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A interpretação em cena: transformar um laboratório em espetáculo

RESUMO

A interpretação em cena: transformar um laboratório em espetáculo – Este artigo analisa um dispositivo de performance que mostra uma equipe - atores, dramaturgos e um diretor - trabalhando no Cid de Corneille a fim de tornar visível, para um público, o processo de pensamento do ator no momento em que ele escolhe sua atuação. Interprétation. L’Amour fou du théâtre era um espetáculo baseado em uma técnica proveniente da análise-ação e mostrava a interação entre a análise semântica e a atuação. O presente estudo permitiu constatar que embora esse dispositivo não seja capaz de revelar todo o mecanismo de pensamento em um trabalho sobre um texto, ele torna observável o processo de apropriação do significado baseado em reflexões, discussões e discordâncias entre dramaturgos, atores, diretores e personagens fictícios.

Palavras-chave:
Performance; Teatro; Interpretação; Ator; Análise-Ação

RÉSUMÉ

L’interprétation en jeu: faire spectacle d’un laboratoire – Cet article analyse un dispositif de performance qui donnait à voir une équipe -- comédien.ne.s, dramaturges et un metteur en scène -- en situation de travail sur Le Cid de Corneille afin de rendre visible, pour un public, le processus de pensée de l’acteur·rice au moment où il·elle choisit son jeu. Interprétation. L’Amour fou du théâtre s’appuyait sur une technique issue de l’analyse-action et donnait à voir l’interaction entre analyse sémantique et jeu d’acteur·rice. Cette analyse permet de constater que ce dispositif, bien que ne révélant pas la totalité du mécanisme d’une pensée au travail sur un texte, donne à voir le processus d’appropriation du sens à partir de réflexions, discussions et discordances entre dramaturges, acteur·rice·s, metteur en scène et personnages fictifs.

Mots-clés:
Performance; Théâtre; Interprétation; Acteur; Analyse-Action

ABSTRACT

This article analyzes a performance device that exposed a team - actor·resse·s, playwrights and a director - in a working situation on Le Cid written by Corneille in order to make visible, for an audience, the process of thought of the actors when they choose their acting. Interpretation. L’Amour fou du théâtre was based on a technique derived from action-analysis and succeeding in seeing the interplay between semantic analysis and acting. This analysis shows that this device, although not revealing the totality of the mechanism of a thought at work on a text, shows the process of appropriation of meaning from the reflections, discussions and discordances between playwrights, actor·resse·s, director and fictional characters.

Keywords:
Performance; Theater; Interpretation; Acting; Action-Analysis

A noção de laboratório, tal como ela foi elaborada no início de século XX sob a égide de Constantin Stanislavski e depois posta em prática e reelaborada por Meyerhold, Copeau e Grotowski (entre outros), é baseada em uma forma de paradoxo. No campo das artes cênicas, os laboratórios, situados principalmente no âmbito da pedagogia e da pesquisa, não têm como principal objetivo a produção de um espetáculo, mas a criação de um espaço de experimentação coletiva livre das restrições de tempo e da pressão de uma apresentação. No entanto, como observa Jean-Manuel Warnet, a pesquisa conduzida há mais de um século em projetos que se apresentam como laboratórios da cena “só se realiza plenamente no encontro com um público” (Warnet, 2013, p. 9WARNET, Jean-Manuel. Les laboratoires: une autre histoire du théâtre. Montpellier: L'Entretemps, 2013.) De fato, trabalhar fora da perspectiva direta de um espetáculo não significa perder de vista o contato com o público. Este intervém “[...] como parte da experiência nos ensaios abertos, que assumem o caráter de work in progress, ou como testemunha nas apresentações dos espetáculos propriamente ditos, que trazem à tona, em forma de obra concluída, mas com muitos prolongamentos, o resultado de uma longa experiência” (Warnet, 2013, p. 12WARNET, Jean-Manuel. Les laboratoires: une autre histoire du théâtre. Montpellier: L'Entretemps, 2013.).

A posição de observador de um laboratório é, portanto, ambígua por pelo menos dois motivos. Por um lado, a presença do público, que aceita participar da transformação em espetáculo do processo de trabalho que acontece diante de seus olhos, modifica, de fato, as condições desse trabalho de laboratório; por outro lado, mesmo se os intérpretes são colocados em situações imprevisíveis, onde a concentração, a atenção e a capacidade de aproveitar as oportunidades são duramente testadas, deve-se constatar que o cerne do trabalho de pesquisa, os pensamentos que eles elaboram durante o processo, continuam invisíveis. Anatoli Vassiliev já notou o paradoxo de abrir completamente um trabalho de laboratório: o que um/a espectador/a veria? Um/a ator/atriz em uma cadeira que “dirá três vezes a mesma palavra”? Ou, mais tarde, o/a ator/atriz “se mover e dizer algumas palavras” (Vassiliev, 1999, p. 133, apud Warnet, 2013, p. 6WARNET, Jean-Manuel. Les laboratoires: une autre histoire du théâtre. Montpellier: L'Entretemps, 2013.)? Esse obstáculo duplo (por um lado, as condições de representação em público que influenciam o trabalho dos atores e atrizes, e, por outro, a imperceptibilidade desse trabalho) é a questão tratada pelo projeto de pesquisa-criação Interprétation (2019-2020), dirigido por Nicolas Zlatoff. Esse laboratório autorreflexivo, baseado nos métodos de análise-ação desenvolvidos por Constantin Stanislavski e Maria Knebel, propõe tornar os processos invisíveis do pensamento do/a/s atores/atrizes observáveis por um público no exato momento em que ele/a/s, escolhem sua interpretação, em resposta a várias sugestões feitas ao vivo. Os desafios dessa abordagem, que se propõe a fazer do processo de descoberta um espetáculo, serão apresentadas nas próximas páginas.

