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Atividade coletiva na redução da carga de trabalho: uma articulação entre regulações quentes e frias

Collective activity for workload reduction: a combination between warm and cold regulations

Resumo

Introdução:

a organização do trabalho não deve ser vista somente como a estrutura organizacional, mas deve considerar também a dinâmica configurada pelas interações entre os trabalhadores.

Objetivo:

apresentar os tipos de regulações desenvolvidas coletivamente por operadores de uma indústria de bebidas e desvelar como elas contribuem para a redução da carga de trabalho.

Métodos:

intervenção ergonômica realizada em ambiente industrial. Os procedimentos adotados foram qualitativos, combinando observações da atividade, entrevistas e técnicas de confrontação.

Resultados:

as principais estratégias dos trabalhadores para lidar com a sobrecarga de trabalho foram modificar a rotação de postos de trabalho, adotar um conjunto de regulações que buscam reduzir o tempo de trabalho nas tarefas consideradas mais penosas, cooperar com os colegas e buscar períodos de pausa na atividade.

Conclusão:

uma atividade coletiva pode ser considerada como uma articulação entre regulações quentes - ou as estratégias desenvolvidas pelos operadores na situação de trabalho - e regulações frias - ou a produção de regras e ferramentas de gestão pelos gestores da empresa. Por meio de um caso prático, foi possível verificar a necessidade de se partir das práticas de trabalho para estabelecer regras pertinentes, e não o inverso.

Palavras-chave:
organização; atividade coletiva; regulação; carga de trabalho

Abstract

Introduction:

work organization should not be seen only as the organizational structure, but it should also consider the dynamics shaped by interactions among workers.

Objective:

to present regulations collectively developed by workers of a beverage industry and reveal how these regulations contribute to work overload reduction.

Methods:

ergonomic intervention, carried out in an industrial environment. The adopted procedures were qualitative, combining work observations, interviews and confrontation techniques.

Results:

workers’ main strategies to deal with work overload were to change the turning of work stations, to adopt a set of regulations aimed at reducing the work time spent on tasks considered more arduous, to cooperate with co-workers and to seek break times in the activities.

Conclusion:

a collective activity can be considered as a link between warm regulations - or the strategies developed by operators in work situations - and cold regulations - the managerial rules and tools produced by the company’s managers. Through a practical case, it was possible to verify that it is necessary to start from working practices to establish pertinent rules, and not the other way around.

Keywords:
organization; collective activity; regulation; workload

Introdução

Os operadores das indústrias desenvolvem estratégias para regular a carga de trabalho, proteger a saúde individual e coletiva, e aumentar a segurança e a produtividade de um sistema sociotécnico. Esses trabalhadores modificam regras formais (muitas delas desconectadas da realidade) para continuar a produzir11. Daniellou F, Simard M, Boissières I. Fatores Humanos e Organizacionais da Segurança Industrial: um estado de arte. Tradução de Marlene Vianna, Raoni Rocha, Francisco Lima e Francisco Duarte. Cadernos da Segurança Industrial, ICSI, Toulouse, 2010;(2013-07). Disponível em: http://bit.ly/2nTtkfc
http://bit.ly/2nTtkfc...
, lançam mão de comportamentos de iniciativa para alertar a gestão sobre falhas de segurança do sistema22. Rocha R, Daniellou F, Mollo V. O retorno de experiência e o lugar dos espaços de discussão sobre o trabalho. Trab. Ed. 2014;23(1):61-74. e alteram os próprios gestos para proteger regiões do corpo33. Chassaing K. Elaboration, structuration et réalisation des gestuelles de travail: les gestes dans l’assemblage automobile, et dans le coffrage des ponts d’autoroute. Paris. Tese [Doctorat d’Ergonomie] - Laboratoire d’Ergonomie, Conservatoire National des Arts et Métiers; 2006..

As estratégias e regulações desenvolvidas pelos trabalhadores nas indústrias ganham ainda mais força quando tomam uma dimensão coletiva. As atividades coletivas, desenvolvidas por meio de regras formais e informais por um grupo de trabalhadores, têm um papel central nos sistemas técnicos em termos de desempenho, saúde, segurança e confiabilidade44. De La Garza C, Weill-Fassina A. Les modalités de gestion collective des risques ferroviaires sur des chantiers d'entretien des voies. Recherche, Transports, Sécurité. 1995; 49:73-84.. Ao ganhar a dimensão coletiva, os operadores podem reorganizar o trabalho para aumentar a produção e a segurança do trabalho55. Fonseca ED, Lima FPA, Duarte F. From construction site to design: The different accident prevention levels in the building industry. Saf Sci. 2014;70:406-18., proteger aqueles que já foram atingidos por doenças profissionais66. Assunção AA. De la déficience à la gestion collective du travail : les troubles musculosquelettiques dans la restauration collective. Paris. Tese [Doctorat d’Ergonomie] - École Pratique des Hautes Études; 1995. e melhorar a qualidade do sistema por meio de inovações77. Rocha R, Mollo V, Daniellou F. Work debate spaces: a tool for developing a participatory safety management. Appl Ergon. 2015;46:107-14..

Ora, se somente as regras formais não são suficientes para gerir as variáveis presentes no trabalho, como a atividade coletiva de uma equipe pode, então, contribuir com isso? Uma intervenção ergonômica numa fábrica de refrigerantes dará uma luz a essa reflexão. Nesse ambiente, onde um coletivo de trabalho é submetido a um meio industrial restritivo, com poucas possibilidades para o desenvolvimento de margens de manobra, uma série de regulações coletivas surge no interior desse grupo, com o intuito de manter a produção e reduzir as consequências da sobrecarga de trabalho incidente sobre os seus membros.

Então, o objetivo deste trabalho é apresentar os tipos de regulações desenvolvidas pelos operadores nesse ambiente restritivo e desvelar até que ponto elas podem contribuir para a redução da carga de trabalho. Assim sendo, este estudo traz à tona os conceitos de organização, atividade coletiva, carga de trabalho, margem de manobra e regulação, como pano de fundo de um relato de experiência no qual as regulações e estratégias desenvolvidas por membros de um coletivo dizem por si mesmas. Nesse cenário, é legítimo pensar que uma organização é sempre composta por dois lados, um deles sendo a estrutura (conjunto do prescrito), e o outro as interações desenvolvidas pelos trabalhadores entre si para produzir. Concomitantemente a isso, uma atividade coletiva deve contemplar tanto o trabalho coletivo - ou as regulações desenvolvidas pelos membros de um mesmo grupo - como o coletivo de trabalho - ou as maneiras que indivíduos têm de estar em relação e de viver em conjunto no trabalho. Por fim, este relato discute o fato de que toda regulação depende diretamente da margem de manobra oferecida aos trabalhadores para este fim.

Este relato de experiência inicia discutindo alguns dos conceitos acima abordados, de forma a oferecer os subsídios teóricos necessários para compreensão do caso prático.

Organização do trabalho: do que estamos falando?

Após muitos anos de discussão, podemos ainda nos perguntar: afinal de contas, o que é organização do trabalho?

Classicamente, a organização do trabalho é tomada como um conjunto de regras e normas que determinam a maneira de realizar a produção da empresa. Para essas empresas, baseadas na Organização Científica do Trabalho (OCT) de Taylor, a organização do trabalho é sinônimo de racionalização, privilegiando o controle absoluto pela gestão, assim como a exclusão de tempos desnecessários à realização de uma tarefa88. Másculo FS, Vidal, MCR. (Orgs.). Ergonomia: trabalho adequado e eficiente. Rio de Janeiro: Campus; 2011..

