Open-access A IMAGINAÇÃO FEMINISTA NO BRASIL: DIÁLOGOS SOBRE GÊNERO, SOCIEDADE E POLÍTICA

Moraes, Aparecida Fonseca; Araujo, Anna Bárbara; Gama, Maria Clara. . (2021). Diálogos feministas: gerações, identidades, trabalho e direitos.Rio de Janeiro: Editora UFRJ.

Diálogos feministas: gerações, identidades, trabalho e direitos, organizado por Aparecida Fonseca Moraes, Anna Bárbara Araujo e Maria Clara Gama, reúne debates e reflexões frutos de pesquisas sistemáticas conduzidas por onze pesquisadoras dedicadas aos estudos de gênero e feminismos no Brasil.

A obra percorre um variado e abrangente arco de temas e problemas, tais como trabalho doméstico e de cuidado; prostituição; lutas, ativismos e engajamentos feministas progressistas e conservadores, de setores médios e de camadas populares; imprensa feminista; assédio e violência de gênero; além da atuação parlamentar e representação política de mulheres. Como observam as organizadoras na introdução à obra, os artigos percorrem um amplo espectro da atuação feminista, pelo qual circulam “diferentes atrizes e atores individuais e coletivos, incluindo ativistas, pesquisadoras(es) e acadêmicas(os), além de organizações, campanhas, protestos e correntes teóricas” (Moraes; Araujo & Gama, 2021: 11).

Em seu artigo no livro, Bila Sorj (2021) lembra que este campo está permanentemente atravessado por tensões, divisões e alianças variadas, englobando questões como a autonomia dos movimentos de mulheres ou feministas, sua organização em coletivos ou redes, sua convergência para o Estado ou sua recusa à atuação institucional, por exemplo. Lidos em conjunto, os capítulos que compõem a polifonia dos Diálogos feministas reconstroem e atualizam parte desses encontros e desencontros entre ativismos e ideias, compondo um cenário vivo da atuação feminista no Brasil desde meados do século XX. A obra permite, assim, tanto debater ativismos e mobilizações de mulheres e suas demandas por direitos sociais, políticos, trabalhistas e reprodutivos, quanto revisitar alguns dos dilemas da sociedade brasileira, tais como a centralidade do emprego doméstico no país e seus desafios aos feminismos e a longa duração do conservadorismo como visão de mundo e como força política a modular aspectos dos direitos de mulheres e das próprias demandas feministas.

Ao percorrer esse heterogêneo campo de atuação feminista, com seus protestos, marchas, greves, articulações institucionais, jornais, movimentos sociais, sindicatos, federações e partidos, a obra não deixa, contudo, de ter um fio condutor nítido e muito bem fundamentado: o debate teórico sobre as categorias de autonomia, diferença, igualdade. Investigações empíricas e reflexões teóricas sobre os conteúdos substantivos da autonomia, por exemplo, aparecem no capítulo “‘Autônomas’ e ‘institucionalizadas’: disputas e alianças no feminismo brasileiro contemporâneo”, de Carla de Castro Gomes, que, ao recortar como objeto a Marcha das Vadias, nos apresenta uma sólida reflexão sobre as mobilizações, demandas e protestos construídos na tensão entre autonomia e institucionalização. Questões teóricas e políticas semelhantes aparecem também nos capítulos “Um encontro possível? A imprensa feminista das décadas de 1970 e 1980 e as pautas políticas sobre o trabalho doméstico remunerado”, de Thays Almeida Monticelli, e “‘Enquanto elas manifestam, quem cuida de seus filhos?’ (Des)Encontros entre movimentos feministas e sindicatos de trabalhadoras domésticas no Brasil”, de Louisa Acciari, que abordam as diferentes posicionalidades de gênero, raça e classe envolvidas na questão do emprego doméstico.