Interprétation1 1 O projeto é apoiado pela HES-SO (Haute École de Suisse Occidentale) e pela IRMAS (Institut de Recherche en Musique et Arts de la Scène) é um projeto da Pesquisa da Manufacture – Haute École des Arts de la Scène (Lausana, Suíça), em parceria com o Théâtre Saint-Gervais de Genebra e as universidades de Lausana e Genebra. Tanto em sua concepção como em sua implementação, essa pesquisa se fundamenta na hipótese de que a interpretação do/a/s atores/atrizes, no campo da prática cênica, é sempre carregada de uma interpretação semântica do material. A pesquisa se concentra, portanto, em duas questões diretamente relacionadas: (1) Quais os processos pelos quais o/a/s atores/atrizes articulam o trabalho do significado e o trabalho da atuação? (2) Como esses processos podem ser tornados visíveis em um palco? A primeira destas perguntas alimenta um trabalho de laboratório realizado ao vivo no palco. A segunda é sobreposta à primeira, despertando, ativando e ampliando, diante do olhar do público, os momentos de apropriação do texto com o objetivo de torná-los observáveis.

A pesquisa, intitulada Interprétation / L’Amour Fou (du théâtre), foi apresentada em forma de performance: seis atores/atrizes (Prune Beuchat, Estelle Bridet, Cécile Goussard, Arnaud Huguenin, Lucas Savioz e Lisa Veyrier) se colocavam em situação de trabalho e apropriação de um texto todos os dias, durante cinco horas, sob o olhar de um público2 2 O espetáculo era gratuito e o público podia entrar e sair da sala durante as cinco horas de duração. . Em forma de improvisações, fazendo uso de suas próprias associações de idéias e suas próprias redes de analogia, os atores tentavam seguir o mais precisamente possível o movimento de cada uma das cenas que, por uma questão de princípio, não haviam decorado. Em diálogo com ele/a/s, no palco, quatro pesquisadore/a/s das Universidades de Genebra (Eric Eigenmann) e Lausana (Danielle Chaperon, Marc Escola e Lise Michel), sendo dois/duas especialistas de teatro clássico e dois/duas de teatro contemporâneo, comentavam as propostas, trazendo referências literárias, históricas ou teóricas e observações de natureza semântica ou dramatúrgica, que serviam de inspiração para o improviso. Para que o trabalho pudesse abrir a uma multiplicidade de interpretações, a peça escolhida foi um clássico (Barthes, 2014BARTHES, Roland. Sur Racine. Paris: Points, 2014.) - no caso, O Cid de Pierre Corneille. Além disso, o público podia acompanhar a parte do texto que estava sendo trabalhada por meio de um dispositivo de vídeo, mantendo um resquício do trabalho e enriquecendo as possibilidades de interpretação dos atores.

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O dispositivo cênico: o espaço bifrontal3 3 NdT: Trata-se de um dispositivo cênico com plateia dos dois lados, face a face. enquadra um espaço de cena (Prune Beuchat, Estelle Bridet, Lucas Savioz) e um espaço de mesa table (Davide Brancato, Nicolas Zlatoff). As telas mostram a parte do texto sendo trabalhado

A análise-ação exposta

O método de trabalho utilizado provém da análise-ação, cunhada originalmente por Constantin Stanislavski no Teatro de Arte de Moscou e desenvolvida mais tarde por Maria Knebel e Anatoli Vassiliev. Como seu nome indica, a análise-ação alterna momentos de análise do texto, na mesa, com momentos de atuação (action, mais comumente chamado de estudos, em referência ao desenho preparatório nas artes plásticas). Durante o estudo, os atores e atrizes são instruídos a dizer (interpretar) o texto, com suas próprias palavras, sem tê-lo aprendido previamente, com base no que retiveram do contexto da peça. Depois eles “[...] voltam à peça e à análise da cena que acaba de ser improvisada” para “[...] verificar no texto da peça tudo o que foi realizado [em cena]” (Knebel 2006, p. 77KNEBEL, Maria. L’analyse-action. N. Struve et S. Poliakov (trad.). Paris: Actes Sud-Papier, 2006.). Essa análise semântica e dramatúrgica (exploração do sentido e da lógica da ação) permite elaborar, para a cena trabalhada, uma composição, ou seja, um encadeamento de blocos de sentido, pontuado por imagens sensíveis e pessoais, uma sub-partitura que o elenco (atores/atrizes, dramaturgo/a, diretor/a) descobre coletivamente. O objetivo do método é alternar estas fases de análise (elaboração ou precisão da hipótese de composição atual) e estudo (prática cênica para testar a hipótese de composição). À medida que a composição se torna mais precisa, os atores aprendem a segui-la como uma partitura invisível, para se aproximar cada vez mais dos discursos (palavras) do autor e do personagem, em sua própria organização (Lupo 2006LUPO, Stéphanie. Anatoli Vassiliev, au cœur de la pédagogie théâtrale. Montpellier: L'Entretemps, 2006., Vassiliev 2007VASSILIEV, Anatoli. Sept ou huit leçons de théâtre. (trad.) M. Néron. Paris: P.O.L., 2007.).