As ideias tayloristas nortearam a forma como as indústrias, em todo o mundo, desenvolveram os seus meios de produção. A sua influência ultrapassa o campo da indústria e se faz presente também no mundo científico. Como afirma Lima99. Lima FPA. Ergonomia e projeto organizacional: a perspectiva do trabalho. Produção. Dez. 1999; 9(SPE):71-98. (p. 89), para diversos pesquisadores em ergonomia, tanto de inspiração anglo-saxônica como francesa, Taylor ainda é considerado “uma referência válida e insuperável em seus princípios fundamentais, que qualquer proposta de organização racional do trabalho deveria assumir”.

Na contramão dessa abordagem, diferentes estudos, como o de Jackson1010. Jackson M. A participação dos ergonomistas nos projetos organizacionais. Produção. 1999;9(SPE):61-70., indicam que a organização do trabalho não se limita ao respeito às normas e regras de produção. Uma organização é, sobretudo, uma atividade coletiva, horizontal e verticalmente executada por homens e mulheres que desenvolvem interações entre si, criam regras próprias e buscam, além de produzir, garantir a própria saúde e a segurança do sistema1111. Carballeda G. La contribution des ergonomes à l’analyse et à la transformation de l’organisation du travail: l’exemple d’une intervention relative à la maintenance dans une industrie de processus continu. Bordeaux. Thèse [Doctorat d’Ergonomie] - Université de Bordeaux; 1997..

Terssac e Lompré1212. Terssac (de) G, Lompré N. Pratiques organisationnelles dans les ensembles productifs : essai d'interprétation.I In: Spérandio JC (Org.). L'ergonomie face aux changements technologiques et organisationnels du travail humain. Toulouse: Octarès; 1996. p. 51-66. defendem que toda organização comporta duas facetas: uma delas associada à sua estrutura, formada pela repartição de tarefas, serviços e horários que constituem o conjunto prescrito pela empresa (procedimentos, organograma, regulamentos internos etc.), e outra relacionada à atividade social e às interações dos agentes, com as adaptações e exceções em relação ao que é formalizado. Por um lado, a estrutura organizacional produz regras formais e explícitas, que podem ser facilmente modificáveis se assim a direção desejar. Por outro, as interações entre os trabalhadores, ou a organização viva, produzem regras de trabalho, que podem ou não ser explícitas, e que levam muito tempo para se construir ou modificar. A essa teoria, os autores dão o nome de “Trabalho de organização”.

O grande desafio no mundo do trabalho é conseguir articular estes dois aspectos, o formal e o vivo. Segundo Carballeda1111. Carballeda G. La contribution des ergonomes à l’analyse et à la transformation de l’organisation du travail: l’exemple d’une intervention relative à la maintenance dans une industrie de processus continu. Bordeaux. Thèse [Doctorat d’Ergonomie] - Université de Bordeaux; 1997., há duas formas possíveis de favorecer essa articulação. A primeira remete à negociação no campo (ou à produção de regras efetivas) entre os operadores e os seus supervisores, quando, por exemplo, estes últimos concordam que os operadores violem alguma regra formal (normalmente inadaptada ao campo), para que a produção continue a ocorrer. Trata-se de uma “regulação quente”, ou regulações desenvolvidas entre os trabalhadores operacionais durante a atividade de trabalho e em função dos imprevistos nela ocorridos. Contudo, a sua execução pode gerar um custo cognitivo e organizacional importante para aqueles que a executam. Isso ocorre, por exemplo, quando algumas regras, frequentemente desconectadas da realidade, devem ser regularmente infringidas pelos trabalhadores para que as taxas produtivas se mantenham. Nesse caso, ou por necessidade de um evento exterior (como a obrigação de implantação de uma nova norma ou lei), uma segunda forma de regulação consiste em modificar as regras formais existentes ou produzir novas regras, mais adaptadas à realidade das situações de trabalho. Esse tipo de regulação, denominado de “regulação fria”, é aquela desenvolvida pelos gestores fora da situação de trabalho, com o intuito de modificar as regras existentes do campo operacional. A Figura 1 ilustra de forma esquematizada a produção de regulações quentes e frias em um coletivo de trabalho.

Figura 1
Representação esquemática da produção de regulações quentes e frias em um coletivo de trabalho

Assim, mesmo que as teorias clássicas sobre organização - que as limitam na sua estrutura e sustentam as teorias taylorianas - continuem presentes nas empresas atuais1313. Petit J. Organiser la continuité du service: Intervention sur l’organisation d’une Mutuelle de santé. Bordeaux. Thèse [Doctorat d’Ergonomie] - Université de Bordeaux; 2005., alguns trabalhos1111. Carballeda G. La contribution des ergonomes à l’analyse et à la transformation de l’organisation du travail: l’exemple d’une intervention relative à la maintenance dans une industrie de processus continu. Bordeaux. Thèse [Doctorat d’Ergonomie] - Université de Bordeaux; 1997.), (1212. Terssac (de) G, Lompré N. Pratiques organisationnelles dans les ensembles productifs : essai d'interprétation.I In: Spérandio JC (Org.). L'ergonomie face aux changements technologiques et organisationnels du travail humain. Toulouse: Octarès; 1996. p. 51-66.), (1414. Lima F, Duarte F. Integrando a ergonomia ao projeto de engenharia: especificações ergonômicas e configurações de uso. Gest Prod. 2014;21(4):679-90.), (1515. Reynaud JD. Les régulations dans les organizações: régulation de contrôle et régulation autonome. R Franç Sociol. 1988;XXIX:5-18. comprovam que é necessário considerar as facetas formal (estrutura) e viva (interações) quando se discute e se reflete sobre organização do trabalho.

Carga de trabalho: uma análise da Contrainte e da Astreinte produzidas

O conceito de carga de trabalho pode ser abordado didaticamente a partir de três componentes interligados: o físico, o cognitivo e o psíquico. Toda a carga de trabalho é portadora desses três componentes, de forma que a sobrecarga produzida em qualquer um deles pode repercutir nos demais1616. Wisner A. Por dentro do trabalho: ergonomia: métodos e técnicas. São Paulo: Oboré; 1987..

Se os componentes da carga de trabalho já estão relativamente estabelecidos, como definido acima por Wisner, a utilização deste conceito continua ambígua, uma vez que pode se referir tanto ao nível de exigência de uma tarefa num dado momento, quanto às consequências dessa tarefa sobre o trabalhador1717. Falzon P, Sauvagnac C. Carga de trabalho e estresse. In: Falzon P. Ergonomia. São Paulo: Blucher; 2007. p. 141-154.. Nessa perspectiva, não há como deixar de lado a discussão de outras duas noções de difícil tradução literal para o português: a de contrainte e astreinteb b Por se tratar de conceitos poucos discutidos no Brasil e de difícil tradução literal, decidimos, neste texto, manter os termos em francês. .

A contrainte pode ser definida como o nível de exigência numa dada tarefa, sendo formulada de acordo com os objetivos a serem atingidos e os resultados esperados. É a pressão, restrição, incômodo ou dificuldade impostos por uma tarefa1818. Theureau J. La notion de charge mentale est-elle soluble dans l'analyse du travail et la conception ergonomiques. Conférence introductive aux Journées Act'ing/Ergonomia, Cassis; 2001.. Observa-se, com certa frequência, o termo adjetivado às questões de tempo, ambiente e postura, como exemplo: pressões temporais (contraintes temporelles), restrições ambientais (contraintes environnementales) e incômodos ou dificuldades posturais (contraintes posturalles).

