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Vozes em diálogo: ensino, leitor e literatura sob o foco dos docentes de licenciatura em letras

VOICES IN DIALOGUE: TEACHING, READER AND LITERATURE UNDER THE FOCUS OF UNDERGRADUATION STUDENTS FROM TEACHER EDUCATION IN PORTUGUESE

VOCES EN DIÁLOGO: ENSEÑANZA, LECTURA Y LITERATURA BAJO EL FOCO DE LOS DOCENTES DE LICENCIATURA EN LETRAS

RESUMO

O artigo tem como objeto de análise os direcionamentos do ensino de literatura nas faculdades federais de letras (licenciaturas) do estado de Minas Gerais. Para a realização da análise, empregaram-se abordagens qualitativa e quantitativa, dados que foram obtidos fundamentalmente por meio de pesquisa de campo. Documentos e entrevistas com professores das universidades pesquisadas compuseram o corpus do trabalho. Apreendem-se, pela leitura dos dados, diversas vozes acerca das relações literatura-ensino. A partir daí, levanta-se uma série de reflexões sobre tais processos, delineando-se o lugar que a literatura ocupa contemporaneamente nessas universidades.

PALAVRAS-CHAVE:
ensino; leitura; literatura; formação de professores em letras

ABSTRACT

The article has as it subjects of analysis the directions literature teaching is taking in federal universities of teacher education courses (in Portuguese) in the state of Minas Gerais. To perform the analysis, were employed qualitative and quantitative approaches to data, that were obtained primarily through field research. The corpus is composed of documents and interviews with professors from studied universities. Data analysis revealed the presence of diverse voices concerning to the relation between literature and education. By these voices, a series of reflections on such processes could outline the place literature contemporaneously occupies in the universities investigated in this study.

KEYWORDS:
teaching; reading; literature; teacher education in portuguese

RESUMEN

Este texto, oriundo de investigación desarrollada en el período de 2007 a 2010, tiene como objeto de análisis los direccionamientos de enseñanza de literatura en las facultades federales de letras (licenciaturas) del estado de Minas Gerais. Para la realización del análisis, se utilizó enfoques cualitativo y cuantitativo de los datos, que se obtuvieron fundamentalmente, por medio de pesquisa de campo. Documentos y entrevistas con profesores de las siguientes universidades compusieron el corpus de la investigación. Aprehende, por medio de entrevistas, diversas voces acerca de las relaciones literatura-enseñanza. A partir de ahí, se levanta una serie de reflexiones sobre tales procesos, delineándose el lugar que la literatura ocupa contemporaneamente en esas universidades.

PALABRAS CLAVE:
enseñanza; lectura; literatura; formación de profesores en letras

Este artigo origina-se de trabalho de pesquisa realizado no período de 2007 a 2010, envolvendo todos os cursos de letras/licenciatura localizados na região de Minas Gerais, à época.1 1 O corpus da pesquisa abrangeu universidades públicas federais. No caso da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), trabalhei com os documentos disponibilizados na internet. O curso de letras passava por mudanças substanciais no projeto pedagógico, o que inviabilizou as entrevistas com os docentes. Foram utilizados recortes de entrevistas realizadas com docentes de literatura de seis universidades: Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP); Universidade Federal de Viçosa (UFV); Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF); Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ); Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM). O objetivo das entrevistas foi o de ouvir as vozes desses professores2 2 A fim de assegurar o sigilo quanto à identidade dos docentes envolvidos na pesquisa, em consonância com o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido que receberam à época das entrevistas, optei por usar o gênero masculino em todo o texto. no que concerne às relações entre leitura/literatura e ensino em cursos de letras, analisando-se em que medida essas vozes eram harmonizadas ou dissonantes. Tal estudo foi apresentado na 36ª Reunião da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), por meio do GT10 - Alfabetização, Leitura e Escrita. Agora, revisitado, incorpora os diálogos engendrados pelo grupo após a apresentação oral.

A investigação dedicou-se, primeiramente, ao estudo dos currículos de letras das universidades e teve caráter quantitativo. A segunda parte (com foco na docência) debruçou-se sobre as entrevistas realizadas com professores de literatura que faziam parte dos colegiados de curso das instituições. Também foram entrevistados os professores que na época exerciam o papel de coordenadores. As entrevistas receberam tratamento qualitativo e são elas que constituem a essência deste texto.

Para chegar aos resultados, foi necessário recorrer, várias vezes, a cada entrevista, gravada em áudio, ouvindo-a repetidamente. Entrevistei dezoito professores. Desses, seis ocupavam a função de gestores dos cursos e doze eram docentes da área literária e membros do colegiado de curso. Neste trabalho serão enfatizadas as entrevistas com os doze professores específicos da área literária. A metodologia utilizada para o tratamento das entrevistas foi a chamada análise de conteúdo, tal como caracterizada por Laurence Bardin (1995)Bardin, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1995.. Entremeadas à metodologia estão as noções-chave de letramento literário, de Graça Paulino (1998)Paulino, G. Letramento literário: cânones estéticos e cânones escolares. In: Reunião Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação, 21., 1998, Caxambu. Anais... Caxambu: ANPEd, 20-24 set. 1998., bem como os pressupostos da estética da recepção e de autores advindos da teoria literária em sintonia com a ideia do dialogismo bakhtiniano.

As entrevistas passaram por várias transcrições até se chegar a textos de referência. Após várias leituras desses textos, foi possível fazer recortes e criar categorias de análise com as respostas ao roteiro de entrevista. Nesse roteiro busquei, em primeira instância, conhecer a formação do professor e quais disciplinas ele lecionava ou havia lecionado. Realizei, ainda, consultas ao currículo Lattes dos docentes com o intuito de conhecer o universo de pesquisa ao qual estavam vinculados.

O roteiro dividia-se em dez questões que almejavam apreender a ênfase que o professor dava às aulas de literatura, os objetivos que buscava alcançar, os recursos didáticos de que lançava mão, se as aulas eram dadas pelo viés da periodização literária, qual a função da teoria literária para o ensino de literatura, como era a relação do professor com o cânone literário, se ele, enfim, discutia "ensino" nas aulas de literatura.

