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Percepções de jovens com Síndrome de Down sobre relacionar-se amorosamente

Perceptions of young people with Down Syndrome on amorous relations

Resumos

Dificuldades de pais e profissionais para lidar com comportamentos de natureza sexual de pessoas com deficiência mental são provavelmente advindas de concepções parciais ou equivocadas desses pais e profissionais sobre as potencialidades de desenvolvimento da dimensão sexual dessas pessoas. Uma das implicações desse tipo de concepção é promover poucas oportunidades para ouvir o jovem com deficiência mental sobre suas expectativas e desejos sobre relacionamento amoroso. O objetivo do trabalho foi descobrir quais as percepções de jovens com Síndrome de Down sobre relacionar-se amorosamente. Para isso, duas mulheres e três homens com Síndrome de Down, com idade entre 18 e 28 anos, foram entrevistados individualmente. As verbalizações desses jovens sobre o que é apaixonar-se e o que sentem um pelo outro se referiram a comportamentos que expressavam cuidados com (a) namorado (a), e a sentimentos como ânimo e paixão. Em relação ao que verbalizam sobre o que é uma pessoa atraente, houve ênfase em aspectos físicos e comportamentais. Uma jovem afirmou ter relações sexuais com o namorado e descreveu com minúcia a experiência e cuidados tomados para isso. Outros dois jovens consideraram a possibilidade de ter relações sexuais mais tarde, embora já namorassem há algum tempo. Uma adolescente indicou como necessário para ter relação sexual a interdependência do casal e a prevenção da gravidez. Os resultados possibilitam concluir que as percepções que jovens com Síndrome de Down têm sobre relacionamentos amorosos não diferem daquelas de jovens sem síndrome e, muito provavelmente, são desenvolvidas pelas oportunidades de se comportarem efetivamente sob contingências que favoreçam comportamentos amorosos.

comportamento amoroso; sexualidade; Síndrome de Down; educação especial


Difficulties parents and professionals have in coping with sexual behaviors of people with mental deficiency probably result from their faulty ideas or misconceptions of the potential these people have for developing of sexuality. One implication of this type of conception is that few opportunities are promoted for listening to what young people with mental deficiency have to say about their expectations and desires of amorous relationships. The aim of this study was to uncover the perceptions of young people with Down Syndrome about amorous relationships. To this end, two women and three men with Down Syndrome between 18 and 28 years, were interviewed individually. Their reports on what it means to fall in love and what they feel for each other was related to behaviors that expressed concern for their boyfriend/girlfriend, as well as feelings of excitement and passion. As to their reports on physical attraction, emphasis was placed both on physical and behavioral aspects. One young woman stated that she had sexual relations with her boyfriend and she described in details her experience and the precautions taken. Two other interviewees considered the possibility of having sexual relations in the future, although they had been dating for some time. One young woman indicated that having sexual relations requires interdependence of the couple, as well as precautions to prevent pregnancy. These results enable us to conclude that the perceptions that young people with Down Syndrome have about amorous relationships do not differ from those of young people without the syndrome and are probably developed when given opportunities to experience relationships in circumstances that favor amorous behavior.

amorous behavior; sexuality; down syndrome; special education


RELATO DE PESQUISA

Percepções de jovens com Síndrome de Down sobre relacionar-se amorosamente

Perceptions of young people with Down Syndrome on amorous relations

Elaine Cristina LuizI; Olga Mitsue KuboII

IMestranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal de Santa Catarina - elainecluiz@yahoo.com.br

IIPrograma de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: ok@cfh.ufsc.br

RESUMO

Dificuldades de pais e profissionais para lidar com comportamentos de natureza sexual de pessoas com deficiência mental são provavelmente advindas de concepções parciais ou equivocadas desses pais e profissionais sobre as potencialidades de desenvolvimento da dimensão sexual dessas pessoas. Uma das implicações desse tipo de concepção é promover poucas oportunidades para ouvir o jovem com deficiência mental sobre suas expectativas e desejos sobre relacionamento amoroso. O objetivo do trabalho foi descobrir quais as percepções de jovens com Síndrome de Down sobre relacionar-se amorosamente. Para isso, duas mulheres e três homens com Síndrome de Down, com idade entre 18 e 28 anos, foram entrevistados individualmente. As verbalizações desses jovens sobre o que é apaixonar-se e o que sentem um pelo outro se referiram a comportamentos que expressavam cuidados com (a) namorado (a), e a sentimentos como ânimo e paixão. Em relação ao que verbalizam sobre o que é uma pessoa atraente, houve ênfase em aspectos físicos e comportamentais. Uma jovem afirmou ter relações sexuais com o namorado e descreveu com minúcia a experiência e cuidados tomados para isso. Outros dois jovens consideraram a possibilidade de ter relações sexuais mais tarde, embora já namorassem há algum tempo. Uma adolescente indicou como necessário para ter relação sexual a interdependência do casal e a prevenção da gravidez. Os resultados possibilitam concluir que as percepções que jovens com Síndrome de Down têm sobre relacionamentos amorosos não diferem daquelas de jovens sem síndrome e, muito provavelmente, são desenvolvidas pelas oportunidades de se comportarem efetivamente sob contingências que favoreçam comportamentos amorosos.

Palavras-chave: comportamento amoroso; sexualidade; Síndrome de Down; educação especial.

ABSTRACT

Difficulties parents and professionals have in coping with sexual behaviors of people with mental deficiency probably result from their faulty ideas or misconceptions of the potential these people have for developing of sexuality. One implication of this type of conception is that few opportunities are promoted for listening to what young people with mental deficiency have to say about their expectations and desires of amorous relationships. The aim of this study was to uncover the perceptions of young people with Down Syndrome about amorous relationships. To this end, two women and three men with Down Syndrome between 18 and 28 years, were interviewed individually. Their reports on what it means to fall in love and what they feel for each other was related to behaviors that expressed concern for their boyfriend/girlfriend, as well as feelings of excitement and passion. As to their reports on physical attraction, emphasis was placed both on physical and behavioral aspects. One young woman stated that she had sexual relations with her boyfriend and she described in details her experience and the precautions taken. Two other interviewees considered the possibility of having sexual relations in the future, although they had been dating for some time. One young woman indicated that having sexual relations requires interdependence of the couple, as well as precautions to prevent pregnancy. These results enable us to conclude that the perceptions that young people with Down Syndrome have about amorous relationships do not differ from those of young people without the syndrome and are probably developed when given opportunities to experience relationships in circumstances that favor amorous behavior.