Uma pressão, restrição, incômodo ou dificuldade (contrainte) pode gerar efeitos no trabalhador. A astreinte resulta do acoplamento, originado por meio da atividade, entre a contrainte da tarefa e os recursos físicos, cognitivos e psíquicos do operador. Por isso, sob uma mesma contrainte, a astreinte pode variar de acordo com os indivíduos, em função dos recursos disponíveis1717. Falzon P, Sauvagnac C. Carga de trabalho e estresse. In: Falzon P. Ergonomia. São Paulo: Blucher; 2007. p. 141-154..

Se a astreinte é sentida como forte ou penosa por aquele que executa a atividade, este modificará as suas maneiras de fazer ou buscará regulações para o alívio da carga. Quando um trabalhador não possui margem de manobra suficiente para modificar o trabalho, as possibilidades de adaptação do corpo às exigências do trabalho podem se tornar difíceis e o seu estado interno pode se tornar perturbado, freando ou impedindo o processo de regulação interna1818. Theureau J. La notion de charge mentale est-elle soluble dans l'analyse du travail et la conception ergonomiques. Conférence introductive aux Journées Act'ing/Ergonomia, Cassis; 2001.. É a partir desse momento que as patologias podem começar a aparecer: a fadiga e o stress são consequências da astreinte; ambos diminuem os recursos físicos, cognitivos e psíquicos e, assim, aumentam a astreinte1919. Weill-Fassina A, Rabardel P. Point de vue ergonomique sur les facteurs psychosociaux de risques pour la santé. Revue de la littérature réalisée dans le cadre des travaux du Collège d'expertise sur le suivi statistique des risques psychosociaux au travail. Paris: Collège d'expertise sur le suivi statistique des risques psychocociaux au travail; 2010. Disponível em: http://bit.ly/2otJw86
http://bit.ly/2otJw86...
.

Apesar de ser fortemente influenciada pela ergonomia francesa, a ergonomia brasileira muito frequentemente não traz as noções de contrainte e astreinte em seus estudos relacionados à carga de trabalho. Se a noção de astreinte foi ignorada, a de contrainte foi equivocadamente traduzida como “constrangimento” - uma espécie de jargão utilizado entre os ergonomistas brasileiros - dentro do qual, frequentemente, embute-se os efeitos negativos que o trabalho pode causar. Ora, como discutido acima, esse não é o significado original da palavra. Contrainte é o que impulsiona, o que motiva e o que exige que o trabalho seja realizado. Em função dos recursos do indivíduo, essas exigências do trabalho podem ou não trazer efeitos na saúde do trabalhador. Se o desequilíbrio entre exigências externas e recursos internos se manifesta, a astreinte, então, aparece. Dessa forma, os estudos no Brasil trazem, em muitos trabalhos, a noção de contrainte (ou constrangimento) como sendo o efeito sobre o trabalhador, o que na verdade trata-se da astreinte. Originalmente, a contrainte seria melhor traduzido por “exigência”, podendo ou não levar, em função dos recursos do indivíduo, a um desequilíbrio sobre ele (astreinte).

Analisar uma carga de trabalho individual ou coletiva é, portanto, analisar as constraintes e as astreintes envolvidas com o indivíduo ou com o coletivo de trabalho. Já que a realização de uma tarefa leva, necessariamente, ao desenvolvimento de uma carga de trabalho, buscar eliminar essa carga não faz sentido. É a sobrecarga que se deve eliminar por meio da gestão das constraintes e astreintes daquela atividade1717. Falzon P, Sauvagnac C. Carga de trabalho e estresse. In: Falzon P. Ergonomia. São Paulo: Blucher; 2007. p. 141-154..

Métodos

A intervenção ergonômica apresentada neste relato é fruto de uma demanda realizada por uma fábrica que produz refrigerantes em garrafas e latas, composta de seis linhas de produção que funcionam 24 horas por dia. A linha produtiva na qual o trabalho foi realizado é responsável pela fabricação de refrigerantes em garrafas de vidro pequenas, médias e grandes, constituída por 84 operadores trabalhando num regime de 12 horas contínuas por 36 horas de descanso. Existem, assim, quatro grupos de trabalho (dois durante o dia e outros dois à noite), cada um com 21 operadores. Segundo a gerência de produção, esses grupos são responsáveis pela maior taxa de produção da indústria estudada, com cerca de 360 engradados/hora (ou 4.320 garrafas) durante o inverno e 540 engradados/hora (ou 6.480 garrafas) durante o verão.

Para este estudo, foi selecionado um subgrupo de operadores por grupo de trabalho que realiza as tarefas consideradas, segundo os próprios operadores, as mais difíceis do ponto de vista de esforço físico, e onde as taxas de absenteísmo são as mais altas da empresa, de acordo com o médico do trabalho. Os operadores desse subgrupo são denominados “assistentes de produção”, e totalizam seis funcionários por subgrupo, no qual um deles é o “líder”, denominado pelos gestores da empresa. Esse é, normalmente, o mais experiente e tem a função de comunicar as decisões gerenciais ao grupo.

Ao todo, quatro equipes de seis operadores (n = 24) foram estudadas, com o objetivo de compreender o mecanismo de rotação, identificar a carga de trabalho às quais os operadores estão expostos, assim como as regulações utilizadas por eles. Os trabalhadores foram informados dos objetivos do trabalho e concordaram com a participação. Foi estabelecido um compromisso em manter sigilo de informações pessoais e preservar a identificação dos trabalhadores e da empresa.

Para analisar essas equipes, os procedimentos adotados foram, essencialmente, qualitativos, combinando observações da atividade dos assistentes de produção, entrevistas e técnicas de confrontação que encorajassem os operadores a falar e refletir sobre as próprias atividades. Isso foi importante, pois eles não tinham momentos formais dedicados à reflexão sobre a própria prática e, ao mesmo tempo, foi percebido que eles detinham pontos de vista divergentes sobre o próprio trabalho, o considerando por vezes “simples” e “fácil” e, em outros momentos, “exigente” e “difícil”.

Observações da atividade foram feitas junto aos assistentes de produção da linha produtiva analisada, em cada um dos quatro grupos presentes, e tiveram como objetivo a compreensão do processo e do encadeamento das tarefas, de forma a identificar as regulações adotadas pelos assistentes para minimizar as astreintes do trabalho. Elas visavam aprofundar o olhar sobre as regulações quentes, identificando as suas causas e consequências, assim como as particularidades e as diferenças entre os rodízios com o efetivo constante e reduzido. No total, vinte dias de observação (cerca de quatro horas por dia) foram realizadas. Em seguida, as informações recolhidas foram validadas pelos diferentes atores por intermédio de entrevistas e técnicas de confrontação.

As técnicas de confrontação2020. Mollo V, Falzon P. Auto-and allo-confrontation as tools for reflective activities. Applied Ergonomics. 2004;35(6):531-40. foram utilizadas com o objetivo de compreender como, por meio das mudanças de equipe, as contraintes e as astreintes ligadas à atividade eram integradas numa dimensão coletiva do trabalho. Todas as oito sessões de confrontação, contendo cerca de trinta minutos cada uma, foram realizadas numa sala separada do setor produtivo, no momento das pausas para almoço e café, ou em pausas programadas, negociadas com a supervisão. Na aplicação dessa técnica, filmes realizados e editados pelo pesquisador, com duração máxima de dez minutos, eram observados pelos assistentes, de forma que um deles observava um ou mais filmes dos seus colegas. Os participantes eram, então, convidados a verbalizar sobre o que eles enxergavam. Entrevistas pontuais foram, ainda, posteriormente realizadas com o intuito de eliminar algumas dúvidas do pesquisador que haviam permanecido após a fase de confrontação da atividade.

