Open-access Primeira internação psiquiátrica na visão dos familiares

First psychiatric hospitalization in the view of families

Première hospitalisation psychiatrique selon la vision des membres de la famille

Primera hospitalización psiquiátrica desde el punto de vista de las familias

O objetivo deste artigo é analisar a primeira internação em hospital psiquiátrico especializado, a partir da narrativa dos familiares. Pesquisa qualitativa, descritiva e analítica, com entrevistas semiestruturadas com familiares de pessoas internadas. Identificamos que o familiar percebe algum estranhamento anterior à crise, e é ele que permanece à frente do cuidado até a internação, culminando com a internação direta através da emergência do próprio hospital especializado, apontam desconhecer a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). E, por conseguinte, os serviços territoriais de saúde mental não participam no manejo da crise. Os familiares criticam o cotidiano ocioso do hospital, bem como a passividade e o desconhecimento dos pacientes frente ao tratamento. Os familiares são os agenciadores da rede assistencial após o encaminhamento.

Palavras-chave: Hospitais psiquiátricos; relações familiares; intervençãona crise; acolhimento


Resumos

The aim of this work was to analyze the first admission to a specialized psychiatric hospital based on narratives of family members. Qualitative, descriptive, and analytical research, using semi-structured interviews with relatives of hospitalized individuals, was performed. We have identified that family members perceive some strangeness prior to the crisis, and that they are the ones who take care of the individual until the hospitalization. Upon arriving at the specialized hospital emergency room, family members report not having prior knowledge of the Psychosocial Care Network (PSCN). And, therefore, territorial mental health services do not participate in managing the crisis event. Family members criticize the hospital’s idle daily life as well as the patients’ passiveness and ignorance regarding treatment. Family members are the assistance network agents for referral after hospital discharge.

Key words: Psychiatric hospitals; family relationships; crisis intervention; patient’s welcome

Le but de cet article est d’analyser la première admission dans un hôpital psychiatrique spécialisé à partir du récit des membres de la famille. Cette recherche est qualitative, descriptive et analytique, elle est basée sur des entretiens semi-structurés avec des proches de personnes hospitalisées. Nous avons identifié que le membre de la famille qui perçoit une certaine distanciation avant la crise prend en charge les soins jusqu’à l’hospitalisation, aboutissant à une hospitalisation directe par l’urgence du propre l’hôpital spécialisé. Ce membre souligne qu’il ne connaît pas le Réseau de Soins Psychosociaux (RAPS). Par conséquent, les services de santé mentale territoriaux ne participent pas à la gestion de la crise. Les membres de la famille critiquent la vie quotidienne oisive de l’hôpital ainsi que la passivité et l’ignorance des patients concernant le traitement. Les membres de la famille fonctionnent comme agents du réseau de soins après l’orientation psychiatrique.

Mots clés: Hôpitaux psychiatriques; relations de familiales; intervention en cas de crise; accueil


El propósito de este artículo es analizar, a partir de la narrativa de los familiares, la primera hospitalización en un centro psiquiátrico especializado. Se trata de una investigación cualitativa, descriptiva y analítica, con entrevistas semiestructuradas a familiares de personas hospitalizadas. Identificamos que el familiar nota cierta extrañeza previa a la crisis y es él quien permanece a cargo de los cuidados hasta la hospitalización, culminando en la hospitalización directa a través de la emergencia del propio centro especializado y señalando que desconocen la Red de Atención Psicosocial (RAPS). Y, en consecuencia, los servicios territoriales de salud mental no participan en la gestión de la crisis. Los familiares critican la ociosidad de la rutina del hospital, así como la pasividad e ignorancia de los pacientes con respecto al tratamiento. Los miembros de la familia son los agentes de la red de atención después de la derivación.