Keywords: amorous behavior; sexuality; down syndrome; special education.

1 INTRODUÇÃO

Nos anos do século XXI, de maneira geral, namorar, casar, manter relações sexuais antes do casamento, ter filhos, morar com o namorado são assuntos corriqueiros e já deixaram de ser proibidos, vergonhosos ou censurados. Mas, e se o assunto for namoro de pessoas com alguma deficiência? Relacionamento sexual de pessoas com Síndrome de Down? Gravidez de pessoas com Síndrome de Down? Estudos têm possibilitado perceber que jovens com deficiência mental raramente são ouvidos a respeito de seus anseios, desejos, dúvidas e experiências em relação à vida afetiva e sexual. Não se sabe exatamente o que esperam, necessitam, desejam, pensam, acreditam a respeito de sua sexualidade, e o que são realmente capazes de fazer em um relacionamento amoroso, incluindo "ficar", namorar, casar. Em alguns estudos é possível identificar que jovens com alguma deficiência mental têm frustrações, fantasias e também são capazes de expressões de afeto e manifestações "normais" da sexualidade. Nesse contexto, algumas perguntas se fazem pertinentes: Qual o direito desses jovens de namorarem? E de terem relações sexuais? E de casarem? O que esses jovens pensam sobre isso? Têm oportunidades de vivenciar uma vida afetiva e sexual? Deveriam ter? Sob que situações? Quais as condições necessárias para que isso aconteça? Quem são os responsáveis por garantir essas condições? Nessa perspectiva, é configurada a necessidade de investigar quais as percepções que jovens com Síndrome de Down apresentam sobre se relacionar amorosamente.

Glat (1993) afirma que profissionais que trabalham com pessoas com deficiência mental exercem forte influência sobre elas, são formadores de opinião, e reproduzem a concepção que a sociedade tem sobre deficiência mental. A autora explica que a imagem que a pessoa tem de si e de seu corpo é determinado por conceitos, idéias, valores que o grupo social lhe atribui. Assim, professores, pais e outras pessoas que convivem com pessoas com algum tipo de deficiência exercem influência sobre o que essas pessoas percebem de si próprias e do mundo. Portanto, é importante que profissionais que lidam com essas pessoas tenham uma formação que os capacitem a serem promotores de inclusão e não disseminadores de preconceitos e estereótipos de determinado grupo social a respeito de pessoas com deficiência mental.

É possível constatar que a intervenção sobre a sexualidade de pessoas com deficiência mental continua sendo no sentido de limitá-la. Glat e Freitas (2002) relatam que em anos de pesquisa e trabalho com o tema da sexualidade de pessoas com deficiência, os profissionais, ao solicitarem ajuda para lidar com a sexualidade de pessoas com deficiência, esperam "resolver o problema" da sexualidade dessas pessoas, de forma a evitar ou restringir qualquer manifestação dessa. Em um estudo com 10 profissionais que trabalhavam com deficientes mentais adultos, jovens e crianças que freqüentavam escolas de duas cidades de São Paulo e duas de Santa Catarina, Dall'Alba (1992) constatou que as manifestações sexuais dos alunos se constituem em drama para o professor e em problema que as instituições não sabem ainda como resolver. Maia e Aranha (2005) obtiveram dados semelhantes em pesquisa com professores de alunos com deficiência. Mesmo quando o comportamento sexual dos alunos era visto como "normal" e "não-problemático", os professores relataram uma tentativa de controle e vigilância sobre esses comportamentos, para que o aluno não "vá além", ou seja, não venha a ter relações sexuais.

Os professores entrevistados por Maia e Aranha (2005) relatam manifestações de sexualidade apresentadas por alunos deficientes como masturbar-se, rir maliciosamente, dançar, agarrar, abraçar e beijar os colegas e verbalizar pensamentos fantasiosos, sentimentos de frustração e ansiedade em relação ao namoro. Esses comportamentos, embora não fossem vistos como problema para alguns professores, foram considerados como de exibicionismo ou inadequados por outros professores. Os próprios autores destacam que um aspecto que chama a atenção é que quando comportamentos semelhantes são apresentados por jovens não deficientes, são considerados, em geral, indicadores de interesse "natural" pelas questões sexuais. As avaliações que os professores fazem a respeito dos comportamentos apresentados por seus alunos com deficiência reproduzem, e mantém a concepção da sociedade sobre a sexualidade de pessoas com deficiência mental como infantilizada ou selvagem e incontrolada.

Glat (1993) alertava que as pessoas com alguma deficiência tinham poucas oportunidades de interagir livremente com pessoas do sexo oposto, uma vez que era aceito na sociedade que vida sexual ativa, casamento e filhos não são para eles. Glat e Freitas (2002), 14 anos depois, ainda encontram presente na sociedade a crença de que as pessoas com deficiência mental são também deficientes emocionais, sendo incapazes de manter relacionamentos amorosos duradouros e profundos. O que indica que as possibilidades que esses jovens encontram de se relacionar amorosamente ainda é limitada.

Mesmo quando pais ou profissionais acreditam na capacidade de amar de pessoas com deficiência mental eles raramente criam condições para que de fato essas pessoas se deparem com situações em que possam relacionar-se amorosamente com outros. Essa discrepância foi identificada por Sampaio (1995), em uma pesquisa com 10 mães de adolescentes e jovens adultos com deficiência mental de ambos os sexos, na qual constatou que metade das mães acredita ser viável o filho amar uma pessoa do sexo oposto. Por outro lado, as próprias mães relataram impor limitações para a vivência dessa dimensão da vida afetiva por seus filhos. A autora identificou a tentativa das mães, em geral bem sucedida, de isolar ou dificultar os contatos sociais de seus filhos com pessoas do sexo oposto, dificultando, dessa forma, o desenvolvimento sexual de seus filhos.