O caso da fábrica de refrigerantes

Organização formal e as tarefas prescritas

Na realização das suas tarefas, os assistentes de produção compartilham seis postos de trabalho (Figura 2), assim denominados:

  1. Despaletização Manual (postos D1 e D2), responsáveis por descarregar manualmente os engradados com garrafas vazias;

  2. Paletização Manualc c Neste trabalho, os termos “Paletização Manual” e “Despaletização Manual”, com as iniciais maiúsculas, fazem referência aos nomes dos postos de trabalho. Os termos com as iniciais minúsculas se referem às atividades em si. Essa regra também é válida para os termos “Canudo” e “Organização dos paletes”. (postos P1 e P2), responsáveis por carregar manualmente os engradados com garrafas vazias;

  3. Organização dos Paletes (posto OP), responsável por organizar os paletes no início da linha de produção;

  4. Canudod d Os caminhões de bebida retornam frequentemente as garrafas vazias do mercado com os canudos deixados pelos consumidores no interior das garrafas. (posto Ca), responsável por retirar os canudos do interior das garrafas médias.

Figura 2
Rotação de postos de trabalho prescrita pela empresa quando o efetivo de trabalhadores está estável

Os assistentes que ocupam os postos D1 e D2 são responsáveis pela despaletização manual, que significa pegar os engradados de garrafas vazias do palete e posicioná-los na esteira superior da linha produtiva. Essas caixas contêm 12 garrafas vazias cada uma, com peso variado de acordo com o tamanho das garrafas ali contidas: 9 kg (garrafa pequena), 12 kg (garrafa média) ou 15 kg (garrafa grande). Os assistentes de produção que ocupam os postos P1 e P2 são responsáveis pela paletização manual, que significa recuperar os engradados com garrafas cheias da esteira inferior e posicioná-los no palete. Essas caixas contêm 12 garrafas cheias pesando 11 kg (garrafa pequena), 21 kg (garrafa média) ou 28 kg (garrafa grande). Cada assistente é responsável individualmente pela montagem do palete, estejam eles nos postos de paletização ou despaletização.

Em relação ao espaço de trabalho, os operadores dispõem de 55 cm de largura, limitado pelas esteiras elétricas de um lado e pelos paletes do outro. Quando estão completos, os paletes comportam quatro camadas de engradados de garrafas e chegam a 1,6 m de altura. A esteira superior, a 1 m do solo, conduz os engradados com garrafas vazias para o interior da linha produtiva, enquanto a esteira inferior, a 60 cm do solo, leva os engradados com caixas de garrafas cheias da linha de produção em direção aos operadores da Paletização Manual.

Os assistentes de produção fazem um rodízio entre os seus postos de trabalho, de forma que, quando o efetivo está estável, esse rodízio é realizado em duplas, a cada 30 minutos. Como o grupo é composto por seis operadores, três duplas são constituídas.

A primeira dupla, identificada na Figura 2 pelo número 1, se compõe de dois operadores responsáveis pela despaletização manual dos engradados. A segunda, identificada pelo número 2, é constituída por dois operadores responsáveis pela paletização manual dos engradados. Já a terceira, identificada pelo número 3, é composta por um assistente encarregado pela organização dos paletes e outro por retirar os canudos do interior das garrafas.

A empresa impõe um rodízio prescrito ao grupo, que ocorre da seguinte maneira: a cada 30 minutos, a dupla 1 avança em direção à dupla 2; a dupla 2 se separa, um deles indo para o posto de retirada do canudo, e o outro para a organização dos paletes; a dupla 3 avança para a paletização manual. A Figura 2 ilustra a rotação prescrita pela empresa.

As regulações coletivas do grupo de assistentes de produção

Os primeiros resultados dessa pesquisa revelam tipos de rotação muito frequentemente diferentes daqueles prescritos pela empresa e um conjunto considerável de regulações executadas na situação de trabalho, por meio de estratégias coletivas, para tentar gerir uma parte da carga de trabalho a que os trabalhadores estão expostos. O Quadro 1 apresenta uma classificação de todas as regulações desenvolvidas pelos assistentes de produção, assim como as estratégias adotadas e o contexto de cada uma delas.

Quadro 1
Conjunto de regulações e estratégias coletivas desenvolvidas pelos assistentes de produção de uma indústria de bebidas

A seguir, cada uma dessas regulações, com as suas estratégias e objetivos, serão detalhadas e ilustradas.

Redução do tempo de exposição na tarefa “mais difícil”

Os operadores empregam diferentes modos operatórios a fim de diminuir o período de exposição no posto de paletização manual, tarefa considerada como a mais difícil pelos operadores do ponto de vista da sobrecarga de trabalho. Isso ocorre em duas situações particulares: na ausência de um ou dois assistentes, onde o esquema do rodízio é sistematicamente modificado, e nos picos de produção ligados à variabilidade sazonal, onde os trabalhadores buscam, junto ao supervisor, a presença de um operador a mais, proveniente de outra linha de produção. A Figura 3 ilustra esses dois casos que, a seguir, serão mais bem explicados.

Figura 3
Rodízio definido pela regulação coletiva quando há assistentes de produção ausentes ou picos de produção

  • a) Alteração do tipo de rotação

Os assistentes modificam o tipo de rotação prescrita quando há ausências no grupo. Realizando outras formas de rotação, eles buscam diminuir o tempo de permanência nos postos de despaletização e, principalmente, paletização, considerado o mais difícil. Isso ocorre na ausência de um ou dois operadores do grupo.

No caso de ausência de um operador, o posto de organização dos paletes é eliminado e o rodízio não funciona mais em dupla, mas em fila indiana. O tempo de rotação é reduzido de 30 para 15 minutos. Dessa forma, os operadores também diminuem o tempo de exposição direta na paletização, de duas para uma hora. Contudo, no caso de ausência de dois operadores, a situação é degradada e a margem de manobra é reduzida. Assim, o rodízio funciona novamente em duplas e o período de rotação retorna para 30 minutos. Uma vez que há somente quatro operadores ao invés de seis (situação normal), uma hierarquia dos postos é definida pelos trabalhadores: somente os postos de despaletização e paletização são mantidos, a paletização sendo considerada a mais difícil.

  • b) Aumento da equipe

Entre novembro e março, meses mais quentes do ano, o consumo e a produção de refrigerantes aumentam consideravelmente. A produção, fixada a 360 engradados por hora no inverno, pode chegar a 540 no verão. Esses períodos são considerados “críticos” pelos operadores, que se sentem incapazes de produzir no nível demandado pela gestão. Assim, os assistentes podem solicitar e obter ajuda de um operador extra, proveniente de outra linha de produção. Nesse momento, o supervisor busca alguém que possa estar disponível para isso em uma das outras cinco linhas produtivas. Dessa forma, um sétimo operador integra a dupla da Paletização durante uma ou duas horas de trabalho. É, também, uma forma de diminuir o tempo individual e, dessa forma, a exposição à carga manipulada. Se os postos têm um operador a mais, o número total de engradados é dividido por três em vez de dois.

Auxílio e cooperação como formas de proteção dos membros do coletivo

Os operadores elaboram estratégias diversas para se protegerem. Num ambiente de produção restrito, no qual os assistentes evocam não poder contar com os chefes para tratar de determinados problemas, os membros do grupo se apoiam e desenvolvem estratégias baseadas na confiança e colaboração mútua. Isso se torna mais evidente principalmente quando um membro do grupo não se sente bem fisicamente, e assim é alocado pelo líder para um posto mais leve (do ponto de vista da sobrecarga) ou quando surgem engradados antigos e mais difíceis de serem manipulados no posto de Despaletização e os operadores decidem manipulá-los simultaneamente, ao invés de individualmente, como de costume. Abaixo, serão detalhadas ambas as situações.