Vistos em conjunto, os três artigos apontam para um argumento importante na economia da obra e dos diálogos travados em seu interior: a categoria “autonomia” opera como espécie de centro de gravidade do heterogêneo campo da atuação feminista no Brasil. Trata-se de um centro de gravidade eminentemente político, demarcando alianças e oposições em relação aos partidos políticos, aos sindicatos ou aos movimentos sociais mistos, mas também marcando as clivagens dentro das próprias lutas baseadas em gênero e/ou feministas, na medida em que desigualdades de classe, diferenças étnico-raciais ou de posições no espectro político também ajudam a demarcar a necessidade e a demanda por autonomia, sobretudo ao longo da última década.

A partir da reflexão das autoras sobre a autonomia, é possível observar como este campo de atuação feminista ajudou a organizar uma imaginação feminista, isto é, modos de ler, falar e interpretar a sociedade brasileira que acionam a posicionalidade dos atores socais como um elemento chave de investigação. Diálogos feministas, então, permite refazer as conexões analíticas entre os atos de nomear e a luta social, nos ajudando a conhecer e a analisar o campo da atuação feminista no Brasil, além de oferecer pistas importantes sobre a imaginação que, a um só tempo, emerge deste campo e o organiza. No caso dos diálogos tecidos pelas autoras no interior da obra, a adoção de perspectivas que tomam diferenças de gênero como centrais para a compreensão do social nos ajudam também a compreender variadas inflexões de classe e raça, resultando numa teorização sobre o social que desestabiliza ideias unitárias de política, participação, trabalho, economia, autoridade, status etc.

Ao longo da obra, debates em torno dos sentidos, alcances e disputas acerca da diferença de gênero são tematizados em artigos como “Prostituição e feminismo: controvérsias, tensões e aproximações a partir do jornal Beijo da Rua”, de Aparecida Fonseca Moraes e Mariana Brasil de Mattos; “Para compreender o cuidado: a construção de um campo de pesquisa feminista”, de Anna Bárbara Araujo; “A modéstia como ‘escolha’ e o engajamento feminino no catolicismo tradicionalista”, de Jaqueline Sant’ana Martins dos Santos; “O posicionamento de deputadas feministas nos debates parlamentares sobre a (des) patologização da homossexualidade”, de Maria Clara Gama.

Lidos conjuntamente, esses capítulos ajudam a explorar a pista teórica de Joan Scott (1996) - de que disputar a igualdade a partir da afirmação da diferença de gênero é indício chave de que as mulheres apenas têm o paradoxo a oferecer -, uma vez que as autoras demonstram como o campo de atuação do feminismo foi central para a ampliação das bases institucionais da cidadania tal qual experimentada no Brasil. Indicam, ainda, que o conjunto de protestos, marchas e demandas públicas de mulheres alargaram o espaço para a participação política, social e cultural do feminismo no país.

Do ponto de vista teórico, é possível argumentar que a imaginação feminista (que emerge e é resultado deste campo de atuação) torna igualdade e diferença como conceitos interdependentes, ainda que em permanente tensão. Avançando no argumento - e em que pese o recorte centrado nas últimas décadas -, a leitura da obra nos permite perceber que os campo de atuação e de imaginação feministas podem ser situados na longa duração de lutas, ideias e conflitos da sociedade brasileira.

Como nos lembra Veronica Gago (2020), o pensamento feminista é sempre situado, condição da qual deriva sua potência, posto estar alicerçado em diferentes corpos que congregam, por sua vez, variadas experiências, expectativas, recursos, trajetórias e memórias. Seguindo o argumento da autora, um pensar situado é inevitavelmente parcial, o que não significa um fragmento; antes “funciona como um ponto de entrada, uma perspectiva, que singulariza uma experiência” (Gago, 2020: 11). Um pensamento situado, sempre em processo, pois “situar-se também é compor com uma máquina de conversações entre companheiras, histórias e textos de muitas partes e de muitas épocas” (Gago, 2020: 11).

