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O farmacêutico entre o trabalho prescrito e o real na Atenção Primária à Saúde

The pharmacist between prescribed and real work in Primary Health Care

El farmacéutico entre el trabajo prescrito y el real en la Atención Primaria de Salud

Resumo

O trabalho do profissional farmacêutico na Atenção Primária à Saúde está em permanente construção. Este artigo analisa o trabalho realizado pelos farmacêuticos na gestão entre o que está prescrito e o que o real exige, na atenção primária do Distrito Federal. Trata-se de um estudo de caso, com triangulação na coleta e na análise dos dados, obtidos por meio de entrevistas e observação do trabalho de farmacêuticos de cinco Regiões de Saúde, resultando em três categorias: estrutura das farmácias; organização do trabalho; tempo e tarefas. O estudo evidencia que o farmacêutico tem sua atuação centrada nos seguintes grupos de ações: pausas; trabalho gerencial/logística; interrupção; atendimento aos usuários. As tarefas ligadas à assistência ao usuário são pontuais e esporádicas, com o foco da atuação nas gerenciais, sobretudo a logística. Apesar dos limites estruturais das farmácias, há elementos no contexto, revelados pelos farmacêuticos, que podem favorecer a ampliação das atividades técnico-assistenciais: a garantia do acesso aos medicamentos como princípio ético; as normativas; a postura de aprendizagem dos profissionais e de abertura para enfrentar o inusitado; a conexão com necessidades da equipe da Unidade Básica de Saúde; a ação coletiva dos farmacêuticos e a formação sobre cuidado farmacêutico.

Palavras-chave:
assistência farmacêutica; atenção primária à saúde; farmacêutico; trabalho

Abstract

The work of the pharmaceutical professional in Primary Health Care is under permanent construction. This article analyzes the work performed by pharmacists in managing what is prescribed and what is actually required in primary care in the Brazilian Federal District. This is a case study, with triangulation in the collection and analysis of data, obtained through interviews and observation of the work of pharmacists from five Health Regions, resulting in three categories: structure of pharmacies; work organization; time and tasks. The study shows that the pharmacist’s performance is centered on the following groups of actions: breaks; managerial/logistics work; interruption; service to users. Tasks related to user assistance are punctual and sporadic, with the focus on management, especially logistics. Despite the structural limits of pharmacies, there are elements in the context that can favor the expansion of technical assistance activities: guaranteeing access to medicines as an ethical principle; the regulations; the learning attitude of professionals and openness to face the unusual; the connection with the needs of the Basic Health Unit team; the collective action of pharmacists and training on pharmaceutical care.

Keywords:
pharmaceutical care; primary health care; pharmaceutical; labor

Resumen

El trabajo del farmacéutico en la Atención Primaria de Salud está en permanente construcción. Este artículo analiza el trabajo que realizan los farmacéuticos en el manejo de lo prescrito y lo realmente requerido, en la atención primaria del Distrito Federal brasileño. Se trata de un estudio de caso, con triangulación en la recolección y el análisis de los datos, obtenidos a través de entrevistas y observación del trabajo de farmacéuticos de cinco Regiones de Salud, resultando en tres categorías: estructura de las farmacias; organización del trabajo; tiempo y tareas. El estudio muestra que el farmacéutico tiene su actuación centrada en los siguientes grupos de acciones: pausas; trabajo de gestión/logística; interrupción; servicio a los usuarios. Las tareas relacionadas con la atención al usuario son puntuales y esporádicas, con foco en las que son gestionadas, especialmente aquellas relacionadas con la logística. A pesar de los límites estructurales de las farmacias, existen elementos en el contexto que pueden favorecer la expansión de las actividades técnico-asistenciales: la garantía del acceso a los medicamentos como principio ético; las regulaciones; la postura de aprendizaje de los profesionales y de la apertura para enfrentar lo insólito; la conexión con las necesidades del equipo de la Unidad Básica de Salud; la acción colectiva de los farmacéuticos y la formación en atención farmacéutica.

Palabras clave:
servicios asistencia farmacéutica; atención primaria de salud; farmacéutico; trabajo

Introdução

A Atenção Primária à Saúde (APS) tem realizado importantes avanços no sentido de oferecer atenção em saúde universal e integral à população brasileira, produzindo efeitos na redução das desigualdades do acesso aos serviços e melhores resultados de saúde para as famílias e comunidades, no espaço social onde vivem e trabalham (Fertonani et al., 2015FERTONANI, Hosanna P. et al. Modelo assistencial em saúde: conceitos e desafios para a atenção básica brasileira. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 20, n. 6, p. 1.869-1.878, 2015. https://doi.org/10.1590/1413-81232015206.13272014. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232015000601869&lng=pt&nrm=iso&tlng=en . Acesso em: 10 set. 2021.
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).

