Resumos
No Brasil, o ano de 1968 é lembrado pelos confrontos violentos entre o movimento estudantil e o regime militar. O artigo sustenta que não é possível entender a crise de 1968 sem levar em conta um grupo ignorado pela maioria dos estudos - os políticos civis que eram ligados aos estudantes por laços de classe social e sangue. Cada vez mais decepcionados após 4 anos de regime militar autoritário que havia tirado várias das suas prerrogativas, muitos políticos se enfureceram ao ver a repressão violenta contra manifestantes estudantis, juntaram-se a passeatas e defenderam os estudantes em ações e palavras. Esse apoio a estudantes esquerdistas, que culminou nos discursos de Márcio Moreira Alves atacando as Forças Armadas, criaram divergências irreconciliáveis entre políticos e militares, levando à decretação do Ato Institucional nº 5, em dezembro.
movimento estudantil; políticos; Universidade de Brasília
1968 in Brazil has long been remembered for the violent showdown between the student movement and military regime. This article argues that we cannot understand the crisis of 1968 without taking into account a group that most studies have ignored - the civilian politicians who were bound to university students by ties of social class and blood. As they grew increasingly frustrated after four years of authoritarian military rule that had taken away many of their prerogatives, many politicians were infuriated as the regime violently repressed protesting students, and they joined marches and defended the students with their actions and words. This support for leftist students, culminating in Márcio Moreira Alves's speeches attacking the military, created irreconcilable differences between politicians and the military, leading in December to the decree of Institutional Act no. 5.
student movement; politicians; Universidade de Brasília
DOSSIÊ: GOLPES E DITADURAS
"O sangue da mocidade está correndo": a classe política e seus filhos enfrentam os militares em 1968
"The blood of the youth is flowing": the political class and their children take on the military in 1968
Bryan Pitts
Professor Assistente Visitante, Duke University (Durham, Carolina do Norte, EUA). bryan.pitts@duke.edu
RESUMO
No Brasil, o ano de 1968 é lembrado pelos confrontos violentos entre o movimento estudantil e o regime militar. O artigo sustenta que não é possível entender a crise de 1968 sem levar em conta um grupo ignorado pela maioria dos estudos os políticos civis que eram ligados aos estudantes por laços de classe social e sangue. Cada vez mais decepcionados após 4 anos de regime militar autoritário que havia tirado várias das suas prerrogativas, muitos políticos se enfureceram ao ver a repressão violenta contra manifestantes estudantis, juntaram-se a passeatas e defenderam os estudantes em ações e palavras. Esse apoio a estudantes esquerdistas, que culminou nos discursos de Márcio Moreira Alves atacando as Forças Armadas, criaram divergências irreconciliáveis entre políticos e militares, levando à decretação do Ato Institucional nº 5, em dezembro.
Palavras-chave: movimento estudantil; políticos, Universidade de Brasília.
ABSTRACT
1968 in Brazil has long been remembered for the violent showdown between the student movement and military regime. This article argues that we cannot understand the crisis of 1968 without taking into account a group that most studies have ignored the civilian politicians who were bound to university students by ties of social class and blood. As they grew increasingly frustrated after four years of authoritarian military rule that had taken away many of their prerogatives, many politicians were infuriated as the regime violently repressed protesting students, and they joined marches and defended the students with their actions and words. This support for leftist students, culminating in Márcio Moreira Alves's speeches attacking the military, created irreconcilable differences between politicians and the military, leading in December to the decree of Institutional Act no. 5.
Keywords: student movement; politicians; Universidade de Brasília.
Na manhã de 29 de agosto de 1968, uma quinta-feira, centenas de policiais portando cassetetes e metralhadoras invadiram o campus da Universidade de Brasília (UnB). Agindo sob as ordens dos militares e da Justiça Militar e exibindo mandados de prisão contra cinco militantes estudantis, eles chutaram as portas das salas de aula, destruíram equipamentos de laboratório e colocaram centenas de filhos das elites brasileiras a marchar através do campus, com as mãos na cabeça, concentrando-os numa quadra de basquete para identificação. O que aconteceu a seguir pode surpreender aqueles que têm subestimado o papel da assim chamada "classe política" na onda de protestos que caracterizou 1968 no Brasil. Enfurecidos, senadores e deputados tanto do partido aliado com o regime militar que então completava 4 anos de existência (Aliança Renovadora Nacional Arena) quanto do de oposição (Movimento Democrático Brasileiro MDB) acorreram ao Congresso para protestar contra a invasão, mobilizaram-se para libertar os estudantes da prisão e participaram de conflitos verbais e físicos com a polícia. A invasão da UnB dominou os debates congressuais na semana seguinte, culminando no discurso em que o deputado da Guanabara Márcio Moreira Alves chamou o Exército de "valhacouto de torturadores", conclamou as mulheres a fazerem greve de sexo contra os militares e desencadeou uma sequência de eventos que se encerraria apenas 3 meses depois, com a promulgação do Ato Institucional nº 5 (AI-5), após a Câmara dos Deputados recusar-se a retirar sua imunidade parlamentar de modo que os militares pudessem processá-lo por suas palavras.
O apaixonado e constante apoio que muitos políticos deram ao movimento estudantil e o frequente recurso dos estudantes àquele apoio não se encaixa muito bem nas narrativas que muitos acadêmicos e ex-militantes estudantis criaram sobre 1968. Um ex-líder estudantil, Franklin Martins, recordaria anos mais tarde que os estudantes desprezavam os políticos pela sua colaboração ou resposta tímida ao regime militar. Em um prefácio às memórias de Antonio de Padua Gurgel sobre o movimento estudantil em Brasília, ele escreveu: "O golpe de 64 havia aberto um fosso enorme entre os jovens e os políticos, sem exceção". Muitos acadêmicos e ex-militantes não chegam a tanto; de fato, como veremos a seguir, o próprio livro cujo prefácio Martins escreve reconhece que muitas vezes os políticos deixaram o Congresso para se juntar aos estudantes nas ruas. E autores como Artur José Poerner e Victoria Langland, junto a ex-militantes estudantis como Vladimir Palmeira, mencionaram, mesmo que de passagem, os laços de sangue e classe social que uniam os estudantes e a elite política e econômica, assim como a presença de políticos de oposição em momentos chave dos protestos estudantis.1 1 MARTINS, 2002, p.19-20; POERNER, 1995, p.41-42; LANGLAND, 2013, p.116; DIRCEU; PALMEIRA, 1998, p.48-49. Mas essa é toda a atenção que o papel crucial dos políticos em 1968 recebeu até o momento. A postura coerente e em alguns momentos corajosa que muitos membros da classe política tiveram quando a polícia reprimia os estudantes tem sido negada em alguns casos, mencionada de passagem em outros e, com mais frequência, simplesmente ignorada, enquanto proliferam as narrativas que apresentam os estudantes como oponentes autônomos e fundamentais do poder militar.
Seguindo as referências instigantes, mas insuficientemente exploradas de autores como Gurgel, Palmeira, Poerner e Langland, este artigo argumenta que não podemos entender efetivamente como um regime civil-militar prometendo uma iminente liberalização transformou-se numa indisfarçada e ainda mais repressiva ditadura militar em dezembro de 1968 sem tomar seriamente o comportamento e as palavras da classe política, e especificamente o apoio que muitos de seus membros emprestaram ao movimento estudantil. Sustentamos que a despeito dos conflitos ideológicos e geracionais reais entre políticos "liberais" em seus ternos e estudantes de inspiração comunista socializados na contracultura dos anos 1960, eles estavam unidos por laços de classe e sangue que tornavam impossível para muitos políticos esperar sentados enquanto o regime esmagava um movimento estudantil cada vez mais combativo. As reações emocionais, até mesmo viscerais, à repressão policial contra o movimento estudantil levariam diretamente à perseguição contra Moreira Alves, que por sua vez resultaria na promulgação do AI-5.
Além do mais, a defesa do movimento estudantil pelos políticos, inclusive aquela feita por vários aliados do regime, foi um momento chave na sua crescente desilusão com o governo dominado pelos militares. Como mostrou Lucia Grinberg, mesmo os políticos civis aliados do regime frequentemente chocavam-se com os militares e se ressentiam de sua submissão a um Executivo controlado por eles (Grinberg, 2009). Após a maioria deles apoiar um golpe ilegal ou ao menos consentir com ele , os políticos tinham passado por um amargo despertar, à medida que testemunhavam 4 anos de cassações, quatro atos institucionais ilegais, e a Constituição autoritária de 1967. A Constituição supostamente institucionalizaria definitivamente a assim chamada "Revolução de 1964", eliminando a necessidade de medidas repressivas adicionais, e o presidente Artur da Costa e Silva tinha chegado ao poder prometendo a "humanização" do regime. Mas agora o regime estava renovando a repressão, e desta vez tinha como alvos não apenas os sindicalistas ou os trabalhadores rurais, mas estudantes que em muitos casos eram os próprios filhos dos políticos, parte das privilegiadas classes altas e médias. Não era isso que os políticos esperavam em 1964. A violenta repressão contra os estudantes era um sinal de que o regime estava fora de controle.