Palabras clave: Hospitales psiquiátricos; relaciones familiares; intervencion en la crisis; acogida


Introdução

A Reforma Psiquiátrica Brasileira foi uma conquista da luta de trabalhadores e usuários dos serviços de saúde mental e desenvolveu-se como um processo histórico, a partir da lei 10.216 de 2001 que redirecionou o modelo assistencial e dispôs sobre os direitos dos usuários de serviços de saúde mental.

Segundo dados do Ministério da Saúde, a portaria 336 de 19 de fevereiro de 2002, que regulamenta os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) no Brasil, até o ano de 2017, o número de CAPS habilitados e em funcionamento no país subiu de 424 para 2032 (Moreira & Schramm, 2018). Já os leitos psiquiátricos, de 2002 a 2014, caíram de 51.393 para 25.988 (Alves & Escossia, 2018).

Um dos objetivos dos CAPS é sustentar o acolhimento à crise no território, protegendo os vínculos sociofamiliares e evitando o sofrimento subjetivo causado pela experiência da institucionalização.

Com a Lei 13.840, houve mudança de orientação de conduta, normatizando em favor de internações em hospitais especializados, que redirecionou o modelo assistencial para a internação em hospital especializado, impedindo o fechamento de mais leitos e aumentando o valor da Autorização de Internação Hospitalar/AIH. Também, regulou o financiamento das Comunidades terapêuticas, como exemplo de internação para os casos de dependência química (Brasil, 2020).

Apesar das mudanças estabelecidas na Lei 10.216 que direcionam o cuidado para a capilaridade do território através dos CAPS como ordenadores da Rede de Atenção Psicossocial, há situações de crise vivenciadas pelos pacientes que têm sido manejadas por dispositivos manicomiais, como se os recursos da atenção psicossocial se dirigissem apenas aos casos crônicos ou aos estabilizados. Com isso, casos de primeira internação vêm sendo diretamente encaminhados aos hospitais psiquiátricos, rompendo com a lógica do território e, consequentemente, com os laços sociais que sustentam esse sujeito na vida.

Os sinais inicias da doença mental ou do sofrimento psíquico podem demorar cerca de dez anos, até o acesso a um local de atendimento em saúde, e, nesse percurso, a vida de relações, do sentimento coletivo, da solidariedade, vai se adaptando e empobrecendo (Teixeira et al., 2020). Neste estudo, temos como objetivo analisar a experiência da primeira internação do usuário em saúde mental no hospital psiquiátrico através da narrativa de seus familiares.

Metodologia

Pesquisa, de natureza qualitativa, descritiva, que analisou a narrativa dos familiares de uma pessoa que passou pela a primeira internação psiquiátrica. Aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) do Instituto de Psiquiatria – IPUB, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, através do número CAAE 65789817.4.0000.5263. Teve início com a realização de um levantamento das internações de primeira vez no hospital em estudo, até a saturação teórica dos dados e utilizou-se a análise temática para tratamento dos dados empíricos.

Livros de estatística das enfermarias e prontuários dos pacientes como fontes primárias, acrescidos das entrevistas semiestruturadas com os familiares que estiveram envolvidos com o processo de internação. O número total de sete entrevistas, realizadas individualmente, foi determinado pelo critério de saturação teórica dos dados empíricos, submetidos à análise temática.

E, através das narrativas da família do sujeito internado, pôde-se co- nhecer o caminho inverso do cuidado territorializado, ou seja, a sequência de fatos inversos ao cuidado em saúde mental, e que culminaram na primeira internação em hospital especializado, sem atuação dos dispositivos assistenciais da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS).

O cenário do estudo foi um hospital psiquiátrico, público, universitário que compõe a RAPS do município do Rio de Janeiro e que possui 101 leitos para internação.

Entrevistas ocorreram fora da instituição hospitalar, uma no CAPS, devido à proximidade da residência do familiar, e outra na residência do entrevistado por falta de recurso do mesmo para deslocamento até a instituição.

