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Direito à educação pública, democracia e lutas sociais

O dossiê Direito à educação pública, democracia e lutas sociais põe em debate problemas essenciais da Educação Pública no Brasil - mesmo porque, como se verá em seus artigos, estamos em situação de perda das conquistas realizadas. As questões que traz à tona são duras não porque os autores dos artigos tenham simplesmente privilegiado aspectos difíceis em sua análise; são duras porque assim é a materialidade na qual estamos engastalhados historicamente e que generosamente os pesquisadores colaboram para elucidar. Os fios que sustentam as investigações dizem respeito à função social da escola pública - da básica à superior - e ao caráter derrisório das políticas oficiais a ela destinada. Neste dossiê, a maior parte dos autores examina as políticas sociais, entre elas as educacionais, brasileiras após a década de 1990. Embora com dissensões, os investigadores atribuem às orientações econômicas e políticas derivadas do projeto neoliberal, dos governos de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) a Michel Temer (agosto de 2016-2018), a responsabilidade pelas contrarreformas em andamento nas políticas sociais, em particular, nas educacionais.

De modo instigante, indica-se ao leitor os vários âmbitos que sufocam a escolarização do brasileiro: o ensino básico de baixa qualidade; a formação precária da juventude nos níveis médio e superior; o preparo do professor sob uma perspectiva pragmática; o trabalho docente largamente precarizado; os projetos que pretendem amordaçar a escola; os cortes no financiamento que a atingem pela via de planos de educação e de leis regressivas. São muitas as estratégias de demolição da escola pública no país. Os pesquisadores - lastreados em cuidadosas pesquisas empíricas e reflexões teóricas - se debruçam sobre elas para desmontá-las e oferecer a nós, seus leitores, um campo progressivamente cristalino de percepção no qual desfraldam o papel crucial do Estado e dos Aparelhos Privados de Hegemonia, em ação na Sociedade Civil, na proposição de políticas educativas. Realçamos a presença, na maior parte dos percursos analíticos, da obra de Marx e de autores vinculados à tradição marxista - Gramsci, Mészáros, Fernandes, Lukács, Marini, Bambirra, Löwy, Mariátegui, entre outros - e o louvável esforço feito para não abstrair a esfera educativa de suas determinações mais gerais, quais sejam as relações capitalistas de produção e reprodução da existência humana e seus desdobramentos perversos sobre o trabalho e a escolarização.

Das onze publicações temáticas, três estão diretamente relacionadas ao direito à educação no âmbito da realização da democracia e de suas relações com o Estado. No artigo Disputas político-econômicas em torno da democratização educacional brasileira no século XXI, Carlos Felipe Nunes Moreira reflete sobre a contrarreforma do ensino médio, centrada no atendimento de exigências dos setores empresariais e limitada a uma “política focal”. Tendo em vista adequar a formação intelectual juvenil ao mercado de trabalho e despolitizar tanto a organização estudantil quanto docente, o projeto em curso restringe a formação em nível médio. Moreira entende que sem luta organizada não será possível romper com a hegemonia burguesa e que sua pauta deveria conter a democratização escolar sob vários aspectos: garantia de acesso e permanência; qualidade do ensino; mudanças pedagógicas. De seu ponto de vista, a área de Serviço Social tem importante contribuição a oferecer, tanto no que se refere à denúncia das condições que o capitalismo impõe aos jovens e seus direitos sociais quanto na superação da ordem capitalista.

Tomando para estudo a problemática da democracia, Doracy Dias Aguiar de Carvalho e Roberto Francisco de Carvalho, em Democracia e direitos sociais: histórico e implicações para as políticas educacionais brasileiras, assinalam que o conceito democracia enfrenta disputas permanentes no capitalismo em razão do embate entre classes sociais antagônicas. A democracia representativa, liberal, e a democracia substantiva, socialista, conformam diferentes concepções de sociedade e de direitos sociais. Na conjuntura pós1990, o Estado, articulado ao Imperialismo, financiou o desmonte de direitos conquistados pela classe trabalhadora, particularmente no que tange à área educacional. A despolitização referida por Moreira reaparece como fenômeno na Sociedade Civil, entendida pela democracia liberal como esfera isenta de litígios, litígios que de fato a concretizam. As lutas pela preservação de direitos duramente conquistados e, mesmo, por direitos formalmente concedidos são fundamentais, posto que estão sob a mira da burguesia e podem ser destruídos ou simplesmente transformados em mercadorias. A despeito do quadro regressivo e de sua complexificação atual, o projeto educativo de caráter nacional-popular, articulado à construção da democracia socialista, está na ordem do dia. Isso significa trabalhar para que uma nova sociabilidade se instaure, na qual a emancipação humana seja o horizonte das relações entre economia e política.