Uma nota sobre o termo "classe política" é necessária aqui. Ele tem suas origens no trabalho do cientista político italiano do século XIX Gaetano Mosca, que o utilizava para se referir à "classe que governa" em qualquer sociedade. Os teóricos que estudam elites na sociologia norte-americana e europeia têm debatido exaustivamente sobre quem constitui essa "classe política" (ou "classe dirigente", "elite dirigente", "elite política" ou "elite no poder"), como ela recruta novos membros e como exerce e mantém o poder.2 2 MOSCA, 1939 [1896], p.50; ver, por exemplo, MICHELS, 1959 [1911]; PARETO, 1963 [1915-19]); DAHL, 1961; LASSWELL; KAPLAN, 1950; MEISEL, 1958; MILLS, 1956. Porém, como escreveu Frances Hagopian: "Se os cientistas sociais têm dificuldade em identificar 'elites tradicionais' [e] concebê-las como uma classe política distinta ... a sociedade brasileira não tem. As famílias tradicionais, velhas lideranças e classes conservadoras são conhecidas de todos" (Hagopian, 1996, p.20).
O termo é usado há muito no Brasil, inclusive por acadêmicos como Fernando Henrique Cardoso (1973, p.170) e Leôncio Martins Rodrigues (2006). Considero que ele descreve, ainda que de forma imperfeita, a "oligarquia política" cujo "número é relativamente pequeno, com fileiras relativamente fechadas, e cujo poder se concentra em umas poucas mãos" (Hagopian, 1996, p.17). Esse grupo tem compartilhado desde o período colonial uma "identidade comum como líderes da sua sociedade" em virtude do seu pedigree, riqueza, educação ou ocupação profissional (Kirkendall, 2002, p.1). Eles se distinguem não apenas pelo controle dos meios de produção, que podem compartilhar com o restante da classe dominante e da burguesia, mas também pelo seu desejo e habilidade em concorrer a cargos públicos, seu poder político e sua socialização, e há muito trabalham para proteger seus interesses coletivos, a despeito das disputas internas. Apenas desde o estabelecimento da Nova República a hegemonia dessa "classe política" passou a ser seriamente desafiada, e ainda permanece em aberto se virá a perder sua coerência ou incorporará os novos atores sociais que começaram a participar na política.
"Nossos filhos, nossos irmãos, nossos parentes": políticos, estudantes e classe social
Da perspectiva de muitos políticos, 1968 deveria ser visto como a continuidade de uma progressão da "Revolução" rumo a um sistema político mais aberto. Embora o Ato Institucional nº 2 (AI-2) tivesse resultado em mais cassações e na abolição dos antigos partidos políticos, ele expirou em 15 de março de 1967, quando Costa e Silva foi empossado. Os políticos foram inseridos em dois novos partidos, e falava-se até mesmo de um sucessor civil para Costa e Silva. A nova Constituição, mesmo limitando os poderes do Congresso, também teoricamente havia dado ao regime o poder de que ele necessitava para efetuar suas transformações econômicas, políticas e sociais sem atos institucionais. Além do mais, estipulava que futuras cassações apenas poderiam ser efetivadas por meio de um julgamento no Supremo Tribunal Federal, com aprovação do Congresso. Talvez o fim do invasivo projeto "revolucionário" estivesse à vista, e talvez os políticos civis logo pudessem voltar a dirigir o Brasil sozinhos. Mas em 1968 a trégua entre a classe política e os militares sofreu uma série de rudes golpes à medida que os militares e a polícia desencadeavam uma crescente repressão violenta contra os protestos estudantis.
Dia 28 de março de 1968, no Rio de Janeiro, o estudante secundarista Edson Luís, um migrante de origem operária vindo do Pará, foi morto pela Polícia Militar durante um protesto relativo a um refeitório universitário. Antes dessa morte, as manifestações estudantis tinham focado basicamente em demandas relacionadas à educação mais vagas nas universidades, um sistema mais democrático de gestão universitária. A não ser pelos militantes de esquerda mais ativos politicamente, a maioria se preocupava pouco em derrubar o regime militar (Langland, 2013, p.107-108). Mas com essa morte violenta de um observador inocente que, por todos os relatos, não tinha nenhum envolvimento com a política estudantil, os protestos de estudantes explodiram por todo o Brasil. A maior manifestação ocorreu em junho quando, após conflitos com a polícia terem levado a uma repressão mais violenta, os estudantes no Rio de Janeiro realizaram a famosa "Passeata dos 100 mil". À medida que o tamanho dos protestos crescia e o seu tom subia, o mesmo ocorreu com a repressão policial, culminando na prisão, em outubro, de centenas de militantes estudantis no congresso clandestino da União Nacional de Estudantes (UNE), que havia sido fechada em 1964.
Os políticos, inclusive muitos dos que apoiavam o regime, eram esmagadoramente simpáticos aos estudantes. Afinal, num país no qual a educação universitária era ainda um privilégio de poucos, os estudantes protestando nas ruas eram "nossos filhos, nossos irmãos, nossos parentes". O deputado Breno da Silveira (MDB-GB) tinha um filho que estudava na UnB e que foi preso durante uma manifestação contra o assassinato de Edson Luís; seu outro filho, que estava servindo ao Exército, era parte da tropa enviada para reprimir a manifestação. Um dos organizadores da "Passeata dos 100 mil", Vladimir Palmeira, era filho do senador Rui Palmeira (Arena-AL); quando Vladimir se casara, em 1967, as esposas de alguns dos mais destacados políticos da Arena compareceram à festa de casamento desse líder estudantil esquerdista.3 3 Sadi Bogado (MDB-RJ), Diário da Câmara dos Deputados ( DCD), 26 jun. 1968, p.3675; Breno da Silveira (MDB-GB), DCD, 3 abr. 1968, p.1062-1063; DIRCEU; PALMEIRA, 1998, p.45-46. Como o deputado Paulo Nunes Leal (Arena-RO), ele mesmo um ex-coronel, expressou: "Com filhos frequentando os bancos escolares, associamos a eles as primeiras reações que sentimos, imaginando que os pais que choram o desaparecimento do seu filho querido poderiam ser nós, já que ninguém pode ter a pretensão de afirmar que seu filho jamais participará de uma manifestação estudantil".4 4 Paulo Nunes Leal (Arena-RO), DCD, 30 mar. 1968, p.937.
Mário Piva (MDB-BA) manifestou-se de forma ainda mais incisiva: "Aqueles que hoje tentam defender os responsáveis [pela morte de Edson Luís] ou se omitem diante da gravidade do problema, ou não tiveram juventude, ou não têm filhos, como eu tenho, estudando na universidade".5 5 Mário Piva (MDB-BA), ibidem, p.951.
Os políticos viam uma versão mais jovem e mais idealista de si mesmos nos estudantes universitários, que um deputado chamava de "a vanguarda da consciência do povo desta Nação". Era natural que os deputados, 80% dos quais tinham frequentado a universidade, se identificassem com os estudantes, nos quais viam "futuros líderes da política, da economia e das finanças", "elite nova de um país ignorante". O deputado gaúcho José Mandelli (MDB) explicava: "Os jovens de hoje serão os homens do amanhã. Serão eles que deverão nos substituir nos negócios públicos, nas cátedras, nas indústrias, nas profissões liberais, no comércio".6 6 Paulo Campos (MDB-Goiás), DCD, 29 jun. 1968, p.3794; Paulo Macarini (MDB-SC), DCD, 3 set. 1968, p.5754; ALVES, 1964, p.15. Para o percentual de deputados com diplomas universitários, ver CARVALHO, 2008. Mário Covas, líder do MDB na Câmara, ficou particularmente impressionado com o líder estudantil da UnB Honestino Guimarães, e disse certa vez para sua esposa: "Será um grande político. Fiquei impressionado com os argumentos que ele usou no seu discurso ... Eu me arrepiei quando ouvi aquele líder nato" (Covas; Molina, 2007, p.89). Velhos udenistas como Júlio de Mesquita Neto (não um político, mas o filho do dono de O Estado de S. Paulo) e o governador de São Paulo Roberto de Abreu Sodré tinham lutado como estudantes contra Getúlio Vargas e o Estado Novo. As atividades tanto de Mesquita quanto de Abreu Sodré foram vastas o suficiente para gerar arquivos no Departamento de Ordem Política e Social (Dops) de São Paulo e foram presos pela polícia política mais vezes do que seriam capazes de recordar.7 7 "Prontuário Del. 24.280", "Prontuário Del. 6.699", Departamento de Ordem e Política Social (Dops), Arquivo Público do Estado de São Paulo (Apesp); SODRÉ, 1995, p.34. Apesar do seu apoio à "Revolução", políticos que haviam lutado contra o regime autoritário anterior poderiam se identificar com os protestos estudantis. Embora Miguel Feu Rosa (Arena-ES) fosse jovem demais para ter enfrentado Vargas, falava por muitos políticos que o tinham feito quando dizia: "Seja qual for a minha filiação político-partidária, não posso renegar as minhas origens. Foi na política estudantil ... que forjei a minha personalidade de homem público; onde aprendi a interpretar os fenômenos políticos e sociais da minha Pátria ... Solidarizo-me com os estudantes da minha Pátria, participo dos seus sofrimentos e do seu sentimento de dor".8 8 Miguel Feu Rosa (Arena-ES), DCD, 30 mar. 1968, p.937.