Gravadas em arquivo de áudio mediante autorização, transcritas tiveram a duração média de 30 minutos. Foram sistematizadas e analisadas através da análise de conteúdo, na modalidade temática (temas), o que leva ao uso de sentenças, frases ou parágrafos como unidades de análise (Minayo, 2016).

No intuito de preservar o anonimato, os participantes, foram identificados com algarismos romanos.

Resultados

Este artigo se propôs a questionar, com perplexidade, através de familiares de usuários que a internação rompe radicalmente com a noção de território e de todos os conceitos diversos de integralidade e de diálogo terapêutico nela incluídos.

Os familiares apresentaram uma distribuição equitativa em relação ao sexo, e a composição variou entre pais, irmãos e cônjuges. Os familiares foram adultos de até cinquenta anos, e de proporção semelhante entre casados e solteiros. A escolaridade da maioria foi o nível médio completo.

Os depoimentos foram variados, na medida em que esse grupo era heterogêneo trazendo a experiência individual de cada familiar, suas vivências, mas todos registrando a distância geográfica como o fator que dificulta o acompanhamento dos usuários, agravada pela falta de recursos financeiros.

No início do mês ainda tem um dinheiro para as passagens, mas depois vai ficando difícil aí só eu que venho... (V)

Na análise das narrativas, surgiram três categorias: Impressões sobre a internação; Percepção de sinais de sofrimento psíquico e Conhecimento sobre os serviços de saúde, a seguir descritas.

Impressões sobre a internação

Observou-se, como aspecto positivo, uma adaptação à internação por parte dos familiares, considerando bom o tratamento no hospital, mas solicitando que não houvesse um longo período de internação.

No início fiquei com medo, mas depois ela ficou bem e é uma instituição psiquiátrica que me falaram ser muito boa, quero tratar dela em casa logo... (I)

Para familiares entrevistados, o hospital psiquiátrico garante um funcionamento em horário contínuo, uma melhor estrutura de equipamentos, “vigilância maior”, “monitoramento mais criterioso” e mais “observação”. Para esses familiares, fatores configuram maior capacidade de atender usuários em crises (Braga & Pegoraro, 2020).

Os familiares apontam também aspectos negativos, como “não gostar do hospital”, com um detalhe para uma queixa explícita, acerca da dificuldade de acesso aos profissionais, que nesse hospital constituem equipes multiprofissionais diferenciadas para grupos de pacientes internados e em dias específicos da semana:

... não gostei não, eles ficam muito soltos e só dão informação no dia da tal equipe... (VI)

Dentre possíveis entraves dessa comunicação está um engessamento do hospital, onde se impõe a adequação do paciente e do familiar, sem possibilidade de flexibilização das regras de funcionamento da assistência. O recebimento de informação sobre a situação do paciente possui importância para orientação do manejo clínico pelos familiares, e a sua ausência leva à insatisfação com a falta de informação recebida do médico, como observado (Braga & Pegoraro, 2020).

Nas respostas dos familiares sobre o tratamento, o enunciado que mais se repete é o estranhamento sobre a internação em hospital psiquiátrico especializado, relacionado com o fato de não terem sido informados sobre a transferência do local inicial de cuidado. E, detalhando que, após alguns dias nas emergências, ocorre a transferência, segundo avaliação e critério das equipes locais, e que não é discutida com os familiares.

... dois dias depois a transferiram para cá, disseram que ela precisava de mais tempo, só isso, não tive escolha... Quando cheguei fiquei assustada é muito diferente... (I)

Não autorizei nada, simplesmente fui informado, não precisava vir para esse lugar não... (II)

Outro fator que parece determinar a internação como recurso, é a dificuldade de contar com o suporte noturno dos CAPS III, bem como a baixa oferta de leitos de atenção psiquiátrica em hospitais gerais da rede do município.