Mônica Regina Nascimento dos Santos Correio, em Estado, educação e direitos sociais, assinala que as questões ligadas aos direitos humanos - como as inúmeras formas de violação de direitos dos indivíduos - assomam contemporaneamente como problema pertinente à herança liberal. De um lado, de seu ponto de vista, após 1848 a ideia de direitos humanos suplantou a utopia revolucionária; de outro, essa utopia deu lugar a práticas articuladas aos direitos humanos como defesa de direitos do indivíduo descolado de sua inserção de classe. Sem perder de vista essas determinações, a autora assinala que a luta pelos direitos humanos vem mantendo conquistas importantes, ainda que mínimas e, não raro, restritas a alguns grupos. Como resultado do levantamento de produção teórica sobre o tema, destaca duas vertentes de análise: uma que tece críticas aos limites que tal defesa comporta e outra que considera possível inseri-la em uma perspectiva contra-hegemônica de direitos humanos. Sobreleva em sua análise o fato de que, no âmbito das políticas educacionais e da esfera estatal, vivemos em pleno século XXI a busca da consolidação de direitos humanos que parecem óbvios.

Na sequência do dossiê estão cinco artigos relativos aos aspectos formais da realização do direito à educação em todos os níveis, entre eles o sistema e os planos nacionais de educação. No texto A educação básica brasileira em disputa: doutrinação versus neutralidade, Ana Cláudia Rodrigues de Oliveira, Fabio Lanza e Letícia Jovelina Storto recuperam a trajetória do movimento Escola sem Partido (ESP) a partir de 2004, quando foi fundada por Miguel Nagib e em tramitação em vários entes federados. Na documentação coligida e examinada com base na análise crítica do discurso, evidenciou-se a forte presença das noções de “doutrinação ideológica” e “neutralidade do ensino” com repercussões desastrosas sobre a função social da escola e os conceitos de conhecimento e educação, entre outros. Sem pejo, o ESP propõe o cerceamento da prática docente, bem como o controle do ensino da Sociologia no ensino médio, admitindo, no caso da cidade de São Paulo, apenas o conhecimento sociológico positivista e cientificista cujo objetivo último é reproduzir o projeto societário vigente. Semelhante perspectiva atinge diretamente o trabalho e a formação docente que, historicamente, sofrem tentativas de controle em razão de serem considerados uma ameaça. Desintelectualizar alunos e professores é parte do projeto político hegemônico de contenção de propostas que ponham em questão a sociedade capitalista.

Em Educação e trabalho no Brasil: a perspectiva defendida pelo capital para a formação dos trabalhadores, Jaime Hillesheim e Adir Valdemar Garcia examinam o Plano Nacional de Educação (20012011) do governo Fernando Henrique Cardoso, o Plano de Desenvolvimento da Educação (2007) do governo Lula e o Plano Nacional de Educação (2014-2024) de Dilma Rousseff. Em acordo com outros articulistas deste dossiê, consideram que vivemos um processo de regressão de direitos, resultado da crise capitalista que se agravou enormemente após 2008; nossa economia, periférica e dependente, avança célere na ampliação da desigualdade social. Chamam ainda a atenção para o fato de que o direito à escola pública subordina-se aos interesses do mercado. No ensino profissional e técnico, na educação de jovens e adultos, no ensino médio ou no ensino superior, jovens são formados sob os slogans da empregabilidade, do empreendedorismo, da autonomia, da competitividade. Tal situação põe sob escrutínio a relação entre trabalho e educação e traz à tona as formas objetivas e subjetivas de subordinar os trabalhadores aos interesses de produção e reprodução da sociedade capitalista. Ao analisarem as políticas educacionais no período entre 2003 e 2015, focam a reflexão precisamente nesta relação, concluindo que a educação dos trabalhadores se vincula inexoravelmente aos marcos da sociabilidade burguesa subjacente ao “exercício da cidadania”. Uma contribuição importante dos autores está na demonstração de que estamos frente à centralidade da escolarização como mediadora do preparo do trabalho para o capital.