A repressão aos estudantes gerou tamanha indignação porque os deputados poderiam se identificar com eles de um modo profundamente pessoal. Idealistas por natureza, os estudantes eram "generosos, impulsivos, nobres e patrióticos", e os mais velhos lhes deviam "um pouco de compreensão". Eles eram a "parcela ... mais esclarecida da população brasileira ... que possui um preparo cultural e humanístico muito superior ao da média".9 9 José Mandelli (MDB-RS), DCD, 26 jun. 1968, p.3671; Otávio Caruso da Rocha (MDB-RS), DCD, 3 abr. 1968, p.1077. Sendo eles mesmos ex-universitários num país em que poucas pessoas estudavam além da escola primária, os políticos podiam se identificar com os militantes estudantis de uma forma que não ocorria em outros movimentos sociais. Enquanto a maioria dos deputados tinha endossado a constante repressão aos sindicatos de trabalhadores urbanos e aos movimentos de trabalhadores rurais, ou a violência policial rotineira contra as classes subalternas, a repressão dos estudantes era fundamentalmente diferente aos olhos da classe política porque ela confrontava policiais pobres e de baixa escolaridade e as pessoas que os políticos viam com os seus ricos e educados filhos. Suas denúncias da violência contra os estudantes eram um grito indignado: "Como podem fazer isso contra pessoas como nós?".
A realidade era que a vasta maioria dos estudantes universitários brasileiros tinha pouco em comum, ao menos na superfície, com os políticos cujas famílias tinham adentrado os salões do poder, primeiro no Rio de Janeiro e depois em Brasília, desde o estabelecimento da República em 1889, e em vários casos ainda antes. À medida que o Brasil se industrializava nos anos 1950 e uma crescente classe média demandava acesso à educação superior, os governos populistas de Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek tinham expandido o sistema universitário, e na década de 1960 o regime militar acelerou essa tendência. As matrículas nas universidades cresceram de 27.253 em 1945 para 93.202 em 1960, chegando a 278.295 em 1968 (Martins Filho, 1987, p.36; Langland, 2013, p.72). A maioria desses estudantes não vinha da elite política, mas das classes médias crescentes e com frequência de origem imigrante, no Sudeste e Sul em processo de urbanização e industrialização.
Mas nada disso importava aos políticos que relembravam nostalgicamente seu próprio ativismo estudantil no período anterior à expansão do sistema universitário, quando uma educação superior era acessível apenas à classe dominante. Qualquer que fosse a composição de classe real do movimento estudantil de 1968, os políticos, cujos filhos eram frequentemente estudantes universitários, os imaginavam como pessoas semelhantes a eles mesmos, que por isso mereciam um tratamento deferente por parte daqueles que lhes seriam socialmente "inferiores". Além disso, por mais que o sistema universitário tivesse crescido, os estudantes universitários constituíam apenas 0,2% da população brasileira (Poerner, 1995, p.43). Mesmo que viessem das classes médias, como a geração emergente de profissionais educados e qualificados, eles perfilavam entre os poucos privilegiados em um país com drásticas desigualdades de classe, raça e região.
Após cada nova confrontação entre estudantes e polícia, os senadores e deputados denunciavam a violência, quase que invariavelmente culpando a polícia e, eventualmente, os próprios militares. Márcio Moreira Alves (MDB-GB) foi talvez o deputado mais enfático após a morte de Edson Luís: "O que este regime militar fez no Brasil foi transformar cada farda em objeto da execração do povo ... [O governo] transformou [as Forças Armadas] em valhacouto de bandidos". Antônio Cunha Bueno (Arena-SP), que durante os seu estudos na Faculdade de Direito de São Paulo nos anos 1930 fora ativo na política estudantil, registrou seu "veemente protesto" diante das violências policiais contra os estudantes, que, "se não forem coibidas, fatalmente criarão o clima para a implantação de uma ditadura". Esses protestos vinham com mais frequência dos membros mais jovens do MDB, mas eram apoiados por diversos arenistas horrorizados com os ataques contra os estudantes. Outros arenistas, embora deplorando a violência policial e defendendo os estudantes, argumentavam que nefastos, provavelmente comunistas, subversivos, estavam explorando "o entusiasmo, a boa fé e a exaltação natural dos estudantes" a fim de avançar os seus próprios "objetivos criminosos e inconfessáveis". Para o paulista Nazir Miguel, quando os protestos estudantis envolvem a queima de bandeiras norte-americanas ou o arremesso de pedras na embaixada dos Estados Unidos, "Isso ... é infiltração comunista. E lugar de comunista é na cadeia, porque é subversivo, e o estudante deve estar na escola estudando, e não fazendo arruaças". Ainda assim, surpreendentemente, poucos arenistas defendiam a política ou mudavam o foco do debate para a violência cometida pelos estudantes contra a polícia ou contra a propriedade.10 10 Márcio Moreira Alves (MDB-GB), DCD, 30 mar. 1968, p.950; Cunha Bueno (Arena-SP), DCD, 24 out. 1968, Suplemento, p.10; CARNEIRO, 1982, p.45-61; Oceano Carleial (Are-na-AL), DCD, 2 abr. 1968, p.997; Nazir Miguel (Arena-SP), DCD, 3 abr. 1968, p.1067; Antônio de Lisboa Machado, DCD, 3 abr. 1968, p.1062; Paulo Freire (Arena-MG), DCD, 3 abr. 1968, p.1067. A maioria dos aliados do governo permanecia em silêncio, junto a oposicionistas mais cautelosos, como André Franco Montoro ou Ulysses Guimarães, ambos de São Paulo, e Tancredo Neves, de Minas Gerais.
Em razão de suas simpatias para com o movimento estudantil, muitos deputados, particularmente da oposição, deixaram os salões do Congresso e se uniram aos estudantes nas ruas. Essas atividades eram controversas; o vice-líder líder da Arena, Haroldo Leon Peres, do Paraná, provocou um bate-boca na Câmara quando sugeriu que os deputados do MDB estavam incitando os estudantes e eram, portanto, responsáveis pela violência resultante.11 11 DCD, 30 mar. 1968, p.953. Para o áudio impressionante que contém vários minutos de deputados dirigindo insultos uns aos outros enquanto o presidente da Câmara em vão toca o sino disciplinar, ver CD-CEDI, Arquivo Sonoro, http://imagem.camara.gov.br/internet/audio/default.asp. A imagem de políticos se somando a estudantes esquerdistas "subversivos", frequentemente relatada aos militares, enfurecia aqueles que, no interior das Forças Armadas, se ressentiam da classe política pela sua negligência na luta contra a subversão. Como reclamou posteriormente o chefe do Gabinete Militar de Costa e Silva, general Jayme Portella, os deputados do MDB, "usando as suas imunidades, insuflavam a agitação" (Mello, 1979, p.560, 564-565).