  • a) Eliminação de um assistente do rodízio

Quando um dos trabalhadores não se sente bem fisicamente (muito frequentemente com queixas de dores na coluna, nos ombros ou dores de cabeça), ele pode ser retirado do rodízio durante certo período e ser alocado nos postos mais leves, considerados menos penosos, como o posto do Canudo. Dessa forma, o rodízio é modificado, funcionando em fila indiana, e não inclui o posto eliminado. Normalmente, é o líder quem avalia a situação. Após uma conversa com o operador que não se sente bem, o líder decide colocá-lo no posto do Canudo e, por consequência, o rodízio é modificado durante alguns momentos, até o assistente acometido melhorar o seu estado físico.

  • b) Despaletização do mesmo palete

A despaletização se desenvolve habitualmente de forma individual, cada assistente com o seu próprio palete. Todavia, essa configuração é modificada de acordo com o tipo de engradado que chega do mercado. Os engradados mais antigos são mais baixos e têm a pega mais lisa do que os novos engradados. Assim, os assistentes têm mais dificuldades em manipulá-los, já que flexionam mais intensamente a coluna para realizar a atividade. Ao mesmo tempo, a pega lisa aumenta o risco de acidentes, pois os engradados podem escorregar com maior facilidade das mãos dos trabalhadores. A combinação dessas características cria situações de risco para os assistentes, que preferem evitá-las. Dessa forma, quando um palete com engradados antigos chega do mercado, os dois operadores que se encontram na despaletização se juntam no mesmo palete para manipular os mesmos engradados, ao invés de cada um trabalhar no próprio palete. É uma forma deles se apoiarem diante dos engradados mais desconfortáveis e de maior risco de queda.

Ganho de pausas

Os operadores utilizam algumas estratégias para obter pausas durante a jornada de trabalho. Nas 12 horas trabalhadas, eles têm o horário de almoço (cerca de uma hora) e o café da tarde (cerca de 15 minutos) como pausas oficiais. No entanto, os assistentes buscam encontrar outros momentos de pausas durante a jornada, como forma de recuperação da fatiga e do cansaço físico. Assim, os assistentes da despaletização buscam encontrar espaços na esteira para preenchê-los o máximo possível e ganhar um período de pausa até que ela se esvazie, e os assistentes da paletização combinam de somente um deles se ocupar de todos os engradados que chegam pela esteira, enquanto o outro descansa nesse período para, em seguida, a situação se inverter. Há duas estratégias: o momento no qual o assistente empurra os engradados no sentido contrário ao da esteira e ganha espaço para preencher com os engradados; e o momento no qual somente um assistente monta o palete, enquanto o seu parceiro descansa e limpa o rosto com um lenço. Em seguida, esses dois casos serão mais bem explicados.

  • a) Ganho de espaço na esteira elétrica

Quando há espaço suficiente na esteira superior, os assistentes da despaletização empurram um conjunto de engradados no sentido contrário ao da esteira e, dessa maneira, conseguem ganhar um espaço para preenchê-lo com o maior número de engradados possível. Assim, com a esteira completamente preenchida de engradados que levarão alguns segundos para se movimentar em direção ao interior da linha produtiva, os assistentes ganham períodos de pausas, em que se assentam nos engradados enquanto aguardam a linha se esvaziar novamente.

  • b) Montagem individual de engradados

Em geral, os operadores da paletização dividem os engradados que chegam pela linha, de maneira que cada um deles pegue dois engradados para montar o próprio palete. Contudo, um acordo pode ser feito pela dupla, de modo que somente um entre eles se responsabilize por todos os engradados que chegam pela esteira, enquanto o outro descansa. Quando o palete é finalizado, os assistentes invertem a situação, de modo que aquele que montou o palete entre na pausa e aquele que estava na pausa monte o novo palete.

Atividade coletiva e margem de manobra: até onde vai o controle da carga de trabalho?

Os assistentes de produção estudados neste relato compõem, antes de tudo, um coletivo de trabalho. Esse conceito corresponde às maneiras com as quais os indivíduos vivem em conjunto no trabalho2121. Caroly S. L'activité collective et la réélaboration des règles: des enjeux pour la santé au travail. Document d'HDR en Ergonomie, Bordeaux: Sciences de l'Homme et Société. Université Victor Segalen Bordeaux II; 2010., necessitando de um conhecimento recíproco da atividade, uma confiança mútua nas informações trocadas e uma referência comum sobre o estado de avanço do processo2222. Wisner A. Inteligência no trabalho: textos selecionados de ergonomia. São Paulo: Fundacentro; 1993.. De acordo com Caroly2121. Caroly S. L'activité collective et la réélaboration des règles: des enjeux pour la santé au travail. Document d'HDR en Ergonomie, Bordeaux: Sciences de l'Homme et Société. Université Victor Segalen Bordeaux II; 2010., um coletivo de trabalho pode ser diferenciado em: “grupo”, que se trata de um coletivo de pessoas que se constitui voluntariamente para determinado fim; “equipe”, ou indivíduos pertencentes ao mesmo ou a diferentes ofícios, tendo prescrições, objetivos e condições comuns; “coletivo”, quando trabalhadores realizam um trabalho comum, compartilhando regras formais e desenvolvendo regras de ofício em função de objetivos além daqueles definidos pela tarefa; e “rede”, que remete a operadores que devem trabalhar juntos, normalmente de forma temporária, em torno de um objetivo bem definido, necessitando da mobilização de competências de diferentes áreas. Sob esse ponto de vista, os assistentes de produção podem ser classificados como um coletivo de trabalho, compondo uma “equipe”, dado que pertencem ao mesmo ofício e compartilham prescrições, objetivos e condições, assim como um “coletivo”, uma vez que cumprem regras formais, mas também desenvolvem regras de ofício entre si.

Todavia, nem todo coletivo de trabalho desenvolve um trabalho coletivo. A distinção entre essas duas noções é fundamental na compreensão de uma atividade coletiva, embora muitos estudos as tratem dentro de um mesmo contorno. Como lembra Weill-Fassina e Benchekroun2323. Weill-Fassina A, Benchekroun TH. Diversité des approches et objets d'analyse du travail collectif en ergonomie, In: Benchekroun TH, Weill-Fassina A (Org.). Le travail collectif: perspectives actuelles en ergonomie. Toulouse: Octarès Editions; 2000. p. 1-15.) (p. 6), “nem todo trabalho coletivo implica em coletivo de trabalho” e, ao mesmo tempo, “o trabalho coletivo não remete à atividade coletiva, se ele não é combinado com o coletivo de trabalho” (2121. Caroly S. L'activité collective et la réélaboration des règles: des enjeux pour la santé au travail. Document d'HDR en Ergonomie, Bordeaux: Sciences de l'Homme et Société. Université Victor Segalen Bordeaux II; 2010. (p. 97).