Benedito de Jesus Pinheiro Ferreira, em Educação pública como direito social: desafios para a construção de um sistema articulado no Brasil, analisa a educação como direito social e bem público, fundamental para a emancipação humana, apresentando a literatura produzida nos marcos da pedagogia histórico-crítica, cujo autor por excelência é Dermeval Saviani. De um lado, discute as determinações mais gerais da escola pública brasileira, entre as quais se projeta o problema do financiamento público; de outro, as possibilidades objetivas de uma práxis educativa emancipatória. Para o autor, três questões cruciais precisam ser pensadas: a necessidade de um sistema nacional de educação; os obstáculos decorrentes do subfinanciamento público à Educação Pública; e a hegemonia de pedagogias burguesas, a exemplo da vertente tão em voga do aprender a aprender. De fato, os três problemas assinalados minam a função social da escola: viabilizar a apropriação ativa do conhecimento científico historicamente produzido pela humanidade. Dessa ótica, colocase na ordem do dia a defesa da Educação Pública, direito social, inescapável parte do projeto emancipatório. Para tanto, é necessária a produção de conhecimento objetivo sobre a educação de modo a que suas relações contraditórias com o capitalismo periférico sejam esclarecidas e possam lastrear um projeto social de emancipação humana, para o qual é fundamental a luta coletiva.

Conquanto a burguesia não considere a Universidade ou o ensino superior um direito inerente à formação humana, é nesse plano que Kátia Regina de Souza Lima, no artigo Educação superior em tempos de ajustes neoliberais e regressão de direitos, e Mailiz Garibotti Lusa, Tiago Martinelli, Samara Ayres Moraes e Tiago Pacheco Almeida, em A universidade pública em tempos de ajustes neoliberais e desmonte de direitos, a colocam. Lima abre um provocante debate sobre o que denominou “fases da contrarrevolução neoliberal”: a referente aos governos Lula e Dilma (2003-2016), cuja marca foi a conciliação de classes; e a relativa ao governo Temer (2016-2018), na qual se aprofundam as desigualdades econômicas e se retiram direitos dos trabalhadores. As políticas públicas desencadeadas nesse período - “ajuste fiscal, pagamento dos juros e amortizações da dívida pública e ataque aos direitos sociais” - atingiram a educação superior e o Estado desencadeou processos violentos para sua privatização exponencial. Para a autora, estamos diante de “uma nova etapa da luta de classes no País”. Com essa conclusão concordam Lusa, Martinelli, Moraes e Almeida ao afirmarem que o ensino superior, historicamente, é objeto de disputa entre projetos políticos distintos. Na arena estão aqueles comprometidos com um projeto transformador de educação e aqueles que sustentam a ofensiva neoliberal e a retirada de direitos. Os autores consideram possível fortalecer a resistência à hegemonia burguesa, sendo a universidade pública fundamental, pois configura-se como âmbito de intervenção para professores, pesquisadores e estudantes comprometidos com esse projeto, seja no ensino, na pesquisa ou na extensão. O desmonte da Educação Pública no Brasil, particularmente no governo Bolsonaro, está em andamento e pode ser entendido como resposta à demanda do capital de formação de trabalhadores. Entretanto, os governos pós1990 é que desencadearam esse tipo de resposta à crise estrutural do capital. Assim, atacar as universidades públicas e ecoar as diretrizes de organismos internacionais fazem parte desta reposta e sua privatização está no horizonte, embora a oferta majoritária de matrículas já esteja na esfera privada.

Encerrando esse campo de discussão estão dois temas genericamente nomeados como chão da escola. Fábio Machado Pinto e Lara Beatriz Fuck, em Da relação com o saber medicalizante às práticas escolares em Florianópolis, discutem os modos pelos quais a medicalização gera consequências para o trabalho escolar cumprindo a função ideológica de obscurecer as desigualdades sociais presentes na instituição. Os autores salientam que dificuldades apresentadas pelos alunos para a realização de atividades diversas ou em sua relação com os saberes escolares podem ser consideradas “transtornos mentais e psicológicos”. Deriva desse diagnóstico um tratamento medicamentoso, configurando justamente o “processo de medicalização” com consequências sobre o (in)sucesso escolar. Os autores citam o caso do estado de Santa Catarina que ocupou o sexto lugar em consumo de Ritalina entre 2009 e 2014. Depois de um levantamento da produção na área da Sociologia da Educação no tocante ao tema e às políticas educacionais e de saúde, associado ao estudo empírico, problematizase o conceito de medicalização baseado em referências sartreanas. Constatou-se haver crescente interesse sobre o tema, assim como a predominância de uma abordagem multidisciplinar e crítica nas análises a ele relativas. Finalizam afirmando que, munido da psicologia histórico-cultural, é possível compreender as bases patologizantes e biologizantes de tais práticas e buscar sua superação nas escolas públicas.