Ao mesmo tempo, havia limites ao envolvimento dos políticos. Covas insistia em que o seu respeito pela autonomia do movimento estudantil não lhe permitiria interferir no seu funcionamento interno; seu papel era limitado ao diálogo e à mediação.12 12 Ministério do Exército, I Exército, II Região Militar, "Termo de perguntas feitas ao deputado Mário Covas", 23 dez. 1968, Fundação Mário Covas (FMC), Caixa 138. Numa formulação talvez mais acurada, Moreira Alves concordava que a participação dos políticos era limitada, mas não porque estes não desejassem interferir, e sim porque os militantes estudantis esquerdistas suspeitavam mesmo dos políticos de oposição, cujo combate ao regime por meio dos canais legais, acreditavam eles, não era suficientemente revolucionário (Alves, 1993, p.143-144). Franklin Martins, relembrando o movimento estudantil em 2002, concordava. Os políticos do MDB "haviam sido derrotados em 64 sem esboçar qualquer resistência. Prometeram ao povo uma vida nova mas, na hora H, deixaram o povo sozinho ... Preferiram aguardar tempos mais amenos. Por que os jovens, então, deveriam levar em conta os seus conselhos?". Sua própria presença no Congresso era uma traição, prova de que eles não eram sérios em relação a acabar com o regime. O MDB era "um joguete nas mãos dos militares, criado com o único objetivo de ajudar a botar de pé um simulacro de Congresso e um arremedo de democracia".
Os estudantes destilavam um desprezo ainda maior sobre os políticos que apoiavam o regime; mesmo que estes enfrentassem os militares, "era porque não lhes restava outra alternativa; simplesmente haviam sido lançados ao mar pelos donos do poder" (Martins, 2002, p.19-20). Em São Paulo, a ira dos estudantes foi ilustrada vivamente no Primeiro de Maio de 1968, quando Abreu Sodré tentava discursar para 10 mil trabalhadores e estudantes mas foi abafado pelos gritos de "Assassino!" e "Interventor!". Logo as vaias foram acompanhadas por ovos, pedaços de pau e pedras, e, depois de ser atingido na cabeça por uma pedra (segundo seu relato, uma batata com um prego enfiado), o governador teve de buscar abrigo na Catedral da Sé. Estudantes e trabalhadores tomaram o palco e desenrolaram uma faixa com imagem de Che Guevara, sob estrondosos aplausos. Embora Abreu Sodré tenha responsabilizado pelos acontecimentos comunistas infiltrados fingindo-se de estudantes, o evento serviu como demonstração visível do ódio que ativistas operários e estudantis sentiam pelos políticos aliados ao regime.13 13 "O governador na hora da agressão", Folha de S. Paulo, 2 maio 1968, p.3; "Assim o 1º de maio", Jornal da Tarde, 2 maio 1968, p.5; SODRÉ, 1995, p.157; "Aconteceu no palanque tomado", Jornal da Tarde, 2 maio 1968, p.5; "Governador diz que pagou preço pela liberdade", Jornal da Tarde, 2 maio 1968, p.8. Se políticos como Abreu Sodré podiam relembrar seu próprio ativismo estudantil com nostalgia, os estudantes com os quais simpatizavam estavam determinados a não envelhecer como eles.
"Como russos entrando em Praga": a invasão da UnB
Embora as maiores passeatas tenham ocorrido no Rio de Janeiro e a repressão às manifestações estudantis tenha se estendido por todo o país, os legisladores federais estiveram mais envolvidos nos eventos em Brasília. Em parte isso se devia ao isolamento da nova capital federal. A cidade tinha sido concluída às pressas em 1960, a tempo de ser inaugurada pelo presidente Juscelino Kubitschek durante seu mandato, e em 1968 muitos órgãos governamentais e a maioria das embaixadas estrangeiras ainda não tinham sido transferidos do Rio para Brasília. O seu isolamento era ampliado por um sistema de estradas deficiente e pelo alto custo das chamadas telefônicas de longa distância. Como lamentava um deputado, "Vivemos numa capital, no mais das vezes pouco informada sobre a realidade dos acontecimentos, dada a distância dos grandes centros, onde as notícias realmente são feitas e os fatos acontecem".14 14 Alves Macedo (Arena-BA), DCD, Suplemento, 31 out. 1968, p.19. A população da região metropolitana era de apenas 400 mil habitantes em 1968, a maioria dos quais eram migrantes trabalhando na construção da cidade, os quais tinham pouco em comum com os legisladores e os servidores federais. Ao mesmo tempo, a combinação das aspirações arrogantes de Brasília como ponta de lança da modernização do Brasil com o seu isolamento significavam que os eventos eram enormemente relevantes para os políticos que se viam forçados a lá passar o tempo.
Isso era particularmente verdade para os eventos da Universidade de Brasília, onde os filhos dos políticos frequentemente estudavam. A UnB era parte do "plano piloto" original da cidade uma universidade nacional para a nova capital de uma nação em modernização. Na visão do seu primeiro reitor, o antropólogo Darcy Ribeiro, a UnB desafiaria ideias ultrapassadas sobre mecanismos de ingresso, pedagogia e gestão universitária. A universidade era também única na época pelo fato de integrar todos os seus programas acadêmicos em um único campus um arranjo que não apenas facilitava o intercâmbio intelectual, mas também criava maiores oportunidades de mobilização dos estudantes (Gurgel, 2002, p.31). Mas apenas 2 anos após Darcy Ribeiro que havia sido ministro da Educação e Cultura de Goulart ter começado a implementar seus ambiciosos projetos na UnB, o golpe militar levou ao poder seus inimigos, e os generais suspenderam seus direitos políticos 10 dias após o golpe. A despeito de seu entusiasmo por desenvolvimento e modernização, os militares suspeitavam das reformas de Ribeiro e do corpo docente que ele tinha atraído. Acadêmicos com ideias progressistas sobre educação tendiam a ser também politicamente progressistas ou até subversivos. A localização da UnB no centro do poder político e a sua abordagem heterodoxa da educação colocaram-na sob a mira do regime. O campus, que mal tinha completado 6 anos em 1968, estava a apenas três quilômetros do Congresso. As manifestações quase sempre ocorriam em dias de semana quando é mais fácil reunir uma multidão , enquanto o Congresso estava em sessão. Assim, enquanto os políticos se mantinham informados sobre o que ocorria em seus estados de origem por meio de chamadas telefônicas, jornais e visitas de fim de semana, a sua proximidade com a UnB significava que eles estavam sempre a par dos eventos lá ocorridos, muitas vezes mais do que em relação aos das universidades nos seus estados de origem.
Os estudantes da UnB sabiam que os seus pais (ou os pais dos seus amigos), deputados e senadores, gozavam de uma dose de segurança graças à imunidade parlamentar, que os impedia de serem presos. Afinal, Covas e outros deputados tinham exigido uma explicação do ministro da Justiça Luiz da Gama e Silva e visitado estudantes no hospital em abril de 1967, após a polícia invadir a biblioteca da UnB e espancar estudantes que protestavam contra a visita do embaixador norte-americano. A partir da morte de Edson Luís, em março, os estudantes da UnB mobilizaram-se novamente, e um grupo de deputados oposicionistas participou da sua passeata de protesto. Quando a polícia começou a atacar os estudantes, Covas e alguns dos seus colegas deputados do MDB tentaram intervir, mas a polícia ignorou os seus apelos, e no meio da confusão o deputado do Ceará José Martins Rodrigues foi atingido na cabeça por um cassetete. Poucos dias depois, os estudantes capturaram um agente do Serviço Nacional de Informações (SNI) à paisana, confiscaram seu revólver e, a pedido de seus professores, concordaram em devolvê-lo, mas apenas se pudessem fazê-lo por meio de um deputado de oposição. Em resposta à captura do agente do SNI, a polícia ocupou a UnB. Numa missa celebrada pela morte de Edson Luis, a polícia chegou para prender Honestino Guimarães; ele se refugiou na sacristia, e enquanto o bispo impedia a polícia de entrar, outros estudantes corriam para o Congresso, onde a liderança das bancadas estava em meio a uma reunião a portas fechadas com outros líderes estudantis para negociar o fim da ocupação militar. Covas e o vice-líder da Arena, Leon Peres que tinha acusado os deputados da oposição de incitar a violência estudantil , correram para a igreja e evitaram a prisão de Guimarães. Ele e outros líderes estudantis deixaram a igreja em carros oficiais da Câmara dos Deputados. Em outra ocasião, conforme relatou Covas, estudantes se refugiaram no Congresso após uma manifestação; após 12 horas de negociação com as autoridades, os políticos usaram seus carros particulares para levar os estudantes de volta para casa. E numa passeata no fim de junho, Covas e vários outros deputados do MDB marcharam à frente da massa de estudantes. Mais tarde, Covas escondeu Honestino Guimarães e cinco outros estudantes em seu apartamento, com sua esposa e seus filhos, por 2 dias, enquanto a polícia fazia buscas atrás deles.15 15 GURGEL, 2002, p.123, 131, 134-135; entrevista concedida por Mario Covas em MARKUN (Dir.), 2001; MARTINS, 2011, p.48-49.