A APS no Brasil se organiza por meio da Estratégia Saúde da Família (ESF), que deve ser composta por equipes multiprofissionais que trabalhem com definição de território de abrangência, cadastramento e adscrição de clientela e acompanhamento da população da área (Brasil, 2011BRASIL. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria n. 2.488, de 21 de outubro de 2011. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes e normas para a organização da Atenção Básica, para a Estratégia Saúde da Família (ESF) e o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS). Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt2488_21_10_2011.html . Acesso em: 25 set. 2021.
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; Giovanella e Mendonça, 2012GIOVANELLA, Lígia; MENDONÇA, Maria H. M. Atenção primária a saúde. In: GIOVANELLA, Lígia et al. Políticas e sistemas de saúde no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2012. p. 493-547. ).

A atuação do profissional farmacêutico na APS se dá tanto pela assistência direta ao usuário quanto em atividades ligadas à gestão dos medicamentos, assim como por meio de atividades de matriciamento junto às equipes da ESF, na medida em que se insere no Núcleo Ampliado de Saúde da Família (Nasf) (Brasil, 2011BRASIL. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria n. 2.488, de 21 de outubro de 2011. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes e normas para a organização da Atenção Básica, para a Estratégia Saúde da Família (ESF) e o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS). Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt2488_21_10_2011.html . Acesso em: 25 set. 2021.
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis...
; Barros, Silva e Leite, 2020BARROS, Débora S. L.; SILVA, Dayde L. M.; LEITE, Silvana N. Serviços farmacêuticos clínicos na atenção primária à saúde do Brasil. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 18, n. 1, 2020. https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00240. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tes/a/Z8nY8RZDgvtDZNS3RTPHMCM/?lang=pt . Acesso em: 10 jul. 2021.
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).

Segundo proposto pelo Ministério da Saúde (MS), a atuação do farmacêutico no Sistema Único de Saúde (SUS) deve estar articulada com a equipe de saúde, na perspectiva de que a Assistência Farmacêutica se integre de forma sistêmica na rede de atenção à saúde do município (Brasil, 2009BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos. Departamento de Assistência Farmacêutica e Insumos Estratégicos. Diretrizes para estruturação de farmácias no âmbito do Sistema Único de Saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2009. ). Para tanto, devem ser desenvolvidas atividades técnico-gerenciais, clínico-assistenciais e técnico-pedagógicas do trabalho em saúde, voltadas aos indivíduos, família, comunidade e equipe de saúde (Brasil, 2014BRASIL. Ministério da Saúde. Cuidado farmacêutico na atenção básica. Brasília: MS, 2014. 108p. (Caderno 1: serviços farmacêuticos na atenção básica à saúde, v. 1). Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/servicos_farmaceuticos_atencao_basica_saude.pdf . Acesso em: 30 mar. 2022.
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).

As recomendações da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) e do MS convergem no sentido de que os farmacêuticos que atuam na APS desenvolvam suas atividades relacionadas à gestão logística dos medicamentos e à assistência direta ao usuário de acordo com a necessidade dos serviços e a competência profissional requerida (Costa et al., 2015COSTA, Karen S. et al. Serviços farmacêuticos na atenção básica a saúde. In: BRASIL. Ministério da Saúde. Cuidado Farmacêutico na atenção básica. Brasília: MS , 2015. p. 53-68. ). Nesse sentido, há necessidade de que o farmacêutico esteja preparado para atuar em todos os cenários de práticas, o que representa um desafio para a realidade dos serviços farmacêuticos no Brasil (Ivama-Brummell, Lyra Junior e Sakai, 2014IVAMA-BRUMMELL, Adriana M.; LYRA JUNIOR, Divaldo; SAKAI, Marcia H. Recursos humanos para assistência farmacêutica no Sistema Único de Saúde. In: IVAMA-BRUMMELL, Adriana M. et al (org.). Assistência farmacêutica: gestão e prática para profissionais da saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz , 2014. p. 69-78. ).

O trabalho prescrito para o farmacêutico na APS no Distrito Federal (DF) segue a mesma lógica, entretanto, avança no detalhamento do espaço micro de atuação, delimitando as atividades que podem ser delegadas e aquelas que são de atribuição do farmacêutico. A carteira de serviços da APS do DF elenca as ações e procedimentos da assistência farmacêutica, destacando o que é atribuição do farmacêutico e o que deve ser supervisionado por ele (Distrito Federal, 2016DISTRITO FEDERAL (Estado). Carteira de serviços da atenção primária no DF. Brasília: Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal, 2016. 236 p.).