Em 1993, em uma pesquisa com deficientes mentais, Glat constatou timidez e repressão sexual presente no relato das pessoas entrevistadas, o que contrariava a opinião popular de uma sexualidade selvagem e sem censuras. Corroborando esse dado, Maia e Aranha (2005), em um estudo sobre as manifestações de alunos com deficiência, a partir do relato de 40 professores do ensino comum e de classes especiais, descobriram que as manifestações relatadas pelos professores não correspondem às concepções a respeito da sexualidade do deficiente como exagerada ou prematura. Não foram relatados pelos professores, em geral, comportamentos sexuais grotescos ou aberrantes. Contudo, ainda que o conhecimento produzido sobre a sexualidade de pessoas com deficiência mental possibilite concluir que é semelhante a das outras pessoas, pais, professores e a sociedade em geral tendem a apresentar concepções sobre a sexualidade delas como algo que deve ser reprimido.

1.2 EDUCAÇÃO SEXUAL DE PESSOAS COM DEFICIÊNCIA MENTAL: DIFICULDADES, LIMITAÇÕES E POSSIBILIDADES

A produção de conhecimento a respeito de como lidar com aspectos da sexualidade de pessoas com deficiência mental de maneira geral, e de pessoas com Síndrome de Down em especial, ainda é limitada, dada sua importância para essas pessoas, para suas famílias e para a sociedade. A divulgação e a utilização apropriada do conhecimento existente por pais e profissionais que lidam com essas pessoas são ainda mais restritas. Diversas pesquisam revelam dificuldades e dúvidas encontradas por esses pais e profissionais quando se trata da sexualidade de pessoas com deficiência mental.

Moreira e Gusmão (2002) organizaram estudos que revelam que a puberdade e a maturação sexual de pessoas com Síndrome de Down se desenvolvem de forma semelhante ao restante da população, embora, a fertilidade em homens com Síndrome de Down seja, em geral, mais reduzida que em mulheres com a mesma síndrome. Tendo em vista essas informações é possível esperar que o início do interesse sexual – incluindo o desejo de namorar, de aproximar-se do outro, a preocupação com a aparência, a curiosidade por assuntos relacionados – surja em época semelhante a dos demais adolescentes.

Foi observado, portanto, que há uma discrepância entre o conhecimento já produzido sobre a sexualidade de pessoas com Síndrome de Down e a percepção de profissionais e pais dessas pessoas sobre a sexualidade deles. Castelão, Schiavo e Jurberg (2003), ao analisar as opiniões de mais de 800 pais e profissionais de pessoas com Síndrome de Down sobre a sexualidade dessas pessoas mostraram que os pais são cautelosos ao falar da sexualidade de seus filhos, enquanto profissionais que trabalham com essas pessoas enfrentam situações que sugerem que o interesse dos filhos é maior do que os pais suspeitam. Esses dados possibilitam evidenciar: a importância de descobrir o que os adolescentes com Síndrome de Down esperam de seus relacionamentos amorosos, e a necessidade de que pais e profissionais tenham acesso ao conhecimento produzido sobre sexualidade e relações amorosas dessas pessoas.

Assumpção Jr. e Sproviére (1993) verificaram que pais e educadores de jovens com deficiência mental encontram dificuldades em discutir o tema sexualidade com seus filhos e alunos. Além disso, muitas vezes, pais evitam a exposição de seus filhos a situações que os remetem a esse assunto. Isso sugere que não é comum oferecer a esses jovens a oportunidade de discutir e esclarecer dúvidas sobre o assunto, o que corrobora a constatação de Glat (1993) de que as opiniões e necessidades de pessoas com deficiência mental raramente são consideradas ao elaborar teorias a respeito de sua própria sexualidade e planejar programas de educação especial. De acordo com a autora, isto é resultado de um estereótipo criado pela sociedade de que pessoas com deficiência mental são incapazes de analisar sua própria vida e expressar seus sentimentos.

O constrangimento dos pais em falar sobre sexo e sexualidade com seus filhos, conforme demonstrado por Assumpção Jr. e Sproviére (1993), pode influenciar a concepção desses jovens sobre sexualidade, sexo e seu próprio corpo, no sentido de percebê-los como algo vergonhoso e proibido. Mori e Hayakawa (2003) realizaram uma pesquisa sobre sexualidade de pessoas com Síndrome de Down na qual entrevistaram 11 pessoas, com idades entre 19 e 33 anos, matriculadas em classes de atendimento especial de escola pública. Por meio dessa pesquisa, observaram o constrangimento das pessoas com Síndrome de Down entrevistadas ao falar de partes genitais do corpo, o que parece expressar justamente essa influência que pais e educadores exercem sobre a compreensão dos jovens sobre sua própria sexualidade. Indica também a necessidade de descobrir como esses jovens constituirão seus interesses, desejos e medos a respeito da sexualidade e de seus relacionamentos amorosos em ambientes nos quais as informações são obscuras ou omitidas e a exposição a situações que os levem a pensar nestes assuntos é evitada.

Os 11 alunos entrevistados por Mori e Hayakawa (2003) demonstraram ter conhecimento sobre higiene corporal, dado que os pais desses alunos já haviam conversado a respeito. Porém, essas pessoas revelaram conhecimento superficial sobre função da menstruação, ocorrência da gravidez, métodos contraceptivos e relação sexual. Maia e Aranha (2005) afirmam que o assunto predominante entre os alunos, em relação à sexualidade, é o namoro, enquanto os professores enfatizam aspectos biológicos e controle da sexualidade. Fica evidenciada a necessidade de avaliar a suficiência do que é ensinado aos jovens com Síndrome de Down considerando aquilo que precisam aprender a respeito de sua sexualidade e afetividade e o que educadores estão selecionando como conteúdos supostamente relevantes.

A constatação de Mori e Hayakawa (2003) sobre a falta de conhecimento dos jovens, mesmo quando as informações já lhes foram disponibilizadas, possibilita supor que os procedimentos utilizados pelos educadores, e a ênfase em aspectos biológicos da sexualidade, estão sendo ineficazes. Além disso, a falta de uma educação sexual adequada, e que atenda suas reais necessidades, pode levar esses jovens a criarem expectativas equivocadas ou fantasiosas a respeito de namoro, sexo, amor, paixão, etc. Professoras entrevistadas por Maia e Aranha (2005) relataram o desenvolvimento de pensamentos fantasiosos, sentimentos de frustração e ansiedade entre seus alunos. Tais comportamentos indicam que há um desejo de vivenciar um relacionamento amoroso e há falta de oportunidades reais para que isso aconteça.