Na manhã de 29 de agosto de 1968 a longa tensão entre o regime e a UnB irrompeu em conflito. Com mandados de prisão contra Guimarães e quatro outros "subversivos", agentes do Dops e da Polícia Federal, com apoio de duzentos policiais militares, invadiram o campus "como se fossem russos entrando em Praga", e prenderam Guimarães. Os estudantes reagiram, uma viatura policial foi virada e incendiada, e a polícia iniciou uma varredura brutal do campus e das salas de aula, chutando portas, destruindo equipamentos de laboratório, utilizando gás lacrimogêneo, cassetetes, rifles e metralhadoras para forçar os estudantes a se concentrarem em uma quadra de basquete até eles decidirem quem seria preso. Um estudante levou um tiro na cabeça, outro no joelho, e outros sofreram fraturas.16 16 "DOPS e PM invadem a Universidade de Brasília", Jornal do Brasil, 30 ago. 1968, p.12; Carlos Castello Branco, "De onde parte o terror em Brasília", Jornal do Brasil, 30 ago. 1968, p.4. Para entrevistas com estudantes que estavam na UnB e filmagem da invasão por um estudante, ver CARVALHO (Dir.), 2002.
O Congresso estava no meio da sessão matinal quando a invasão começou. No Senado, Aurélio Vianna (MDB-PB) anunciou que tinha acabado de ouvir sobre um confronto na UnB e que partiria imediatamente com um grupo de senadores para descobrir o que estava acontecendo. Celestino Filho (MDB-GO) fez um pronunciamento similar na Câmara. A pedido do líder da Arena, Ernani Sátiro, e do presidente da Câmara, José Bonifácio Lafayette de Andrada (tatara-tatara-sobrinho-neto do patriarca da Independência brasileira, José Bonifácio de Andrada e Silva), alguns deputados correram para seus carros e rumaram para a UnB, um trajeto curto, por duas das amplas avenidas de alta velocidade de Brasília. No caminho da saída, Covas, que tinha ido ao Congresso assim que ouviu falar do que estava acontecendo, se juntou a eles. No total, ao menos vinte deputados e três senadores de ambos os partidos seguiram para o campus.17 17 Esse número foi calculado pela comparação de uma reportagem de jornal com vários discursos parlamentares naquela tarde. "DOPS e PM invadem a Universidade de Brasília"; Márcio Moreira Alves (MDB-GB), Fernando Gama (MDB-PR), Hermano Alves (MDB-GB), e Elias Carmo (Arena-MG), DCD, Suplemento, 30 ago. 1968, p.16, 23, 25; Aurélio Vianna (MDB-PB), Diário do Senado Federal ( DSF), 30 ago. 1968, p.2503, 2505; Mário Covas (MDB-SP), DCD, 24 out. 1968, p.7530. O deputado José Santilli Sobrinho (MDB-SP) correu para a UnB com o filho para achar sua filha e levá-la para casa. Quando saíram do carro, a polícia os cercou e começou a bater no filho do deputado com um cassetete. Santilli Sobrinho tentou intervir, mostrando sua identificação congressual e gritando que era deputado, mas a polícia arrancou o documento da sua mão e começou a bater nele também, gritando: "É por isso mesmo!". Eles só foram salvos da prisão porque outros parlamentares intervieram quando estavam sendo empurrados para dentro do camburão, enquanto Santilli Sobrinho gritava: "Vocês espancam deputado federal! Protesto!". A polícia tentou prendeu a todos, até que o senador Argemiro de Figueiredo (MDB-PB), cujo próprio filho estava na quadra de basquete, deixou claro que se eles tentassem prender os parlamentares, haveria resistência violenta, pois não seriam presos sem lutar.18 18 Castello Branco, "De onde parte o terror em Brasília"; "DOPS e PM invadem a Universidade de Brasília"; Aurélio Vianna (MDB-PB), DSF, 30 ago. 1968, p.2503.
A universidade estava um caos. Deputados e senadores viram um grupo de trezentos estudantes marchando através do campus com metralhadoras apontadas para suas cabeças. A polícia se recusava a permitir que os estudantes feridos fossem levados para o hospital enquanto não recebesse ordens superiores. A imprensa deu destaque especial ao fato de que algumas estudantes tinham desmaiado sob o estresse, e que a polícia tinha invadido o banheiro feminino, onde algumas alunas estavam se escondendo. Um deputado da Arena fez um discurso de improviso demandando redução dos recursos destinados ao Dops e ao SNI, e Martins Rodrigues disse a um comandante da Polícia Federal recém-chegado para tomar controle da operação aparentemente acéfala: "General, eu me orgulho de estar ao lado dos estudantes, e do povo, contra esses bandidos", ao que o comandante respondeu gritando, "Bandido é você!". Mesmo o deputado Clovis Stenzel (Arena-RS), professor de psicologia social da UnB e apoiador entusiasmado do regime, foi ouvido exclamando: "Eu, que sou identificado como homem da linha dura, acho tudo isso uma barbaridade".19 19 Aurélio Vianna, DSF, 30 ago. 1968, p.2504; "Flashes", Jornal do Brasil, 30 ago. 1968, p.12; "DOPS e PM invadem a Universidade de Brasília".
Ao fim, a polícia deixou a maioria dos estudantes partir, prendendo apenas alguns considerados cabeças do movimento de resistência à prisão de Guimarães. Deixaram para trás manchas de sangue no chão, cápsulas de munição e bombas de gás, portas arrombadas a pontapés e equipamento de laboratório destroçado. Um grupo de políticos permaneceu para tomar depoimentos dos professores. O políticos estavam em choque, e todos que viviam em Brasília tinham uma história para contar sobre aquele dia. Oswaldo Zanello (Arena-ES) temia por sua filha, que tinha recebido ameaças do Dops. Aniz Badra (Arena-SP) ficou magoado quando seu filho o acusou de servir a um governo nazista. Seus filhos e os filhos dos seus amigos tinham sido agredidos, presos e tratados como criminosos comuns. Os próprios deputados tinham sofrido violência e ameaças de prisão por policiais que não respeitaram nem suas credenciais parlamentares nem as de classe. Poucos tinham qualquer dúvida sobre a origem da invasão. A invasão podia ter sido conduzida pelo Dops e pelas polícias federal e militar, mas as ordens obviamente vinham de cima. A fonte mais provável parecia ser o odiado ministro da Justiça Gama e Silva, um dos mais radicais integrantes do regime, a quem a Polícia Federal estava subordinada.20 20 Castello Branco, "Quem tem responsabilidade e quem é irresponsável no Govêrno", Jornal do Brasil, 31 ago. 1968, p.4; Castello Branco, "De onde parte o terror em Brasília".
"O sangue da mocidade está correndo": a reação dos políticos à invasão
A reação no Congresso começou durante a sessão da manhã, à medida que a delegação de senadores e deputados se preparava para partir rumo à UnB. Após o anúncio da invasão, 16 dos 33 deputados que permaneciam inscritos para falar descartaram seus discursos preparados e denunciaram a invasão. Praticamente todos questionaram por que eram necessárias centenas de policiais armados de metralhadoras para prender um estudante. Isso teria sido planejado para provocar uma reação estudantil violenta, dando aos elementos da extrema-direita militar uma desculpa para proclamar um novo ato institucional e implantar uma ditadura total? Dois deputados compararam a invasão à da Tchecoslováquia, na semana anterior, quando os tanques soviéticos esmagaram a Primavera de Praga. Outros aproveitaram a oportunidade para protestar não apenas contra a polícia mas contra os que deram as ordens (implicitamente, os militares): "Clamamos contra aqueles que mandaram esses pobres policiais, incapazes, sem a menor cultura e capacidade, praticar essas violências contra os estudantes de Brasília", disse Getúlio Moura (MDB-RJ). Doin Vieira (MDB-SC) expressou o que eram provavelmente os sentimentos de muitos deputados apreensivos: "São os nossos filhos que estão lá, e nós nos vemos impotentes para agir".21 21 Doin Vieira (MDB-SC), Antônio Carlos Pereira Pinto (MDB-RJ), Doin Vieira (MDB-SC), Getúlio Moura (MDB-RJ), DCD, 30 ago. 1968, p.5661, 5665-66.