É sabido que o cotidiano do cuidado de pacientes psiquiátricos com quadros agudizados, a agitação psicomotora é um quadro frequente, e o usuário pode colocar em risco funcionários e outros (Monteiro & Passos, 2020). Não obstante, os familiares reconhecem o posto de enfermagem como um local seguro e adequado para a permanência dos usuários internados (Teixeira et al., 2020).

Falo para ela sempre ficar perto do posto, lá parece mais seguro... (III)

As expectativas dos familiares quanto ao tratamento do usuário no hospital são ter segurança, tranquilidade e confiança; haver profissionais preparados; haver tratamento com alimentação, higiene e ambiência; não faltar o remédio que implique em melhora; que haja acompanhamento no pós-alta; que a alta ocorra com brevidade e que o usuário seja tratado com respeito, atenção e carinho, confirmando os achados em outras pesquisas na área (Oliveira et al., 2015).

Na literatura observou-se que a construção do cuidado com as famílias acontece a todo momento no dia a dia das práticas de saúde, seja em atividades formalmente estruturadas, seja nos encontros não planejados. É somente com o envolvimento de todos que se consegue mudar a forma de resposta à crise (Martins, 2017).

Ainda podemos citar a experiência exitosa do “Abordagem Open dialogue” (Florence, 2018), na Finlândia, em que através de uma conversa em roda a tomada de decisões sobre casos de paciente com primeiro surto psicótico migra dos profissionais de saúde para familiares em uma reunião ampliada, com a participação ativa do paciente e sua rede de apoio. Não por acaso se usa a roda como forma de reunião, porque nela não há ninguém no centro, ficando nesse espaço, aparentemente vazio, as ideias e os objetivos de todos os presentes. Nessas discussões diárias ou semanais nas casas dos usuários, se produz uma compreensão partilhada da vivência — sofrimento, no lugar do estabelecimento do diagnóstico e sintoma da doença. Não há acordos nem votações, mas construção de novos sentidos que aproximam verdade e formas humanas de viver.

A aproximação dos familiares com os serviços da rede de saúde mental acontece por indicação de terceiros, leigos. E o encaminhamento para o hospital especializado ainda obedece à regra das instituições de saúde, sem inserção na rede. Sem haver pactuaçao ou explicações aos familiares, a internação hospitalar continua apresentada aos familiares como o melhor local de acompanhamento.

... me falaram do CAPS... acho que é esse o nome, tenho um conhecido lá, vou ver o que consigo... ninguém me procurou não, eu que vou lá. (I)

Destaca-se que as internações poderiam ser evitadas se os usuários pos-suíssem vínculo com serviços da rede, que seriam capazes de identificar necessidade de cuidados de saúde mental e disponibilizariam a atenção adequada, sem implicar, obrigatoriamente, uma internação (Zanardo et al., 2017).

Percepção de sinais de sofrimento psíquico

Nesta categoria, os familiares relataram perceber sinais de estranhamento no comportamento do usuário antes da crise. É o rompimento da dinâmica familiar de proteção, que é frágil e centrada numa só pessoa, ou a perda da manutenção da proteção individual que leva à internação, na medida em que não há novos atores para assumir a proteção e o cuidado. Ou seja, a dinâmica familiar de proteção, seja na figura do pai ou da mãe, produz um tamponamento provisório, e nos usuáros uma sensação de suposto bem-estar, para si e para os outros membros da família. Os familiares conseguem localizar o possível início do adoecimento.

... ela sempre foi paradona assim, nunca estudou, nem trabalhou, vivia com a ajuda dos nossos pais. Eles que cuidavam dela... depois que eles morreram, deve ter uns 5 anos, cada irmão seguiu seu rumo... e sobrou para mim, porque sou solteiro e morava na casa também. Até que ela ficou muito suja, sem comer, eu também tenho que trabalhar, ficava pouco em casa. Aí trouxeram ela para cá. (III)

Devido à sobrecarga que vivenciam ao exercer o cuidado dos usuários, os familiares buscam a internação como suporte para a crise, dividindo a responsabilidade pelo tratamento e pelo paciente em si, conseguindo uma folga na grande demanda de cuidado que a crise apresenta. Essa centralização do cuidado e do cuidador já foram encontradas (Braga & Pegoraro, 2020).