As informações disponíveis sobre comportamento amoroso e sexual de pessoas com alguma deficiência não parecem estar sendo transformadas em comportamentos apropriados dos professores que lidam com essas pessoas, no que se refere à sexualidade delas. Assim, os professores agem com base em valores e crenças pessoais. Foi o que descobriram Maia e Aranha (2005) a respeito do julgamento que professores fazem dos comportamentos de seus alunos. Os autores sugerem que o incômodo diante de comportamentos sexuais parece decorrer de uma inabilidade e desconforto pessoais para lidar com aspectos da sexualidade do que com os problemas que essas manifestações podem causar no processo de ensino-aprendizagem no ambiente da escola.

Os dados encontrados por Maia e Aranha (2005) também possibilitam mostrar que no ensino regular, os alunos com deficiências conversam mais sobre sexualidade com outros alunos do que com o professor. Os professores justificaram que isso ocorre por sentimentos de vergonha e preconceito dos alunos em relação ao assunto "sexualidade" ou por eles já terem recebido informações em outra escola ou no ambiente em que vivem. Em pesquisa realizada por Castelão, Schiavo, e Jurberg (2003), profissionais também relataram que se sentem despreparados para orientar sexualmente a pessoa com Síndrome de Down, bem como para conciliar as atitudes dos pais frente aos desejos sexuais dos filhos. Diante da situação de despreparo dos professores, identificada por eles próprios, para falar sobre assuntos relacionados à sexualidade, a responsabilidade sobre a educação sexual dos alunos acaba sendo atribuída a outras instituições, à família ou ao próprio aluno. Ao agir dessa forma, as necessidades concretas de aprendizagem dessas pessoas, no que se refere à sua sexualidade, raramente são identificadas pelos professores, que pouco sabem sobre o que seus alunos pensam ou sentem a respeito.

É possível constatar que parte das dificuldades encontradas por pais, profissionais em geral ao lidar com aspectos relacionados a sexualidade de pessoas com deficiência mental advem da quantidade incipiente de conhecimento sobre esses aspectos quando comparada à demanda e necessidades no trabalho com essas pessoas. A divulgação e difusão apropriada do conhecimento produzido sobre os diferentes aspectos que caracterizam a sexualidade, podem ter implicações fundamentais sobre concepções dos diferentes segmentos que lidam com essas pessoas sobre suas potencialidades e necessidades. Lidar com comportamentos sexuais de pessoas com deficiência mental seja na escola, ou fora dela de modo a maximizar as aprendizagens dessas pessoas em relação às interações com outras pessoas exige conhecimento especializado e de boa qualidade. Assim, descobrir o que jovens com Síndrome de Down pensam, percebem sobre relacionamento amoroso se configura como algo necessário como contribuição nessa direção.

2 MÉTODO

2.1SUJEITOS

Participaram cinco jovens, três homens e duas mulheres, com idades entre 18 e 28 anos, moradores de duas cidades de médio porte da região sul do País. Os dados pessoais e os dados sobre as famílias dos jovens estão apresentas nos Quadros 1 e 2. Todos os nomes que aparecem no texto, dos sujeitos e outra pessoas mencionadas por eles são fictícios. Os sujeitos Talita e Luciano eram namorados no período de realização das entrevistas.



2.2 PROCEDIMENTOS

a) De seleção dos sujeitos - Os critérios para seleção dos sujeitos foram ser portador de Síndrome de Down e ter acima de 15 anos, visto que já são considerados adolescentes nessa idade.

b) De elaboração do instrumento de coleta de dados - A elaboração do roteiro de entrevista iniciou-se com o levantamento das variáveis constituintes do comportamento relacionar-se amorosamente. Foram identificados os seguintes subconjuntos de variáveis: apaixonar-se, sentimentos pelo namorado (a), sentimentos do namorado (a) pelo sujeito, sentir-se atraído pelo outro e relacionar-se sexualmente.

c) De realização das entrevistas - Os pais estiveram presentes no dia das entrevistas e solicitou-se que preenchessem o termo de consentimento e o formulário de dados pessoais e familiares do jovem, na sala em que seria realizada a entrevista. Em seguida, os pais se retiravam e iniciava-se a entrevista com os sujeitos. As entrevistas foram sempre realizadas por duas entrevistadoras. Durante este momento foi realizada gravação de voz mediante autorização dos participantes (via termo de consentimento). O gravador ficava sobre a mesa, à vista dos sujeitos.

2.3 TRATAMENTO E ANÁLISE DE DADOS

Todas as entrevistas foram transcritas literalmente. As verbalizações dos jovens foram organizadas de acordo com os subconjuntos de variáveis identificados. Trechos ininteligíveis foram suprimidos, e trechos intercalados com perguntas do entrevistador foram agregados. As verbalizações foram mantidas literalmente e organizadas por participante para apresentação em quadros. Nos casos em que as verbalizações dos participantes foram agrupadas em categorias, o critério utilizado para os agrupamentos foi similaridade de significados das verbalizações (FRANCO, 1991).

3 RESULTADOS

Foram construídos seis quadros com as verbalizações dos jovens com Síndrome de Down de acordo com os aspectos: 1) o que é apaixonar-se; 2) o que sentem pelo namorado (a) e o que acreditam que o namorado (a) sente por eles; 3) o que é ser uma pessoa atraente; 4) se costuma ficar a sós com o namorado; 5) se já teve ou deseja ter relações sexuais; e 6) o que é necessário para que exista relacionamento sexual entre duas pessoas, distribuídos nos Quadros de 3 a 8, respectivamente.







No Quadro 3, estão as apresentadas as verbalizações de cinco jovens com Síndrome de Down sobre o que entendem por apaixonar-se. As verbalizações de Talita e Pedro mostram que apaixonar-se é equivalente à "gostar" da outra pessoa. Na fala de Talita, também são mencionadas a companhia e a conversa com o outro. Na entrevista com Pedro, foi necessário que se fizessem perguntas adicionais para que ele respondesse às perguntas: "E tu ta apaixonado pela Rute? Sou... Eu gosto dela". Esse jovem se referia à Rute como sua namorada, no entanto, de acordo com informações da família essa jovem era apenas uma vizinha, amiga da família.

Na verbalização de Bruno aparece a referência a comportamentos de fazer ou receber carinho, "cafuné", pegar na mão, beijar, abraçar, e também de preocupação com o outro, ao se referir aos comportamentos de perguntar "como vai, como que eu tô". Ana relata que se apaixonar pelo outro é algo bom pelas características percebidas nesse outro: "muito carinhoso, muito esperto, muito inteligente e é muito romântico também". Ana explica que o namorado é romântico porque faz declarações de amor à ela. Luciano descreve o apaixonar-se como algo que anima, entusiasma. Ele considera inclusive "gostosa" a palavra apaixonar-se.