Algumas questões foram agrupadas e resultaram nas seguintes categorias de análise: "Aula de literatura"; "Relação professor/correntes teóricas"; "Relação professor/autores"; "Relação literatura/ensino". Nas releituras dos textos de referência, um assunto pareceu ser recorrente. Tratava-se da questão do leitor de hoje, de como o aluno de letras chega à universidade na atualidade. Assim, outra categoria foi construída: "Relação professor de literatura/aluno-leitor". Sobre essa questão, é ilustrativa a entrevista com um docente da UFJF:

Bom, eu já leciono literatura aqui há vinte anos. Então eu acho que, ao longo desses vinte anos, o perfil do aluno de letras mudou muito. Recordo-me que, no final da década de 80, você ainda tinha um aluno que procurava uma formação humanística mais abrangente. [...] Para esse aluno, você podia, de certo modo, trabalhar com um campo bibliográfico mais abrangente, mais interdisciplinar. O fato paradoxal é que, nos últimos anos, embora a gente tenha nas universidades brasileiras uma ênfase no chamado estudo interdisciplinar, o que eu venho percebendo cada vez mais é uma defasagem dos alunos de hoje na área de literatura e em relação a essas outras áreas dos campos de ciências humanas e ciências sociais. [...] Então, se você quer dar aula de literatura, por exemplo, relacionado com a questão da história, você tem que retomar aspectos históricos importantes para que você possa voltar depois também à questão literária. [...] Mas confesso que [para fazer isso] o esforço é muito maior. Você tem que cobrir muitas lacunas dos alunos. (Professor I da UFJF - Relação professor de literatura/aluno-leitor)

A compreensão de que o aluno de hoje chega à universidade com um repertório menor de leituras foi geral. Entretanto, em cidades menores, como São João del-Rei e Uberaba, a impressão foi a de que essa compreensão se aprofundava, uma vez que os docentes também puseram em questão a dificuldade dos discentes que moram no interior de terem acesso a bens culturais.

As entrevistas foram muito ricas e geraram variáveis importantes para análise, porém, neste trabalho, tratarei de maneira mais aprofundada da categoria "Aula de literatura" e, no fechamento do texto, discorrerei de maneira mais generalizada acerca dos resultados relacionados às outras categorias. No entanto, antes de passarmos às análises e, considerando que se tornar professor faz parte de um processo plural, vejamos um breve panorama dos sujeitos que se dispuseram a colaborar com esta pesquisa, para se perceber os contextos nos quais estavam inseridos.

O PERFIL DOS PARTICIPANTES DA PESQUISA

Quanto à formação dos participantes da pesquisa, dos seis professores que atuavam como coordenadores de curso/coordenadores de colegiado de curso, três possuíam a formação voltada para a área de linguística e três tinham formação na área da literatura. Desses, dois atuavam no campo da literatura estrangeira e um teve o mestrado voltado para literatura portuguesa, porém atuava como docente de língua francesa, interessando-se, na ocasião, por temas voltados para o ensino dessa língua. Com relação à titulação, três eram mestres. Desses, um finalizava o doutorado em letras (estudos linguísticos) pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e os outros dois não cursavam doutorado à época das entrevistas. Ambos eram mestres pela UFJF, porém em áreas distintas: estudos literários e linguística. Os demais cursaram o doutorado nos seguintes programas de pós-graduação: doutoramento em linguística pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), doutoramento em estudos literários pela UFMG, doutoramento em estudos literários pela University of Toronto (Canadá).

A análise dos dados revelou que uma das variáveis que influenciam na aproximação do curso de letras com a realidade da educação básica tem relação com a formação acadêmica dos gestores. Aqueles gestores cuja formação era em letras e cuja experiência profissional passava pela área pedagógica procuravam também privilegiar a formação pedagógica nos cursos que coordenavam. Para demonstrar tal influência, relatarei o que se passou na UFSJ. Na entrevista sobre a construção de um novo currículo para o curso, a coordenadora enfatizou o estímulo recebido do diretor de centro de ensino, cujo doutorado é na área de currículo, para a mudança das matrizes curriculares das licenciaturas (isso, no final dos anos 1990). De acordo com a professora, quando o Ministério da Educação (MEC) anunciou as novas diretrizes para as licenciaturas, o grupo da UFSJ já estava com o trabalho de renovação curricular praticamente concluído. Em visita de campo realizada à instituição, também percebi uma preocupação com questões relativas ao ensino. Além disso, constatei uma aproximação dessa universidade com as escolas de São João del-Rei e do entorno, bem como com a realidade local.

A trajetória acadêmica do coordenador do curso de letras da UFTM também mostrou uma preocupação com temas ligados à formação de professores e à formação de leitores. Do mesmo modo, percebi, nessa instituição, por ocasião da visita de campo, uma integração entre o curso, a realidade da educação básica e a realidade local.

Com relação aos doze professores da área literária, temos as seguintes formações: quatro docentes formaram-se na UFMG: doutorado em literatura comparada; três formaram-se na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) - dois desses são doutores em letras (ciência da literatura) e um é doutor em comunicação e cultura; três formaram-se na Universidade de São Paulo (USP), em diferentes especialidades: doutorado em literatura brasileira, doutorado em letras (teoria literária/literatura comparada) e doutorado em educação (apenas um docente com essa formação entre todos os entrevistados). Este último, em razão de sua formação - graduação e mestrado em letras e doutorado em educação -, atuava, à época, com temas voltados para ensino da literatura/relação leitura e literatura/escola e literatura/formação de leitor.

Ainda, dois professores tiveram a formação (doutorado) pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus de Assis e de Araraquara. O doutorado em letras pela UNESP de Assis teve como ênfase a teoria da literatura; o doutorado em letras pela UNESP de Araraquara foi na área de literaturas estrangeiras modernas. Como podemos constatar, as formações foram variadas, não se concentrando apenas na UFMG, como era de se esperar, pelo fato de esta pesquisa ter como recorte o estado de Minas Gerais. Cabe destacar mais uma vez o fato de apenas um docente possuir trajetória profissional com a interface letras/educação, o que revela certa dificuldade de diálogo entre as duas áreas.