O trabalho do farmacêutico na APS está em permanente construção (Barberato, Scherer e Lacourt, 2019BARBERATO, Luana C.; SCHERER, Magda D. A.; LACOURT, Rayane M. C. The pharmacist in the Brazilian primary health care: insertion under construction. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 24, n. 10, p. 3.717-3.726, 2019. https://doi.org/10.1590/1413-812320182410.30772017. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/FnYZKhZG6QJxWfmHJsVz8dH/?lang=en . Acesso em: 9 jul. 2021.
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) e sujeito às influências do meio, das normas e da capacidade do profissional para agir em competência. O trabalho é sempre resultado da gestão feita pelo trabalhador entre aquilo que está prescrito por normas heterodeterminadas e por ele próprio e aquilo que o meio oferece como possibilidade. Essa gestão passa por um debate de normas e valores, resultando em escolhas e num modo de agir sempre singular (Schwartz e Durrive, 2007aSCHWARTZ, Yves; DURRIVE, Louis. Uso de si e competências. In: BRITO, Jussara; ATHAYDE, Milton (org.). Trabalho e ergologia: conversas sobre a atividade humana. Niterói: EdUFF, 2007a. p. 207-224. ; Schwartz, 2010SCHWARTZ, Yves. A experiência é formadora? Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 35, n. 1, p. 35-48, 2010. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/educacaoerealidade/article/view/11030/7181 . Acesso em: 5 jul. 2021.
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).

O trabalho prescrito consiste naquilo que antecipa o agir, tais como regulamentos e protocolos, mas também as renormalizações feitas pelo trabalhador em função da necessidade de adaptar as normas à situação real de trabalho (Guérin, Kerguelen e Laville et al., 2014GUÉRIN, François; KERGUELEN, Alan; LAVILLE, Antoine. Compreender o trabalho para transformá-lo: a prática da ergonomia. 7. reimp. São Paulo: Editora Blucher, 2014. ; Scherer et al., 2022SCHERER, Magda et al. Contribuições da ergologia para a gestão do trabalho: entrevista com Yves Schwartz. Trabalho, Educação e Saúde , Rio de Janeiro, v. 20, p. 6, 2022. https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00336. Disponível em: https://www.tes.epsjv.fiocruz.br/index.php/tes/article/view/272 . Acesso em: 6 mar. 2022.
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). O conceito de trabalho prescrito não se limita, por exemplo, ao conceito de prescrição no sentido terapêutico, mas comporta a experiência sempre singular de quem trabalha.

A análise da atividade de trabalho permite conhecer a distância entre as prescrições e as condições concretas de realização do trabalho.

Estudos que busquem analisar a prática farmacêutica em relação às prescrições normativas, às condições concretas de trabalho e a como se efetiva o trabalho real são relevantes, na medida em que possibilitam a criação de parâmetros que auxiliem o desenvolvimento de propostas para o aprimoramento e direcionamento das ações desse profissional na APS (Araújo et al., 2008ARAÚJO, Aílson L. A. et al. Perfil da assistência farmacêutica na atenção primária do Sistema Único de Saúde. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 13, p. 611-617, 2008. https://doi.org/10.1590/S1413-81232008000700010. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232008000700010&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt . Acesso em: 7 nov. 2021.
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; Pinheiro, 2010PINHEIRO, Rafael M. Serviços farmacêuticos na atenção primária à saúde. Tempus: Actas Saúde Coletiva, Brasília, v. 4, n. 3, p. 15-22, 2010. https://doi.org/10.18569/tempus.v4i3.874. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/307800250_Servicios_farmaceuticos_en_la_atencion_primaria_en_salud/fulltext/57ceaff608ae582e06936530/Servicios-farmaceuticos-en-la-atencion-primaria-en-salud.pdf . Acesso em: 5 jul. 2021.
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). Este artigo analisa o trabalho realizado pelos farmacêuticos e a gestão entre o trabalho prescrito e o que o real exige na atenção primária à saúde do Distrito Federal.

Método

Trata-se de um estudo de caso (Yin, 2001YIN, Robert K. Estudo de caso: planejamento e métodos. 2. ed. Bookman Editora, 2001. ), com abordagem qualitativa, realizado de 2016 a 2018 no Distrito Federal, Região Centro-Oeste do Brasil, com triangulação na coleta de dados por meio de entrevistas semiestruturadas e observação, tendo como unidade de análise o trabalho do farmacêutico na APS.