Caroly2121. Caroly S. L'activité collective et la réélaboration des règles: des enjeux pour la santé au travail. Document d'HDR en Ergonomie, Bordeaux: Sciences de l'Homme et Société. Université Victor Segalen Bordeaux II; 2010.) define o trabalho coletivo como um processo de repartição de tarefas, compartilhamento de saberes, elaboração de regras estabelecidas coletivamente que constituem componentes coletivos da construção e execução de regulações de situações críticas. Essa noção corresponde, assim, à maneira que indivíduos têm de trabalhar em conjunto, de cooperar, de colaborar, de ajudar e obter ajuda uns dos outros. Ainda de acordo com a autora, o trabalho coletivo abrange os conceitos de co-açãoe e A palavra do original francês “co-action” é diferente da palavra “coação”, em português. Segundo o dicionário Aurélio, “coação” significa “constranger”, “forçar pela lei ou pela violência”. Por esse motivo, e para evitar qualquer tipo de confusão na tradução do termo, o hífen foi mantido na palavra “co-ação”, em português. , colaboração, cooperação e ajuda mútua, explicados a seguirf f Ao trazer essas definições, Caroly cita diferentes autores que a discutem de forma mais aprofundada. e ilustrados com exemplos da atividade estudada neste relato:

  • Co-ação (La co-action): diz respeito ao acompanhamento pelos operadores de ações diferentes em objetos diferentes, com objetivos a curto prazo, podendo se integrar numa atividade comum a longo prazo. Exemplo: na mesma equipe, enquanto um assistente de produção paletiza, outro despaletiza, e o outro retira os canudos de garrafas.

  • Colaboração (La collaboration): refere-se, sobre um mesmo objeto, a operações diferentes que se articulam umas às outras com um objetivo comum a curto ou médio prazo. Exemplo: para colocar um engradado de refrigerantes sobre um palete, um dos assistentes (responsável pela organização dos paletes) posiciona o palete no local ideal e o outro (responsável pela paletização manual) o empilha manualmente sobre o palete.

  • Cooperação (La coopération): caracteriza uma atividade coletiva na qual os operadores trabalham em conjunto sobre um mesmo objeto tendo um mesmo objetivo proximal. Exemplo: percebendo que o palete ficou tortuoso e que a base de engradados não está uniforme, a dupla de assistentes refaz a montagem do palete, retirando todos os engradados e, em seguida, reposicionando-os sobre o palete.

  • Ajuda mútua (L’aide et l’entraide): compreende o auxílio a um colega no trabalho, para executar uma ação ou uma operação no seu lugar, sem que o último tenha pedido. Exemplo: um assistente mais experiente percebe a dificuldade de um novato para montar um palete e o ajuda nessa tarefa.

Assim, o trabalho coletivo está presente em todos os níveis na atividade dos assistentes de produção, sejam eles co-ação, colaboração, cooperação ou ajuda mútua. Dessa forma, a atividade coletiva desenvolvida pela equipe pode ser classificada como um trabalho coletivo sendo desenvolvido por um coletivo de trabalho.

Embora a constatação de que a equipe de assistentes de produção desenvolve uma verdadeira atividade coletiva, articulando o trabalho coletivo com o coletivo de trabalho, a pergunta que nos interpela é: essa equipe consegue, de fato, regular a sobrecarga presente na situação de trabalho?

Sabe-se que o objetivo de um grupo que trabalha coletivamente é, essencialmente, regular a carga de trabalho para atingir os índices de produção previamente estabelecidos. A regulação é uma forma que o indivíduo, por meio da atividade, enfrenta e controla a contrainte e a astreinte encontradas na situação de trabalho1717. Falzon P, Sauvagnac C. Carga de trabalho e estresse. In: Falzon P. Ergonomia. São Paulo: Blucher; 2007. p. 141-154.. Quando os trabalhadores são reguladores de um sistema, eles põem em prática diferentes ações, modos operatórios e estratégias para atingir um mesmo objetivo, redefinindo constantemente os objetivos da tarefa em objetivos próprios, na intenção de manter o funcionamento do sistema do qual fazem parte2424. Largier A, Delgoulet C, De la Garza C. Quelle prise en compte des compétences collectives et distribuées dans la gestion des compétences professionnelles? Pistes. 2008;10(1):2-25. Disponível em: http://bit.ly/2nPkBZq
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. Portanto, uma equipe que se autorregula pode redefinir os seus próprios objetivos, como também os meios para atingi-los, tanto pela repartição de tarefas entre os membros do grupo, quanto pelo modo de efetuá-los. A autorregulação coletiva é, enfim, um fator de flexibilidade que possibilita a adaptação de um grupo às exigências e imprevistos da situação de trabalho2121. Caroly S. L'activité collective et la réélaboration des règles: des enjeux pour la santé au travail. Document d'HDR en Ergonomie, Bordeaux: Sciences de l'Homme et Société. Université Victor Segalen Bordeaux II; 2010.. Nesse sentido, Leplat2525. Leplat J. La notion de régulation dans l'analyse de l'activité. Pistes. 2006;8(1):1-29. Disponível em: http://bit.ly/2nP8QlR
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vê o grupo de trabalho como um “sistema autoativo” no qual o coletivo pode reorganizar internamente as tarefas de maneira a redistribuir as cargas de trabalho individuais quando, por exemplo, um operador percebe a sobrecarga dos seus colegas, mas que, para que essa regulação coletiva seja possível, é necessário que a equipe disponha de certo grau de margem de manobra e autonomia para poder se distanciar das regras formais.

No caso estudado, ainda que as regulações quentes e a atividade coletiva desenvolvida pela equipe sejam extremamente importantes para gerir as contraintes e as astreintes da situação de trabalho, é necessário lembrar que os indivíduos analisados estão sob condições extremas: jornadas de trabalho de 12 horas, manipulando cargas que podem atingir 540 engradados por hora. Em função disso, os assistentes modificam a rotação quando necessário, retiram algum assistente da manipulação de cargas quando este não está bem, compartilham engradados ruins quando é preciso e buscam diversas formas de ganhar pausas durante a jornada de trabalho. Apesar disso, esse setor continua sendo aquele com as maiores queixas de sobrecarga da empresa e com o maior índice de absenteísmo.

Nesse contexto, se as regulações implantadas servem como forma de reduzir as sobrecargas, elas não conseguem nem eliminá-las, nem impedir que elas continuem comprometendo a saúde dos indivíduos do grupo. Se os trabalhadores no campo desenvolvem margens de manobra em função das suas possibilidades, a gestão, por outro lado, as restringe por meio da ausência de autonomia dos assistentes, dos curtos espaços de trabalho e do alto ritmo das máquinas.

Ora, para que regulações sejam possíveis, é necessário que existam margens de manobra para realizá-las, ou situações de trabalho capazes de oferecer uma diversidade de modos operatórios suficientes para que os trabalhadores cheguem ao objetivo demandado com a saúde protegida2626. Coutarel F. La prévention des troubles musculo-squelettiques en conception: quelles marges de manœuvre pour le déploiement de l’activité? Bordeaux. Thèse [Doctorat d’Ergonomie] - Université Victor Segalen Bordeaux II; 2004.. A noção de margem de manobra está atrelada ao aumento das possibilidades de ação. Embora esteja mais associada à atividade e experiência individual, principalmente no campo da ergonomia, margens de manobra se elaboram também no interior das atividades coletivas, principalmente por intermédio das relações de cooperação (como pôde ser visto neste relato), assim como por meio da gestão, quando da determinação da autonomia e do poder de agir dos trabalhadores operacionais. Sob esse ponto de vista, para que a sobrecarga seja efetivamente controlada é necessária uma ação concreta da gestão no sentido de aumentar a margem de manobra dos assistentes de produção.

