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Controle ético de pesquisas cujos resultados tenham alto risco para a saúde da população

RESUMO

Este artigo problematiza o conflito ético surgido entre a necessidade de garantir o avanço da ciência e controlar suas possíveis consequências para a humanidade. Em pesquisa realizada na literatura científica latino-americana e nas bases jurídicas e normativas brasileiras sobre a regulamentação ética de pesquisas que não envolvem seres humanos como sujeitos da intervenção, constataram-se tanto a ausência de normatização para a regulação ética de tais pesquisas quanto a incipiência da produção científica acerca do tema. Devido à gravidade do impacto que determinadas pesquisas podem causar à saúde da população, conclui-se pela necessidade de estabelecer fortes medidas para seu controle ético.

PALAVRAS-CHAVE
Ética em pesquisa; Temas bioéticos; Códigos de ética

ABSTRACT

This article discusses the emergence of ethical conflicts between the need to ensure the advances in science and the need to control their possible consequences for humanity. A research was carried out to analyze the scientific Latin-American literature and the Brazilian legal and regulatory bases on the ethical regulation of researches that do not involve humans as subjects of the intervention, and found the absence of norms for the regulation of such researches and the lack of scientific literature on the subject. Considering the severity of the impact that certain researches may cause to the health of the population, the conclusion is that there is the need to establish strong measures for their ethical control.

KEYWORDS
Ethics in research; Bioethical issues; Codes of ethics

Introdução

No Brasil, já está consolidado o sistema nacional de controle ético para pesquisas que envolvam seres humanos. No entanto, há pesquisas não relacionadas de modo direto com o humano como sujeito da intervenção científica, mas cujos resultados podem ter impacto de alto risco à saúde da população. Neste sentido, é necessário que se questione se pesquisas cujos resultados impliquem em risco para a saúde da população devem ser previamente avaliadas. Ou, ainda, se os pesquisadores, as instituições e demais atores envolvidos nestes estudos devem ser responsabilizados eticamente por consequências indevidas ou indesejadas.

Segundo a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (DUBDH), aprovada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) em 2005, a liberdade da pesquisa científica deve acompanhar o respeito à dignidade humana, aos direitos humanos e às liberdades fundamentais, além de "salvaguardar e promover os interesses das gerações presentes e futuras" (UNESCO, 2005ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A CULTURA (UNESCO). Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos. Brasília, 2005. Tradução feita sob a responsabilidade da Cátedra Unesco de Bioética da Universidade de Brasília e da Sociedade Brasileira de Bioética, homologada pelo Ministério das Relações Exteriores do Brasil. Disponível em: <http://bioetica.catedraunesco.unb.br/?page_id=250>. Acesso em: 3 ago. 2016.
http://bioetica.catedraunesco.unb.br/?pa...
).

Seguindo essa premissa, o presente artigo problematiza o conflito ético surgido entre a necessidade de garantir o avanço da ciência e, ao mesmo tempo, controlar suas possíveis consequências para a humanidade. Como subsídios para análise, são apresentados e discutidos os resultados de uma pesquisa feita na literatura científica latino-americana e em bases jurídicas e normativas brasileiras sobre a regulamentação ética de pesquisas que não envolvem seres humanos como sujeitos da intervenção.

Antecedentes

Na modernidade, a pesquisa científica deixou de ser a busca do conhecimento apenas pelo saber e passou a ser pensada, sobretudo, quanto à sua aplicação prática e instrumental (HORKHEIMER, 2003HORKHEIMER, M. Teoría crítica. Buenos Aires: Amarrortu Editores, 2003.). Este paradigma trouxe grandes avanços nas áreas da biologia e das ciências da vida. Contudo, para além dos fatores intrínsecos da ciência, existem diversos fatores sanitários, sociais, políticos e econômicos que influenciam a realização das pesquisas e que vão desde a escolha do objeto do estudo até a aplicação prática dos resultados.