A rede de serviços de saúde do Distrito Federal estrutura-se em sete Regiões de Saúde, com 174 Unidades Básicas de Saúde (UBS). No momento do estudo, 51 farmacêuticos atuavam na APS. Todos receberam convite, por meio eletrônico, para participar da pesquisa, dos quais 16 responderam, e destes, 14 concederam entrevistas. Na sequência, cinco profissionais de distintas Regiões de Saúde (norte, centro-sul, sul e sudoeste) foram selecionados intencionalmente de acordo com a ordem de resposta para observação de suas jornadas de trabalho e entrevista. O número de entrevistados se mostrou adequado, visto que houve saturação de dados (Minayo, 2014MINAYO, Maria C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14. ed. São Paulo: Hucitec, 2014. 407p.).

A coleta dos dados ocorreu de fevereiro a maio de 2017. Quanto às técnicas de produção de dados, foram utilizadas a observação, a entrevista semiestruturada e a análise de documentos. As observações foram realizadas por dois pesquisadores em dois períodos, alternando manhã e tarde, de acordo com a agenda dos profissionais, com média de 14 horas de observação em cada serviço. Foram registradas em diário de campo, orientadas por roteiro aplicado em todas as UBS, que observou aspectos das condições de trabalho, as ações desenvolvidas, a relação dos profissionais com os usuários, demais profissionais e com o ambiente em geral, e a organização do trabalho. As observações ocorreram desde o momento que o farmacêutico iniciou seu trabalho até o encerramento. As entrevistas foram feitas ao final do último período de observação e foram orientadas por roteiro, que contemplou os aspectos estruturais das farmácias, a comunicação entre os farmacêuticos e demais trabalhadores, os processos de tomada de decisão, a identificação de eventos e as ações realizadas pelos profissionais.

Na sequência, os dados foram inseridos em figura que apresenta uma escala temporal, construída a partir do tempo despendido em cada uma das ações realizadas, agrupadas em quatro tipos: pausa; trabalho gerencial/logística; interrupção; atendimento aos usuários. O primeiro tipo informa as ações de cunho pessoal; o segundo, as relacionadas à gestão; o terceiro, as ações interrompidas e, portanto, não concluídas em função de outras demandas de trabalho; e o quarto tipo abarca as ações de atenção aos usuários.

Os recursos disponíveis no software Atlas.ti (Qualitative Research and Solutions), versão 7.1.8 (Soratto, Pires e Friese, 2020SORATTO, Jacks; PIRES, Denise E. P.; FRIESE, Susanne. Thematic content analysis using ATLAS.ti software: potentialities for researchs in health. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, v. 73, n. 3, 2020. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2019-0250. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-71672020000300403&tlng=en . Acesso em: 5 nov. 2021.
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), serviram como ferramenta para sistematizar e categorizar os dados e subsidiar a análise hermenêutica (Alencar, Nascimento e Alencar, 2012ALENCAR, Tatiane O. S.; NASCIMENTO, Maria A. A.; ALENCAR, Bruno R. Hermenêutica dialética: uma experiência enquanto método de análise na pesquisa sobre o acesso do usuário à assistência farmacêutica. Revista Brasileira em Promoção da Saúde, Fortaleza, v. 25, n. 2, p. 243-250, 2012. Disponível em: https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=40823359017 . Acesso em: 5 mar. 2022.
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). O sistema possibilita o armazenamento, codificação e integração dos dados. Assim, os documentos de observação e de entrevista foram inseridos no sistema em dez arquivos numerados de 1 a 10 (cinco entrevistas e cinco observações), formando uma unidade hermenêutica. Para cada um dos arquivos, foi feita uma leitura exaustiva e foram selecionados fragmentos das falas e das observações (como notas de observação) para compor a análise.

Os dados das entrevistas foram sistematizados em triangulação com os achados das observações, evidenciando a forma como se estruturam as farmácias, a organização e as condições de trabalho e como os farmacêuticos fazem a gestão entre o trabalho prescrito e o que o real exige. O conjunto dos resultados foi analisado à luz das normatizações prescritas para o trabalho do farmacêutico emitidas pela Organização Mundial da Saúde em 2013, Ministério da Saúde em 2014 e Secretaria de Estado de Saúde em 2016 (Organização Pan-Americana da Saúde, 2013ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE. Servicios farmacéuticos basados en la atención primaria de salud: documento de posición de la OPS/OMS.Washington, DC : OPS, 2013. 106p. (La Renovación de la Atención Primaria de Salud en las Américas, n. 6). Disponível em: http://www.paho.org/hq/index.php?option=com_docman&task=doc_download&gid=21579&Itemid=270 . Acesso em: 19 set. 2021.
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; Brasil, 2014BRASIL. Ministério da Saúde. Cuidado farmacêutico na atenção básica. Brasília: MS, 2014. 108p. (Caderno 1: serviços farmacêuticos na atenção básica à saúde, v. 1). Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/servicos_farmaceuticos_atencao_basica_saude.pdf . Acesso em: 30 mar. 2022.
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; Distrito Federal, 2016DISTRITO FEDERAL (Estado). Carteira de serviços da atenção primária no DF. Brasília: Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal, 2016. 236 p.) em diálogo com referências da literatura sobre o trabalho como atividade humana (Schwartz e Durrive, 2007aSCHWARTZ, Yves; DURRIVE, Louis. Uso de si e competências. In: BRITO, Jussara; ATHAYDE, Milton (org.). Trabalho e ergologia: conversas sobre a atividade humana. Niterói: EdUFF, 2007a. p. 207-224. ) e estudos sobre a atuação do farmacêutico na APS.