As emoções eram cruas durante a tumultuada sessão da tarde; ela quase teve de ser suspensa cinco vezes em meio a confrontações hostis entre deputados. No primeiro discurso, Wilson Martins (MDB-MG) lamentou: "Nós, que temos filhos nas universidades, ao invés de nos encontrar satisfeitos, esperando amanhã termos em casa um médico, um engenheiro, um profissional liberal, tememos encontrar a cada momento o cadáver dos nossos filhos dentro de suas próprias salas de aula". Sete deputados, incluindo dois da Arena, fizeram discursos denunciando a invasão, e outros onze, inclusive três arenistas, ofereceram apartes simpáticos a um discurso de Gastone Righi (MDB-SP) que criticava duramente a polícia. Concordando com Righi, Moreira Alves foi para o ataque: "Não temos um Governo; nós temos no poder um bando, uma gang, um grupo que usa contra a Nação os seus sicários". Outro deputado argumentou que era claro que a polícia tinha recebido ordens do Exército, e que os mandados de prisão eram um pretexto para uma operação meticulosa de guerra psicológica concebida para desmoralizar a universidade. Righi concordava, argumentando que algumas facções militares agora no poder tinham se oposto ao plano de Kubitschek de implantar uma universidade na capital, pelo receio do potencial de distúrbio proporcionado por 15 mil estudantes. Apenas Cantídio Sampaio (Arena-SP), um aliado incondicional do regime, apoiou a polícia, argumentando que os estudantes atacaram em primeiro lugar. Quando David Lerer (MDB-SP) gritou que ele era um mentiroso, Sampaio deu-lhe um soco no rosto, e outros deputados tiveram de se interpor para separá-los.22 22 "Justificativa de Sátiro foi vaiada", Jornal do Brasil, 30 ago. 1968, p.13; Wilson Martins (MDB-MG), Márcio Moreira Alves (MDB-GB), Gastone Righi (MDB-SP), DCD, Suplemento, 30 ago. 1968, p.12, 16-17.
O vice-líder da Arena, Leon Peres, seguindo a posição oficial do seu partido, suplicou aos deputados que suspendessem os julgamentos até que os fatos viessem à luz. Peres admitia que abusos tinham sido cometidos, mas tais coisas deveriam ser esperadas em uma atmosfera de tensão. Os deputados, raciocinava ele, deveriam saber disso, já que todos já tinham participado de comícios ou protestos que escaparam ao controle que direito eles tinham de atirar pedras à polícia quando todos eles já haviam reprimido multidões descontroladas de forma similar? Carlos de Brito Velho (Arena-RS) interrompeu, sendo saudado com "palmas prolongadas": "Eu lanço a pedra! ... Violências, e muitas, tenho cometido contra os fortes e poderosos; contra os fracos, jamais". Ainda assim, enfatizou Peres, se a polícia cometeu excessos, os estudantes também o fizeram; uma viatura policial foi incendiada e um policial tinha recebido um tiro no braço (afirmação que os deputados do MDB questionavam). Se os deputados desejavam condenar a violência, deveriam condenar quando todos os lados a cometiam, não apenas quando a polícia o fazia. Quando Ernani Sátiro, líder da Arena, saltou em defesa de Peres "pelo equilíbrio e pela serenidade com que está falando", foi vaiado, não apenas pelo MDB, mas também por arenistas, e Unírio Machado (MDB-RS) exclamou: "É frieza demais! Pasmem os céus!". Quando Bonifácio ordenou aos deputados que ouvissem "com tranquilidade", Machado exclamou: "Tranquilidade? Pelo sangue da mocidade que está correndo. Quero ver a tranquilidade de muitos quando os filhos deles estiverem nesta situação".23 23 Haroldo León Peres (Arena-PR), Carlos de Brito Velho (Arena-RS), Unírio Machado (MDB-RS), DCD, Suplemento, 30 ago. 1968, p.22.
Após Peres concluir seu "desapaixonado" chamado para que os deputados escutassem ambos os lados da história, Mário Covas apresentou a posição do MDB num discurso que foi suficientemente veemente para que ele pedisse sua retirada da publicação do Diário da Câmara dos Deputados. Covas começou com um relato passo a passo, meticuloso, dos eventos na UnB, enfatizando que, ao contrário da "versão policial" de Peres, seu relato continha os testemunhos escritos por deputados e professores que tinham visto tudo, para não mencionar o seu próprio. Outros deputados falavam acrescentando detalhes, à medida que ele seguia em frente. Moreira Alves relatou ter ouvido que um estudante que levara um tiro na cabeça havia sido deixado deitado sobre uma mesa por uma hora antes que a polícia permitisse seu encaminhamento para o hospital. Mário Maia, médico praticante, chegou do hospital onde tinha acabado de servir como anestesista em uma cirurgia no cérebro que salvara a vida de um estudante. Um deputado da Arena recebeu exclamações de aprovação e aplausos extensos quando propôs que a bandeira brasileira sobre o Congresso fosse baixada a meio mastro em pesar pelos eventos do dia.24 24 DCD, 24 out. 1968, p.7532.
Para Covas, os policiais não eram o problema real; como vítimas "desta sociedade que não os educou, não lhes deu condições para reações humanas, dignas de um povo civilizado", não deveriam ser culpados pelo seu comportamento condenável. Antes, a culpa era do governo brasileiro, que ainda não tinha feito ninguém responder pelo assassinato de Edson Luís 5 meses antes, uma "ditadura" que usava a "palavra mágica subversivo" como "desculpa para todas essas violências". Se pensasse que renunciar do Congresso poderia ajudar a causa dos estudantes afirmou , ele o faria imediatamente, e prometeu que, se enfrentasse situação similar novamente, se ofereceria para apanhar da polícia no lugar dos estudantes. Disse que embora não tivesse filhos na universidade, após um dia como aquele suspeitava que, talvez, não desejasse vê-los frequentando a universidade quando crescessem: "o desconhecimento e a falta de cultura" podem ser preferíveis a "um dia passar pelo vexame, pela humilhação, que hoje vi sofrerem milhares de jovens desta cidade".25 25 Mário Covas (MDB-SP), ibidem, p.7530-7534.
A invasão da UnB dominou a Câmara dos Deputados no dia seguinte, sexta-feira, e ainda era debatida acaloradamente na semana seguinte. Nos bastidores, dizia-se que alguns arenistas estavam enfurecidos. Embora Cantídio Sampaio tivesse socado David Lerer por questionar a sua afirmação de que os estudantes atacaram primeiro, circulava o rumor de que sua esposa fazia parte de um grupo de mulheres que se preparava para enviar uma carta a Costa e Silva reivindicando que o governo parasse de ordenar que seus maridos dissessem mentiras. E mais tarde se afirmou que Jorge Curi (MDB-PR) tinha proposto que os vice-líderes da Arena deixassem de discursar defendendo o governo: "Ninguém pode violentar a consciência para defender o indefensável. Chega de tolerância e de engolir sapos".26 26 GURGEL, 2002, p.270. Gurgel não oferece a fonte de suas histórias sobre a carta da esposa de Sampaio e a proposta de Curi. Embora nenhuma das duas seja mencionada em discursos parlamentares, ambas surgem em relatos de políticos documentados na imprensa, e é provável que o relato de Gurgel esteja correto. Em público, nos 3 dias úteis seguintes 47 deputados de ambos os partidos discursaram, na sua imensa maioria condenando a invasão. Ainda assim, a princípio eles empregavam certa cautela. A despeito dos ataques mais ferozes contra alguns generais em particular, a maioria dos discursos na quinta e na sexta-feira concentravam as críticas na polícia ou na administração de Costa e Silva, não no Exército em si. Havia um entendimento implícito, reforçado pela retirada do discurso de Covas da publicação oficial do Congresso, de que a situação requeria uma dose saudável de cautela, particularmente quando os deputados especulavam sobre o papel dos militares na invasão. Na segunda-feira, todavia, nenhuma explicação foi dada; circulava o rumor de que Ernani Sátiro tinha ido ao Palácio do Planalto na sexta-feira, buscando uma explicação, mas Costa e Silva lhe negara audiência.27 27 Doin Vieira (MDB-SC), DCD, 3 set. 1968, p.5753. O senso de frustração era palpável, e os deputados do MDB, especialmente os mais jovens, conhecidos por suas críticas veementes ao governo (condescendentemente apelidados de "imaturos" pela emedebista de São Paulo Ivete Vargas), passaram ao ataque.