Familiares cuidadores de pacientes com esquizofrenia apresentaram sobrecarga significativamente mais elevada. Apesar de esse problema ser frequente em diversas realidades, poucos programas são ofertados para fornecer apoio ao familiar (Li-Quiroga et al., 2015).

É sabido que existem profissionais diversos que constituem o corpo clínico de um hospital. Entretanto, o poder pela decisão da internação de um usuário, quando essa se faz necessária, encontra-se nas mãos do médico (Vides, 2018). Também foi evidenciado que a indicação para internação e a decisão, foram feitas por profissionais sem discussão e apresentação de argumentos a familiares.

A médica que me atendeu disse que ela tinha que ser internada, não sei se era o certo, mas ela era a médica e ainda disse que podia acontecer alguma coisa com minha irmã menor... (I)

Nos casos em que o familiar é pouco experiente no cuidado, como por exemplo um cônjuge, existe, por vezes, o desconhecimento do processo de adoecimento.

... de uns tempos para cá, talvez um ano, ficou estressada e nervosa com tudo, até com o menino... ela quebrou tudo e tentou colocar fogo com a gente dentro, e não falava coisa com coisa. (II)

Esse é um problema comum, porém há poucos programas que fornecem apoio ao cuidador familiar. Em países como Espanha e Chile, existem programas psicoeducacionais com monitoramento contínuo focado para diminuir o nível desse problema (Li-Quiroga et al., 2015).

Conhecimento sobre os serviços de saúde

Nesta categoria, os familiares relataram um desconhecimento dos ser- viços de saúde existentes na RAPS, e manifestaram o desejo de continuar o tratamento em local mais próximo às suas residências.

Estou vendo agora onde vou levar minha mãe para acompanhar, aqui é melhor, não falta médico, mas tem que ser perto... (I)

Ele faz tratamento no CAPS, há algum tempo, nunca precisou internar, mas não funciona de noite, e no domingo, quando ele precisou da internação... (VI)

A chegada às emergências psiquiátricas, em geral, acontece devido ao desconhecimento sobre a RAPS e a necessidade urgente de obter ajuda. Retratam o desconhecimento do funcionamento da RAPS por profissionais de saúde.

... não sabia onde ir, e fui lá na emergência, lá a médica que me atendeu disse que minha mãe estava muito grave e iria deixar ela internada. (I)

A internação psiquiátrica é a indicação feita em períodos que os comportamentos dos usuários colocam em risco sua própria integridade (moral e/ou física) ou de terceiros (Braga & Pegoraro, 2020).

A composição de uma rede de serviços integral atuante nos casos de crise, ainda necessita de investimentos. A falha de comunicação entre os serviços, dificuldade da divisão dos casos, baixo número de CAPS III, déficits de equipes, entre outras, têm contribuído para que o hospital continue aberto e seja a resolução dessas dificuldades (Roquette, 2019). Ou seja, os usuários que já estão inseridos nos serviços conseguem transitar pela rede de atenção psicossocial mais facilmente, mas a pessoa usuária de primeira internação, que até então está invisível à rede, por estar ainda exterior aos dispositivos assistenciais, termina por ser uma desconhecida numa rede desconhecida por ela e sua família.

Reconhece-se como fator importante a composição de bons vínculos no cuidado ao usuário em crise, por via do acolhimento. É ação fundamental no atendimento à crise o uso de metodologias relacionadas ao cuidado em saúde, pois tende a fortalecer o exercício do acolhimento e do vínculo, o que expande a eficácia das ações, ao beneficiar o conhecimento do usuário e seu engajamento na produção de estratégias de cuidado (Queiroz, Jardim & Alves, 2016).