Apenas os professores de literatura foram indagados quanto ao tempo de trabalho na instituição, uma vez que os cargos de coordenação duram apenas dois anos nas universidades públicas federais, e, além desse fato, parte desses docentes tinha a formação em linguística - área de formação acadêmica que não era central nesta pesquisa. Dos doze professores de literatura, obtive o seguinte resultado acerca do tempo de permanência na instituição: metade dos professores era recém-efetivada (nesses casos, o tempo variava de um ano e meio a três anos). Os demais docentes tinham a permanência variando entre nove e vinte anos de trabalho na mesma universidade. Os docentes recentemente contratados eram fruto do Programa de Expansão da Educação Superior Pública, iniciado em 2003, no primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.3 3 Os docentes que estavam na universidade há apenas um ano e meio já eram resultado do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais Brasileiras (REUNI), que é uma das ações integrantes ao Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), e foi instituído em reconhecimento ao papel estratégico das universidades - em especial do setor público - para o desenvolvimento econômico e social do país. A impressão percebida, visitando as universidades, era de intensa movimentação, trabalho, reorganização - tanto nos aspectos físicos quanto nos aspectos acadêmicos - em decorrência do momento político do período.

Com o intuito de conhecer o universo da pesquisa em que os professores entrevistados estavam vinculados, foi necessária a consulta a seu currículo. Os grupos de pesquisa aos quais esses docentes se filiavam foram organizados por universidade:

  1. Professores da UFMG:4 4 Esses foram os grupos de pesquisa listados nos currículos dos docentes. Algumas vezes, docentes da mesma instituição fazem parte de grupos de pesquisa diferentes, em virtude de seus interesses peculiares. Então, por exemplo, um professor da UFMG não está ligado a todos os grupos de pesquisa listados. Pode estar apenas em um ou em dois deles, dependendo das temáticas e assuntos que lhe interessam. História, Sociedade e Território; Núcleo de Estudos de Literatura Brasileira; Núcleo Walter Benjamin;

  2. Professores da UFSJ: Estudos Interdisciplinares de Gênero e Sexualidade; Memória e Modernidade;

  3. Professores da UFV: Grupo de Estudos e Pesquisa em Estudos Literários e Culturais;

  4. Professores da UFJF: Grupo de Pesquisa em Estéticas de Fim de Século; Núcleo de Estudos Ibéricos e Ibero-Americanos;

  5. Professores da UFTM: Núcleo de Estudos Literários (NEL);

  6. Professores da UFOP: Grupo de Pesquisa em Língua Inglesa: manifestações literárias, linguísticas e tradutórias; Literaterras: escrita, leitura, traduções.

Em relação à UFTM, cabe destacar que o coordenador de curso participava de grupos de pesquisa voltados para educação e leitura: Grupo de Pesquisa em Formação de Professores e Qualidade de Ensino nas Escolas Públicas do Triângulo Mineiro (GPEFORM) e Grupo de Pesquisa em História da Leitura, do Livro e das Bibliotecas, vinculado ao Programa Nacional de Incentivo à Leitura (PROLER).

Acerca dos projetos de pesquisa em andamento, observei interface leitura/literatura/ensino em uma pesquisa voltada para o incentivo à leitura literária, com vistas a apontar caminhos e diretrizes para a formulação de propostas pedagógicas e metodológicas a professores da educação básica. Trata-se de projeto do docente cuja formação era na interface letras e educação, a que dei destaque anteriormente.

As demais pesquisas, dos outros professores, inserem-se nos seguintes campos do saber:

  1. Relações: história, sociedade, literatura e território;

  2. Relações: literatura e memória cultural;

  3. Relações: literatura e cinema;

  4. Relações: literatura, fotografia, cinema e hipertexto;

  5. Relações: literatura brasileira e cultura afro-brasileira;

  6. Relações: literatura e outras artes;

  7. Relações: literatura e sexualidade;

  8. Relações: literatura e teatro.

Os temas antes elencados revelam a influência exercida pela literatura comparada, uma vez que ela estabelece uma rede de relações entre a literatura e os sistemas não literários. Nota-se, ainda, a influência dos estudos culturais, uma vez que vários artefatos culturais passam a ser considerados objeto de estudo: cinema, fotografia, teatro etc. Sem ter, necessariamente, conotação comparativista, percebi interesses em outros temas, como poéticas da modernidade, espaço e tempo na literatura, escritas biográficas, Modernismo brasileiro, narrativa moderna, narrativa poética e estudos shakesperianos.

Como se pode constatar, há uma riqueza de temas e de interesse no campo dos estudos literários, porém há grande escassez de pesquisas voltadas para a interface literatura/educação. Dos professores pesquisados, há apenas um docente, da UFSJ, com pesquisa voltada para literatura infantojuvenil - sobre Ana Maria Machado, autora de livros para crianças. Os dados sobre os interesses que permeiam as pesquisas dos professores da área de literatura reiteram as falas de Maria Alice Faria (1987)Faria, M. A. Contramão I, II, III. 1986-1987. 550f. Memorial apresentado no Concurso Público de Títulos e Provas para o cargo de professor titular junto ao Departamento de Literatura, no Instituto de Letras, História e Psicologia - Universidade Estadual Paulista, Assis, 1987., que apontam para certo isolamento dos docentes de letras no que diz respeito a questões de ensino e à formação de professores, como se esses assuntos não fizessem parte do universo ao qual pertencem.

DANDO VOZ AOS SUJEITOS DA PESQUISA: O QUE SUAS PALAVRAS REVELAM?

Um fato que me impressionou desde a primeira leitura das entrevistas, e que se confirmou ao longo das análises, foi a diferença entre a voz desses sujeitos. Lembro-me de que, durante o trabalho de campo, uma professora riu e disse-me assim: "Você vai descobrir que cada um atira para um lado", como se previsse o que eu encontraria.

As diferenças entre algumas dessas respostas serão mostradas a seguir. Cito, como exemplo, as respostas dadas em relação à categoria "Aula de literatura", que inclui as ênfases dadas pelo docente ao lecionar a disciplina.

Depende, se a disciplina for uma disciplina do tópico, como a que eu praticamente todo semestre ofereço, eu enfatizo a questão da sensibilização do aluno para a leitura. Bem, se eu consigo cumprir com a minha programação, fazendo com que o aluno consiga, na finalização da graduação, reconhecer autores no tempo em que eles produziram a sua literatura, já me dou por satisfeita. [...] E eu nunca trabalho de forma diacrônica, trabalho sempre em um viés sincrônico. [...] As mudanças nessa disciplina introdutória são pequenas, porque eu prefiro levar o curso com discussões teóricas e discussões sobre os autores. Deixo para discutir questões próximas às minhas pesquisas, quando estou trabalhando com disciplinas optativas. Essa disciplina introdutória é obrigatória, o aluno não se forma sem passar por ela. (Professor I da UFMG - ênfase dada às aulas de literatura)

Bom, a minha formação é em história. Então, os aspectos social, cultural sempre são levantados. Mas a minha preocupação fundamental é com o texto literário. (Professor II da UFMG - ênfase dada às aulas de literatura)

Nos depoimentos, podemos evidenciar duas preocupações: o primeiro professor demonstra importar-se com o leitor, principalmente quando leciona disciplinas introdutórias para alunos que acabaram de entrar no curso. O segundo professor atém-se ao texto literário - a ênfase é, portanto, no texto - e nas questões extratextuais, como os aspectos sociais e culturais.