Nesse contexto, um aspecto importante a ser considerado na realização das pesquisas é o impacto que seus resultados podem causar à saúde da população. Garrafa (1998, p. 99)GARRAFA, V. Bioética e ciência - até onde avançar sem agredir. In: COSTA, S. I. F.; GARRAFA, V.; OSELKA, G. (Org.). Iniciação à bioética. Brasília, DF: Conselho Federal de Medicina, 1998. p. 99-110. expressa, a respeito, que:

Os avanços alcançados pelo desenvolvimento científico e tecnológico nos campos da biologia e da saúde, principalmente nos últimos trinta anos, têm colocado a humanidade frente a situações até pouco tempo inimagináveis. [...] Se, por um lado, todas estas conquistas trazem esperanças de melhoria da qualidade de vida, por outro, criam uma série de contradições que necessitam ser analisadas responsavelmente com vistas ao equilíbrio e bem-estar futuro da espécie humana e da própria vida no planeta.

No mesmo sentido, Schramm (1998, p. 217)SCHRAMM, F. R. Bioética e Biossegurança. In: COSTA, S. I. F.; GARRAFA, V.; OSELKA, G. (Org.). Iniciação à bioética. Brasília, DF: Conselho Federal de Medicina, 1998. p. 217-30. pondera que os avanços alcançados na área da biotecnociência são, ao mesmo tempo, "[...] motivos de grandes esperanças e angústias, consensos e conflitos, em particular, do tipo moral".

O que decorre dessas considerações é a dificuldade de determinar o limiar ideal do compromisso entre a liberdade científica e as legítimas preocupações com a segurança e os interesses da população, o que configura um grande desafio ético para a comunidade científica. Avaliar se os avanços em ciência e tecnologia poderão trazer riscos eminentes ou futuros para a humanidade envolve questões de variada magnitude, que vão desde os aspectos técnicos da questão aos temas morais com ela relacionados. Como pressuposto, reconhece-se que as pesquisas científicas - ainda que possam trazer consequências danosas aos seres humanos - não devem ser rejeitadas a priori, mas suas aplicações devem ser controladas eticamente (CRUZ; OLIVEIRA; PORTILLO, 2010CRUZ, M. R.; OLIVEIRA, S. L. T.; PORTILLO, J. A. C. A Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos - contribuições ao Estado brasileiro. Revista Bioética, Brasília, DF, v. 18, n. 1, p. 93-107, 2010.).

No Brasil, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) (CNS, 2014CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE (CNS). Comissões: Comissão Nacional de Ética em Pesquisa - CONEP. Disponível em: <http://conselho.saude.gov.br/web_comissoes/conep/index.html>. Acesso em: 20 jul. 2014.
http://conselho.saude.gov.br/web_comisso...
) tem como missão a deliberação, a fiscalização, o acompanhamento e o monitoramento das políticas públicas de saúde estabelecidas no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Em 1996, o CNS, por meio da Resolução nº 196, aprovou as diretrizes e normas regulamentadoras para pesquisas envolvendo seres humanos e criou a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), cuja principal atribuição é o exame dos aspectos éticos das pesquisas que envolvem seres humanos. Como missão, a Conep elabora e atualiza as diretrizes e normas para a proteção dos sujeitos de pesquisa e coordena a rede de Comitês de Ética em Pesquisa (CEP) das instituições. Em 2012, a Conep realizou a revisão dessas diretrizes, sendo a Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012, a em vigor. Neste sentido, todos os projetos de pesquisa envolvendo seres humanos, no Brasil, devem estar sujeitos à apreciação deste modelo unificado de avaliação ética composto pelo chamado Sistema CEP-Conep.

No entanto, existem pesquisas que não envolvem diretamente os seres humanos como objeto da intervenção científica, mas cujos resultados podem ter um impacto de alto risco para a saúde da população, o que aponta para a necessidade de reflexão sobre o controle ético também desses estudos.