No Quadro 4, estão apresentadas as verbalizações dos jovens sobre o que sentem pelo namorado (a) e sobre o que acreditam que o (a) namorado (a) sente por eles. Em relação a cada um dos sujeitos há dois tipos de relatos, um sobre o que sentem pelo namorado (a) e outro sobre o que o namorado sente por ele, com exceção de Pedro, para o qual aparece somente a verbalização sobre o que sente pela namorada.

Na verbalização de Pedro é mencionada a percepção de alterações no próprio corpo: "Quando eu vou na casa dela eu começo a tremer... às vezes dá uma vontade de chegar assim e encostar assim". Em algumas verbalizações há uma ênfase nas características pessoais do outro: "Eu sinto que ele, às vezes, que ele é... muito carinhoso, respeitoso..." (Ana), "Ele sente que eu sou uma pessoa muito especial para ele..." (Ana). Na verbalização de Bruno, aparece a percepção de estados emocionais "chateado, angustiado, triste" como algo produzido pelas ações da namorada. Ao relatar os sentimentos dela por ele, refere-se aos seus atributos pessoais "eu não sou ciumento, eu não sou ruim".

Nos casos de Talita, Luciano e Ana, os sujeitos identificam os sentimentos dos respectivos namorados como equivalentes aos seus. Isso pode ser observado nas verbalizações: "... ele sente falta de mim, e eu dele" (Talita), "Também, paixão, ela é assim comigo toda boba, e eu também..." (Luciano), "A mesma coisa comigo, né... a minha vida depende dele e a vida dele depende da minha e a gente se ama muito" (Ana).

No caso de Bruno, ao relatar o que sente pela namorada, enfatiza os sentimentos negativos pelas ações dela: "... quando ela fala alguma coisa de errado pra mim, eu às vezes fico chateado, angustiado, triste...". Quando fala do que sua namorada sente por ele, destaca suas próprias características positivas como algo percebido por ela.

O Quadro 5 apresenta as verbalizações dos jovens sobre o que consideram atraente em uma pessoa. Nas verbalizações dos sujeitos há uma valorização de aspectos físicos ou de aspectos comportamentais.

Na categoria "aspectos físicos", o que foi considerado pelos jovens para indicar alguém atraente é essencialmente relacionado ao aspecto físico: "O rosto, eu gosto do rosto sabe, os olhos puxados, eu gosto de ver assim puxadinho, me chama atenção..." (Luciano). Bruno mencionou os termos "elegante" e "magrinha", várias vezes, na entrevista.

Na segunda categoria, "aspectos comportamentais" definem o que é uma pessoa atraente. Para Ana, ser atraente é ser romântico, fiel, respeitoso. Ela também considera que uma pessoa bonita é delicada. Luciano, que havia feito menção aos aspectos físicos, também menciona o comportamento como algo que atrai: "O comportamento, tem algumas que sai uma frase bonita que consegue falar... isso é uma coisa mais fascinante, uma palavra, uma frase, consegue se orientar. E aí é que faz a pessoa sentir atração".

O Quadro 6 apresenta as verbalizações dos jovens com Síndrome de Down sobre costumam ficar a sós com o (a) namorado (a). Talita fala que fica a sós com o namorado, põe o colchão na sala, mas afirma que não dormem juntos. Já seu namorado, Luciano afirma que não podem ficar sozinhos, pois isso evita que tenham relações sexuais, o que é condição para respeitá-la, na sua concepção.

No Quadro 7 são apresentadas as verbalizações dos jovens sobre se já tiveram ou se desejam ter relações sexuais. Apenas um dos sujeitos (Ana) afirmou manter relações sexuais com o namorado. Ao relatar como foi a primeira relação sexual se refere, inicialmente, ao fato de que ainda não havia feito a cirurgia de esterilização quando teve a primeira relação sexual. Em seguida, ela descreve o ambiente afetivo que envolvia a situação "a gente estava no quarto dele e nós começamos a trocar beijinhos, aí tem todo aquele, aí vem todo aquele aconchego, né, de pegar, assim, tal, abraçar muito, beijar muito na boca, assim, tal, até de língua".

Talita e Luciano, casal de namorados, consideram que só terão relações sexuais mais tarde. Talita refere que gosta do contato com o namorado, gosta de ficar junto "um homem com uma mulher". Porém, ela não se considera preparada para ter relações sexuais. Luciano se considera tímido e revela o que faz quando o desejo surge "Se eu tiver um desejo eu olho pra revista, entro num site, eu faço isso mas, de leve...".

Ao tocar no assunto relacionamento sexual, Pedro relata sobre o episódio do casamento de seu professor e da atração que sentiu pela noiva dele. Ele não fez nenhuma menção ao relacionamento sexual propriamente dito.

No Quadro 8, é apresentado o que os jovens consideram necessário para que aconteça uma relação sexual entre duas pessoas. Apenas dois sujeitos responderam a essa questão, cujo relato foi organizado em duas categorias: interdependência e anti-concepção/prevenção. A fala de Ana foi subdividida nas duas categorias.

Na categoria interdependência está apresentado o trecho da resposta de Ana que menciona a interdependência da vida dela e do namorado, ela sente-se dependente dele e supõe que a vida dele também depende da sua. Ela relata sobre a importância da atenção dirigida ao outro, do respeito e da fidelidade, sendo essas as características desse relacionamento amoroso que possibilitam a existência de um encontro sexual. Talita mencionou o uso da camisinha como um aspecto necessário para que aja um relacionamento sexual. Outro aspecto considerado por ela é a idade, pois se considera muito nova para ter relações sexuais.

DISCUSSÃO

O conjunto de dados identificado a partir dos relatos dos cinco jovens com Síndrome de Down sobre diferentes aspectos que dizem respeito a relacionamento amoroso (apaixonar-se, desejar ter relações sexuais, o que é ser uma pessoa atraente, etc.) possibilita constatar que, de maneira geral, as percepções, desejos e outros comportamentos desses jovens não diferem daqueles característicos de jovens sem a Síndrome; e que foram, muito provavelmente, desenvolvidos sob contingências que favoreceram comportamentos amorosos (namorar, relacionar-se sexualmente). Ainda que os dados obtidos se referiam a apenas verbalizações de cinco jovens moradores de uma única região do país, é possível supor que vivência de relacionamento amoroso é fundamental para que jovens com Síndrome de Down aprendam conceitos e comportamentos referentes à própria vida amorosa. Dados mais minuciosos são destacados no exame de cada um dos quadros.

