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Imprensa e educação feminina em zona pioneira: o caso do Noroeste Paulista (1920-1940)

Resumos

O artigo discute a emergência de uma das zonas pioneiras mais expressivas do estado de São Paulo, a Noroeste Paulista, destacando a importância adquirida pela imprensa regional no ordenamento daquele espaço nas primeiras décadas do século XX. Evidencia que dentre os inúmeros assuntos pautados cotidianamente pelos jornais locais, a temática feminina foi uma das mais recorrentes, num mesmo movimento em que as mulheres se tornavam o público-alvo de uma espécie de processo educativo, "civilizador", perpetrado cotidianamente pelos impressos, conforme o texto pretende demonstrar.

gênero; imprensa; Noroeste Paulista


The present article discusses the rising and consolidation of one of the most expressive pioneer zones of the State of Sao Paulo, the northwest, accentuating the importance earned by regional press on the first decades of the 20th century. Amongst several topics lined daily by local newspapers, women's issues were one of the most recurring ones, as women were becoming the target audience of an educational and "civilizing" process, perpetrated by local press, as demonstrated over this text.

gender; press; Northwest of São Paulo


ARTIGOS

Imprensa e educação feminina em zona pioneira: o caso do Noroeste Paulista (1920-1940)1 1 Texto parcialmente apresentado no VII Congresso Brasileiro de História da Educação.

Press and women's education on a pioneer zone: the case of the northwest of São Paulo (1920-1940)

Raquel Discini de Campos

Professora de História e Historiografia da Educação da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). raqueldiscini@uol.com.br

RESUMO

O artigo discute a emergência de uma das zonas pioneiras mais expressivas do estado de São Paulo, a Noroeste Paulista, destacando a importância adquirida pela imprensa regional no ordenamento daquele espaço nas primeiras décadas do século XX. Evidencia que dentre os inúmeros assuntos pautados cotidianamente pelos jornais locais, a temática feminina foi uma das mais recorrentes, num mesmo movimento em que as mulheres se tornavam o público-alvo de uma espécie de processo educativo, "civilizador", perpetrado cotidianamente pelos impressos, conforme o texto pretende demonstrar.

Palavras-chave: gênero; imprensa; Noroeste Paulista.

ABSTRACT

The present article discusses the rising and consolidation of one of the most expressive pioneer zones of the State of Sao Paulo, the northwest, accentuating the importance earned by regional press on the first decades of the 20th century. Amongst several topics lined daily by local newspapers, women's issues were one of the most recurring ones, as women were becoming the target audience of an educational and "civilizing" process, perpetrated by local press, as demonstrated over this text.

Keywords: gender; press; Northwest of São Paulo.

O sertão da Araraquarense: uma zona pioneira em expansão

Ao viajar pelo interior do estado de São Paulo nas décadas de 1930 e 1940, em busca de dados para sua tese de doutoramento, o geógrafo francês Pierre Monbeig (1908-1987), então professor da recém-criada Universidade de São Paulo (USP), identificava as zonas pioneiras paulistas como lugares de verdadeiro "alvoroço" econômico, cultural, étnico e social: "tão rápidas são as transformações que tudo que se pode escrever a respeito entra logo na história", dizia então o autor, verdadeiramente impressionado com o ritmo de desenvolvimento do território paulista (Monbeig, 1984, p.19).

Tratava-se de um espaço geográfico em que uma região de colonização relativamente recente como Ribeirão Preto, por exemplo, já era chamada de "velho oeste" na época da viagem do geógrafo, e onde "novos oestes", ou seja, novas zonas pioneiras emergiam com grande força econômica. A tal respeito o professor afirmava:

Espanta-se o europeu, quando ouve chamar de "velha" uma cidade como Ribeirão Preto, que não conta três quartos de século; custa-lhe compreender que "outrora" significa 1910 e mesmo 1920, se o seu interlocutor é um homem moço. Tudo se passa como se este país conhecesse em setenta e cinco anos, um século no máximo, o que se levou milênios para fazer na Europa. E certamente é isso: nascimento e formação da paisagem rural, fundação e crescimento das cidades, construção duma rede de comunicações, mistura de raças, elaboração de uma mentalidade regional, tal o imenso trabalho que ainda prosseguia, aos nossos olhos. (Monbeig, 1984, p.23)