Como exemplo dessa problemática, pode ser citada pesquisa realizada na Holanda, publicada em 2012, que provocou/induziu mutações que alteravam a transmissibilidade do vírus da Influenza A, subtipo H5N1 (gripe aviária), entre mamíferos (BIOLOGICAL WEAPONS CONVENTION, 2012BIOLOGICAL WEAPONS CONVENTION. Making avian influenza aerosol-transmissible in mammals: Background information document submitted by the Implementation Support Unit. Meeting of Experts, Genebra, 2012. Disponível em: <http://daccess-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G12/611/33/PDF/G1261133.pdf?OpenElement>. Acesso em: 15 jul. 2014.
http://daccess-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/G...
). As implicações da realização e da divulgação do resultado dessa pesquisa tiveram grande repercussão na comunidade científica, na sociedade civil, nas organizações de saúde e em instrumentos internacionais, como a Convenção sobre a Proibição de Armas Biológicas (UNOG, 2014UNITED NATIONS OFFICE AT GENEVA (UNOG). The Biological Weapons Convention. Disponível em: <http://www.unog.ch/80256EE600585943/(httpPages)/04FBBDD6315AC720C1257180004B1B2F?OpenDocument>. Acesso em: 15 jul. 2014.
http://www.unog.ch/80256EE600585943/(htt...
). Este último suscitou a discussão da necessidade de mecanismos para avaliação de risco em pesquisas - em especial, aquelas que não estão reguladas pelos instrumentos normativos tradicionais já existentes e relacionados com a ética em pesquisa envolvendo seres humanos - e da criação de códigos de conduta para pesquisadores.

Além das preocupações com a possibilidade do uso como arma bélica, a pesquisa envolvendo o H5N1 também gerou dúvidas sobre seu impacto para a saúde da população, no caso da dispersão acidental ou mesmo intencional de um 'novo' subtipo do vírus, ou mesmo de um organismo com novas características, podendo causar graves e imponderáveis consequências, tais como novos surtos, epidemias e até uma pandemia.

Esse tipo de pesquisa se remete não só às questões técnicas de biossegurança, mas também às questões amplas de segurança biológica - estratégicas e de grande importância para o controle sanitário e a defesa de qualquer Estado -, assim como às questões éticas envolvidas.

A partir de uma perspectiva ética, esse exemplo expande os questionamentos iniciais apresentados neste artigo: Pesquisas que não envolvem diretamente os seres humanos, mas cujos resultados envolvam risco para a saúde da população, devem ser previamente avaliadas por comissões externas? Os envolvidos nestas pesquisas devem ser responsabilizados eticamente por consequências indevidas ou indesejadas? Como balancear a garantia de liberdade para produção científica e a proteção da saúde das populações?

Com base nessas reflexões, o presente trabalho traz para o âmbito da Bioética a discussão acerca das responsabilidades dos pesquisadores, das instituições de pesquisa, dos patrocinadores e dos Estados quanto aos riscos e danos às populações relacionados com a aplicação de pesquisas que não envolvem o ser humano como sujeito da experimentação científica.

Material e métodos

Para consubstanciar a reflexão e a discussão acerca da problemática aqui apresentada, foi realizada uma busca sistemática na literatura brasileira sobre a discussão ética de pesquisas que não envolvem seres humanos. As bases de dados consultadas foram a Scientific Electronic Library Online (SciELO) e a Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (Lilacs), nas quais empregaram-se individualmente os descritores ética em pesquisa; temas bioéticos; e códigos de ética. Considerando a proximidade entre as realidades social e institucional brasileiras e as latino-americanas, o levantamento da literatura considerou também as produções acadêmicas da região com o objetivo de subsidiar a melhor análise do quadro normativo nacional.

Foram incluídos apenas os artigos completos publicados em periódicos, isto é, excluíram-se livros, resenha, editoriais e outras publicações diferentes de artigo, além de trabalhos completos não encontrados para acesso online.