Ao relatar o que entendem por apaixonar-se (Quadro 3), os jovens que já tiveram alguma experiência de namoro se referem a comportamentos concretos que evidenciam que duas pessoas estão apaixonadas. Foram relatados acontecimentos do dia-a-dia, e é possível observar a importância atribuída por esses jovens de ter um namorado(a) com quem possam compartilhar esses acontecimentos, conversar sobre assuntos em comum e relevantes para ambos. Apaixonar-se foi definido pelos jovens por aquilo que é produzido na relação com o outro: sentimento de bem-estar, satisfação, ânimo na presença do outro. A possibilidade que esses jovens tiveram de namorarem constitui-se, muito provavelmente em condição que possibilitou que formulassem conceitos a respeito do "apaixonar-se" de acordo com a vivência que tiveram.

Nas verbalizações dos cinco jovens sobre apaixonar-se também apareceram expressões que se referem a afeto e contato físico em um mesmo contexto: "Se apaixonar é aquela coisa de amor, carinho, cafunezinho, pegar na mão, beija, abraço, como vai, como é que eu tô.", o que indica a capacidade desses jovens de vivenciarem um relacionamento amoroso. Esses dados indicam que a crença existente na sociedade de que pessoas com deficiência mental são "deficientes emocionais" e apresentam uma sexualidade exacerbada, identificada por Glat e Freitas (2002), é equivocada. O próprio mito da sexualidade exacerbada diminuiria a possibilidade desses jovens desenvolverem comportamentos de carinho, afeto, cuidado com o outro em um contexto de relacionamento amoroso.

Quando as possibilidades de relacionar-se amorosamente são restritas, os jovens tendem a "fantasiar" a respeito de ter um relacionamento amoroso e, muito provavelmente, a repetir essa fantasia para as pessoas. Foi esse o caso de um dos jovens entrevistados, Pedro, que dizia ter uma namorada, mas de acordo com as informações fornecidas pelos familiares, a moça era apenas vizinha e amiga da família. Além da aparente fantasia, esse jovem teve dificuldades para compreender a pergunta a respeito do que é apaixonar-se (Quadro 3), necessitando de perguntas complementares para auxiliá-lo, e formular um conceito a respeito.

É possível supor que as limitações e falta de oportunidade em casos como o de Pedro não são restritas à vivência de afetividade e sexualidade, e muitos comportamentos precisariam ser ensinados anteriormente como condição para experimentar uma situação de namoro. Sidman (1985) demonstra que ensinar comportamentos em etapas, ensinando primeiro pré-requisitos do comportamento é mais eficaz do que a aprendizagem por ensaio e erro, tipicamente utilizada no ensino. As aprendizagens necessárias para relacionar-se amorosamente de forma saudável, dessa forma, também podem ser ensinadas em etapas, e precisam começar em fases anteriores da vida. O investimento para ensinar esses comportamentos, todavia, só ocorrerá orientado por uma concepção de que pessoas com deficiência mental são pessoas como outras quaisquer.

Já é possível observar um "movimento" da sociedade no sentido de reconhecer o direito e a capacidade dos jovens com Síndrome de Down de relacionar-se amorosamente, e valorizar esse comportamento. Reportagens sob os títulos: "Cada vez menos Down" (RODRIGUES; CASTELLÓN, 2006); "Síndrome de Down: eles foram à luta" (BEVILACQUA, 2006); e "A descoberta de um amor especial" (RIGOTTI, 2005), explicitam que esses jovens estão trabalhando, praticando esportes, namorando e até casando. Essa divulgação na mídia é importante, contudo, ainda são necessários investimentos para que além do direito de ficar, namorar, ter relações sexuais, casar, os jovens com deficiência mental tenham acesso à condições e educação apropriadas para isso.

Ao falarem sobre os sentimentos que tem sobre o (a) namorado (a), ou possível namorado (a), e os sentimentos que este tem por eles (Quadro 4), fica implícito nas verbalizações dos jovens (Ana, Talita e Luciano) um tipo de comportamento empático, no qual conseguem se colocar no lugar do outro, e dizer, com certa segurança, o que o outro sente. Essa aparente certeza com que falam do (a) namorado (o) sugere que os jovens provavelmente apresentam comportamentos que sinalizam que são importantes um para o outro, indicando uma "boa sintonia" entre os casais.

Perceber comportamentos do outro e ser capaz de entender e verbalizar os sentimentos do outro podem ser considerados componentes da empatia. Falcone (1999, 2002) define empatia como uma habilidade de comunicação que compreende: capacidade de compreender os sentimentos e perspectivas do outro; preocupação e atenção com o outro; e comunicação do próprio entendimento sobre o sentimento e a perspectiva do outro, de maneira que ele se sinta compreendido. Assim, é possível observar que esses jovens tiveram oportunidades, ao longo de suas vidas, e em especial nesse momento de namoro, de desenvolver esses comportamentos.

A empatia que os jovens entrevistados demonstram sentir pelo namorado, e a confiança que parecem ter um pelo outro vão ao encontro das informações coletadas por Matos, Carneiro e Jablonski (2005) em um estudo no qual jovens de camadas populares cariocas, com idades entre 13 e 17 anos, que não apresentam nenhuma deficiência, consideram confiança mútua um aspecto importante para que um relacionamento dê certo. O desenvolvimento dessa confiança um pelo outro, e da percepção de que isso é importante só é possível quando os jovens passam a vivenciar relações amorosas. Alferes (1996) destaca que as relações humanas podem se caracterizar pelo grau de intimidade, que varia desde a ausência de contato até a mais profunda reciprocidade, mostrando que intimidade e reciprocidade são aspectos diretamente relacionados e importantes nas relações interpessoais.