Hermano Alves (MDB-GB) reclamou que 5 dias tinham se passado sem que houvesse qualquer investigação, explicação ou identificação de responsáveis, e especulava se o silêncio ensurdecedor vindo do palácio presidencial se explicava pelo fato de que os que deram as ordens "se acobertam sob a farda de oficiais do Exército". Martins Rodrigues afirmava ter ouvido que os policiais que deram as ordens eram de fato oficiais do Exército designados para funções policiais, comentando sarcasticamente: "Todas as honras dessa operação militar excepcional foram reservadas, infelizmente, àqueles que fazem parte do que se chama, neste País, o glorioso Exército de Caxias". Todos concordavam que a invasão da UnB não era de responsabilidade do Exército como um todo, mas de uma pequena facção de extremistas "militaristas", que enxergava subversivos se escondendo em qualquer sombra, via em cada brasileiro um inimigo em potencial e buscava transformar as Forças Armadas em um partido político, desviando-as de sua verdadeira missão. O resultado final dessa alienação das Forças Armadas em relação ao povo, alertava Jairo Brum (MDB-RS), poderia ser uma "trágica sangreira", porque "Um dia os brasileiros se armarão e sairão à rua com armas na mão, para se defenderem da polícia que não nos defende, que só nos ameaça e fere nossos filhos". Ele demandava que Costa e Silva punisse essa "polícia nazista ... dos subporões da Gestapo ... esses restos, esses rebotalhos de comunismo e de nazismo". Mas em meio a esses terríveis eventos o Congresso se encontrava impotente, e a liderança congressual podia apenas exercer o seu dever de cobrar uma explicação do presidente. Paulo Freire (Arena-MG), que tinha criticado estudantes por seus supostos atos de violência no fim de março, agora exclamava: "Sou arenista, mas não darei mais, em hipótese alguma, meu modesto voto para apoiar o Governo, enquanto não punir ele esses bandidos que querem instalar aqui no Brasil o sistema de Hitler".28 28 Hermano Alves (MDB-GB), José Martins Rodrigues (MDB-CE), Francisco da Chagas Rodrigues (MDB-GB), Jairo Brum (MDB-RS), Paulo Freire (Arena-MG), ibidem, p.57505753.
Era a vez de Márcio Moreira Alves. O carioca de 32 anos reclamava não haver respostas, apenas perguntas, sobre os eventos da UnB na quinta. Quem tinha ordenado a invasão? Em que extensão Gama e Silva e o Ministério da Justiça poderiam ser responsabilizados? Quem tinha escritos os releases de imprensa da polícia justificando a invasão? O governo de Costa e Silva endossava o conteúdo dos releases de imprensa? E como o governo responderia? O discurso subia de tom numa série de perguntas retóricas:
Quando será estancada a hemorragia da Nação? Quando pararão as tropas de metralhar na rua o povo? Quando uma bota, arrebatando a porta de um laboratório, deixará de ser a proposta de reforma universitária do Governo? Quando teremos, como pais, ao ver os nossos filhos saírem para a escola, a certeza de que eles não voltarão carregados em uma padiola, esbordoados ou metralhados? Quando poderemos ter confiança naqueles que devem executar e cumprir as leis? Quando não será a polícia uma banda de facínoras? Quando não será o Exército um valhacouto de torturadores? Quando se dará o Governo Federal a um mínimo de cumprimento de dever, como é para o bem da República e para tranquilidade do povo?29 29 Márcio Moreira Alves (MDB-GB), ibidem, p.5755.
Mariano Beck (MDB-RS) interrompeu o orador para ler uma carta assinada por 175 "Mães e Esposas de Brasília", das quais pelo menos trinta eram casadas com deputados e senadores que se opuseram abertamente à repressão. Ela denunciava as "cenas de selvageria e inominável violência que mais uma vez ensanguentaram a Universidade de Brasília ... O que nós Mães e Esposas sempre desejamos é somente ver nossos filhos e maridos estudando e trabalhando em paz e segurança". Embora nem todas as mães e esposas tivessem filhos na universidade (a mulher de Moreira Alves não tinha um marido jovem o suficiente para fazê-lo, tampouco um filho com idade suficiente), o parentesco discursivo que elas (e por extensão os seus maridos) adotavam ilustra o quanto a classe política se identificava com os estudantes universitários.30 30 Mariano Beck (MDB-RS), ibidem, p.5755.
Mas Moreira Alves ainda não tinha terminado. No dia seguinte, num discurso mais curto durante o Pequeno Expediente, ele propôs que em protesto contra a recusa dos militares em investigar o seu papel na invasão da UnB, os pais mantivessem seus filhos longe das festividades da Independência, em 7 de setembro, e que as jovens, "aquelas que dançam com os cadetes e frequentam os jovens oficiais", contivessem o seu afeto. Vinculando essa sua proposta jocosa, que ele mais tarde apelidou de "Operação Lisístrata", ao manifesto das "Mães e Esposas de Brasília" no dia anterior, Moreira Alves sugeria que o boicote fizesse parte de um movimento mais amplo de resistência feminina ao regime.31 31 "Operação Lisístrata" refere-se à peça teatral Lisístrata, de Aristófanes, escrita no século V a.C., na qual as mulheres da Grécia recusam-se a fazer sexo até que seus maridos concordem em acabar com a Guerra do Peloponeso. A versão do discurso de Moreira Alves no DCD é dedicada às jovens que namoram os jovens oficiais. Namorar, porém, está escrito à mão sobre a palavra frequentam, nas notas datilografadas. Para uma cópia das notas datilografadas, ver Augusto Rademaker a Luis Antônio da Gama e Silva, 20 set. 1968, CD-CEDI, "Dossiê Márcio Moreira Alves", p.15-16. Para a versão que foi publicada, ver DCD, 4 set. 1968, Suplemento, p.9. Como Moreira Alves apontou posteriormente, sua proposta (que ele dizia esperar que as namoradas colocassem em prática) poderia ser vista como um desafio direto à masculinidade dos militares. "Ali estava aquele fedelho mimado, descendente de uma longa linhagem de políticos ... não apenas chamando-os de gangue de torturadores, mas chegando ao cúmulo de atacar o seu machismo!" (Alves, 1973, p.12-13). Implicitamente, questionar a moralidade e o patriotismo dos militares já era péssimo; desafiar sua masculinidade coletiva era ultrapassar os limites do aceitável.
Embora o regimento do Congresso permitisse aos deputados da Arena interromperem o primeiro discurso para refutar os seus argumentos, e embora um dos arenistas que falaram após seu segundo discurso pudesse tê-lo rebatido, nenhum deles o fez. Seu silêncio indicava que Jorge Curi, que tinha conclamado os vice-líderes da Arena a "entrar em greve" de defender o governo, não era o único a nutrir esse sentimento. Afinal de contas, embora alguns pudessem considerar honroso ser leal ao governo, defender a repressão aos estudantes seria esgarçar a noção de honra ao ponto de se romper. Mesmo um líder da maioria, Ernani Sátiro, tinha sido moderado em sua defesa do regime desde 29 de agosto. Ele havia permanecido visivelmente ausente desde o dia posterior à invasão da UnB, na esperança de evitar uma explicação sobre o fato de não ter obtido uma explicação de Costa e Silva; ele adentrou brevemente o plenário durante o primeiro discurso de Moreira Alves, apenas para sair abruptamente quando percebeu qual era o assunto em pauta. Quando finalmente se dignou a discursar, mais para o final da tarde, prometeu que ofereceria uma explicação sobre os "lamentáveis eventos na UnB" assim que a tivesse obtido Costa e Silva não tinha comparecido ao encontro agendado na sexta-feira, e naquele mesmo dia o presidente cancelara os seus compromissos de segunda-feira em função da trágica morte do filho do seu chefe da Casa Civil, Rondon Pacheco, em um acidente de carro no final de semana.32 32 Ernani Sátiro (Arena-PB), DCD, 3 set. 1968, p.5757. A resposta da Arena aos discursos de Moreira Alves, portanto, foi caracterizada por um silêncio total.
Os discursos foram rapidamente distribuídos nos quartéis como um exemplo do desprezo nutrido pela classe política em relação aos militares. Os críticos militares de Moreira Alves se ativeram a três passagens a referência ao Exército como um "valhacouto de torturadores", a proposta de boicote às comemorações do Dia da Independência e, acima de tudo, a sugestão de que as jovens deveriam "boicotar" os seus companheiros soldados e oficiais. No dia 5 de setembro, o ministro do Exército Lyra Tavares enviou uma carta a Costa e Silva, requisitando medidas para prevenir ataques como aqueles que Moreira Alves tinha feito, e solicitando que reparasse o dano à honra dos militares. Em 11 de outubro, o procurador geral Décio Miranda enviou ao Supremo Tribunal Federal (STF) uma requisição de Gama e Silva para que a corte julgasse Moreira Alves por seu "atentado contra a ordem democrática". O STF solicitou então que a Câmara revogasse a imunidade parlamentar de Moreira Alves para que ele pudesse ser julgado. Como se sabe, a Câmara controlada pela Arena surpreendentemente recusou-se a revogar a imunidade de Moreira Alves dia 12 de dezembro.33 33 Para uma análise da votação, ver PITTS, 2011, p.287-300. No dia seguinte, o regime decretou o AI-5, inaugurando o período mais repressivo do governo militar. Ao longo dos meses seguinte, centenas de políticos foram cassados, e de forma recorrente o Conselho de Segurança Nacional usou a sua defesa do movimento estudantil como prova de inaptidão para o exercício de cargos públicos.