Também foram realizadas buscas sobre a normatização brasileira às quais ficariam sujeitas pesquisas que não envolvam seres humanos. As plataformas de pesquisas foram: Senado Federal, disponível em: <http://www25.senado.leg.br/web/atividade/legislacao>; Portal da Legislação, disponível em: <http://www4.planalto.gov.br/legislacao>; e Saúde Legis: <http://portal2.saude.gov.br/saudelegis/LEG_NORMA_PESQ_CONSULTA.CFM>, além das fontes abertas: <http://www.cnpq.br/>, <http://portal.fiocruz.br/pt-br> e <https://www.google.com.br/>. Os descritivos utilizados foram: controle ético, ética em pesquisa, pesquisa de alto risco e códigos de conduta.

Os materiais foram selecionados, analisados e discutidos à luz dos referenciais normativos da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos.

Resultados e discussão

Após a aplicação de filtro por áreas temáticas, os títulos e resumos dos 853 artigos inicialmente identificados foram analisados com o objetivo de excluir aqueles que abordavam aspectos éticos de pesquisas envolvendo seres humanos, animais ou observacionais, de modo a restringir a literatura apenas aos trabalhos que, de fato, tratam do controle de pesquisas que não utilizam o ser humano como sujeito da intervenção científica. Esta etapa, em que também foram excluídos os trabalhos repetidos e que não se configuram como artigos completos publicados em periódico, resultou em um total de 18 artigos selecionados, conforme dispostos no quadro 1.

Quadro 1
Artigos selecionados

A análise do material indicou que muitos dos artigos (1-3-5-6-7-14-16) tratavam de pesquisas envolvendo seres humanos mesmo quando seus títulos ou resumos não indicavam essa característica. Alguns artigos abordavam temas como pesquisa com células-tronco embrionárias ou clonagem (2-11), enquanto outros tratavam do tema da ética em pesquisa de uma forma ampla e generalizada (4-8-9-17), sem focar a problemática dos estudos que não envolvem diretamente os seres humanos, mas cujos resultados podem resultar em impactos à saúde da população.

Embora esse resultado indique que a discussão sobre o controle ético desse tipo de pesquisa seja bastante incipiente, dando a impressão de que o assunto ainda passa despercebido à comunidade científica, é possível encontrar alguns artigos que abordam o tema da responsabilidade dos pesquisadores na prática científica, desde uma perspectiva mais ampla ou indireta, e que merecem ser destacados.

Laboy (2013)LABOY, R. G. Una mirada filosófica a la ética de la investigación. Revista Bioética, Brasília, DF, v. 21, n. 1, p. 43-52, 2013., por exemplo, analisou vários incidentes em que fraudes permearam as investigações científicas, defendendo a necessidade de discutir a ética das pesquisas a partir de uma postura filosófica. Norero, Toro e Contreras (2009)NORERO, C. V.; TORO, C. A.; CONTERERAS, J. P. Ética e Investigación Científica en la Sociedad Globalizada. Revista Chilena de Pediatría, Santiago, v. 80, n. 4, p. 305-307, 2009., por suas vez, discutiram a importância da ética nas sociedades profissionais e a necessidade de desenvolver uma 'ética de futuro' que se preocupe com as novas gerações e sua sustentabilidade. Todos os autores questionaram se existem instâncias efetivas de controle ético nas pesquisas e na aplicação dos novos conhecimentos. Complementarmente, Rios (2006)RIOS, T. A. A ética na pesquisa e a epistemologia do pesquisador. Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 12, n. 19, p. 80-86, 2006. problematizou os objetivos, métodos e resultados de pesquisas em todas as áreas do saber, apontando para a necessidade de considerar a ética na prática científica não apenas para impor limites aos estudos, mas também para aprimorar a própria qualidade das pesquisas.