Enquanto a cidade símbolo do "velho oeste" era Ribeirão Preto, sem dúvida o ícone do "novo oeste", desde aqueles tempos e além, era São José do Rio Preto, identificada nos mapas reproduzidos na Figura 1.2 2 São José do Rio Preto situa-se geograficamente na região Noroeste do estado. Foi fundada em 1852, e em 1894 conseguiu emancipação político-administrativa de Jaboticabal, elevando-se à categoria de município. O surto de desenvolvimento verificado no início do século XX originou-se, de fato, em 1912, com o prolongamento da ferrovia Araraquarense, que saía de Araraquara chegando até o município, "fim de linha" da estrada férrea até meados dos anos 1930. Conforme dados do IBGE, atualmente a macrorregião onde se situa possui 1.437.879 habitantes e é uma das mais desenvolvidas do estado de São Paulo. Informações disponíveis em: www.riopreto.sp.gov.br/PortalGOV/do/subportais_Show?c=60202; Acesso em 4 fev. 2013. As expressões "Noroeste Paulista" e "Araraquarense" utilizadas ao longo do texto referem-se a esse espaço geográfico.


Lá o autor observou o grande afluxo de migrantes e imigrantes para o trabalho nas nascentes lavouras e cidades, a intensa miscigenação racial e o rápido desenvolvimento dos meios de comunicação. Atentou, também, para o processo de destruição das florestas até então existentes em nome do progresso capitalista em curso. Tal progresso, aliás, rapidamente passou a ser palavra de ordem para aqueles que Monbeig chamou de desbravadores e pioneiros do sertão paulista.

Eram colonos que de repente se transformavam em fazendeiros, grileiros que asseguravam a posse de terra amparados por suas Winchesters, pequenos e grandes proprietários, plantadores não apenas de café, mas também de algodão e milho e de lavouras de subsistência em geral. Eram eles, ainda, os criadores de gados e muares que fizeram a fama da cidade e da região, os donos de fortunas instáveis e que vez ou outra mudavam de mãos em função da situação internacional dos produtos agrícolas cultivados.

Interessa aqui destacar que em meio à derrubada da mata e da criação de sítios e fazendas, eram, sobretudo, as pequenas vilas que se transformavam em cidades, e as pequenas cidades que se transformavam em grandes aglomerados urbanos que ganhavam corpo, como é o caso da emblemática São José do Rio Preto, conhecida regionalmente desde os anos 1920 como "princesa do sertão".

Tal alcunha revela a um só tempo a distância da capital, São Paulo, e o processo de inexorável transformação pelo qual passava a cidade inserida na zona pioneira. A alcunha oculta, no entanto, lados mais obscuros e muito menos nobres da referida "princesa": os altos níveis de analfabetismo verificados na região, a ausência de escolas de todos os níveis para aqueles que não podiam pagar pelos estudos nas instituições confessionais existentes, as elevadas taxas de mortalidade da população mais pobre em geral – e da infantil em particular, dentre outros (Lodi, 1967; Campos, 2003; Carvalho Jr.; Mahl; Campos, 2011).

Signo do contraditório desenvolvimento em curso, a cidade abrigava os grupos escolares, o ginásio e a escola normal para onde acorriam os filhos das camadas médias urbanas que ali passavam a residir. Abrigava, ainda, uma santa casa, escolas de ensino profissionalizante, clubes, bares, teatro, cafés, prostíbulos, estação ferroviária, bancos, clínicas médicas e odontológicas, pequenos e grandes hotéis, pontos de táxi, cinemas, lojas comerciais e mais um sem-número de estabelecimentos de diversão, saúde, ensino e serviços que giravam em torno de um nascente estilo de vida urbano.

Tal estilo, no entanto, pouco se desvencilhava do mundo rural que era, ao fim e ao cabo, a força motriz do desenvolvimento local. Arrolamento feito entre 1927 e 1928 nos dá um panorama da economia da cidade à época. Trata-se de levantamento não oficial, presente no Album Illustrado da Comarca de Rio Preto, obra publicada no ano de 1929 com o objetivo de dar visibilidade à cidade e à Araraquarense no cenário nacional.

A publicação de álbuns e almanaques era moda nas cidades do interior paulista nas primeiras décadas do século XX. Os dados desse tipo de publicação, portanto, devem ser lidos levando-se em conta o intento propagandístico de seus artífices. Além disso, ao analisá-los, cabe pensar em quantos profissionais e estabelecimentos comerciais ficaram de fora da listagem apresentada por não terem pagado para aparecer, ou por não terem ligações com seus idealizadores.