Ainda em relação aos professores da UFMG, vejamos os principais objetivos elencados para o ensino de literatura:

[...] Eu nunca dei literatura pensando em ensinar interpretações, ou acreditar, por exemplo, na concepção de que a literatura é um reflexo da sociedade. O meu principal objetivo ao lecionar literatura é mostrar a sua importância, o seu fascínio. Eu tento mostrar esse assombro que vem da literatura, porque a literatura interroga quem a lê e, principalmente, ensina demais. Veja que absurdo que é o livro. Como que um objeto pequeno, portátil, que você carrega para qualquer lugar, é capaz de te levar a tantos lugares? Você vai para qualquer país através do livro, em qualquer tempo e espaço. Ele é uma mídia. Bem diferente das novas tecnologias, mas é uma mídia. Eu tento mostrar aos alunos que o livro é uma mídia que ainda consegue informar e produzir conhecimento, mesmo diante das novas tecnologias. (Professor I da UFMG - objetivos ao lecionar literatura)

Bom, eu acho que é isso mesmo, é fazer com que o aluno perceba a literatura como uma forma de compreensão do mundo e do homem. (Professor II da UFMG - objetivos ao lecionar literatura)

No primeiro depoimento, percebe-se certa filiação ao pensamento dos formalistas russos: no ato da leitura literária nossas suposições habituais são "desautomatizadas". O "assombro" a que o professor se refere poderia ser entendido como o estranhamento que a linguagem literária suscita no leitor. Há, no elenco dos objetivos apresentados nesse depoimento, uma ênfase na linguagem artística, no seu caráter inaudito e inaugural. No segundo depoimento, a ênfase recai para o entorno do texto literário: seus aspectos sociais e históricos - a relação entre literatura e mundo.

Vejamos, a seguir, os depoimentos dos docentes da UFV:

Nas minhas aulas eu enfatizo a leitura das obras literárias e a formação do crítico literário, do aluno como crítico. [...] De certo modo, é fazer o aluno se interessar pela literatura brasileira. O meu principal objetivo é fazer o aluno se interessar pela literatura brasileira a ponto de querer desenvolver pesquisa, publicar, desde a graduação. (Professor I da UFV - ênfases e objetivos ao lecionar literatura)

Passemos ao depoimento do segundo professor:

[...] Primeiramente, eu procuro dar um nivelamento na disciplina, no sentido de aprofundar, depois algumas coisas que serão importantes, alguns conceitos que depois serão importantes mesmo para disciplinas específicas de literatura estrangeira ou literatura brasileira que eles vão ter futuramente. [...] Eu acho que existe um ponto fundamental que a gente na letras precisa tomar um pouco mais de cuidado, que é atentar para a questão da própria leitura. Não dar a teoria meramente pela teoria, porque a gente aqui não tem uma situação favorável apenas para a teorização. O perfil dos alunos demanda a passagem da teoria para a prática. Então, respondendo ao ponto central dessa pergunta, meu foco seria realmente "ensinar os alunos a ler literatura". Junto com as teorias eu também trabalho com contos, poemas; enfim, textos que iremos interpretar, do ponto de vista dos aspectos literários propriamente ditos. (Professor II da UFV - ênfase dada às aulas de literatura)

Eu acho que a preocupação maior é a formação de leitores. Eu parto do princípio de que esses alunos serão professores. Independente da especialização deles, seja inglês, francês ou português, eles serão professores e, na minha concepção, esses professores de letras é que serão os mediadores para formação de novos leitores. (Professor II da UFV - objetivos ao lecionar literatura)

Esses depoimentos mostram haver objetivos diferentes em relação às aulas de literatura entre os professores da mesma instituição: um professor enfatiza a própria obra literária, ou seja, o texto, e objetiva, com isso, a formação do crítico literário; outro professor desloca a atenção para a formação do leitor - preocupa-se em "ensinar o aluno a ler literatura", tendo como finalidade maior a formação do professor de letras.

Algumas diferenças no tratamento do cânone, questões que entraram na categoria "Relação professor/autores", também surgiram. Por exemplo, na UFMG, assim se pronunciou um professor:

Trabalho principalmente com autores do cânone. Acho importante isso. Minha relação com o cânone é de harmonia completa. Eu acho que, para o aluno que está em formação, é imprescindível que saia da universidade sabendo razoavelmente sobre autores que são fundamentais na história da literatura. No caso da história da literatura brasileira, então, não dá para um aluno sair do curso de letras sem ter lido Euclides da Cunha, por exemplo, que é um autor pesado, ou Guimarães Rosa, que é um autor que é muito prazeroso de se ler, mas que é muito difícil. Olha, nessa disciplina, eu estou trabalhando com Gregório de Matos, Álvares de Azevedo, Augusto dos Anjos, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Cruz e Souza, Murilo Mendes. (Professor I da UFMG - relação com autores do cânone literário)

Vejamos o depoimento de outro professor da mesma instituição:

Eu não acho que eu trabalho de uma forma canônica. Eu não acredito em uma lista [referindo-se aos autores clássicos] perene... Eu detesto Harold Bloom [autor que escreveu O cânone ocidental]. Para mim, literatura é uma conversa continuada, e não tem por que ela ficar conversando, se não tiver conversa. Sem essa conversa, a literatura acaba. O papel do comentador é fundamental. Eu me vejo muito como comentadora. Se os textos causam comentários, então são textos artísticos. O cânone vai e volta. Ele não é perene. [...] Eu não acredito no cânone como se fosse algo distante, acho que Camões faz perguntas até hoje. Fernando Pessoa interroga o tempo inteiro. Eu trabalho em sala de aula vários autores, vários poetas que ninguém conhece, se você for pesquisar na história da literatura, não vai encontrá-los lá, listados. Não significa, com isso, que eu não vá trabalhar com autores representativos, não é isso... Eu gosto de trabalhar estes autores ao lado de outros e problematizar a ideia do cânone. Eu mostro que junto com o conceito de cânone, há a ideia do movimento, sabe? (Professor II da UFMG - relação com autores do cânone literário)

Pareceu que, no primeiro depoimento, o conceito de cânone é mais tradicional, clássico; no segundo depoimento, a questão do cânone aparece problematizada. No primeiro depoimento percebem-se também juízos de valor: Euclides da Cunha é um "autor pesado", Guimarães Rosa é um "autor difícil".