Além do aumento do poder de agir e da autonomia operacional, diferentes autores2727. Coutarel F, Daniellou F, Dugué B. Interroger l’organisation du travail au regard des marges de manœuvre en conception et en fonctionnement. Pistes. 2003;5(2):1-24. Disponível em: http://bit.ly/2nP8QlR
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)- (2929. Daniellou F. De la rotation sur les postes à la santé au travail. Synthèse du colloque. “La rotation, est-ce une solution?”. Pistes. 2003;5(2):1-7. Disponível em: https://pistes.revues.org/3319
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concordam em afirmar que a configuração espacial e o ritmo das máquinas são elementos determinantes para aumentar ou diminuir a margem de manobra dos trabalhadores. Sob uma mesma cadência, o aumento do espaço de cada operador na linha produtiva os possibilita antecipar ou retardar as suas ações em caso de necessidade.

Para que os operadores tenham, então, possibilidade de regulação efetiva da carga de trabalho, é necessário que eles tenham margens de manobra suficiente para isso, sejam elas formalmente oferecidas pela gestão (situação ideal) ou informalmente desenvolvidas na própria situação de trabalho. Como afirma Caroly2121. Caroly S. L'activité collective et la réélaboration des règles: des enjeux pour la santé au travail. Document d'HDR en Ergonomie, Bordeaux: Sciences de l'Homme et Société. Université Victor Segalen Bordeaux II; 2010. (p. 3, tradução própria), “as margens da manobra deixadas pela organização do trabalho e criadas pelos operadores são essenciais para compreender a relação entre atividade coletiva e saúde”.

Perspectiva de pesquisa: desenvolvimento de dispositivos para articular as regulações quentes e frias

Sistemas de rodízio são, em geral, implantados pelos gestores como tentativa de variar a atividade de trabalho, reduzir as sobrecargas e, dessa forma, proteger a saúde dos trabalhadores2828. Vézina N. La rotation des postes peut-elle représenter un moyen de prévention des troubles musculo-squelettiques? In: Actes du 1er Congrès francophone sur les TMS du membre supérieur, 24; 2005; Nancy: 2005. p. 12-16.. Na literatura, alguns autores2727. Coutarel F, Daniellou F, Dugué B. Interroger l’organisation du travail au regard des marges de manœuvre en conception et en fonctionnement. Pistes. 2003;5(2):1-24. Disponível em: http://bit.ly/2nP8QlR
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), (3030. Falardeau A, Vézina N. Apport de différentes sources de données à la description comparée des contraintes et à l’amélioration d’un groupe de postes occupés en rotation. Pistes. 2004;6(1):1-22. Disponível em: https://pistes.revues.org/3282
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consideram difícil precisar se o rodízio dos postos de trabalho representa meio eficiente de prevenção à saúde. O efeito do rodízio, segundo as condições de sua implantação, pode ser contrário àquele esperado. Uma vez aplicado, ele pode induzir os trabalhadores a melhor suportar a carga de trabalho, retardando a aparição de problemas. Ou seja, a implantação de um sistema de rodízio corre o risco de amplificar a exposição a problemas musculoesqueléticos nos seus empregados2727. Coutarel F, Daniellou F, Dugué B. Interroger l’organisation du travail au regard des marges de manœuvre en conception et en fonctionnement. Pistes. 2003;5(2):1-24. Disponível em: http://bit.ly/2nP8QlR
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. Isso se comprova no caso estudado, uma vez que a linha avaliada, com o sistema de rodízio implantado há alguns anos, é a que possui as mais altas taxas de todo o setor produtivo. Dessa forma, podemos pensar que o rodízio, ao invés de reduzir o absenteísmo, pode ter favorecido o seu aumento, por meio do aumento da carga de trabalho e da redução da margem de manobra.

Num sistema organizacional extremamente rígido, como o da empresa em questão, os assistentes de produção somente podem buscar suporte em si mesmos e nos colegas. Eles contam apenas com si próprios para evitar uma degradação ainda mais importante da saúde. Diante desse contexto organizacional, acaba surgindo um ambiente fortemente regido pelo sentimento de colaboração e cooperação mútua. Como afirmam Dejours, Abdouchelli e Jayet3131. Dejours C, Abdouchelli E, Jayet C. Psicodinâmica do trabalho: contribuições da escola dejouriana à análise da relação prazer, sofrimento e trabalho. São Paulo: Atlas; 1994. (p. 128) “diante de uma atitude provocativa, os empregados podem se colocar em posição de agentes ativos ao invés de vítimas passivas para gerir as estratégias defensivas”. Dessa forma, por meio de regulações quentes, cotidianamente os assistentes de produção tratam as variabilidades que encontram, rompendo com as normas prescritas da organização, adotando outros sistemas de rotação, criando pausas ou obtendo a ajuda dos colegas. Em outras palavras, esses trabalhadores “renormalizam” a atividade, dando um sentido próprio a ela.

No campo da ergologia, renormalizações se dão quando há um desencontro entre os valores que permeiam as normas antecedentes e os valores dos trabalhadores. Na verdade, de acordo com Schwartz3232. Schwartz Y. Reflexão em torno de um exemplo de trabalho operário. In: Schwartz Y, Durrive L (Org.). Trabalho & Ergologia: conversas sobre a atividade humana. 2. ed. Niterói: Eduff; 2010. p.37-46., qualquer que seja a situação, haverá sempre uma negociação da atividade com as normas anteriores a ela. O autor afirma que essa negociação é fundamentada nos valores das pessoas, e são justamente esses valores que levam à atualização das normas, ou às renormalizações.

Tais valores, que determinam as renormalizações dos trabalhadores, devem ser considerados pela gestão de qualquer sistema de trabalho. A perspectiva das organizações atuais é saber aproveitar o potencial de aprendizagem intrínseco às renormalizações para a melhoria dos processos organizacionais formais3333. Gomes Júnior AB, Schwartz Y. Psicologia, saúde e trabalho: da experiência aos conceitos. Psicol Est. 2014;19(2):345-351.. Em outras palavras, a grande questão é saber criar dispositivos nos quais as regulações frias sejam bem alimentadas pelas regulações quentes1111. Carballeda G. La contribution des ergonomes à l’analyse et à la transformation de l’organisation du travail: l’exemple d’une intervention relative à la maintenance dans une industrie de processus continu. Bordeaux. Thèse [Doctorat d’Ergonomie] - Université de Bordeaux; 1997.. Os autores Terssac e Lompré1212. Terssac (de) G, Lompré N. Pratiques organisationnelles dans les ensembles productifs : essai d'interprétation.I In: Spérandio JC (Org.). L'ergonomie face aux changements technologiques et organisationnels du travail humain. Toulouse: Octarès; 1996. p. 51-66. indicam que, nas empresas atuais, fortemente influenciadas pela organização científica do trabalho, observa-se a produção de regulações frias por gestores e, dessa forma, a produção de novas regras para controlar situações não adaptadas do campo. No entanto, no retorno ao campo, os gestores observam problemas muito similares àqueles ocorridos antes da regulação fria (e da nova regra) ser produzida. Assim, modifica-se a estrutura organizacional, por meio da alteração das regras, esperando que isso vá modificar as interações entre as pessoas, relação essa que não é direta. Isso ocorre por uma razão principal: os trabalhadores que participam das regulações frias não são os mesmos que participam das regulações quentes. Novas regras são, então, criadas, mas elas continuam desconectadas da realidade. O objetivo maior da gestão e de pesquisas sobre o trabalho deve ser, portanto, criar dispositivos que possibilitem o desenvolvimento da estrutura organizacional por meio de elementos concretos da organização viva do trabalho. Em outros termos, é necessário partir das práticas de trabalho para estabelecer regras pertinentes, e não o inverso.