Rosângela Araújo Darwich e Maria Lúcia Dias Gaspar Garcia, no artigo Grupos vivenciais e permanência com sucesso na escola: conquista de direitos, debatem a relação entre grupos vivenciais não coercitivos e a possibilidade de se desenvolver habilidades sociais entre estudantes do ensino médio público, tendo em vista construir respostas para o desafio da transformação pessoal e relacional articuladas à necessidade de permanência na escola. De sua ótica, habilidades sociais conectam-se às competências sociais, entre as quais contabilizam a “assertividade”, a “empatia” e a “solução de problemas”, genericamente compreendidas como “desenvolvimento emocional e interpessoal”. Por essa via, as autoras defendem que ações embasadas em confiança e respeito geram civilidade, cidadania e democracia, assegurando o direito à educação. Ao contrário dos outros autores, defendem a necessidade de se acreditar na qualidade das relações que se estabelecem tanto na escola como socialmente tendo por diretriz a constituição das habilidades sociais.

Encerra o dossiê um fecundo estudo sobre possibilidades educativas além da escolarizada. No artigo América Latina no século XX: revoluções, muralismos, imperialismo e dependência, Roberta Sperandio Traspadini indaga: “o que o muralismo mexicano tem a nos ensinar no século XXI?”. Reunindo os muralistas mexicanos modernos David Siqueiros, Diego Rivera e Clemente Orozco a uma abordagem teórica lastreada na teoria marxista da dependência, explora o potencial educativo dos murais no que tange às lutas políticas na América Latina e Caribe. A autora demonstra como o engajamento político da imagem, da música e da poesia foi nos anos de 1960 e 1970 - e permanece - vital para a educação política em movimentos populares socialistas, ressaltando também as estratégias da hegemonia do capital para sua contenção. Cita, à guisa de exemplo, o “memoricídio, genocídio e etnocídio” derivados não só da invasão colonial, como dos inúmeros processos ditatoriais e autoritários que se seguiram historicamente na região. De outro lado, propõe um debate acerca do uso dos espaços públicos, da cidade, como suportes para a crítica às relações sociais de produção capitalista. Sob a forma de murais ou grafites, pode-se envidar a reflexão crítica acerca do imperialismo na América Latina e Caribe e dos meios para sua superação.

Vê-se que o presente dossiê é pródigo nas questões complexas que sugere para seus leitores discutirem. O espectro de problemas abordados, referentes às políticas sociais brasileiras - com atenção particular à Educação Pública - configura-se como fulcral e deve ser compreendido no âmbito da totalidade que lhe dá sentido. Reafirmo que as questões assomadas são duras porque, entre outras razões, uma profunda alienação recobre a capacidade da maioria de compreender onde desaguaram as determinações econômicas desses últimos 40 anos. Enfrentamos no Governo Bolsonaro o recrudescimento da retirada de direitos da classe trabalhadora; o desmantelamento das políticas sociais; a criminalização dos movimentos sociais; o ataque ao meio ambiente; e a destruição da escola pública em todos os níveis. Não obstante, milhares foram às ruas, no primeiro semestre de 2019, em defesa da Educação Pública e da Previdência Social, entre outros movimentos políticos simultâneos no território nacional. Não é possível negar as relações capitalistas de produção subalternas, imersas na barbárie imperialista, nas quais vivemos. Contudo, a despeito da dureza evidenciada nos trabalhos ora publicados, os pesquisadores acenam com as possibilidades de superação dessa situação; mostram que as contradições de nosso capitalismo, periférico e dependente, portam projetos sociais alternativos; que a classe trabalhadora tem saídas; que estão à nossa disposição a música, a poesia, a imagem, o espaço, o tempo, a organização e a teoria revolucionária. Impõe-se ir à luta.

Olinda Evangelista, Florianópolis, 26 de agosto de 2019.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Nov 2019
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2019
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