Conclusão
Em 1968, as muitas indignidades despejadas sobre a cabeça dos políticos desde 1964 culminaram na repressão ao movimento estudantil. Os políticos tinham assistido a um processo no qual seus colegas eram cassados, atos institucionais eram decretados, leis eram reescritas e uma nova Constituição era imposta e por vezes colaboraram com tudo isso. Mas agora os militares estavam mirando os seus filhos e os filhos dos seus amigos, a elite privilegiada que, apesar de sua rebeldia juvenil e de sua hostilidade em relação à política corrente, viria a assumir o seu lugar de direito como liderança do Brasil. Esses ataques aos seus filhos e à sua classe social eram mais do que muitos políticos no Congresso poderiam suportar, e eles mostraram a sua insatisfação protegendo estudantes da prisão, unindo-se às suas marchas e, discurso após discurso, atacando ferozmente o regime por causa da mão de ferro que empregara ao lidar com uma situação que, aos seus olhos, poderia ter sido conduzida com tolerância e compreensão. A repressão ao movimento estudantil foi a faísca que ateou fogo à já difícil relação entre os políticos e os militares.
As diferenças ideológicas e geracionais entre políticos e estudantes não eram suficientes para superar os laços de família e de classe que os uniam. De fato, Franklin Martins, que relembra como os militantes estudantis eram hostis aos políticos, era filho do senador Mário Martins, do MDB da Guanabara, um velho udenista que se voltara contra o regime logo após o golpe. Os políticos simpatizavam com os estudantes porque estes eram seus filhos, porque relembravam seus próprios dias como militantes estudantis com nostalgia, ou porque os estudantes pertenciam às fileiras da mesma pequena elite que tinha acesso ao ensino superior. Talvez fossem comunistas; talvez fossem "subversivos". Mas eram também os filhos dos políticos e os futuros membros em potencial da classe política. Quando estudantes eram presos, espancados e torturados por soldados e policiais pobres e iletrados, isso era visto como uma violação básica do modo como os políticos acreditavam que o mundo deveria funcionar.
Quando os estudantes apelavam para a mediação dos políticos ou se refugiavam no Congresso, era porque reconheciam, talvez de maneira inconsciente, que a despeito da divisão ideológica havia algo que os unia à classe política. É difícil imaginar os políticos da Arena ou os membros mais conciliatórios do MDB convidando sindicalistas operários ou trabalhadores rurais para passar a noite no Congresso a fim de escapar da polícia que tinha investido contra suas organizações desde 1964. A despeito dos seus sonhos de uma revolução proletária e da sua frequente origem de classe média, os militantes estudantis tinham algo em comum com os políticos sem se dar conta, e muitos deles, como Franklin Martins, os líderes estudantis de São Paulo José Dirceu e José Serra, e mais notadamente a militante estudantil e da luta armada Dilma Rousseff, viriam a ter carreiras políticas próprias. Ao fim, embora os estudantes de 1968 pudessem ter achado a ideia risível, Covas estava correto ao identificar a liderança estudantil de Honestino Guimarães com preparação para a vida política.
Em 1968, porém, os militares tinham pouca paciência com os estudantes esquerdistas e seus pais políticos simpatizantes. Embora tenhamos poucas fontes relatando a reação no interior das Forças Armadas, ela não é difícil de imaginar.34 34 Maud Chirio oferece a melhor análise dos debates intramilitares em 1968 sobre o rumo que a "Revolução" deveria tomar. CHIRIO, 2012, p.127-134. A "Revolução" de 1964 tinha sido necessária, aos seus olhos, para eliminar pela raiz a subversão, onde quer que ela se encontrasse. Se a "subversão" comunista vinha dos filhos das elites políticas brasileiras, a resposta não deveria ser diferente daquela voltada a trabalhadores rurais, sindicalistas urbanos ou padres esquerdistas; a ameaça não diminuía simplesmente porque os estudantes eram jovens e idealistas. Mas ao invés de reconhecer o perigo e repudiar os erros dos seus filhos, os políticos, inclusive supostos aliados, buscavam proteger os seus filhos esquerdistas. Para os militares, que suspeitavam dos políticos civis desde sempre, deve ter parecido que estes toleravam tal comportamento dos seus filhos porque secretamente desejavam também poder confrontar abertamente o regime. Somando o insulto à injúria, oposicionistas descontrolados como Moreira Alves estavam identificando o cumprimento dos deveres militares a tortura, questionando sua honra como patriotas e, pior do que tudo, desafiando a sua masculinidade. Ficava claro para muitos dos militares que a classe política não tinha aprendido nada desde a "Revolução". Moreira Alves tinha de servir de exemplo para mostrar aos políticos que no novo Brasil, com modernização autoritária ordeira dirigida pelos militares, o papel dos políticos era colaborar com eles e formular críticas positivas, não defender a subversão e se engajar em ataques indecentes à sua honra.
Pesquisadores como Carlos Fico (2004, p.29-60) têm apontado corretamente que o golpe de 1964 e o regime que se seguiu foram o produto de colaboração civil-militar, e Daniel Aarão Reis (2014) tem argumentado fortemente, tanto em artigos acadêmicos como em debates públicos, que o caráter de todo o regime foi essencialmente civil-militar. Mas precisamos ser cautelosos com o termo "civil-militar", na medida em que ele pode nos levar a subestimar a tensão que emergia frequentemente na relação entre os militares e os seus apoiadores civis. Pois, se o regime começou como civil-militar, os políticos civis rapidamente começaram a percebê-lo como excessivamente militar, enquanto poderosas facções militares estavam convencidas de que ele permanecia civil demais. Num quadro mais amplo, o conflito de 1968 foi um dentre vários, entre as várias facções militares e seus apoiadores civis, em relação a qual deveria ser o equilíbrio civil-militar. Essa tensão vinha crescendo desde os primeiros dias após o Golpe, quando Paulo Egydio Martins reclamou amargamente que ele e seus companheiros apoiadores civis do Golpe haviam sido marginalizados (Martins et al., 2007, p.188). Em 1968, essa tensão atingiu seu ponto máximo, começando com o conflito sobre a repressão ao movimento estudantil. Quando a poeira baixou em 1969, um regime civil-militar autoritário tinha se tornado uma ditadura militar pura e simples, e permaneceria assim (com níveis oscilantes de participação civil) até a revogação do AI-5 e a Anistia, uma década depois. Nosso reconhecimento da natureza civil-militar do regime que se seguiu ao Golpe também deve levar em conta os frequentes conflitos entre colaboradores civis e os militares.
Além do mais, a defesa do movimento estudantil de 1968 pelos políticos tem recebido pouca atenção dos acadêmicos, e tem sido amplamente relegada ao esquecimento na memória da resistência à Ditadura. Pode ser que os acadêmicos talvez em alguns casos eles mesmos ex-militantes estudantis ou filhos de militantes tenham assimilado o discurso antipolítico do movimento estudantil de 1968. Mas, como este artigo mostrou, se restava um golfo ideológico a separar os estudantes da maioria dos políticos, sobre ele havia uma ponte criada pelo seu pertencimento comum à classe alta e média letrada que se imaginava como a "elite ... de um país ignorante". Os eventos de Brasília em 1968 deveriam lembrar aos acadêmicos a necessidade de atentarem para os laços de família, classe e socialização que unem as elites brasileiras há muito tempo, independentemente de vínculos partidários ou ideologias. Foram esses laços comuns que levaram os políticos a marchar nos protestos estudantis, esconder estudantes nos seus carros, escritórios e casas, se engajar em confrontos com a polícia e lançar saraivadas verbais dos púlpitos do Senado e da Câmara. Foram esses laços comuns que levaram Márcio Moreira Alves ao ataque contra a polícia e os militares em discursos parlamentares. E, por fim, esses laços entre políticos e estudantes desempenhariam um papel fundamental nas origens da crise que culminou no AI-5.
NOTAS
Artigo recebido em 14 de março de 2014.
Aprovado em 19 de maio de 2014.
Tradução: Alexandre Fortes
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
24 Jul 2014 -
Data do Fascículo
Jun 2014
Histórico
-
Aceito
19 Maio 2014 -
Recebido
14 Mar 2014