo livre trouxeram consigo costumes, valores e representações dos/as que pertencem a sociedade produtiva, ao contrário do que foi preparado à pessoa com deficiência, excluída do trabalho remunerado. Se existe, por um lado, um discurso dominante que obedece a uma construção normativa do corpo, com uma ideia e um sentimento comum capaz de dialogar com tais práticas, por outro seu inverso é projetado, pois é alinhada a argumentos científicos de incapacidade e anormalidade não reconhecendo como os sujeitos significam tais práticas (Aitchison, 2009Aitchison C. Exclusive discourses: leisure studies and disabilitty. Leis Stud. 2009;28(4):375-86. http://dx.doi.org/10.1080/02614360903125096.
http://dx.doi.org/10.1080/02614360903125...
).

As questões relacionais existem, todavia, seriam uma consequência do cenário a que foi submetida a pessoa com deficiência. As relações materiais de existência do modo de produção capitalista ao marcar a deficiência como sombra à eficiência na relação de produção acabam desdobrando essa condição para o acesso e usufruto dos bens sociais.

Em vista disso coloca-se em destaque o debate que comporta a relação do corpo e sua disposição no espaço-tempo do esporte e lazer refletindo que as interações das estruturas biológicas e intelectivas se veem amparadas ou condicionadas às necessidades vinculadas ao modo de produção. Podemos perguntar, por exemplo, se o esporte adaptado ao propor medidas para que a pessoa continue explorando suas potencialidades, posta da maneira apartada como está, contribui para o processo de inclusão ou se constitui como anteparo ao componente de poder e interesse da sociedade corponormativa? Ou, de outro modo, se existiriam justificativas para espaços separados de esporte e lazer para pessoas com deficiência? Essa é uma tentativa necessária para se contrapor a cenários que legitimam, em projeção ascendente, os valores do corpo àqueles /as que se tornam peça-chave na produção do capital. Cenário em que o chamado “corpo capaz” (ou able-bodied, em inglês), segundo Imrie (2005)Imrie R. Opression, disability and access in the built environment. In: Shakespeare T, editor. The disability reader: social science perspectives. New York: Continuum; 2005. p. 129-46., acaba sendo amplamente valorizado ao mesmo tempo em que, numa espécie de dupla moral, também legitima de forma negativa seu oposto, gerando a opressão e discriminação contra a deficiência, com base na sua (in)capacidade.

CONCLUSÕES

Esta pesquisa teve como objetivo analisar como pessoas com deficiência física usuárias de cadeiras de rodas percebem o horizonte do esporte e lazer na cidade. Por meio da pesquisa do tipo etnográfica com estratégias de observação participante, registro de campo e entrevista em profundidade se aproximou de grupos espalhados na cidade de Brasília-DF.

Na tentativa de expor a rede de relações advindas de nexos, contradições, invisibilidade e emergência deste público, mesmo considerando a complexidade de tais relações (que não são lineares, em termos semânticos e sistêmicos), a pesquisa procurou contribuir para o mapeamento e debate das formas de participação e envolvimento cultural.

Os resultados foram divididos em dois pontos de análise. O primeiro nas narrativas em que se tornam evidentes as ausências e/ou dificuldades de acesso as localidades dos equipamentos culturais, transporte coletivo, rampas, guias e deslocamento das cadeiras dentro dos espaços de esporte e lazer, apontando para uma realidade de ambientes que refletem um padrão urbano de exclusão. Analisada a materialidade das práticas sociais itinerários de restrição acabam perfazendo o trajeto dos participantes sugerindo a inacessibilidade como um novo instrumento institucional de exclusão, no lugar dos espaços de enclausuramento.

E o segundo ponto, sobre a percepção dos participantes acerca da forma como a sociedade lida com a deficiência no universo das práticas de esporte e lazer. As narrativas demonstram que mesmo com o papel de organização coletiva dos grupos percepções que envolvem o incômodo, constrangimento, desinformação e sentimento de não pertencimento acabam prevalecendo. Amarradas à condição de barreiras o quadro que se vislumbra desperta mais relações de dependência do que autonomia perante a sociedade.

Como resultado, para além do que parece ser apenas um conjunto de condições materiais impeditivas, costumes e comportamentos irrefletidos, as análises conduzem a necessidade de se compreender o cenário de acesso à cidade para além do plano empírico. Isso envolve assumir a historicidade ligada à deficiência, no sentido de uma análise histórica e materialista desse processo, e o embate superador com o discurso da corponormatividade naquilo que se apresenta nas experiências de esporte e lazer.

  • 1
    Os termos esporte e lazer, ao longo do estudo, se apresentam enquanto sinônimos. Justifica-se por compreender, para além da existência do treinamento e competição, preceitos agonísticos do esporte, a sua coexistência enquanto manifestação lúdica, cultural e política, em referência as experiências de lazer.
  • 2
    O Decreto 5.296/04 destaca a deficiência física como: “[...] alteração total ou parcial de um ou mais segmentos do corpo [...] apresentando-se sob a forma de paraplegia, paraparesia, monoplegia, monoparesia, tetraplegia, hemiparesia, amputação ou ausência de membro, paralisia cerebral, membros com deformidade congênita ou adquirida, [...]” (Brasil, 2004Brasil. Decreto nº 5.296. Estabelece normas para promoção de acessibilidade [Internet]. Diário Oficial da União; Brasília; 3 dez 2004 [citado 2022 Mar 4]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5296.htm
    http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
    , s/p).
  • 3
    Existe uma gradação neste sentido em que é necessária uma espécie de “rito metodológico” ao adentrar o campo. Questões como: primeiro contato, conhecimento do espaço a ser pesquisado, conhecer pessoas e ganhar sua confiança e organização de trabalho são alguns destes elementos que interligados a uma rotina de trabalho e a constante reflexão orientam a tentativa metodológica.
  • FINANCIAMENTO Este estudo contou com o apoio financeiro da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Código de Financiamento 001.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    10 Abr 2022
  • Aceito
    27 Abr 2022
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