Como forma de preservar a identidade dos profissionais, foram atribuídos letras e números para a identificação das narrativas, sendo a letra F para farmacêutico e números para diferenciar um do outro. As notas de observação são identificadas com as letras NO e os números atribuídos aos farmacêuticos.

A pesquisa foi aprovada pelos Comitês de Ética em Pesquisa em Seres Humanos da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Brasília e da Fundação de Ensino e Pesquisa em Ciências da Saúde do Distrito Federal. A pesquisa foi financiada pela Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal. Este estudo fez parte de uma dissertação de mestrado do Programa de Saúde Coletiva da Universidade de Brasília.

Resultados

Participaram do estudo quatro mulheres e um homem, com idade entre 30 e 40 anos (três) e 41 a 60 anos (dois). Quanto à formação, um graduou-se entre os anos de 1980 e 2000, três entre 2001 e 2010 e um entre 2011 e 2015. Quatro têm curso de especialização nas áreas de Farmacologia, Saúde Coletiva, Gestão da Assistência Farmacêutica, Educação na Saúde para Preceptores do SUS, Farmácia Magistral e Análises Clínicas. O tempo de trabalho na Secretaria de Saúde do DF variou de um a cinco anos (um), de seis a dez anos (três) e 11 a 20 anos (um). Com relação ao tempo de trabalho na APS, quatro profissionais estão entre 1 e 5 anos na área, e um entre 6 e 10 anos. Quatro farmacêuticos possuem jornada de trabalho de 40 horas semanais, e um de 20 horas semanais.

Estrutura das farmácias

A estrutura das farmácias não segue um padrão comum. Das cinco UBS, no momento da coleta de dados, uma estava no modelo ESF e quatro estavam em transição para esse modelo. Em todas as farmácias havia um farmacêutico responsável e outros profissionais de saúde, cuja quantidade variou de duas a seis pessoas com cargo de técnico administrativo.

As farmácias também não tinham estruturas semelhantes com relação ao espaço físico e materiais. Possuíam em comum uma área para entrega de medicamentos e um pequeno guichê de atendimento.

A farmácia fica na entrada da UBS. Tem um guichê de atendimento com proteção de madeira e abertura pequena para comunicação com os usuários, que não permite uma boa comunicação porque um não consegue entender o que o outro diz, e os técnicos gritavam para falar com o usuário, contribuindo para criar um ambiente conturbado e barulhento. A farmácia é pequena, não tem espaço para estoque, e a circulação é difícil. Como não cabem todos os materiais dentro da farmácia, alguns ficam junto ao almoxarifado de materiais. (NO5).

Em duas UBS, a sala para entrega de medicamentos era também um almoxarifado, e uma tinha um espaço isolado e exclusivo para entrega de medicamentos controlados.

A UBS possui três espaços onde ficam medicamentos sob supervisão do farmacêutico: farmácia de dispensação para usuários, farmácia de dispensação de psicotrópicos e almoxarifado (chamam de farmácia interna, onde ficam materiais de saúde e alguns medicamentos estocados). A farmácia de psicotrópicos é pequena e pouco ventilada, a porta tem uma pequena abertura onde ocorre a comunicação com os usuários. Na farmácia ambulatorial, o espaço também não é grande. Tem guichê para atendimento com três janelas de vidro com pouca comunicação com os usuários. (NO4).

Na maioria dos locais, a estrutura foi determinada pela chefia ou são espaços que, desde a abertura da UBS, foram designados para a farmácia.

Organização do trabalho

Com relação às atividades que realizavam todos os dias e como se organizavam, os farmacêuticos relataram não terem rotina preestabelecida para se organizarem segundo as necessidades do dia de trabalho.

Bem, não existe rotina dentro da farmácia. Por mais que a gente planeje, todo dia é uma coisa nova, um paciente novo, é uma coisa que, muitas vezes, a gente nem sabe, mas é bom, porque é um jeito da gente aprender. O meu planejamento hoje era ver o consumo da farmácia interna para avaliar o próximo pedido. Ainda não consegui nem chegar na metade da planilha. Mas uma hora eu vou conseguir. Então, assim, imprevistos acontecem, e a gente tem que ver o que é mais urgente, dar prioridades. (F2).