Diálogos feministas é, sobretudo, essa “máquina de conversões” entre lutas, sonhos, ideias e apostas no presente. Sem diminuir as necessárias revisões e questionamentos das diferenças, desigualdades e desequilíbrios de poder entre mulheres e entre feministas, o livro aponta para a forte circulação de ideias entre diferentes gerações (Sorj, 2021: 27). Tanto as pesquisas empíricas realizadas, quanto as perspectivas analíticas adotadas pelas autoras demonstram que essa “máquina de conversões” é composta, também, por muitas discordâncias e controvérsias, todas centrais para a interpretação - e contestação - do mundo social promovida tanto pela atuação, quanto pela imaginação feministas.

Ao situar o campo de atuação feminista das últimas décadas no Brasil, Diálogos feministas dá um passo além, e lança luz sobre a potência de uma imaginação feminista com diferentes corpos que congregam, por sua vez, variadas experiências, expectativas, recursos, trajetórias e memórias. Essa imaginação feminista desafia uma compreensão uniforme de questões como trabalho doméstico, religião, assédio, violência de gênero e representação política, para ficar apenas em alguns dos temas abordados na obra.

Como argumenta Sonia Alvarez et al. (2003), o engajamento na militância feminista e o campo de ação a ele associados comportam uma ampla variedade de espaços públicos. Se esta variedade está bem documentada pela literatura especializada, Diálogos feministas nos ajuda a perceber como as transformações nos modos de conceber e reivindicar autonomia, igualdade e o direito à diferença se transformaram ao longo das décadas, compondo um dos pontos mais dinâmicos e inovadores da atuação feminista no Brasil contemporâneo. Dinâmica e inovações que não precisam, necessariamente, serem lidas como ruptura ou descontinuidade em relação à longa duração dos ativismos e das ideias feministas no país.

A leitura da obra, ao contrário, nos conduz pela ação coletiva de ativismos de mulheres brasileiras, bem como pelas ideias que produziram e ajudaram a colocar em circulação. Nas intersecções entre ativismos e ideias, as autoras demonstram como movimentos, demandas e modos de interpretar o mundo social foram se implicando mutuamente, transformando modos de agir, de falar e de interpretar não apenas gênero, mas a própria dinâmica da sociedade brasileira.

Em suma, se o feminismo é produzido sempre em referência a contradições localizadas historicamente (Scott, 2005), é possível argumentar, portanto, que ele é, sobretudo, uma questão de contexto, em que se pese seu enfrentamento de questões estruturais. É justamente isso o que Diálogos feminista demonstra.

REFERÊNCIAS

  • Moraes, Aparecida Fonseca; Araujo, Anna Bárbara & Gama, Maria Clara. (2021). Introdução: avanços e desafios nas lutas feministas. In: Moraes, Aparecida Fonseca; Araujo, Anna Bárbara & Gama, Maria Clara (orgs.). Diálogos feministas: gerações, identidades, trabalho e direitos. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, p. 11-16.
  • Sorj, Bila. (2021). Feminismos: conversas entre gerações. In: Moraes, Aparecida Fonseca; Araujo, Anna Bárbara & Gama, Maria Clara. Diálogos feministas: gerações, identidades, trabalho e direitos. Rio de Janeiro: Editora UFRJ , p. 19-36.
  • Alvarez, Sonia E. et al. (2003). Encontrando os feminismos latino-americanos e caribenhos. Estudos Feministas, 11/2, p. 541-575.
  • Scott, Joan Wallach. (2005). O enigma da igualdade. Estudos Feministas , 13/1, p. 11-30.
  • Scott, Joan Wallach. (1996). Only paradox to offer: french feminists and the rights of man. Cambridge, MA: Harvard University Press.
  • Gago, Verónica. (2020). A potência feminista, ou o desejo de transformar tudo. São Paulo: Elefante.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    01 Set 2021
  • Aceito
    18 Jan 2022
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