Ao avaliar a Tabela 1, percebe-se que em meio aos "cinematographos" e "bilhar", "botequins e cafés", espaços citadinos por excelência, sobressaem as atividades com forte ligação com o universo rural: os espaços destinados ao beneficiamento de cereais, à venda de lenha e à fabricação de armas, à comercialização de ferragens etc.

É desse entrelaçamento entre o universo urbano e o rural, entre um sertão arcaico e ao mesmo tempo moderno, que se fez a zona pioneira do Noroeste Paulista, afinal.

Interessante notar, ainda, que os lugares e profissões listados e que buscam demonstrar a "pujança" local são quase que exclusivamente ocupados por homens, com exceção das "pensões familiares". Das 14 arroladas, oito eram comandadas por mulheres. Destaca-se, também, o fato de que boa parte dos sobrenomes dos profissionais era de origem italiana, espanhola ou árabe, revelando a força da imigração na composição da população local: Capatti, Pacci, Angerami, Nicoletti, Cambiagui; Estefan, Duarte, Tarossian, Navarro; Callil, Cury, Daher, Jammal, Barbor, Mansour, Chacon, Saad e tantos outros.

Imprensa e civilização

Dentre os inúmeros empreendimentos urbanos existentes na região nas primeiras décadas do século XX, como os inventariados na Tabela 1, destacavam-se, sobremaneira, os meios de comunicação de massa que se multiplicavam naquelas décadas, não apenas em São José do Rio Preto, mas, de maneira heterogênea, em todo o mundo ocidental: o rádio, o cinema, as revistas e, especialmente, os jornais, símbolos urbanos por excelência.

Pesquisadores sociais da imprensa são unânimes ao afirmarem que os jornais da primeira metade do século XX, além de se transformarem num verdadeiro produto da então nascente indústria cultural, converteram-se, também, nas grandes tribunas públicas da época. A esse respeito são famosas, por exemplo, as campanhas nacionais levadas a cabo contra o analfabetismo, a lepra, a tuberculose e diversos outros assuntos avaliados como importantes pelas elites e camadas médias brasileiras do período. Os jornais tornaram-se, além disso, espaços de sociabilidade entre os grupos letrados que os idealizaram e os puseram para circular (Sevcenko, 1999; Luca, 2006).

Conforme demonstrou Cruz (2000), a imprensa do período é um extraordinário personagem na construção da experiência de urbanidade, pois é um elemento fundante do tecido social urbano. Ela dá visibilidade ao processo de invenção de espaços públicos, ao mesmo tempo em que projeta sobre as cidades as demandas de diferentes grupos sociais. Independentemente de se formar por jornais e revistas de pequena ou de grande tiragem, ela é, em si, um agente histórico capital. Ainda segundo a autora, imprensa e cidade emergiram amalgamadas no mundo ocidental, daí a relação intrínseca entre uma e outra, ou seja, entre periodismo e vida urbana.

No caso das publicações de São José do Rio Preto e região não era diferente. Nessa zona pioneira de ocupação recente, era pelas páginas do Correio de Mirassol (Mirassol), A Cidade (Catanduva), A Notícia e O Município (ambos de São José do Rio Preto) que passavam todos os temas que merecessem ser discutidos, conforme acreditavam os que escreviam nos impressos na primeira metade do século XX. Assim sendo, a cultura letrada regional articulou-se por meio de seus jornais, a moderna ágora interiorana – e neles construíram projetos e disputas para e pela cidade.

Justamente por isso, eles constituem-se, nos dias de hoje, em fontes preciosas para o historiador que se propõe a interrogá-los procurando respostas para as mais variadas questões: gênero, meio ambiente, educação, sociedade, política, literatura etc. Aliás, se o historiador jamais esgota completamente os documentos, podendo, conforme demonstrou Antoine Prost, "sempre questioná-los, de novo, com outras questões ou levá-los a se exprimir com outros métodos" (Prost, 2008, p.77); e se o documento "é ao mesmo tempo verdadeiro e falso", sendo sempre necessário "pôr à luz as condições de produção e mostrar em que medida o documento é instrumento de um poder", conforme proposição clássica de Jacques Le Goff (2003, p.525), o que dizer dos impressos, fontes multifacetadas por excelência?