Eu não faço um planejamento de muito longo prazo. Eu tenho prazos a cumprir, alguma meta a realizar, mas planejamento... É uma espécie de planejamento, mas eu não acho que seja bem detalhado. Eu defino mais quando eu preciso fazer, o que eu preciso fazer, mas o resto das ações não. Por exemplo, eu não tenho dia certo para dar baixa numa receita. Eu dou baixa quando dá. Se hoje eu não tenho nada pra fazer, então “ah, deixa eu olhar isso aqui”. É mais ou menos assim. (F4).

Nessa perspectiva, a atividade de trabalho é sempre imprevisível e se expressa na organização do serviço de modo diferente em cada contexto:

Na minha programação, eu só iria ao almoxarifado hoje. Só que ontem eu recebi um e-mail dizendo que chegou um medicamento que eu estava aguardando porque tenho uma paciente que precisa. Então, eu tive que ir logo buscar o medicamento, porque essa paciente já era para ter recebido, já está em atraso, e se ela viesse, eu não teria pra entregar. Então, a gente programa, mas, no final, quando acontece a situação, é resolver. Depende do tipo de imprevisto. Se é algo como esse, é acionar a chefe, solicitar um carro pra ir lá resolver. Se é uma falta de medicamento, é tentar ver com o prescritor se é aquilo ou não. Se é uma prescrição que fica na dúvida, a gente volta no prescritor. (F1).

Acho que acaba que eu não organizo muito bem uma rotina. Acaba chegando toda hora algo que me tira do que eu fazendo. Eu só tenho que manter: às quartas-feiras eu faço os pedidos para os outros setores; aí final do mês eu fico me organizando pro inventário final do mês. Falei que hoje à tarde eu ia tentar organizar pra ver o que eu vou pedir pro próximo mês, na virada do mês pensando no mês próximo. (F4).

O farmacêutico fica a maior parte do tempo na farmácia interna, onde tem computador para trabalhar. (NO4).

Sobre normas e protocolos orientadores do trabalho na APS, os participantes destacaram os documentos normativos da Secretaria de Saúde do Distrito Federal (SES-DF), como Procedimentos Operacionais Padrão (POPs), e uma circular produzida pela gestão central em 2014, que fala sobre as funções do farmacêutico na APS (Distrito Federal, 2014DISTRITO FEDERAL (Estado). Circular n. 012. Atribuições dos Farmacêuticos nos Centros de Saúde. Brasília, p. 13-3, 2014. ).

A gente tem uma fichinha definida do que é a atribuição do farmacêutico na atenção básica, é dividida em técnico-gerencial e técnico-assistencial. O farmacêutico da Secretaria de Saúde na atenção básica não é o chefe e ele não é o responsável pela farmácia, a responsabilidade da farmácia é da gerência. A gente apenas aconselha, informa e diz o que deve ser feito e o que não deve ser feito tecnicamente. Na parte técnico-gerencial, que é a parte de logística, a minha função é supervisionar. Então, não é obrigação só minha fazer os pedidos, os meninos podem fazer os pedidos desde que eles sejam treinados. Só que, quando eu estou na unidade, eu assumo pra mim, porque a demanda de atendimento é muito puxada. Então, eu prefiro deixar os meninos por conta do atendimento e eu assumo essa parte de gerenciamento. Então, o controle de estoque, pedidos, buscar o material no almoxarifado, buscar o pedido, essa parte toda, logística mesmo, fica pra mim. Mas não necessariamente é função só minha como farmacêutico. Eu posso delegar a eles, e a minha função principal seria supervisionar e a parte técnico-assistencial, que seria o contato mesmo com o paciente, orientação farmacêutica. O ideal mesmo é que os meninos sejam treinados pra oferecer aquelas informações mais básicas. Pra que serve... O que for básico. Ficaram na dúvida, eles têm que saber o momento de chamar. Se precisa chamar, se não precisa, se tem que encaminhar pro médico. Aí é feito esse treinamento. (F1).

Mesmo reconhecendo a existência de normas, os farmacêuticos consideram que estas não respondem às necessidades advindas da realidade, por isso, não as utilizam na íntegra e escolhem outras maneiras de fazer.

É uma questão que está bonito no papel, mas, no trabalho, não funciona muito bem. Porque tem várias funções que a gente não consegue desempenhar. Lá fala bonitinho da farmácia clínica. Acho que ninguém em Brasília consegue fazer farmácia clínica de tão ocupado com as condições físicas que a gente fica. (F5).