Há familiares que nunca frequentaram uma Clínica da Família e nunca tiveram contato com agentes comunitários de saúde, ou, ainda, aqueles que são apenas cadastrados nas clínicas da família, numa função burocrática, mas sem nenhum acompanhamento, permanecendo cadastrados e desconhecidos das equipes responsáveis pelo cuidado no território.

Não conheço nenhum serviço de saúde mental; falaram de ambulatório, vou na clínica (da família), talvez saibam me dizer lá, já que me cadastraram... (II)

De fato, o exercício efetivo do matriciamento, como recurso promotor de ligação entre as equipes do CAPS, da Atenção Básica e com os usuários que serão acompanhados em seus territórios, teria potência para apontar soluções para a problemática levantada. Em território de matriciamento efetivo, intensificam-se as vinculações e o acolhimento, produzem-se novos acompanhamentos, com ampliação de parcerias e potencialização do cuidado. Com destaque o papel crucial do agente comunitário de saúde, pois o estranhamento decorrente do sofrimento psíquico, que ocorre em geral, dentro da comunidade, poderia ter funcionado como sinal de necessidade de contenção através da rede social local propiciando uma intervenção precoce, adiando a necessidade da primeira internação que, se necessária, seria acompanhada e gerenciada pela equipe efetiva do território (Lima & Dimenstein, 2016).

A partir das narrativas dos familiares, percebeu-se que não há qualquer diferenciação no cuidado ofertado para o usuário em situação aguda ou em crise, o paciente crônico ou aquele de primeira internação. A dinâmica do processo de trabalho é a mesma, sem que haja qualquer exceção ou priorização dos casos de primeira internação e os impactos de estar em uma instituição fechada disciplinadora, pela primeira vez.

O aspecto central das instituições totais pode ser descrito como a ruptura das barreiras que comumente separam as três esferas da vida — dormir, brincar e trabalhar — e todos os aspectos da vida são realizados no mesmo local e sob uma única autoridade. Todas as pessoas são tratadas da mesma forma e fazem as mesmas coisas (Goffman, 2019), e esta é uma forma agressiva de viver, diferente da leveza cotidiana em que parcerias diferentes se sucedem para as atividades diárias.

A crise é uma probabilidade de modificação e alteração, porém o sofrimento que a motiva é ignorado em sua complexidade, descontextualizado e diminuído a um sintoma de uma doença na maior parte das instituições psiquiátricas de internação. Dessa maneira, forma-se uma cadeia “crise--supressão-crise” que acaba por determinar sua emergência, as quais essa rede não dá conta de cuidar (Rosolem, 2016).

E ainda existem os entraves da RAPS, seja pelo desconhecimento ou encaminhamentos administrativos, como apontado por familiares. Um aspecto crucial para a concretização da função de substitutividade dos serviços, refere-se ao modo como as equipes operam nos componentes da RAPS. A qualificação das práticas e dos serviços é um elemento imprescindível à sustentabilidade da Reforma Psiquiátrica. Nesse sentido, a atenção à crise revela-se como um eixo estratégico do cuidado da RAPS, uma vez que sua viabilização, fora do circuito das internações nos hospitais psiquiátricos, garante a permanência dos usuários em seus contextos familiares e sociocomunitários, possibilitando a territorialização do cuidado e interrompendo o circuito de internações, segregações e cronificações tão conhecido.

Atenção à crise, assim como a ação na emergência em saúde mental, necessitam ser planejadas em conjunto com outros dispositivos, por exemplo a atenção primária. O fortalecimento da atuação e expansão dos CAPS III e dos leitos psiquiátricos em hospitais gerais são ofertas de modalidades de tratamento, considerando cada vez mais os serviços que sustentam um cuidado integral em saúde mental da população em seu território na perspectiva da atenção psicossocial (Pessoa Júnior et al., 2016).