No caso dos jornais considerados, tem-se demonstrado, por intermédio da sua análise sistemática, que eles revelam práticas culturais e sociais dos grupos letrados que rapidamente ocuparam aquele tempo/espaço, ou seja, a primeira metade do século XX na região pioneira paulista. Os jornais desvendam, ainda, os modos de viver e de pensar daqueles que buscavam educar cotidianamente os habitantes dessa zona por intermédio de instituições variadas, tais como escolas, associações beneficentes, congregações religiosas e, especialmente, pelos jornais (Campos, 2003 e 2009).

Médicos, políticos, advogados, engenheiros, professores e intelectuais de variados graus de consagração se ocuparam da construção da imprensa local. Além desses grupos, conforme a década de 1930 chegava ao fim, foi se fortalecendo, também, a figura do jornalista. Quanto mais os impressos se esforçavam em parecerem mais um produto e menos uma folha opinativa, mais se fortalecia a figura do profissional de imprensa – um indivíduo supostamente isento em relação aos variados interesses presentes no mundo social.

Impossível compreender a dinâmica urbana da região naqueles tempos, sem levar em conta a circulação dos jornais diários, veículos que comentavam o dia a dia de Rio Preto e demais cidades, mas que, antes disso, faziam ressoar as notícias do Brasil e do mundo, ao mesmo tempo em que também as ressignificavam. Eram eles que pautavam o debate público local e a vida social de leitores em geral.

Os jornais do interior paulista não apenas informavam, portanto. Buscavam, antes disso, ordenar as coisas e as pessoas da zona pioneira em construção. Por conseguinte, eram verdadeiramente prometeicas as pretensões dos homens envolvidos nessa prática: "A imprensa do interior é e, se não é, pode ser, uma força gigantesca, perfeitamente capaz de construir ou demolir instituições, fazer ou desfazer administrações e estabelecer ou demover credos ou convenções políticas" (A Noticia, 1932).

A civilização da mulher paulista

Se pensarmos, com Norbert Elias, em processo como um "caminhar não planejado", e em civilização como "transformação do comportamento humano", sem dúvida poderemos afirmar que a imprensa da Araraquarense procurou desempenhar um papel de "civilizador dos costumes" dos habitantes daquela região (Elias, 2006, p.36).

Dentre esses habitantes sobressai a figura da mulher, depositária de nobilíssimas responsabilidades naquela zona pioneira: zelar pelo marido e filhos, "adornar" a vida social que se constituía, fazer caridade junto aos mais pobres, cuidar dos doentes, dos velhos e desamparados em geral, e, ainda, ser bela, saudável e forte em todas as idades da vida.

Assim, não é por acaso que em meio aos inúmeros assuntos pautados pelos jornais da zona pioneira naqueles tempos, a temática feminina tenha sido uma das mais recorrentes.

Como vem demonstrando a historiografia dedicada ao tema, naquele período as mulheres de variadas etnias, gerações e classes sociais se tornaram o público-alvo de um claro processo normatizador, perpetrado por uma miríade de poderes, destacadamente o médico, o jurídico e o religioso, dentre outros, que buscavam cotidianamente discipliná-las por intermédio de variadas práticas: aconselhamentos, legislação, interdições, premiações etc. (Rago, 1985; Perrot, 1992; Matos, 2003).

Tal processo se deu no bojo da complexa e heterogênea reconfiguração do papel social das mulheres que, ao longo dos séculos XIX e XX, foi paulatinamente se transformando de maneira irreversível, causando ora admiração, ora estranhamento em todos os envolvidos.

Elas ocuparam espaços políticos e profissionais até então exclusivamente masculinos, tornando-se protagonistas de sua própria história. Num mesmo movimento, tiveram a sua existência dentro do lar supervalorizada, conforme consolidação do cânone familiar burguês, erigido, sobretudo, a partir da euforização da maternidade e da infância.

É importante destacar que nesse fenômeno absolutamente nuançado e contraditório, elas foram ao mesmo tempo sujeitos, porque operaram ativamente na construção ou na recusa de estereótipos ligados à sua identidade pública e privada, e objetos, porque foram alvo de intentos normatizadores majoritariamente masculinos – mas também femininos.