Observa-se que a análise-ação é um método que separa deliberadamente as fases de prática cênica e análise de texto. Não se tratava originalmente de um protocolo de trabalho destinado à exposição pública, mas uma fase de pesquisa e experimentação, ou mais precisamente: um método de aprendizado simultâneo do texto e da interpretação. Ao expor esse trabalho diante de um público, o projeto desloca suas questões. Neste contexto, a ferramenta não visa preparar os atores para um espetáculo, mas revelar ao vivo os processos pelos quais o sentido atribuído ao texto pode orientar a interpretação, e vice versa. A análise-ação, associada a numerosos protocolos específicos, permite tornar visível aqui a atividade do/a intérprete (geralmente silenciosa e invisível) que provoca, conduz e finalmente leva à atuação. Ao praticar a análise-ação em cena, o ator ainda está trabalhando o texto: ele/a procura validar ou invalidar a composição em processo, sem ter o objetivo de dominá-la ou muito menos consertá-la. Ele/a é, portanto, colocado em uma situação de pesquisa e experimentação de fato. Seu pensamento e sua atuação estão em processo de elaboração e o resultado é incerto. A especificidade da exposição ao público reside no fato de que se assiste ao vivo as hesitações, tentativas de desenvolvimento de uma intuição, descobertas, impasses e propostas do ator.

Protocolos

Nessa perspectiva, antes do trabalho apresentado ao público no Théâtre Saint-Gervais de Genebra, o elenco passou por uma formação, com Nicolas Zlatoff, durante quinze dias, em diferentes ferramentas de análiseação, entre as quais pode-se citar (Vassiliev 2007VASSILIEV, Anatoli. Sept ou huit leçons de théâtre. (trad.) M. Néron. Paris: P.O.L., 2007.):

  • O fio monológico: o ator interpreta apenas o que um personagem diz em uma cena, como um monólogo interior. Se a cena for um diálogo, por exemplo, o/a ator/atriz trabalha sucessivamente o fio monológico de cada um dos personagens presentes em cena, antes que dois fios sejam desenvolvidos simultaneamente por dois/duas atores/atrizes. Cada um/a se surpreende, nesse momento, com as propostas do/a outro/a, pois cada um/a trabalha para desenvolver seu próprio monólogo, articulado em torno de uma composição em diferentes partes (como descrito anteriormente).

  • O evento original: o/a ator/atriz tenta identificar qual evento (situação) inicia a cena, quais as razões para as ações de seu personagem. Em cena, ele/a procura desenvolver as consequências dessas circunstâncias propostas.

  • O evento principal: o/a ator/atriz procura identificar qual evento conclui a cena, para quê tende a ação, o que impulsiona a cena. Em estudo, ele/a procura construir um caminho para esse evento, ele/a é atraído/a por ele.

  • A analogia: o/a ator/atriz pode escolher uma referência conhecida (memória pessoal, referência cultural), com o objetivo de fazer uma analogia com uma situação identificada no texto. Os termos dessa analogia podem ser baseados em uma experiência que o ator ou atriz vivenciou, da qual ele ou ela tem conhecimento, ou que ele ou ela tirou de uma ficção.

Durante a fase de exposição ao público, o desafio é que o/a/s atores/atrizes utilizem essas ferramentas, de acordo com um protocolo estabelecido a cada dia pelo diretor em uma lista de cenas do Cid. Estas eram selecionadas para o trabalho do dia com base no trabalho da véspera (um ponto que precisa de esclarecimento ou justeza; o cansaço em relação a uma cena; a situação da cena ou do personagem em um contexto dramatúrgico mais amplo). O protocolo determina que, para cada cena, o/a/s atores/atrizes comecem lendo a cena em voz alta, e depois tenham a oportunidade de questionar a equipe acadêmica (o/a/s dramaturgo/a/s), presente na lateral do palco, sobre detalhes pontuais (compreensão lexical, contexto histórico, etc.). Em seguida, o princípio é: primeiro, o/a/s atores/atrizes fazem um estudo em cena4 4 Em uma tela, são exibidas as passagens trabalhadas durante improvisações ou análises, permitindo que os espectadores acompanhem os pontos do texto que estão sendo trabalhados. , sem distribuição prévia: cada um/a pode, portanto, fazer qualquer papel, ou mesmo mudar de papel a qualquer momento. Após cada estudo nesse protocolo, um/a dramaturgo/a intervém para endossar, divergir ou abrir uma outra perspectiva de interpretação. Em seguida, o/a/s atores/atrizes resumem o que retiveram dessa intervenção e retornam ao estudo da cena, nutridos pelo que acaba de ser formulado, tanto para aprimorá-la como para retrabalhá-la no sentido oposto. Por meio da alternância destas fases de análise (pelo/a/s dramaturgo/a/s e pelo/a/s atores/atrizes) e estudo (propostas desenvolvidas pelo/a/s intérpretes segundo os protocolos), o elenco está em condições de convocar o palco para validar ou invalidar as hipóteses feitas sobre o texto. O palco opera como um revelador de hipóteses; a atuação permite verificar ou contradizer a interpretação que acaba de ser proposta “[...] na mesa” (Zlatoff, 2018ZLATOFF, Nicolas; RIBAUPIERRE (de), Claire. L’exégèse de texte est-elle une action dramatique? (PENSEE) – Rapport d'activité. La Manufacture HETSR, Lausanne, 2018. Disponible sur: <http://www.manufacture.ch/download/docs/cg837jzh.pdf/Rapport%20d'activité.pdf> Consulté le 19.01.2021.
http://www.manufacture.ch/download/docs/...
). Finalmente, a cada mudança de cena, o diretor (Nicolas Zlatoff) dirige o/a/s atores/atrizes em uma conclusão instantânea do trabalho: ao filmá-los, ele lhes pede para fazer uma leitura da cena ou resumir um ponto central que foi discutido (cf. seção Brincando de criar complô).