Considerações finais

O estudo apontou para a necessidade de parcerias com a família e o reconhecimento da importância do cuidado no contexto da saúde mental: uma aliança que pode tanto ajudar no cuidado ao usuário quanto beneficiar os próprios familiares.

A expectativa com este trabalho é contribuir com uma discussão sobre a primeira internação, a prática em saúde mental no cuidado com esses pacientes num hospital psiquiátrico especializado, à luz das narrativas dos familiares sobre a complexidade da temática e quanto ainda é preciso avançar.

Os resultados desta pesquisa apontaram que é possível identificar, na maioria dos casos das primeiras internações, que os familiares tiveram algum estranhamento anterior em relação ao comportamento, às falas e/ou às vestes. Porém, esses sinais foram tratados como características pessoais em lugar de uma possível eclosão de doença mental.

Observou-se também a presença forte de um familiar à frente do cuidado com o usuário, e que somente quando há um rompimento nessa relação é que outros familiares se aproximam, já diante da crise que leva à internação.

Os familiares ainda aparecem como sendo os coadjuvantes nesse pro- cesso de internação, seja como visitantes esporádicos, devido à distância e à falta de recurso financeiro, ou como agenciadores da RAPS após o encaminhamento administrativo do hospital após a alta.

Percebeu-se desconhecimento da RAPS, destacando que a busca por atendimento ainda se dá nos complexos hospitalares que funcionam como entrada para a rede de psiquiatria, sem a participação do território ou considerar o papel de acolhimento à crise dos CAPS. A referência que aparece para os familiares é a emergência psiquiátrica, que, por sua vez, vai coordenar os encaminhamentos futuros desse usuário, sem considerar os cuidados especiais com a primeira internação e acompanhamentos anteriores com o território.

Há um desconhecimento sobre a Estratégia Saúde da Família (ESF),que mesmo ocupando nesse lugar de ordenadora e porta de entrada da rede e do cuidado, parece ainda ter dificuldades nesse manejo e nessa lógica, deixando em segundo plano o aspecto fundamental da atenção psicossocial que é a clínica no território.

Mostra-se necessário, como desafio futuro, um olhar mais atento ao que tem acontecido aos usuários de primeira internação que são admitidos diretamente pelas emergências, sem vínculo com cuidado territorializado. Desconhece-se os efeitos dessa trajetória, dessa vivência e dos encaminhamentos desse cuidado.

As narrativas nos apontam e reiteram que é preciso estarmos atentos ainda com as práticas assistenciais básicas, como escuta cuidadosa, no caso a caso. Os usuários de primeira internação precisam ser cuidadosamente acompanhados por uma equipe multidisciplinar que trabalhe em parceria com os serviços territoriais, pois a condução do caso será realizada preferencialmente pela ESF em parceria com o CAPS e juntos terão que atuar frente às possíveis novas crises.

É preciso que a política de saúde mental se preocupe em construir serviços comunitários fortes, sobretudo com a capacidade de intervenção no território, com acesso a recursos próximos à vida do sujeito e articulações que sustentem as possibilidades de inclusão da loucura na vida. Vale questionar se o hospital especializado tem espaço dentro da RAPS. Parece-nos que não, uma vez que o hospital especializado rompe frontalmente com a noção e necessidade de território, isso sem discutirmos as práticas mais atinentes à Instituição Total ainda muito presentes nesses locais. A lógica da organização hospitalar baseada na admissão, alta, e óbito como atividade essencialmente médicas, pode produzir um engessamento que empobrece as informações sobre os pacientes, e enfraquece o plano e o diálogo terapêutico.

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    » https://doi.org/10.1590/1980-5497201700030009
  • Editora/Editor: Prof. Dr. Octávio Domond de Serpa Jr.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Out 2021
  • Data do Fascículo
    Set 2021

Histórico

  • Recebido
    19 Ago 2020
  • Revisado
    5 Jan 2021
  • Aceito
    11 Jan 2021
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