São nuances e contradições observáveis em várias partes do mundo e que, no caso do Noroeste Paulista, eclodiam cotidianamente na imprensa, o tão decantado "espelho da sociedade" local. Conforme crença compartilhada, era necessário civilizar o sertão. Mas, antes disso, era necessário civilizar a mulher paulista, a verdadeira construtora daquelas plagas porque baluarte da família dos modernos bandeirantes.3 3 Observa-se forte reconfiguração do mito bandeirante na região da Araraquarense na primeira metade do século XX. Atributos historicamente atrelados à figura do paulista desbravador, tais como a coragem, a abnegação e a força física e moral foram ressignificados no processo de colonização da zona pioneira.

Sobre a "mãe", por exemplo, corriam rios de tintas. Do diálogo com a força da simbologia católica presente no Noroeste Paulista, bem como do encontro com as promessas da medicina eugênica tão em voga, emergem as imagens da mãe santa, da mãe eugênica, da mãe extremosa, da mãe amorosa, da mãe sacrifício etc. Representações entrelaçadas, muitas vezes, a um só tempo edificadoras e responsivas ao imaginário social que se consolidava na região.

Quando os nossos coraçõesinhos nos pertenciam inteiramente...adormeciamos sem saber onde; e ao despertarmos recebíamos em nossas faces o beijo sacrosanto de uma mãe estremosa. (A Cidade, 1934)

Ao contrario dos bolshevistas, entendem os fascistas, e com razão, que o edifício social só pode ter base sólida na família bem constituída, cujos membros estejam presos por laços de solidez que lembre, nisso, a família da republica romana. A festa nacional da maternidade e da infância será celebrada em toda a Italia a 24 de dezembro, sob invocação da Virgem, e terá um manifesto cunho ideal, visando não só a protecção da mãe e da creança, como a preparação de uma raça mais forte physica e moralmente. (A Noticia, 1933)

Numa noite do mez de Agosto, quando todos se entregavam ao somno profundo, a Mãe inclinava-se sobre o berço em que lhe agonisava o filhinho. E o seu coração rebentava de dor. (A Noticia, 1937)

Além disso, da análise das páginas impressas emergem todos os tipos de artigos, notícias, contos e discussões, ora sérias, ora jocosas, em torno dos assuntos ligados às conquistas femininas do espaço público. Interessante notar aqui a heterogeneidade de concepções sobre como deveria ser, de fato, a mulher paulista. A partir da divulgação de uma pesquisa realizada por uma jornalista da Inglaterra, por exemplo, somos levados a crer que a grande preocupação das mulheres daqueles tempos era, previsivelmente, o casamento. Mesmo que o teor da pesquisa seja, afinal de contas, o de crítica aos maridos.

A jornalista teve a paciência de consultar 15.000 damas e poude organizar uma lista das offensas capitaes, com a seguinte classificação. – 1º os maridos que procuram com freqüência exagerada os conselhos de sua mãe (o caso da sogra); 2º os maridos que roncam ao dormir; 3º os maridos que sahem à noite sem dizer aonde vão; 4º os maridos que criticam a cosinha de suas mulheres; 5º os maridos mal humorados na hora do café da manhã; 6º os maridos que, depois de 20 annos de casados, dão para namorar moças solteiras; 7º os maridos que lêem jornal a (?); 8º os maridos que acham as despezas da casa exageradas; 9º os maridos que puxam para si, na cama, toda a coberta...

Gostaríamos de ver os resultados de um tal inquérito entre os maridos. Talvez as suas queixas não fossem tão fáceis de resolver, como no caso das mulheres, o que, aliás, é questão apenas de um pouco de jeito... (A Noticia, 1937)

No entanto, o contradiscurso ao status quo, mesmo não hegemônico, estava presente – e muito bem articulado, num verdadeiro ataque a um tipo que era chamado pejorativamente, de mulher prendada e que compunha a "planície da maioria" delas. Em tal "planície" se situavam aquelas que só almejavam o casamento, conforme procurava demonstrar o ilustrado articulista. Não por acaso, trata-se de artigo publicado em 1932, ano em que as mulheres, prendadas ou não, asseguraram definitivamente o direito ao voto.

a maioria é pela moça prendada, espécie de aleijão espiritual que aprende francez para não ler, porque a literatura franceza é immoral, toca a Sonata Pathetica para tortura dos ouvidos dos visinhos e pinta para mostrar que a pintura não é uma arte e sim habilidade. Quando muito declama em festa de caridade máos versos, escolhidos por seu pae, cidadão temente ao Delegado e ao Vigário. O casamento ainda é a solução. Compra nelle um bilhete de loteria com 90% de probabilidade de ser infeliz, porque ahi intervem a família, a egreja, a opinião dos amigos e até o Estado para a declarar inferior, em face das prerrogativas do marido em questão de pátrio poder e chefia da sociedade conjugal. (A Noticia, 1932)

Interessante observar o ataque à educação rudimentar das mulheres da época, bem como o elogio à independência financeira da mocinha, que opta conscientemente por não se casar, uma clara bandeira feminista do início do século XX. Nota-se, também, que ela pode se dar ao luxo de sair "da planície" de esperar marido porque é independente economicamente. Inteligente, supostamente livre e "útil à coletividade" do sertão, conforme desejava o autor.