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Etapa de leitura de uma cena antes de um estudo (Cécile Goussard, Arnaud Huguenin sous le regard de Nicolas Zlatoff, Eric Eigenmann e Marc Escola). As telas de projeção mostram a cena sendo trabalhada

Em cena: a interpretação

Na medida em que esses protocolos e a escolha do método de análiseação respondem à dupla exigência de provocar e mostrar a ligação entre a interpretação hermenêutica e a escolha de uma atuação, a tarefa atribuída ao/à/s dramaturgo/a/s consiste em abrir ao máximo a interpretação (semântica) da cena a ser representada para os atores e atrizes. Correlativamente, para os atores e atrizes, a tarefa consiste em uma “[...] renovação incessante da projeção” (Gadamer 1960GADAMER, Hans-Georges. Vérité et méthode. Les grandes lignes d'une herméneutique philosophique. P. Fruchon, J. Grondin et G. Merlio (trad.). Paris: Le Seuil, 1996 (1960).) que um/a leitor/a-dramaturgo/a faz de um texto. O objetivo da pesquisa não é “[...] provar o acerto ou o erro dessa ou daquela interpretação” (Citton 2007), mas multiplicar as propostas para levantar pistas hermenêuticas e (portanto) pistas de atuação, ora contextualizadas, ora anacrônicas ou inspiradas por aproximações com outras obras, ou de outras épocas, outras situações, outras formas de coerência. É uma questão de “reclassificar, reconstruir a sintaxe, super-codificar, multi-referenciar os signos, os perceptos, os afetos e os comportamentos”, de modo que cada novo plano de leitura ou atuação funcione como um “[...] processo reconfigurador” (Citton, 2007). Assumindo o risco da verborragia ou da dispersão, a abordagem procura variar os pontos de vista propostos pelo/a/s dramaturgo/a/s ao/à/s atores/atrizes ou pelo/a/s atores/atrizes ao/à/s dramaturgo/a/s e provocar seu confronto. Contudo, para tornar observável a apropriação de certas hipóteses pelos atores e atrizes, a tarefa do/a/s dramaturgo/a/s é também mostrar para o público, potencialmente diferente de uma noite para outra, esse gesto de variação constante das hipóteses à disposição, explicitando os caminhos já escolhidos e as outras possibilidades da cena. Por fim, trata-se, para o público, de reconhecer nos processos mostrados a ele a observação de suas próprias práticas de apropriação ao ler um texto.

Para facilitar a demonstração, o texto foi escolhido na medida em que ele se presta a uma multiplicidade de respostas por parte dos artistas. A seleção desse texto foi feita em conjunto entre o diretor e a equipe acadêmica durante uma fase preliminar de trabalho. O Cid de Pierre Corneille tem a vantagem de pertencer a um horizonte conhecido e a uma cultura escolar amplamente compartilhada, de resistir a interpretações, às vezes contraditórias, e de ter sido muito comentado pela crítica. Esse contexto permitiu que o trabalho fosse ricamente documentado e evidenciou a originalidade de certas interpretações, tanto por parte do/a/s atores/atrizes quanto do/a/s dramaturgo/a/s. Nesse sentido, mesmo que a descoberta de um novo significado da peça de Corneille não fosse o objetivo do projeto, a releitura, no palco, de certas cenas, tornou possível mostrar a ligação entre a exploração cênica e a exploração semântica.

O deslizamento entre análise e atuação

O princípio básico da análise-ação, como mencionado, é distinguir claramente a fase de análise do texto da fase de atuação. Sendo assim, após a improvisação de cada ator/atriz, um/a dramaturgo/a toma a palavra e desenvolve uma análise do estudo que ele ou ela acaba de observar da cena em questão. Essa análise cunha conceitos a partir do que foi observado e os articula por meio de operações de distância e reflexão, enquanto a fase de atuação (estudo) é mais intuitiva: Anatoli Vassiliev fala de uma “[...] leitura com as pernas”, já envolvida no corpo e na atuação do/a ator/atriz (Vassiliev, 2006). Esse pensamento é vivo, abundante e instável; ele abre múltiplos sentidos; ele se permite ser irreverente e excêntrico porque joga com os conceitos, faz com que seu significado escorregue, e provoca resultados inesperados (o/a/s atores/atrizes muitas vezes ficam surpresos com o que produzem em cena). Na alternância destas fases de análise e de atuação, é então possível para o público observar essas duas linguagens de pensamento muito diferentes, como se atores/atrizes e dramaturgo/a/s estivessem falando línguas diferentes - mas conseguindo claramente se entender.