Tudo eu acho que tem que ser direcionado para o bem do paciente. Mas, ao mesmo tempo, eu acho que tem que ter normas e rotinas que têm que ser seguidas. E nem sempre essas normas estão beneficiando o paciente. E aí é onde a gente entra. (F2).

Aqui na SES é muito difícil você conseguir documentações escritas, muitas vezes você tem que ir atrás. [...] Às vezes alguém do centro X fala “mas aqui eu uso esse protocolo”. “Mas como assim vocês usam aí e nunca chegou aqui pra mim?” E aí a gente tem que ficar em grupos, um pede, outro pede. Mas a gente usa muito o grupo dos farmacêuticos. A gente tem um e-mail que todos os farmacêuticos têm acesso, aí todo mundo vai lá e pesquisa. A informação chegar até a gente é muito difícil. (F4).

Na ausência de normas institucionais que possam especificar o que fazer numa situação do dia a dia de trabalho, os farmacêuticos faziam suas próprias normas. Eles se apoiavam nos protocolos e, ao mesmo tempo, normatizavam o que não estava prescrito (Schwartz, 2010SCHWARTZ, Yves. A experiência é formadora? Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 35, n. 1, p. 35-48, 2010. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/educacaoerealidade/article/view/11030/7181 . Acesso em: 5 jul. 2021.
https://seer.ufrgs.br/index.php/educacao...
).

O farmacêutico tenta seguir todas as regras de dispensação, armazenamento, controle de estoque e outras, mas permite, por exemplo, que os técnicos entreguem medicamentos aos usuários sem que estes apresentem o documento pessoal ou cartão do SUS. Apesar de serem orientados a respeito das normas, essa é uma decisão para não deixar o usuário sem medicamento e fazê-lo ter que voltar depois, principalmente aqueles usuários que moravam longe da UBS. (NO2).

As principais responsabilidades atribuídas aos farmacêuticos, segundo eles mesmos, são: garantir o bom funcionamento da farmácia, gerenciar o estoque e o abastecimento de medicamentos, assim como realizar o cuidado farmacêutico e a educação em saúde.

Eu tenho que coordenar, por exemplo, a parte de abastecimento. Mas, na realidade, eu tenho que fazer a parte de dispensação da farmácia, que tem que ficar sob minha supervisão; a parte de abastecimento interno também é minha, controle de estoque de medicamentos e materiais médico-hospitalares. Então, tem toda essa parte mais chata, burocrática. Não está muito dentro da secretaria hoje, mas eu faço a parte de educação, que normalmente eu faço palestras. E a parte do cuidado, que agora a gente está fazendo o curso [de Cuidado Farmacêutico] e está institucionalizando. (F3).

Tempo e tarefas

O Gráfico 1 mostra o trabalho realizado pelos farmacêuticos, explicitando as variabilidades e as distintas temporalidades por tipo de ação. As ações observadas foram reunidas em grupos de tarefas, e a proporção de cada uma é apresentada na Tabela 1.

Gráfico 1
Relação entre o tempo e as tarefas em um período de até 4 horas de trabalho dos farmacêuticos.

Tabela 1
Distribuição de tarefas para cada farmacêutico (F1 a F5) de acordo com a observação do tempo de realização de cada uma. Brasília, DF, Brasil, 2018.

Durante o período de trabalho observado, os farmacêuticos faziam intervalos para ligação pessoal, lanche, conversa com a equipe sobre questões aleatórias e uso do celular, incluindo aplicativo WhatsApp®. Esses momentos representam pouco do total de atividades desenvolvidas.

No meio da manhã, o farmacêutico fez uma pausa para o lanche. Foi na copa e conversou com colegas da UBS. (NO3).

O farmacêutico estava trabalhando no computador quando recebeu uma ligação pessoal. Assim que finalizou, foi conversar com uma das técnicas da farmácia. (NO2).

O profissional havia saído para resolver um problema em outra sala, quando estava voltando parou e conversou com servidores que estavam lanchando numa sala, depois voltou para o almoxarifado. (NO4).

As principais tarefas dos farmacêuticos eram aquelas ligadas à gestão do medicamento, como mostra a Tabela 1. As tarefas eram essencialmente dar baixa de receitas no sistema, realizar pedido de medicamento ou material, alimentar planilhas de Excel® com dados sobre estoque de medicamentos, responder e-mails e descartar medicamentos.

O farmacêutico passou a maior parte do tempo no computador dando baixa em receitas. Havia uma pilha de receitas, e ele alimentava um sistema ou planilha com os dados. Em alguns momentos, era interrompido pelos funcionários ou usuários e logo voltava às tarefas administrativas. (NO1).