Por outro lado, a busca realizada nas bases normativas e legais brasileiras não indicou qualquer norma ou regulamento diretamente relacionado ao tema, mas apenas sobre o controle ético de pesquisas envolvendo seres humanos e animais, além dos códigos de ética das diferentes categorias profissionais e de instituições. Este aspecto confirma o resultado relatado por Silva, Barrera-García e Silva (2010)SILVA, P. R.; BARRERA-GARCÍA, R. C.; SILVA, R. Aspectos Éticos y Legales de La Investigación Científica en Brasil. Acta Bioethica, Santiago, v. 16, n. 1, p. 61-69, 2010., ao apresentar um levantamento do arcabouço regulatório da pesquisa científica no Brasil, embora este trabalho também não tenha problematizado, de modo específico, a normatização de pesquisas que não envolvem seres humanos, mas cujos resultados impactam a saúde da população.

Diante desse quadro, cabe retomar as questões iniciais apontadas no presente trabalho acerca da necessidade de avaliar previamente tais pesquisas, da responsabilidade ética pela consequência desses estudos e da busca pelo equilíbrio entre a liberdade da produção científica e a proteção da saúde das populações.

É oportuno enfatizar que, de modo geral, as pesquisas científicas são realizadas não só por conta dos benefícios que elas poderão trazer para a população, mas, cada vez mais, pelos interesses econômicos e estratégicos dos interessados (GARRAFA et al., 2010GARRAFA, V. et al. Between the needy and greedy: the quest for a just and fair ethics of clinical research. Jounal of Medical Ethics, London, v. 36, n. 8, p. 500-504, 2010.), aspecto que se torna mais premente quando envolve a indústria farmacêutica e o poder bélico de determinados grupos de países, o que aponta para a necessidade de que o problema passe a ser abordado desde uma perspectiva mais ampla da bioética.

Para exemplificar as distorções que muitas vezes acontecem com as pesquisas clínicas, campo contíguo à discussão aqui desenvolvida, é oportuno registrar um estudo de Ugalde y Homedes (2011)UGALDE, A.; HOMEDES, N. Cuatro palabras sobre ensayos clínicos: ciencia/negocio, riesgo/beneficio. Salud Colectiva, Buenos Aires, v. 7, n. 2, p. 135-148, 2011., dois pesquisadores espanhóis que trabalham há muitos anos nos Estados Unidos. Analisando estudos clínicos patrocinados por grandes empresas farmacêuticas multinacionais na América Latina, eles denunciam fraudes científicas e manipulações de resultados, interesses financeiros disfarçados de ciência e a instrumentalização de indivíduos em situação de vulnerabilidade social. Os autores demonstram como o sigilo industrial relacionado às pesquisas clínicas multinacionais acaba sendo mais importante do que a própria segurança das pessoas envolvidas, criando uma lógica perversa que dificulta o controle social das atividades de pesquisa, prestando-se a encobrir manipulações de dados e efeitos adversos graves, que afetam os sujeitos das mesmas. A maioria dos estudos clínicos atualmente realizados nos países periféricos do mundo vem dando às motivações financeiras importância muito maior do que ao próprio processo científico (LORENZO; GARRAFA, 2011LORENZO, C.; GARRAFA V. Ensayos clínicos, Estado y sociedad: ¿dónde termina la ciencia y empieza el negocio? Salud Colectiva, Buenos Aires, v. 7, n. 2, p. 166-170, 2011.).