Ainda tratando das diferenças entre as vozes, na "Relação professores/autores do cânone", aparece o depoimento negativo acerca do teórico Harold Bloom, como vimos anteriormente. Já em outro depoimento, de um professor de outra instituição, a fala em relação ao referido teórico, é outra:

Trabalho com autores do cânone universal, como Shakespeare. Agora, falando de críticos, por exemplo, um que para mim é fundamental é o Harold Bloom, que escreveu A invenção do humano, ao discorrer sobre Shakespeare. Aliás, o Harold Bloom é o expert em Shakespeare, então, quando eu entro no Renascimento - em literatura inglesa - não tem jeito. Ele é o crítico que me dá todo o suporte teórico. E na própria prática de ensino que eu vou começar este semestre ele também é fundamental, porque ele tem o livro O cânone ocidental. (Professor I da UFTM - relação com autores do cânone literário)

Tratando novamente da categoria "Aula de literatura", apresento dois depoimentos para mostrar as diferenças encontradas nas respostas de docentes da UFSJ em relação à pergunta: "Quais são os seus principais objetivos ao lecionar literatura?"

Formar um professor sem preconceito com nenhum gênero literário, que não tenha aversão a nenhum tipo de literatura porque ele [o aluno, futuro professor] vai trabalhar com jovens, que não têm esse tipo de preconceito. O nosso curso é noturno, e eu posso dosar com eles a quantidade de leitura, mas eu não abro mão da qualidade. E o objetivo maior é dar uma formação muito sólida. Durante muito tempo a literatura ficou uma coisa de segunda mão na escola. Uma perfumaria dentro da escola. Eu digo de quinta à oitava série, porque no ensino médio ela era sempre retomada em função do vestibular. Então, eu penso que precisamos incutir no aluno que a literatura é um meio importante de abrir sua visão de mundo, de ter acesso ao conhecimento mesmo. Eu digo [a professora aqui falou em um tom de ironia] que ela não serve para nada a não ser tornar sua mente aberta para o resto que você precisa enxergar. (Professor I da UFSJ - objetivos ao lecionar literatura)

Um deles é tornar acessível o acesso aos bens literários. Há alunos, por exemplo, que nunca ouviram falar de Paulo Leminski, e eu diria que não é por ignorância ou pelo desinteresse. Isso acontece porque, às vezes, na cidade deles não há biblioteca. Então eles passam a conhecer os autores aqui, na academia. Por isso, um dos meus objetivos é fazer a literatura circular, seja aquela que era publicada em folhetins até aquela presente nos livros mais atuais, que eu trago de casa e coloco nas mãos deles. Às vezes eu trago para eles edições que eu tomei contato em importantes eventos culturais, ou que as editoras novas mandam para mim, por exemplo o lançamento da nova edição de Grande Sertão Veredas. Assim, um dos objetivos é despertar o gosto pelos livros, depois o como fazer, ou seja, como fazer para que os alunos possam desenvolver suas próprias habilidades como leitores. Além disso, eles precisam escrever algo a respeito do que leram. Eu acho importante formar esse crítico. Esse crítico literário, esse crítico social também, porque a literatura - e isso é muito complicado - ela retrata a realidade. Não é bem isso e é isso. Porque ela diz sobre o mundo. Machado de Assis disse sobre seu tempo e ele o tornou atemporal, na medida em que o leitor consegue ler o Brasil também em suas obras. (Professor II da UFSJ - objetivos ao lecionar literatura)

Na primeira resposta, ressalta-se a preocupação com a formação do professor; na segunda resposta, enfatiza-se a questão de desenvolvimento do gosto pela leitura e, assim, a possibilidade de se formar o crítico literário e o crítico social.

Sabe-se que a universidade, o ambiente acadêmico, é o lugar mesmo de encontros e desencontros, de amplas discussões e diferenças de pensamento. Então, poderíamos refletir, não é importante e rico esse resultado em que as vozes se diversificam? Nesse caso, parafraseando uma canção de Caetano Veloso, a sensação é a de que, no âmbito da literatura e de seu ensino, "alguma coisa está fora da ordem". Ou, valendo das palavras da entrevistada, "cada um está atirando para um lado". Não há necessidade de uma concordância coletiva, mas seria interessante que houvesse uma harmonia entre professores de um mesmo departamento, uma linha de pensamento que norteasse os rumos do ensino da literatura. Tudo isso para que o aluno saísse da graduação sabendo "o que ensinar", "como ensinar", "para que ensinar" e "para quem ensinar".

Ou seja, ao se formar em letras, o aluno deveria, minimamente, saber como agir quando estivesse no contexto de determinada escola, com determinado público, com características e necessidades próprias. Além disso, sem essa coesão entre os professores de literatura, os livros didáticos de língua portuguesa permanecerão sem mudanças no que tange às questões literárias. As fragilidades na educação básica quanto ao ensino de literatura continuarão a existir. A ausência de diálogos mais profícuos entre os professores de literatura pode ter reflexos negativos tanto no currículo do ensino superior quanto no currículo da educação básica. Não defendo aqui uma "camisa de força" para o ensinar literatura, mas parâmetros claros. Se isso não acontece nem mesmo entre os pares de um só departamento, como pensar nessa possibilidade para Minas Gerais ou, até mesmo, para o Brasil?

A sociedade de hoje é uma ameaça para a literatura, pois, em toda parte, é o instrumentalismo estreito que reina, é o discurso da adaptação e da utilidade momentânea que prevalece. Como justificar a presença da disciplina literatura na escola, se a própria sociedade pragmática a esmaga? Some-se a isso um não engajamento por parte dos professores dessa área para que se visualizem currículos em que a literatura passe a não mais figurar ou a existir com carga horária reduzidíssima.