Eis aqui personificado um dos temas mais caros à recente história da educação brasileira: ela é professora e se sustenta com o magistério. Trata-se de outro tipo de casamento, afinal. Este último aparentemente perfeito, as mulheres e a docência (Souza, 1998; Louro, 2002).

Uma das almas femininas mais formosas que ainda conheci, dizia-me há pouco tempo, que, depois de muito reflectir, resolvera como menor infelicidade a escolher ficar solteira. Espirito vivo, subtil e ágil, Ella aos 20 annos, pelo magistério, conseguira alcançar a sua independência econômica. Pela belleza physica, aguda intelligencia, cultura e educação, esta jovem tem à vontade um casamento fácil quando quizer. Homens de virtudes apparentes e situação feita, aspiração commum da moça prendada, a disputam em matrimonio. Na sua Torre de Marfim onde cultiva a personalidade feita de independência, altivez, delicado amor próprio, amando a vida intensamente, não comprehendem as almas vulgares. Suppõem que Ella espera o Principe Encantado, ela que não quer senão ser livre, ter o direito de suas opiniões e realisar sua vida produzindo alguma coisa de útil à colletividade. (A Noticia, 1932)

Mas os temas caros aos estudos contemporâneos de gênero, tais como o feminismo, os direitos ao voto e ao divórcio e à necessidade de acesso à educação dividiam espaço nas folhas matutinas com outros assuntos, estes mais afeitos à crença na existência de um tipo feminino universal. Este deveria ser acompanhado de muito perto, em função da sua suposta instabilidade "natural", conforme destacavam os letrados do interior. Desse hipotético "feminino universal" pululavam conselhos voltados para o embelezamento e a saúde do corpo, as dicas de moda e decoração, as indicações dos filmes e peças em cartaz, dentre outras amenidades.

Aliás, foi justamente por essa porta, a das "amenidades", que as mulheres adentraram como escritoras nas redações, ou seja, falando principalmente sobre moda, beleza e "vida em sociedade", os primórdios do colunismo social atual. Com o olhar sempre voltado para o dia a dia local, elas também observavam atentamente o que acontecia no restante do mundo, destacadamente nas capitais brasileiras, como Rio de Janeiro e São Paulo, e europeias, como Londres e Paris. Ao longo dos anos 1930, com a consolidação da indústria cinematográfica norte-americana, as modernas bandeirantes do sertão também foram civilizadas pelas estrelas do cinema hollywoodiano.

Mas fiquemos, por ora, com as opiniões masculinas sobre as mulheres da Araraquarense. A nova civilização requeria mulheres "très chics" ou "elegantes", dependendo da origem referencial. Se possível, cada vez mais cosmopolitas – e menos "caipiras". No excerto seguinte, é o observador masculino quem tece, com o fascínio de quem conhece a fundo a moda europeia, particularmente a francesa, comentários sobre os figurinos paulistanos, por vezes incorporados pelas mulheres da elite regional da Araraquarense.

Não fosse a referência às colleretes e manteaus, poderíamos, numa primeira impressão, acreditar que se trata de um observador naturalista, tais quais os viajantes do século XIX, que se esmeravam na descrição da fauna e da flora brasileiras. Descrição com suaves toques de misoginia, como veremos:

É quase inverno. Esse incerto começo de estação, em que certas renards, há muito esquecidas, vêm acariciar, de novo, numa caricia quente e longa, de macieza e perfume, as nucas friorentas que emergem dos últimos vestidos de verão. Começa o desfile apressado das fourrures, pelas calçadas cinzentas polvilhadas pela garoa tão São Paulo: petit-gris, lontra, vison; colleretes exíguas, enormes renards argentés, toda uma fauna exquisita e luxuosa que traz ainda para as ruas um odor intimo de boudoir e de perfumes abafados.4 4 Renards, fourrures, petit-gris e vison são peles de animais altamente valorizadas pela indústria da moda internacional para a fabricação de casacos. As colleretes, como o próprio nome deixa antever, são adornos utilizados ao redor do pescoço.