A representação também impele mudanças entre as duas etapas de análise e atuação, colocando o/a/s atores/atrizes na posição de passar do comentário textual (O personagem acredita que...) para uma encarnação em primeira pessoa. Assim, após a intervenção de um/a dramaturgo/a, o/a/s atores/atrizes devem resumir o que acabou de ser dito, enquanto já encarnam seu personagem, permitindo que o público entenda como os pensamentos se atritam uns contra os outros, como o/a/s atores/atrizes traduzem, em sua própria língua, uma interpretação estrangeira que os ajuda, nesse processo de transformação, a desenvolver seus próprios pensamentos (interpretação) em cena. Nesse sentido, a instrução dada aos atores e atrizes para reformular as propostas após cada intervenção do/a/s dramaturgo/a/s é pedagógica apenas na aparência: trata-se na verdade de expor o momento em que o/a/s atores/atrizes escolhem (ou se recusam a fazer) suas próprias propostas semânticas, no intuito de interpretar as propostas semânticas que lhes são apresentadas. Um/a ator/atriz pode, por exemplo, aproveitar-se de uma informação (“[...] então é na cena 4 do 3º ato que Rodrigo vem ver Ximena e ele sabe que seu amor está condenado, já que ele matou o pai de Ximena”), depois o/a ator/atriz muda para “[...] eu” (“eu parto do princípio de que não ouvi o que Ximena disse [que ela não deixou de me amar]”) e procura desenvolver as consequências de tal decisão (“[...] então eu não tenho mais nada a perder, e eu vim ver você para morrer pelas suas mãos”5 5 Transcrição de um estudo cênico (excerto). ). Reformulando, na língua da atuação (“eu”), um pensamento alimentado pelo conhecimento dramatúrgico, o/a/s atores/atrizes mostram claramente que também estão, em cena, fazendo o trabalho de um/a dramaturgo/a, materializando as possibilidades de sentidos, impostos ou não por uma instância externa, e propondo hipóteses potencialmente capazes de dar jogo - que a execução pode ou não validar.

A dialética que opera no trabalho do/a ator/atriz durante esta alternância entre análise e atuação é complexa e múltipla. Algumas vezes, a troca é voluntária, ela visa verificar uma hipótese de análise, outras vezes o/a ator/atriz simplesmente deixa seus pensamentos perambularem, absorvidos pela representação. Por se dirigir a um/a parceiro/a, por ocupar o espaço do palco, ele/a deixa seu corpo seguir “suas próprias ideias”, um pouco como o leitor descrito por Roland Barthes que, com a cabeça baixa em seu livro, está “[...] inclinado a levantar a cabeça frequentemente, para ouvir outra coisa” (Barthes 1973BARTHES, Roland. Le plaisir du texte. Paris: le Seuil, 1973.). Roland Barthes indica que é assim que surgem “[...] os melhores pensamentos”, que se “[...] melhor inventa o que é necessário para [seu] trabalho”, porque o texto então consegue “[...] se fazer ouvir indiretamente”. O/a/s atores/atrizes brincam, desse modo, de “[...] fazer de conta” (Escola 2003ESCOLA, Marc. Lupus in fabula. Six façons d’affabuler La Fontaine. Paris: Presses Universitaires de Vincennes, 2003.), ou seja, relacionam “[...] cada história a um complexo de histórias possíveis". Por meio da atuação, as atrizes provocam “[...] a recuperação dos efeitos de sugestões que os textos carregam” (Citton, 2007). Esse mecanismo de interpretação-em-cena se encontra, desse modo, “[...] a meio caminho entre análise e reescrita, entre crítica e adaptação” (Citon, 2007). Ela nos permite questionar, surpreender, explodir, em suma, sugerir interpretações (desta vez no duplo sentido da atuação e da crítica literária), mas não afirmar verdades: “[...] nunca há acesso direto à verdade, mas apenas a interpretações” (Citon, 2007). A interpretação-em-jogo não é mais “[...] exumação”, mas “[...] reinvenção”, “[...] faz-de-conta”. Os intérpretes estão, desse modo, na posição descrita por Stanley Fish, ou seja, menos interessados em “[...] entender” o texto do que em “[...] construir” algo novo: “[...] os intérpretes não decodificam os poemas: eles os fazem” (Fish, 1980FISH, Stanley. Is there a text in this class. The authority of interpretative communities. Cambridge: Havard University Press, 1980.).

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Durante um trabalho de mesa, Arnaud Huguenin (esquerda) vai aos poucos entrando no jogo.

Um exemplo de resultado hermenêutico

Alguns aspectos inesperados do texto se revelaram nos momentos em que a atuação era particularmente resistente, mostrando ao público que a interpretação em cena também abre novas interpretações semânticas. Dessa forma, uma dificuldade sempre aparecia nas improvisações do início do terceiro ato. Rodrigo, depois de matar o pai de Ximena, vai à casa da jovem para encontrar “[...] [seu] juiz” (III, 1, v. 760). Por sugestão da criada de Ximena, Elvira, ele se esconde quando Ximena chega com seu rival Dom Sancho. Rodrigo presencia, escondido, a conversa entre Ximena e Dom Sancho (III, 2), e, em seguida, o diálogo entre as duas jovens (III, 3). Nas improvisações, a tentativa de fundamentar as intenções de Rodrigo, Elvira e Ximena, transpondo-as para outros universos, deu origem a uma série de contradições ou perguntas: se Rodrigo vem, como ele explica na cena III, 1, para se oferecer a Ximena, por que ele aceita se esconder? Quando Elvira desencadeia as confidências amorosas de Ximena, ainda que ela tenha tentado expulsar Rodrigo antes, é preciso supor que ela esqueceu a presença dele? Ou, pelo contrário, que ela se tornou cúmplice dele em um estratagema que ela não revelou à sua senhora - ela que, até então, sempre foi apresentada como perfeitamente sincera? O discurso de Ximena a Dom Sancho não se torna mais claro nesse contexto se partirmos do pressuposto que a jovem sabe que está sendo escutada?