No relato de Pedro é possível observar o desejo de proximidade e contato físico com o outro. Ao falar dos sentimentos sobre a suposta namorada, ele lembra das alterações que percebe no próprio corpo quando se aproxima dela: "começo a tremer". Na verbalização de Pedro sobre o que a namorada sente por ele, também aparece a convicção de que ela deseja o mesmo: beijá-lo. No entanto, a justificativa dada por ele é baseada no fato de ela já ter sido casada, já ter beijado outro homem, e por isso, não teria problema beijá-lo também. Ao contrário dos outros casos, não é possível afirmar que Pedro realmente percebe os sentimentos do outro, mas que imaginar é predominante.

É possível observar uma semelhança considerável nos dados apresentados nos Quadros 3 e 4 com aqueles encontrados por Matos, Carneiro e Jablonski (2005). O relato sobre o que é amor desses adolescentes, que não apresentam nenhum tipo de deficiência, se aproxima das verbalizações dos cinco jovens com Síndrome de Down entrevistados. A verbalização de um adolescente apresentada por Matos, Carneiro e Jablonski (2005) indica essa semelhança: "Ah, quando ta pintando uma coisa forte, uma emoção assim mais forte, que eu to sentindo por ela... Um ciumezinho, assim, não sei (...) A pessoa percebe quando está gostando da outra pessoa.". É possível observar que tanto no conteúdo quanto na forma, as verbalizações dos jovens com Síndrome de Down entrevistados e dos adolescentes entrevistados por Matos, Carneiro e Jablonski (2005) são muito semelhantes.

Quando os entrevistados falam sobre o que os atraem em uma pessoa (Quadro 5), fica evidenciada uma valorização dos comportamentos apresentados pelo outro. Esses jovens parecem ter critérios para escolher um parceiro que vão além de aparência ou atração física. Apesar de algumas falas apresentarem um caráter mais infantil, em relação à forma, como a de Bruno, os jovens mencionaram respeito, carinho, capacidade de se expressar, revelando uma maturidade que não condiz com a noção presente na sociedade e identificada por Glat (1993) de uma "sexualidade infantilizada".

É possível observar que na verbalização de Ana, não há referência à aparência física como definidora de uma pessoa atraente. Mesmo quando ela fala sobre o que é uma pessoa bonita, não se refere a aspectos do corpo ou rosto da outra pessoa, mas à sua "delicadeza", uma adjetivo que pode envolver diversos aspectos do comportamento de uma pessoa. A ênfase do que considera atraente está essencialmente naquilo que uma pessoa é capaz de fazer pela outra: ser fiel, respeitar, demonstrar romantismo. As verbalizações de Luciano estão nas duas categorias: "aspectos físicos" e "aspectos comportamentais", mostrando que esse jovem é capaz de perceber diversos aspectos como relevantes para considerar alguém atraente. Alferes (1996) identifica três aspectos que influenciam aquilo que é chamado de atratividade interpessoal: beleza física, semelhanças interpessoais e avaliações positivas. De fato, as verbalizações dos jovens entrevistados contemplaram em algum grau esses aspectos, principalmente avaliações positivas e beleza física.

Na verbalização dos jovens Ana e Luciano é possível observar uma sofisticação do conceito "ser atraente". Há um grau de complexidade maior na elaboração desse conceito, que ultrapassa aquilo que é meramente físico, e indica uma formação de classe mais ampla de características que definem uma pessoa atraente. Essa complexidade de elaboração não é apenas "intelectual", ela está relacionada àquilo que ela foi capaz de perceber, e que aprendeu a perceber. É razoável supor que o que percebem como relevante para considerar alguém atraente foi indicado por seus pais, e por outras pessoas ao seu redor, como aspectos importantes. Essas aprendizagens muito provavelmente foram fortalecidas pela oportunidade de vivenciar um relacionamento amoroso.

Para definir o que é uma pessoa atraente, e em outros momentos da entrevista, Bruno destacou como relevante ser "elegante e magrinha". Esse dado também é indicador de uma influência social sobre aquilo que é percebido como "atraente" por esses jovens. Bruno reproduz em seu discurso o modelo de beleza valorizado pela sociedade e amplamente divulgado pela mídia. Reforçando a hipótese de uma influência da mídia sobre alguns comportamentos sexuais desses jovens, Strasburger (1999) mostra que embora adolescentes não sejam tão suscetíveis à violência nos meios de comunicação, eles podem ser mais suscetíveis ao conteúdo sexual veiculados por esses meios.

A partir da verbalização de Talita sobre se costuma ficar a sós com o namorado (Quadro 6), é possível constatar a relação que ela estabelece entre ficarem a sós e "dormirem juntos". Não é possível avaliar por meio dos dados se a informação de que os dois "pegam o colchão e ficam na sala" é verdadeira ou se é algo imaginado por ela. De qualquer forma, esse dado mostra que estar fisicamente próxima do namorado é algo gratificante para ela. Ao relatar em que situação ficava a sós com o namorado e o que faziam nessa situação, Talita também revelou que "não dormem juntos". Nessa pergunta ainda não havia referência direta ao tipo de intimidade do casal e se tinham relações sexuais, mas Talita identifica a situação de estar sozinha com o namorado como uma oportunidade de que isso aconteça.

Na verbalização de Luciano, um outro aspecto merece destaque: o autocontrole. Ao contrário de sua namorada (Talita), esse jovem identifica a situação de estar a sós com a namorada como um risco indesejável de que tenham relações sexuais. A identificação de situações desse tipo mostra uma maturidade desse jovem para distinguir o que pode ou não fazer, e que não está sendo levados apenas por impulsos, típicos de uma sexualidade "selvagem".

Fica claro neste caso que existe uma regra, provavelmente dada pela família (implícita ou explicitamente), de que não é necessário que tenham relações sexuais, visto que são jovens ainda. É necessário avaliar a adequação dessas regras e sua função para o jovem e para a família, e considerar que ainda que haja regras, as famílias de Talita e Luciano oferecem oportunidades e condições para que eles namorem. Além disso, essa situação evidencia a capacidade de Luciano em seguir regras, e ter controle sobre o próprio comportamento, o que é fundamental para o processo educativo.

A verbalização de Ana sobre relacionamento sexual é detalhada e bem desenvolvida (Quadro 7), sendo que ela foi a única entrevistada que afirmou já ter tido relações sexuais. Ao relatar a situação em que teve a primeira relação sexual, Ana destaca as trocas de carinho entre os dois "a gente estava no quarto dele e nós começamos a trocar beijinhos, aí tem todo aquele, aí vem todo aquele aconchego". Assim, fica evidente a relação que Ana, e provavelmente seu namorado, estabelecem entre ter relações sexuais e demonstrar afeto.