Diversos consultores de empresas buscam, muito frequentemente, modificar a estrutura e as regulações frias sem, necessariamente, trabalhar nas interações e nas regulações quentes3434. Rocha R. Du silence organisationnel au débat structuré sur le travail: les effets sur la sécurité et sur l’organisation. Bordeaux. Theèse [Doctorat en Sciences Cognitives et Ergonomie] - Université de Bordeaux; 2014.. Ora, como discutido neste relato, a atividade coletiva é uma articulação entre as regulações frias e quentes. Podemos perfeitamente modificar a estrutura organizacional, mas se as interações ou a atividade social dos atores não estão suficientemente prontas, haverá grandes chances que a organização viva continue a funcionar provavelmente da mesma forma que funcionava antes da intervenção, e que as proposições feitas pelos consultores não sejam levadas em consideração pelos trabalhadores3535. Daniellou F, Jackson M. L’ergonomie intervient dans et sur des situations de gestion. Performances Humaines et Techniques. Sept. 1997; numéro hors; 16-20.. Inversamente, se os consultores começam a refletir junto aos trabalhadores a respeito de uma nova organização, as relações entre eles necessariamente mudarão. Eles começam a conversar entre si e a criar laços que não existiam anteriormente. Isso que dizer, então, que a organização viva e as interações começam a se (re)construir antes da modificação da estrutura. E assim elas estão mais prontas para a modificação estrutural99. Lima FPA. Ergonomia e projeto organizacional: a perspectiva do trabalho. Produção. Dez. 1999; 9(SPE):71-98.), (1111. Carballeda G. La contribution des ergonomes à l’analyse et à la transformation de l’organisation du travail: l’exemple d’une intervention relative à la maintenance dans une industrie de processus continu. Bordeaux. Thèse [Doctorat d’Ergonomie] - Université de Bordeaux; 1997..

Algumas pesquisas em ergonomia já trabalharam sob essa perspectiva. Citando alguns trabalhos mais recentes, Rocha3434. Rocha R. Du silence organisationnel au débat structuré sur le travail: les effets sur la sécurité et sur l’organisation. Bordeaux. Theèse [Doctorat en Sciences Cognitives et Ergonomie] - Université de Bordeaux; 2014., numa empresa de distribuição de energia elétrica, produz espaços de debate sobre o trabalho baseados no desenvolvimento do poder de agir dos trabalhadores, em diferentes níveis hierárquicos da empresa. Nascimento3636. Nascimento A. Produire la santé, produire la sécurité: développer une culture de sécurité en radiothérapie. Paris. Thèse [Doctorat d’Ergonomie] - Conservatoire National des Arts et Metiers; 2009. cria o método de “Julgamento Diferencial de Aceitabilidade” (Jugement Différentiel d’Acceptabilité), realizando uma démarche participativa no meio médico alicerçada em “allo-confrontações” e na discussão do trabalho. Petit e Dugué3737. Petit J, Dugué B. Structurer l’organisation pour développer le pouvoir d’agir: le rôle possible de l’intervention en ergonomie. Activités. 2013;10(2):210-228. Disponível em: https://activites.revues.org/816
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) associam as confrontações com o desenvolvimento da aprendizagem cruzada, que permite, tanto a projetistas quanto aos operadores, a aprendizagem do trabalho do colega. Arnoud e Falzon3838. Arnoud J, Falzon P. La co-analyse constructive des pratiques. In: Falzon P. Ergonomie constructive. Paris: PUF; 2013. p. 223-236. propõe um método de “coanálise construtiva de práticas”, que consiste na confrontação de práticas dos operadores de ofícios diferentes, mas de mesmo objeto de trabalho, por intermédio de visitas cruzadas organizadas durante o desenvolvimento da atividade.

Trabalhos como esses se fundamentam nas “interações entre os operadores em situações de trabalho comuns entre eles” (1313. Petit J. Organiser la continuité du service: Intervention sur l’organisation d’une Mutuelle de santé. Bordeaux. Thèse [Doctorat d’Ergonomie] - Université de Bordeaux; 2005. (p. 264). Eles partem do “baixo em direção ao alto”, em métodos do tipo bottom-up, ao invés de partir do “alto em direção ao baixo”, como em métodos do tipo top-down. Essa é decerto a maneira mais eficaz de se produzir e organizar uma atividade coletiva.

Conclusão

O caso apresentado neste relato comporta, por um lado, um rico conjunto de regulações quentes produzidas por um coletivo de trabalho para reduzir a sobrecarga de trabalho incidente sobre os indivíduos, e, por outro, regulações frias, ou a produção de regras formais não condizentes com a realidade de trabalho pela equipe. Devido à sobrecarga a que estão expostos, as regulações quentes não podem ser vistas como uma forma de proteger a saúde dos indivíduos, mas uma maneira de buscar se reduzir a astreinte na equipe. Embora sejam extremamente ricas e garantam a produção da empresa, as regulações desenvolvidas pelos assistentes são insuficientes para, de fato, proteger a saúde deles.

Para que essa situação evolua no sentido de pensar em situações que eliminem a sobrecarga e, de fato, proteja a saúde da equipe, ou para que trabalhadores tenham a possibilidade de regular de forma efetiva a carga de trabalho imposta, é necessário que a gestão dê condições para que eles tenham margens de manobra suficiente para isso. Ao mesmo tempo, é pertinente pensar em dispositivos que possam organizar a atividade coletiva de forma a conectar as regulações frias com as regulações quentes. Uma atividade coletiva, mesmo que desenvolvida em pequenos grupos, deve estar amparada pela gestão, através da criação de regras e práticas formais alinhadas com as práticas de trabalho desenvolvidas pelos indivíduos que compõe o grupo. Vista dessa forma, a atividade coletiva torna-se uma articulação entre regulações quentes e frias, possibilitando o aumento da margem de manobra e da saúde dos trabalhadores.

Para que as organizações, as pesquisas e as consultorias em empresas avancem, é fundamental que gestores, pesquisadores e consultores incorporem em seus trabalhos a perspectiva de uma organização que comporta essas duas facetas: a de uma estrutura que produz regulações frias e a de uma organização viva que produz regulações quentes. É ainda mais urgente que esses trabalhos promovam a articulação desses vieses, por meio de dispositivos práticos que possam alimentar regras e ferramentas de gestão por intermédio do vivo, do real e do concreto da atividade de trabalho.

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  • O autor informa que o estudo não foi apresentado em reuniões científicas.
  • b
    Por se tratar de conceitos poucos discutidos no Brasil e de difícil tradução literal, decidimos, neste texto, manter os termos em francês.
  • c
    Neste trabalho, os termos “Paletização Manual” e “Despaletização Manual”, com as iniciais maiúsculas, fazem referência aos nomes dos postos de trabalho. Os termos com as iniciais minúsculas se referem às atividades em si. Essa regra também é válida para os termos “Canudo” e “Organização dos paletes”.
  • d
    Os caminhões de bebida retornam frequentemente as garrafas vazias do mercado com os canudos deixados pelos consumidores no interior das garrafas.
  • e
    A palavra do original francês “co-action” é diferente da palavra “coação”, em português. Segundo o dicionário Aurélio, “coação” significa “constranger”, “forçar pela lei ou pela violência”. Por esse motivo, e para evitar qualquer tipo de confusão na tradução do termo, o hífen foi mantido na palavra “co-ação”, em português.
  • f
    Ao trazer essas definições, Caroly cita diferentes autores que a discutem de forma mais aprofundada.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2017

Histórico

  • Recebido
    02 Fev 2016
  • Revisado
    21 Jul 2016
  • Aceito
    02 Ago 2016
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