Essas dificuldades em encontrar um viés de atuação, diretamente ligadas às dificuldades de interpretação do texto, produziram, na escala da sequência, improvisações incoerentes em termos de registro; as propostas mais sérias só poderiam ser resolvidas pela integração de elementos burlescos. Esse problema de interpretação em cena parecia frutífero do ponto de vista dramatúrgico. Ele revela que no texto de Corneille coexistem várias lógicas de ação concorrentes, ligadas a diferentes gêneros. A cena do amante escondido é um padrão da tragicomédia (que na época estava cheia de aventuras heroico-galantes); mas é também um modelo trágico: na temporada anterior à da criação do Cid, no mesmo palco do teatro do Marais em Paris, a Mariane de Tristan L’Hermite, cuja heroína inocente não sobrevive à sua estada em um palácio cheio de espiões a soldo do enamorado e tirânico Herodes, fez um enorme sucesso. Acima de tudo, e de modo mais surpreendente ainda, O Cid, criado em 1637 como tragicomédia e depois republicado em 1648 como tragédia, mostrou-se perfeitamente legível em uma estrutura de tipo cômico: uma testemunha, escondida para alguns personagens, cúmplice de um outro, e visível para o público, assiste uma cena que o coloca em uma situação embaraçosa (a cena do Orgon escondido embaixo da mesa no Tartufo de Molière não se basearia em outro recurso). O que esse processo pôde mostrar é que o texto em si não se decide entre vários modelos dramatúrgicos concorrentes, e a dificuldade em encontrar as intenções da atuação está diretamente relacionada a esse problema. Em uma escala mais ampla -que coloca a cena na perspectiva da coerência geral da trama - a apropriação de uma interpretação cênica mostrou-se assim indissociável de uma proposta de sentido (Michel, 2020MICHEL, Lise. Faites vos jeux: le projet de recherche-création Interprétation. Journal de la Recherche de La Manufacture, Lausanne, La Manufacture – Haute école des arts de la scène, n. 1, p. 3-5, 2020.).

Para os dramaturgos e para o público, a exposição do trabalho produz por meio dos vários estudos, imagens de pensamento, que ativam uma compreensão que provavelmente é mais direto e sensível do que um discurso analítico teria produzido. É como se, mesmo que você já conheça um ponto de vista sobre uma cena, vê-la representada por atores lhe permitisse ver e entender seus problemas com mais precisão. Platão argumentava que a tarefa do logos (análise) não é convencer o interlocutor com argumentos lógicos, mas criar uma “[...] imagem do verdadeiro” para o interlocutor conquistan-do-o imediatamente (Platão, 1993). Claramente, a busca de uma interpretação, produzida por um/a ator/atriz em cena, cria uma imagem espetacular, que ajuda a criar essa compreensão, tanto para ele mesmo ou ela mesma quanto para um/a observador/a externa (dramaturgo/a e espectador/a convidado/a/s para a experiência).

Brincando de criar complô: a autoparódia do laboratório

Deve-se salientar novamente que o pensamento produzido dessa maneira é muito diferente do que é provocado em uma leitura feita exclusivamente na mesa. Aqui, o/a/s atores/atrizes percebem que é a atuação que ativa pensamento deles: uma vez os conhecimentos (do/a/s atores/atrizes e dramaturgo/a/s) projetados no texto de ficção, o/a/s atores/atrizes se surpreendem brincando com eles, transformando-os gradualmente, empurrando-os para a ficção do texto que está sendo trabalhado. Na 4ª cena, do 1º ato, por exemplo, Danielle Chaperon criou a tese de que o personagem do Conde possuía traços análogos ao do orgulhoso e ultrajante Matador de A Ilusão cômica, de Pierre Corneille, inspirado na comedia espanhola. Após esta interferência, Arnaud Huguenin tomou novamente a palavra, já em cena: “Sinto muito, mas não, eu não concordo com você... Eu não concordo com você, Danielle... não se pode dizer que o Conde é ultrajante”. Depois, ele desenvolveu a ideia passando à 1ª pessoa: “Não estou sendo ultrajante de forma alguma, por que você diz isso? Por que vocês, todo mundo, todos vocês dizem isso? Tenho todos os motivos para acreditar no que digo, etc.”. O ator prosseguiu com seu jogo e sua proposta, justificando, segundo ele, as razões pelas quais acreditava que conseguiria o cargo de governador do príncipe. A dramaturga argumentou, dialogando não mais com o ator, mas diretamente com o personagem, o que tornou possível questionar realmente seu caráter e suas motivações, fazendo a dramaturga entrar no jogo e confirmar sua tese (o ator que interpretava o Conde só podia apostar em sua má fé).