Um aspecto importante é a naturalidade com que Ana fala sobre sua própria sexualidade, o que indica uma educação em que o sexo não foi considerado um assunto proibido ou vergonhoso. Pelo contrário, a relação sexual entre duas pessoas que se relacionam e sentem afeto uma pela outra é considerado algo natural, prazeroso e bonito. O direito de Ana de viver sua sexualidade foi respeitado pela família, ao mesmo tempo em que foram tomadas medidas que garantissem sua própria segurança e bem-estar, como ter um local apropriado para ter relações sexuais com o namorado e receber uma boa orientação sobre o uso de preservativos.

Ana também relatou ter passado por uma cirurgia de esterilização. Esse é um assunto polêmico e delicado no contexto do trabalho com pessoas com necessidades especiais. Giami (2004) considera o tema da contracepção como "a pedra angular do sistema de representações que cercam a sexualidade dos deficientes mentais e seu modelo de cuidado" (p.101). Segundo esse autor, a esterilização constitui o método mais eficaz para os pais, enquanto os educadores, ainda que imponham outras formas de contracepção, são contrários a esse método porque ele é imposto aos deficientes, que ignoram a que serão submetidos. Giami (2004) discute que dessa forma, os educadores ficam descomprometidos com a situação.

Não é possível avaliar o quanto Ana avaliou e decidiu pela esterilização. Nos limites desse estudo, tampouco é possível verificar se de fato ela teria condições de avaliar os motivos, custos e benefícios de uma esterilização de forma clara e abrangente. Ela parece ter "incorporado" o discurso de que a cirurgia e o uso de preservativos são importantes para evitar a gravidez, ainda que, em outro momento da entrevista, cujos dados não estão apresentados, Ana tenha mencionado o desejo de ter filhos. Apesar das discussões sobre o tema "esterilização de deficientes mentais" é importante destacar o investimento da família de Ana em sua educação sexual e educação para autonomia, indicadas pela capacidade de compreensão, natureza do relato e forma das verbalizações de Ana. A esterilização foi um instrumento, talvez inadequado, que garantiu que Ana vivenciasse sua sexualidade minimizando decorrências com as quais ela e os próprios pais não saberiam lidar. Giami (2004) mostra que os pais são radicalmente contrários à eventualidade de um bebê deficiente, e assim, freqüentemente são favoráveis ao uso da esterilização como método de contracepção.

A verbalização de Ana sobre o que é necessário para ter relação sexual com uma pessoa (Quadro 8) mantém o mesmo padrão das outras respostas: é necessário que um dependa do outro, que sejam fiéis, se respeitem e dêem atenção um ao outro. Isso evidencia que a aprendizagem que Ana desenvolveu a respeito de relacionamentos amorosos é consistente, e que recebeu uma educação que valoriza aspectos como demonstração de afeto e cuidado com o outro. Esse dado também está relacionado com as descobertas já mencionadas de Matos, Carneiro e Jablonski (2005) de que jovens de camadas populares cariocas consideram que confiança mútua e fidelidade são aspectos importantes para um relacionamento dar certo.

Talita destacou dois aspectos necessários: usar preservativos e terminar os estudos. Nesse caso, também é possível observar aprendizagens importantes: prevenção e "maturidade" são necessárias para ter relações sexuais. Por meio desse estudo não é possível avaliar o grau dessa aprendizagem. No caso do uso de preservativos, não é possível afirmar, com base apenas no relato de Talita, que ela saberá e de fato os utilizará quando tiver relações sexuais. A afirmação "porque eu sou muito nova" mostra que Talita estabeleceu um critério necessário para que tenha relações sexuais, mas não fica claro até que ponto ela avalia a relevância desse critério.

Parece existir uma relação entre a condição sócio-econômica das famílias e a qualidade e quantidade de investimentos feitos pelas famílias em relação à educação para a vida amorosa de seus filhos com Síndrome de Down. Entre os entrevistados, Ana e Luciano apresentam discursos diferenciados sobre relacionamento amoroso em relação aos demais, descrevendo com mais detalhes os próprios comportamentos e os dos namorados. Também há evidencias consistentes que, ao longo de suas vidas, esses dois jovens encontraram maiores oportunidades para relacionar-se amorosamente – esses pais autorizaram que os namoros desses jovens efetivamente ocorressem. Os pais desses jovens, por sua vez, são os que possuem maior renda e maior nível de escolaridade. Uma das implicações desse tipo de constatação, mesmo que haja necessidade de mais verificações considerando a quantidade reduzida dos participantes, é que famílias cuja condição sócio-econômica é menos favorecedora são as que mais provavelmente necessitarão de investimentos feitos pelo poder público para possibilitar o pleno desenvolvimento dos jovens para a vida de maneira geral e para a vida amorosa, em especial.

A diferença entre os jovens entrevistados, no que se refere à compreensão das perguntas feitas a eles, tipo de verbalização e capacidade de elaboração, está provavelmente relacionada ao repertório de comportamentos que desenvolveram ao longo da vida, tanto na escola, como no ambiente familiar. Ao discorrer sobre educação, Postman e Weingartner (1971), Skinner (1972), Keller (1983) e Sidman (1985) demonstram que o importante não é o que dizemos às pessoas, mas o que conseguimos que elas façam efetivamente. Assim, em situações de aprendizagem, aquilo que é dito "silenciosamente", aquilo que é valorizado ou não por aquele que ensina e pelos sujeitos envolvidos na relação, diz ao aprendiz como ele deve comportar-se, o que ele deve fazer. Considerando que o ambiente em que o jovem vive, incluindo escola, família, amigos, oferece situações de aprendizagem, é possível supor uma diferença nas condições oferecidas a cada jovem entrevistado, que favoreceram em maior ou menor grau o desenvolvimento de aprendizagens significativas para manter um relacionamento amoroso, evidenciando o papel fundamental do ambiente no desenvolvimento pleno de pessoas com Síndrome de Down e de pessoas com necessidades especiais de modo geral.

Recebido em 22/01/2007

Reformulado em 04/06/2007

Aprovado em 30/08/2007

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Jan 2008
  • Data do Fascículo
    Ago 2007

Histórico

  • Revisado
    04 Jun 2007
  • Recebido
    22 Jan 2007
  • Aceito
    30 Ago 2007
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