Talvez essas vozes tão diversificadas dos professores de literatura do ensino superior, somadas ao desinteresse por pesquisas que articulem literatura/ensino, conforme revelam suas formações, sejam possíveis respostas à pergunta da professora Maria Alice Faria (1987, p. 83)Faria, M. A. Contramão I, II, III. 1986-1987. 550f. Memorial apresentado no Concurso Público de Títulos e Provas para o cargo de professor titular junto ao Departamento de Literatura, no Instituto de Letras, História e Psicologia - Universidade Estadual Paulista, Assis, 1987.:

[...] Por que órgãos do governo, quando discutem o ensino do português, onde se dá um papel tão importante à literatura, só recorrem aos linguistas como conselheiros e consultores? É um mistério que eu gostaria de desvendar.

Certa harmonia nas concepções sobre o ensino de literatura entre os professores da educação superior e diretrizes comuns aos cursos de letras certamente teriam repercussões positivas na publicação de livros didáticos de língua portuguesa no que se refere ao trato do texto literário, nas políticas públicas de ensino de língua e linguagem e, assim, na qualidade do trabalho do professor que atuará nos ensinos fundamental e médio. Porém, apesar da diversidade de vozes, é possível traçar um panorama em relação às categorias criadas para o desenvolvimento da pesquisa, objeto deste artigo. É o que veremos a seguir.

AULA DE LITERATURA - SÍNTESE

Quanto à categoria de análise "Aula de literatura", no que diz respeito às ênfases dadas às disciplinas ministradas na área literária, temos respostas que agrupei nos seguintes itens:

  1. Preocupação maior com o texto e com os elementos extratextuais;

  2. Busca de um equilíbrio entre a teoria e as leituras das obras;

  3. Ênfase na leitura;

  4. Ênfase no aluno (leitor).

Dos doze professores entrevistados, dois responderam enfatizar o texto e o contexto (aspectos históricos, culturais, sociais etc.); dois professores buscar um equilíbrio entre a teoria e a leitura das obras; seis docentes disseram enfocar a leitura das obras e dois docentes afirmaram deslocar a atenção para o leitor (o aluno).

As diferentes respostas tiveram, certamente, relação com a própria história da teoria literária.5 5 Para maior aprofundamento, consultar Jauss (1994) e Zilberman (1989). Poderíamos resumir a história da teoria literária da seguinte forma: preocupação com o autor (Romantismo e século XIX - perpetua na crítica literária a inclinação historicista e o biografismo); preocupação exclusiva com o texto (New Criticism - movimento crítico que se desenvolve a partir dos anos 1930, nos Estados Unidos); e, nos últimos tempos, uma acentuada transferência de atenção para o leitor. A reflexão que move a chamada estética da recepção, por exemplo, preocupa-se, sobretudo, com as operações receptivas, ou seja, com os procedimentos efetuados pelo leitor no contato com a obra e suas consequências na conformação do público (a receptividade da obra em sentido amplo).

Observa-se, a partir dessa trajetória histórica, a ênfase em três polos: nos autores (produtores literários), nesse período predominou o chamado biografismo; no texto literário, nesse momento a ênfase recai para o polo da textualidade, representado pelo formalismo e pelo marxismo, cujos métodos de análise veem o fato literário dentro de um círculo fechado de estética da produção e da representação; e, por fim, a ênfase no público (conjunto de receptores), no qual se considera a literatura enquanto produção, recepção e comunicação, em uma relação dinâmica entre autor, obra e público, representado pela estética da recepção. Poderíamos, portanto, dizer que a teoria literária se tem caracterizado por deslocar a sua atenção de um desses três polos para outro. Entretanto, hoje são levados em conta acentuadamente a recepção e os aspectos contextuais, que impedem a visão de uma literatura fechada em si mesma. Por esse motivo, espera-se uma maior ênfase no aluno, em seu papel de leitor.

ENFATIZANDO O LEITOR: OUTRAS CONTRIBUIÇÕES TEÓRICAS

Não obstante os avanços da teoria literária em direção à valorização do sujeito-leitor, discussões em torno do que se convencionou chamar de letramento e, mais especificamente, letramento literário, estão em voga no cenário acadêmico atual. São conceitos que também dão atenção para os processos que envolvem as habilidades de leitura e escrita, em um contexto específico. Além disso, pesquisadores das áreas de letras e educação vêm estudando os modos como essas habilidades se relacionam com as necessidades, valores e práticas sociais dos sujeitos.

De acordo com Soares (1998)Soares, M. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 1998., o conceito de letramento envolve um conjunto de fatores que varia de habilidades e conhecimentos individuais a práticas sociais e competências funcionais e, ainda, a valores ideológicos e metas políticas. Na esteira de Soares (idem, p. 39), podemos entender letramento como "o resultado da ação de ensinar e aprender as práticas sociais de leitura e escrita: o estado ou condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como consequência de ter-se apropriado da escrita e de suas práticas sociais".

Para Paulino (1998)Paulino, G. Letramento literário: cânones estéticos e cânones escolares. In: Reunião Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação, 21., 1998, Caxambu. Anais... Caxambu: ANPEd, 20-24 set. 1998., o conceito de letramento pode ser pensado em relação à literatura. Como outros tipos de letramento, o literário continua sendo uma apropriação pessoal de práticas de leitura e escrita que não se reduzem à escola, mas passam por ela. A respeito da formação do leitor de literatura, destaca Paulino (idem, p. 8):

A formação de um leitor literário significa a formação de um leitor que saiba escolher suas leituras, que aprecie construções e significações verbais de cunho artístico, que faça disso parte de seus fazeres e prazeres. Esse leitor tem de saber usar estratégias de leitura adequadas aos textos literários, aceitando o pacto ficcional proposto, com reconhecimento de marcas linguísticas de subjetividade, intertextualidade, interdiscursividade, recuperando a criação de linguagem realizada, em aspectos fonológicos, sintáticos, semânticos e situando adequadamente o texto em seu momento histórico de produção.

Se os cursos de letras levam em consideração os estudos teóricos comentados, é bastante problemático o fato de apenas dois entrevistados demonstrarem, em seus discursos, que investem mais no aluno em seu papel de leitor e de futuro formador de novos leitores, nas aulas de literatura. Ou seja, não basta criticar a má formação escolar de leitores literários, também não basta discutir teoricamente o assunto, é preciso assegurar um encontro entre teoria e prática para que os discentes em letras saibam, após a formatura, serem professores de literatura de forma eficiente.