Essa dinâmica é particularmente instrutiva: desde o início, o ator está convencido de que o Conde está realmente se esforçando demais, sua discordância no diálogo com a dramaturga é apenas uma hipótese para esclarecer e iniciar sua interpretação. O ator em questão está realmente trabalhando: silenciosamente, para si mesmo, ele procura praticar um novo estudo da cena, ou seja, com ajuda das ferramentas da análise-ação, ele procura refazer o caminho da composição da cena, marcando claramente um ponto de partida (o caráter de seu personagem) procurando extrair todas as conseqüências. Portanto, o ator não está atuando aqui porque ele está ensaiando: ele está trabalhando o texto. Mas, paradoxalmente, para realizar esse trabalho interior, ele conta com a situação do laboratório em andamento, ou seja, a análise da dramaturga. Nessa perspectiva, ele interpreta o ator que entra em conflito com a dramaturga, ele se teatraliza em sua posição de ator trabalhando e pesquisando, mas apenas para continuar a trabalhar em cena alimentando um pouco mais a personalidade excessiva do personagem. Assim, a abertura pública do laboratório, longe de curto-circuitar a realidade da pesquisa, torna-se um motor de jogo para o ator, o que lhe permite alimentar e ampliar o laboratório. Ao optar por reproduzir sua situação de estar em um laboratório, o ator cria as condições que lhe permitem continuar o trabalho de laboratório.

Como mencionado na introdução, a possibilidade para que um trabalho de laboratório possa ser aberto em público nas condições de um pacto performativo ambíguo entre o/a/s atores/atrizes (que não estariam representando que estão pesquisando, mas estariam realmente trabalhando) e o/a/s espectadore/a/s (que aceitariam participar do estabelecimento dessa prática como espetáculo). Aparece aqui um terceiro termo nessa dialética, que podemos chamar de trama (complot), para emprestar o termo de Jacques Rivette, sobre seu filme L'Amour fou. Nesse longa-metragem lançado em 1969, três atividades são reunidas: um grupo de atores/atrizes ensaiando uma peça (Andrômaca de Jean Racine), um diretor filmando um documentário sobre esse trabalho (André Labarthe) e Jacques Rivette filmando todoo o elenco ensaiando no teatro (filmado ou não pela equipe de Labarthe) ou improvisando em outros ambientes (cafés, seus apartamentos, etc.). Observa-se, dessa forma, o/a/s atores/atrizes, no teatro, levantando hipóteses sobre o texto, testando-as no palco, recomeçando, mudando de direção, etc., mas também o/a/s vemos convocando seu trabalho em andamento sobre Andrômaca para alimentar outros momentos da atuação. Enquanto trabalham sinceramente, ele/a/s também estão improvisando uma nova ficção de si mesmo/a/s no trabalho, uma ficção modelada e desenvolvida segundo o progresso de seu trabalho sobre o texto. Em um jogo perspicaz de “[...] conspiração com o diretor” (Frappat, 2001FRAPPAT, Hélène. Jacques Rivette, secret compris. Paris: Cahiers du Cinéma – auteurs, 2001.), o/a/s atores/atrizes se envolvem progressivamente em um processo de variação permanente do texto de Racine.

Na abertura da pesquisa Interprétation/L’amour Fou (du théâtre), título escolhido em homenagem a Jacques Rivette, o/a/s atores/atrizes e dramaturgo/a/s também são os criadores de um complô: mesmo participando de um laboratório e mostrando o tempo todo o processo de apropriação do sentido, na verdade ele/a/s escondem do público algumas dinâmicas subjacentes. Um exemplo é que eles nunca formulavam explicitamente as ferramentas de análise-ação, nunca nomeavam as várias noções técnicas envolvidas (fio monológico, eventos, analogia, composição, etc.), nunca se decidia previamente que tal intérprete faria qual papel da ficção. No entanto, eles sempre tinham que agir de acordo com os protocolos da análise-ação. Na realidade, para melhor orientar o olhar para os momentos em que a atuação é inventada ao vivo, o espetáculo deve, paradoxalmente, esconder sua estrutura metodológica (suas ferramentas de trabalho), cuja única função é provocar situações onde o significado e a atuação podem se encontrar. Desse modo, sobrepõe-se à camada do trabalho em andamento (a análise-ação do texto do Cid), a construção e desenvolvimento de um jogo de complô entre os membros do elenco (atores/atrizes, dramaturgo/a/s e diretor) que consiste, por exemplo, em adivinhar quem está fazendo o quê e quem está fazendo qual papel. Por exemplo, em referência ao filme L’Amour Fou, era possível que Nicolas Zlatoff, o diretor, pegasse uma câmera e pedisse para entrevistar um/a do/a/s atores/atrizes. Seguindo o modelo de Rivette e Labarthe que “organizam pequenas conspirações pelos cantos”, o diretor questiona o/a/s atores/atrizes sobre o trabalho: “Como está indo o trabalho nesta cena? Me fala do seu personagem...” O complô está no fato de que o/a/s atores/atrizes têm que responder a essas entrevistas enquanto continuam seu trabalho de análise-ação da cena em questão, brincando de construir analogias entre o laboratório e o texto estudado. Assim, em referência (implícita) à situação do Cid na qual o Rei escolhe Dom Diego em vez do Conde como preceptor de seu filho, Prune Beuchat, interpretando o Conde, respondeu: “[...] o trabalho é difícil porque o diretor (ela pensa: “[...] o Rei") preferiu a experiência à juventude. Eu não concordo”. Essa analogia permite que a atriz revisite a composição da cena do fole entre o Conde e Dom Diego. Ao fazer isso, ela precisa essa composição, para ela e para a equipe, sem nunca explicar explicitamente essa composição nem nomear explicitamente os personagens.