Dentro de todo esse contexto, um referencial indispensável é a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (DUBDH), cujo objetivo é equilibrar o atendimento a valores como dignidade humana, proteção de vulnerações e liberdade científica, entre outros. Em seu Artigo 20, o referido documento aponta para a necessidade de os Estados promoverem "a avaliação e o gerenciamento adequado de riscos relacionados à medicina, às ciências da vida e às tecnologias associadas", ao mesmo tempo em que, no Artigo 24, aponta que: "Os Estados devem promover a disseminação internacional da informação científica e estimular a livre circulação e o compartilhamento do conhecimento científico e tecnológico" (UNESCO, 2005ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A CULTURA (UNESCO). Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos. Brasília, 2005. Tradução feita sob a responsabilidade da Cátedra Unesco de Bioética da Universidade de Brasília e da Sociedade Brasileira de Bioética, homologada pelo Ministério das Relações Exteriores do Brasil. Disponível em: <http://bioetica.catedraunesco.unb.br/?page_id=250>. Acesso em: 3 ago. 2016.
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). Entre os princípios apresentados pela DUBDH, pode-se destacar, ainda, o Artigo 4 - Benefício e Dano, que aponta para a necessidade de maximizar os benefícios diretos e indiretos a pacientes, sujeitos de pesquisa e outros indivíduos afetados, sendo que qualquer dano a tais indivíduos deve ser minimizado. Isto indica que, mesmo na realização de estudos que não envolvem o ser humano como objeto, devem ser ponderados os riscos e possíveis danos em contrapartida aos benefícios esperados, não só para os sujeitos diretamente envolvidos, mas para toda a população e também à própria humanidade, presente e futura.

Conclusão

Este trabalho levantou questões éticas relacionadas às pesquisas que não envolvem seres humanos, mas cujo resultado tenha impacto na saúde da população. Verificou-se tanto a ausência de normatização brasileira para a regulação de tais pesquisas quanto a incipiência da produção científica acerca do tema. É surpreendente que um tema de tamanha relevância imediata para as pessoas e, principalmente, para as gerações futuras, incluindo mesmo a preservação do equilíbrio ambiental planetário (dependendo do tipo de pesquisa), esteja recebendo tão pouca atenção de governos, universidades, empresas e dos próprios pesquisadores envolvidos com a questão.

No entanto, é indispensável registrar, como fator limitante do presente estudo, que não foi adotada uma busca normativa ou bibliográfica no âmbito internacional, a qual está prevista para o desenvolvimento futuro da tese de doutoramento de um dos autores do presente estudo, objetivando avaliar como outros países e instâncias internacionais vêm abordando o problema.

Devido à gravidade do impacto que determinadas pesquisas possam causar à saúde da população, conclui-se, preliminarmente, pela necessidade de que sejam futuramente estabelecidas formas de controle ético de pesquisas que não envolvem diretamente o ser humano como sujeito de experimentação. Para tanto, se faz necessário iniciar, nas diferentes instâncias de poder público, discussões sobre a ética em pesquisas e a responsabilidade dos pesquisadores, das instituições, dos patrocinadores e dos governos com relação às consequências de seus resultados. Neste sentido, uma orientação normativa importante é a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos da Unesco, na medida em que aborda a relação entre avanços científicos e proteção dos seres humanos em uma perspectiva ampla. É importante referir, contudo, que, sendo a Declaração um documento basicamente normativo de âmbito internacional, é necessário que os ordenamentos por ela sugeridos sejam transformados em legislações de aplicação prática no âmbito dos diferentes países, de modo a garantir indispensáveis medidas concretas de proteção sanitária relacionadas com o problema central, que é objeto deste trabalho.

Uma vez que se chegue à conclusão sobre a necessidade do controle ético para o tipo específico de pesquisas aqui abordadas, deve-se também analisar como se dará esse processo e a quem caberá sua avaliação. Fazer ciência hoje em dia é uma atividade carregada de potenciais implicações éticas. Somente com a participação conjunta, responsável e articulada do Estado, dos cientistas e da sociedade nas avaliações em tomadas de decisão firmes e de conteúdo rigoroso, é que se poderá dar um rumo apropriado para o assunto.

  • Suporte financeiro: não houve

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2016

Histórico

  • Recebido
    Mar 2016
  • Aceito
    Jul 2016
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