No entanto, apesar das lacunas aqui expostas, percebe-se um avanço no modo de dar aulas de literatura no ensino superior se cotejarmos as respostas de hoje às que foram dadas a Komosinski (1992)Komosinski, L. M. G. Literatura nos cursos de letras: um ensino centrado no leitor. 1992. 176f. Tese (Doutorado em Letras) - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1992.. À época em que a autora fez sua pesquisa, intitulada Literatura nos cursos de letras: um ensino centrado no leitor, ela observou grande ênfase nos autores, e defendia uma maior atenção para com o aluno (leitor) nas aulas de literatura.

No caso de minha pesquisa, os aspectos contextuais também foram levados em conta por quase todos os professores entrevistados. A perspectiva comparativista foi enfatizada em muitas respostas, revelando a influência do dialogismo bakhtiniano na formação dos professores, copartícipes da pesquisa. Ou seja, a literatura não é vista por esses professores como um sistema fechado. Influenciados pelo pensamento bakhtiniano, para eles a obra literária é uma construção polifônica, na qual várias vozes se cruzam, em um jogo dialógico, cruzando-se também várias ideologias, uma vez que a obra literária não está isolada, mas faz parte de um grande sistema de correlações.

Depreende-se das respostas de tais docentes uma preocupação para com a leitura, porém, às vezes, surge, na "voz de alguns", uma acepção de metodologia voltada para o estudo da literatura sob a forma rígida de controle e direção das leituras por parte do professor. O leitor não tem, muitas vezes, a sua voz fortalecida, como defendeu uma das docentes, pois no universo acadêmico atribui-se um peso muito grande à "voz" dos canais competentes, que seriam o próprio professor da disciplina, os teóricos que ele utiliza, os críticos literários aos quais ele recorre no trato com o texto literário. É exemplificativa, nesse sentido, a resposta de um dos docentes acerca do que enfatiza em suas aulas de literatura:

[...] a primeira dificuldade enorme que os professores de teoria da literatura, literatura brasileira têm, que é hiperconhecida, é a ausência de qualquer contato com a literatura, com o texto literário, por parte dos alunos. Quando você vai ensinar uma disciplina como teoria da literatura, que supõe um mínimo de conhecimento, de repertório de leitura, as dificuldades são grandes. Então, o curso de teoria da literatura (introdutório) consiste numa alternância de leituras de poemas, contos, novelas, peças, enfim textos mais curtos, alinhavados com a teoria. Para que o curso contemple uma quantidade razoável de textos literários, é necessário um controle muito fino e permanente dessas leituras. Assim, deve haver todo um planejamento entre o texto que é fornecido para ser lido e resumido e a entrega deste resumo, da discussão, ou seja, da interpretação básica, porque nós não teríamos tempo no semestre para fazer interpretações mais aprofundadas, voltadas para esclarecer mecanismos e efeitos, quer da novela, do conto, quer do poema, com o fornecimento de noções básicas, vamos ver como isso vai acontecer. A avaliação também precisa ser diferente, então, provavelmente nem iremos recorrer a provas. Estas serão feitas a partir de respostas dos alunos, com seus resumos. (Professor I, UFOP, grifos meus)

Mais uma vez é importante chamar atenção para a pouca consciência dos professores entrevistados em relação ao aluno (leitor) como novo formador de leitores em seu futuro papel de professor. As respostas, em sua maioria, preocuparam-se com a leitura, com o desenvolvimento do gosto pela leitura, de um modo geral, mas não apresentaram o cuidado para com a formação do professor, nas aulas de literatura, como se espera em um curso de licenciatura em letras.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

De maneira sucinta, no que diz respeito às demais categorias de análise, obtivemos os seguintes resultados:

RELAÇÃO PROFESSOR/CORRENTES TEÓRICAS

Foi perguntado aos docentes se trabalhavam sob o viés da periodização literária. Dos doze respondentes, a metade disse que trabalhava nos moldes da periodização literária, porém de uma forma problematizadora, discutindo os limites da historiografia literária. As respostas de dois docentes chamaram atenção por se voltarem para a formação do aluno como futuro professor. Além do problema da historiografia oficial, esses docentes abordaram a questão relacionando-a com a realidade da sala de aula, preocupando-se em discutir itens importantes para o aluno quando este for também um professor atuante na educação básica. Em relação à pergunta sobre a função da teoria literária nas aulas de literatura, cujas respostas entraram na categoria de análise da qual estamos discorrendo, os depoimentos foram divididos nas seguintes subcategorias:

  1. Respostas em que a teoria da literatura é criticizada;

  2. Respostas em que a teoria da literatura é considerada fundamental;

  3. Respostas que revelam ser a teoria da literatura um importante suporte para a leitura literária;

  4. Respostas em que se depreende uma preocupação por associar a teoria da literatura à prática dos alunos como futuros professores.

Dos doze professores da área de literatura entrevistados, dois apresentaram respostas que se incluem no item "a"; três apresentaram depoimentos que, por uma organização didática, considero pertencentes ao item "b"; cinco revelaram ser a teoria da literatura um importante suporte para a leitura literária. Nas respostas desses professores, ocorreram palavras que associavam a teoria literária à "ferramenta", "suporte", "instrumental de análise". Por fim, apenas duas respostas mostraram a preocupação por associar a teoria da literatura à prática que o aluno terá em seu futuro papel de professor.

RELAÇÃO PROFESSOR/AUTORES LITERÁRIOS

Todos os professores entrevistados demonstraram maior envolvimento com autores do cânone brasileiro/universal, principalmente nas matérias obrigatórias. Na Faculdade de Letras da UFMG, uma das professoras entrevistadas afirmou estar acontecendo na referida faculdade um retorno ao cânone, pois, por influências teóricas diversas, os alunos estavam, por exemplo, saindo do curso sem ter lido sequer um poema de Camões.

Os professores de todas as instituições pesquisadas foram unânimes no reconhecimento do cânone como algo de fundamental importância na formação do aluno de letras, porém demonstraram abertura para uma mescla de autores.

Quanto aos autores contemporâneos, os docentes afirmaram que os contemplam mais em disciplinas eletivas e que as disciplinas obrigatórias os impedem de dar um leque muito grande de autores. Essa queixa da falta de flexibilidade do currículo aparece na fala de alguns professores que se referiram ao currículo como uma espécie de engessamento da matéria.

Quando os docentes trabalham com teoria da literatura ou com matérias mais ligadas às suas pesquisas, ou em poesia, eles se sentem mais livres para intercalarem autores mais canônicos com outros menos conhecidos.