Imagem 4
O diretor Nicolas Zlatoff entrevista uma atriz, Estelle Bridet (à esquerda), no modelo de L’Amour Fou de Jacques Rivette. Arnaud Huguenon (em primeiro plano) faz a captação do som enquanto Lisa Veyrier (ao fundo) trabalha com a câmera.

Conclusão: o espetáculo do diálogo do pensamento

A rigor, o projeto não resolve completamente o paradoxo da exposição ao público de um trabalho de laboratório: o público não assiste a revelação completa do mecanismo silencioso e invisível do pensamento trabalhando um texto: uma parte subterrânea do trabalho, aquela que condiciona a própria possibilidade desse trabalho, permanece conscientemente inacessível para eles. Ainda assim, por meio da brincadeira com os protocolos que se alternam entre análise e estudo em cena, pelos deslizamentos e deslocamentos implícitos ou explícitos que se entrelaçam na operação de complô, uma grande parte dessa atividade de trabalho e pesquisa se torna exponível ao/à/s espectadore/a/s. Melhor ainda, a exposição se torna uma condição para a continuação do trabalho, uma vez que o/a/s atores/atrizes aproveitam continuamente essas condições de exposição para desdobrar sua atuação. No decorrer dos estudos e das alternâncias entre análise (comentário externo sobre o papel) e estudo (atuação), o que os espectadores assistem, no fim das contas, é um diálogo permanente entre o elenco (atores/atrizes, diretor e dramaturgo/a/s) e os vários personagens estudados (da ficção do Cid), cuja manifestação mais óbvia e imediata é a mencionada anteriormente de um ator em cena (e, portanto, um personagem) em diálogo com uma dramaturga. Esse diálogo, na realidade, é o do pensamento, mostrado a um público.

Gilles Deleuze e Félix Guattari apresentaram a idéia de que, quando pensamos, estamos sempre em diálogo com um personagem conceitual, como com uma espécie de alter ego ou interlocutor imaginário brilhante de nosso pensamento. É no embate com esse personagem conceitual, capaz de nos contradizer, estimular, fazer derivar e até nos deixar ébrios ou loucos, que moldamos aos poucos nossos próprios conceitos (Deleuze, 1991DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Qu’est-ce que la philosophie? Paris: Editions de Minuit, 1991.). O laboratório descrito oferece uma extensão dessa dialética maiêutica, ao propor que os membros do elenco dialoguem constante mente com os personagens da ficção de Corneille, que de fato assumem o papel de personagens conceituais, interpretados sucessivamente por cada um/a do/a/s atores/atrizes. E é isso que o público percebe: diálogos entre dramaturgo/a/s, atores/atrizes e um diretor com personagens fictícios, que tornam a lacuna entre texto e a atuação sensível no espaço, permitindo que o processo de apropriação do sentido seja visto e vivenciado. Segundo Jacques Rivette, um filme é sempre o documentário de sua própria filmagem (Frappat, 2001FRAPPAT, Hélène. Jacques Rivette, secret compris. Paris: Cahiers du Cinéma – auteurs, 2001.): da mesma forma, pode-se argumentar que a abertura ao público do laboratório Interprétation é o documentário do laboratório6 6 Além dos vídeos mencionados (entrevistas com o elenco), os registros dessa criação compreendem as anotações feitas nas improvisações e intervenções dos/as dramaturgos/as por um assistente, Davide Brancato, assim como as anotações manuscritas dos/as dramaturgos/as. Eles foram arquivados em um padlet, cujo acesso ainda não é público. Ele permitirá ao usuário navegar pelo texto do Cid e, para cada cena, consultar os diversos documentos associados. Ele será como um atlas (no sentido de Warburg, como descrito por Georges Didi-Huberman, cf. Didi-Huberman 2011), ou seja, uma organização espacial de documentos, sempre recomponível e recomposta, permitindo que seu sentido seja relido indefinidamente. .

Notas

  • 1
    O projeto é apoiado pela HES-SO (Haute École de Suisse Occidentale) e pela IRMAS (Institut de Recherche en Musique et Arts de la Scène)
  • 2
    O espetáculo era gratuito e o público podia entrar e sair da sala durante as cinco horas de duração.
  • 3
    NdT: Trata-se de um dispositivo cênico com plateia dos dois lados, face a face.
  • 4
    Em uma tela, são exibidas as passagens trabalhadas durante improvisações ou análises, permitindo que os espectadores acompanhem os pontos do texto que estão sendo trabalhados.
  • 5
    Transcrição de um estudo cênico (excerto).
  • 6
    Além dos vídeos mencionados (entrevistas com o elenco), os registros dessa criação compreendem as anotações feitas nas improvisações e intervenções dos/as dramaturgos/as por um assistente, Davide Brancato, assim como as anotações manuscritas dos/as dramaturgos/as. Eles foram arquivados em um padlet, cujo acesso ainda não é público. Ele permitirá ao usuário navegar pelo texto do Cid e, para cada cena, consultar os diversos documentos associados. Ele será como um atlas (no sentido de Warburg, como descrito por Georges Didi-Huberman, cf. Didi-Huberman 2011DIDI HUBERMAN, Georges. Atlas ou le gai savoir inquiet. Paris: Editions de Minuit, 2011.), ou seja, uma organização espacial de documentos, sempre recomponível e recomposta, permitindo que seu sentido seja relido indefinidamente.

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Editado por

Redatora responsável: Anna Mirabella

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    30 Jan 2021
  • Aceito
    18 Maio 2021
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