Com as mãos escondidas nas luvas mais recentes, de punho inutilmente trabalhado, escondidas nas mangas quentes dos manteaus, todas as mulheres têm um sorriso ingenuamente feliz para o crystal attento das vitrinas que lhes devolvem, aos olhos contentes, as silhuetas renovadas, ao menos por uma estação...

Modas... Fascinação das mulheres... (A Cidade, 1935)

Da mesma forma que o observador dos casacos de pele, porém com estilo antagônico, outro homem, que assinava uma coluna sob o pseudônimo francês de Jean Jacques, presente em A Noticia no ano de 1936, ensinava às mulheres um dos valores mais recorrentes daqueles tempos em relação a elas: era imperativo agradar não apenas a si mesma, mas, principalmente, ao outro – o marido, os filhos, a sociedade em geral.

Na coluna semanal Para você, senhora... J.J adotava um tom muito mais ameno do que o do observador dos visons, mas não por isso menos prescritivo em relação às mulheres. Como uma espécie de "conselheiro amigo", conforme ele mesmo se apresentava às leitoras, o professor de "bom gosto" ensinava:

Voltamos hoje ao assumpto delicado do seu lar. Da sala de visitas, que já descrevemos de acordo com as exigencias estheticas da moda, passemos para a sua sala de jantar. Recinto importantíssimo de toda a casa. Nesta sala, mais do que em qualquer outro logar, se evidenciam o seu bom gosto e seus dotes de boa dona de casa. Se a sala de visitas predispõem agradavelmente, a sala de jantar decide, na maioria dos casos, as opiniões que se formam. (A Noticia, 1936)

Numerosos exemplos poderiam ainda ser arrolados, na tentativa de demonstração de que em meio a contradições e dinamicidades de toda ordem, as mulheres da zona pioneira foram alvo de um processo educativo singular, porque característico daquelas plagas. Processo igualmente plural, porque verificado em outras partes do mundo, conforme apontado pela historiografia contemporânea. No caso característico da Araraquarense, os impressos de circulação diária, entendidos como uma prática cultural das elites e camadas médias letradas da zona pioneira desempenharam um papel educativo difícil de aferir em números exatos, mas que, ainda hoje, se faz presente em nossa cotidianidade, particularmente no que diz respeito ao ensinamento diário sobre o modo de ser das mulheres.

NOTAS

Artigo recebido em 14 de março de 2014.

Aprovado em 19 de maio de 2014.

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    Texto parcialmente apresentado no VII Congresso Brasileiro de História da Educação.
  • 2
    São José do Rio Preto situa-se geograficamente na região Noroeste do estado. Foi fundada em 1852, e em 1894 conseguiu emancipação político-administrativa de Jaboticabal, elevando-se à categoria de município. O surto de desenvolvimento verificado no início do século XX originou-se, de fato, em 1912, com o prolongamento da ferrovia Araraquarense, que saía de Araraquara chegando até o município, "fim de linha" da estrada férrea até meados dos anos 1930. Conforme dados do IBGE, atualmente a macrorregião onde se situa possui 1.437.879 habitantes e é uma das mais desenvolvidas do estado de São Paulo. Informações disponíveis em:
    www.riopreto.sp.gov.br/PortalGOV/do/subportais_Show?c=60202; Acesso em 4 fev. 2013. As expressões "Noroeste Paulista" e "Araraquarense" utilizadas ao longo do texto referem-se a esse espaço geográfico.
  • 3
    Observa-se forte reconfiguração do mito bandeirante na região da Araraquarense na primeira metade do século XX. Atributos historicamente atrelados à figura do paulista desbravador, tais como a coragem, a abnegação e a força física e moral foram ressignificados no processo de colonização da zona pioneira.
  • 4
    Renards,
    fourrures,
    petit-gris e
    vison são peles de animais altamente valorizadas pela indústria da moda internacional para a fabricação de casacos. As
    colleretes, como o próprio nome deixa antever, são adornos utilizados ao redor do pescoço.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Jul 2014
    • Data do Fascículo
      Jun 2014

    Histórico

    • Recebido
      14 Mar 2014
    • Aceito
      19 Maio 2014
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