Com relação à pergunta "Você trabalha com autores locais? Quais?", foi possível perceber que, em cidades com forte tradição cultural, como Juiz de Fora e São João del-Rei, há uma abertura maior para a inserção de autores locais nos programas de ensino. Entretanto, cabe comentar que vários desses autores locais já adquiriram ares regionais e até universais pelo reconhecimento do público. Na UFMG, uma professora mostrou-se aberta à utilização de autores locais, apesar do fato de as disciplinas obrigatórias não permitirem ao professor escolhas muito pontuais em relação à seleção de autores.

RELAÇÃO LITERATURA/ENSINO

As perguntas feitas aos docentes as quais deram origem à categoria "Relação literatura/ensino" foram as seguintes: "Você discute ensino de literatura em suas aulas?" e "Você trabalha com alguma disciplina de caráter prático como prática de ensino de língua/literatura ou estágio curricular supervisionado? De que maneira a literatura é abordada nessas disciplinas?" Por meio dessas questões, foi possível perceber o ponto nevrálgico da literatura no ensino superior. Há, de maneira geral, uma resistência dos docentes a fazer a ponte entre literatura/educação. Existe, aliás, um distanciamento (geográfico e simbólico) das faculdades de letras e das faculdades de educação. Quase todas as universidades visitadas possuem as faculdades de letras de um lado e as de educação de outro. E, do ponto de vista do diálogo, uma dificuldade enorme de troca de experiências e saberes.

Cursos de letras localizados em cidades maiores (como em Belo Horizonte e Juiz de Fora), onde há a predominância de uma cultura metropolitana, apresentaram uma realidade em que a formação do professor de literatura ocorre em um ambiente de pouco diálogo com a comunidade na qual estão inseridos e com as necessidades da educação básica. Foi percebida a configuração de quadro semelhante no curso de letras da UFOP, cujos professores, em sua maioria, residem na capital mineira, em decorrência da proximidade geográfica dessas cidades. Pareceu claro que o lugar que a literatura ocupa em tais cursos carrega consigo um traço de distinção, de nobreza.

Observei que cursos de letras localizados em cidades interioranas, por seu turno, voltaram-se mais para questões ligadas ao ensino, apresentando uma preocupação maior com a formação do professor de literatura. Ademais, em cidades como São João del-Rei, Viçosa, Uberaba, a comunidade acadêmica está mais próxima da população, havendo uma interação maior entre as demandas sociais e os trabalhos desenvolvidos pelas universidades. Porém, nessas instituições, na visão dos professores entrevistados, há uma fragilidade maior no repertório cultural dos alunos, contexto que pode levar à "didatização" da literatura.

Com um olhar mais minucioso, capaz de abarcar microestruturas, foi possível detectar, entretanto, que algumas instituições já apontam para um diálogo entre literatura e educação, evidenciando a possibilidade - não isenta de tensões - de ultrapassagem da dicotomia distinção/pedagogização da literatura.

Sabemos que a universidade é o lugar, por assim dizer, da cultura legitimada, e nela se estabelece um paradoxo toda vez em que se busca uma cultura que não a dela própria. Se a universidade é o lugar da cultura letrada, legitimada, como buscar a indistinção dentro de um universo com uma série de artifícios voltados para a criação de distinções entre saberes e práticas? Termino este artigo com essa indagação e com um possível caminho: o diálogo entre os pares, entre as faculdades de letras e de educação, a articulação entre ensino e pesquisa, para que se possa despir do preconceito de que "ensino" é algo menor no bojo das reflexões acadêmicas e de que a "literatura" é "sagrada", "distinta", portanto avessa às articulações com a educação.

  • 1
    O corpus da pesquisa abrangeu universidades públicas federais. No caso da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), trabalhei com os documentos disponibilizados na internet. O curso de letras passava por mudanças substanciais no projeto pedagógico, o que inviabilizou as entrevistas com os docentes.
  • 2
    A fim de assegurar o sigilo quanto à identidade dos docentes envolvidos na pesquisa, em consonância com o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido que receberam à época das entrevistas, optei por usar o gênero masculino em todo o texto.
  • 3
    Os docentes que estavam na universidade há apenas um ano e meio já eram resultado do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais Brasileiras (REUNI), que é uma das ações integrantes ao Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), e foi instituído em reconhecimento ao papel estratégico das universidades - em especial do setor público - para o desenvolvimento econômico e social do país.
  • 4
    Esses foram os grupos de pesquisa listados nos currículos dos docentes. Algumas vezes, docentes da mesma instituição fazem parte de grupos de pesquisa diferentes, em virtude de seus interesses peculiares. Então, por exemplo, um professor da UFMG não está ligado a todos os grupos de pesquisa listados. Pode estar apenas em um ou em dois deles, dependendo das temáticas e assuntos que lhe interessam.
  • 5
    Para maior aprofundamento, consultar Jauss (1994)Jauss, H.-R. A história da literatura como provocação à teoria literária. São Paulo: Ática, 1994. e Zilberman (1989)Zilberman, R. Estética da recepção e história da literatura. São Paulo: Ática, 1989..

REFERÊNCIAS

  • Bakhtin, M. (Volochinov). Marxismo e filosofia da linguagem São Paulo: Hucitec, 1997.
  • Bardin, L. Análise de conteúdo Lisboa: Edições 70, 1995.
  • Faria, M. A. Contramão I, II, III 1986-1987. 550f. Memorial apresentado no Concurso Público de Títulos e Provas para o cargo de professor titular junto ao Departamento de Literatura, no Instituto de Letras, História e Psicologia - Universidade Estadual Paulista, Assis, 1987.
  • Jauss, H.-R. A história da literatura como provocação à teoria literária São Paulo: Ática, 1994.
  • Komosinski, L. M. G. Literatura nos cursos de letras: um ensino centrado no leitor. 1992. 176f. Tese (Doutorado em Letras) - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1992.
  • Paulino, G. Letramento literário: cânones estéticos e cânones escolares. In: Reunião Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação, 21., 1998, Caxambu. Anais... Caxambu: ANPEd, 20-24 set. 1998.
  • Soares, M. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 1998.
  • Zilberman, R. Estética da recepção e história da literatura São Paulo: Ática, 1989.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2017

Histórico

  • Recebido
    09 Abr 2014
  • Aceito
    02 Set 2015
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