Aqui eu acabo abarcando várias responsabilidades que eu poderia delegar para outros setores. Como você viu ali, eu faço o pedido para outros setores. A função de pedir, de solicitar material médico-hospitalar no hospital não seria minha. Mas só que muitas vezes o setor acha que a obrigação é minha de ir atrás do estoque. Se falta uma gaze, os enfermeiros falam que a obrigação é minha procurar saber se estava faltando gaze e não eles virem com a demanda que “Estamos sem gaze. Precisamos a quantidade X de gaze”. Eu acabei abarcando essa responsabilidade que não deveria ser minha, porque se eu não fizer, falta. (F5).

O atendimento no balcão era compreendido como uma tarefa dos técnicos. Não é possível precisar o motivo, mas as observações sugerem que o trabalho logístico demanda muito e não sobra tempo para a assistência ao usuário.

O farmacêutico, durante o tempo de observação, trabalhou principalmente na parte administrativa de controle de estoque, preenchimento de planilhas etc. Quando precisou, ele ajudou no atendimento, mas ficou claro que as funções são separadas, ou seja, os técnicos ficam responsáveis pelo atendimento, e ele, pelas atividades de gestão. (NO2).

Reiteradas vezes são apontadas a estrutura física, equipamentos, insumos e condições de trabalho como elementos fundamentais para a realização da assistência farmacêutica. A preocupação central era não deixar faltar medicamento na Unidade.

Olha, o mais importante aqui hoje para a gente é não deixar faltar o medicamento. Então, a gente sempre corre atrás disso, sempre o que eu dou prioridade é para isso. Está faltando, eu tenho que correr atrás para não deixar faltar, ainda mais que a gente está tipo que apagando incêndio. Nesta semana mesmo, a gente ficou sem espéculo, aí tive que correr atrás de espéculo. (F3).

Os profissionais saíam das suas salas para resolver questões em outros setores ou com outros profissionais da UBS. Isso mostrou uma necessidade de interação e movimentação para realizarem seu trabalho.

Após chegar à UBS e realizar tarefas administrativas, o farmacêutico saiu para a sala onde acontecia o atendimento de usuários. Ele chegou e conversou com o técnico sobre as tarefas, organizou uma parte do estoque de medicamentos e logo voltou para a sala dele (NO3).

O farmacêutico recebeu solicitação de entrega de material para enfermagem. Saiu da sala e foi no almoxarifado interno. Separou os materiais e levou para a enfermagem. (NO5).

O uso do celular no trabalho, principalmente do aplicativo WhatsApp® para conversar com outros farmacêuticos, apareceu como transversal às atividades dos profissionais, atentos às novas mensagens e conversas no celular. Os grupos representam uma forma de comunicação entre os profissionais não só da mesma Regional de Saúde, mas de toda a SES-DF, e eles conversam sobre remanejamento de medicamentos, normas para o trabalho e outras questões.

Logo cedo, enquanto o farmacêutico trabalhava, olhava o celular pessoal. Mais tarde, ele explicou, e observamos que ele usa celular para falar com outros farmacêuticos e pessoas da SES, além de uso pessoal. Eles estão sem telefone na UBS e precisam usar o próprio celular para comunicação. (NO1).

Nas observações diretas do trabalho realizado pelos farmacêuticos no interior da farmácia, durante as saídas ou interrupções, os profissionais também realizavam atividades técnico-gerenciais, técnico-assistenciais ou ambas junto a outros profissionais das equipes. A menor fração do seu tempo de trabalho era destinada às interações diretas junto aos usuários para orientações farmacêuticas.

Foi observado que não existia um trabalho sistematizado de dispensação, orientação farmacêutica e acompanhamento dos usuários. Exceção feita aos casos específicos, como a orientação sobre o uso de antirretrovirais. Via de regra, eles fazem cuidado farmacêutico quando aparece a demanda, sem planejamento, uma intervenção pontual com o usuário:

Já aconteceu do médico me chamar: “X, tem como você orientar esse paciente?”. Aí eu vou lá, sento-me com o paciente, faço desenho, faço caixinha, faço um monte de coisas pra tentar fazer o paciente entender a prescrição. Já aconteceu de fazer a orientação farmacêutica, que ainda não é uma atenção farmacêutica. Uma orientação só. Porque eu não tenho registro. Nem sei quem é esse paciente, não tenho registro de nada. (F2).

O técnico estava com dúvida na prescrição e chamou o farmacêutico para atender a usuária. Ele foi até o guichê e conversou para entender melhor a prescrição e a necessidade de uso do medicamento pela usuária. Fez a entrega do medicamento e voltou para o computador. (NO1).

Para os farmacêuticos, o usuário era prioridade, principalmente no sentido de que o medicamento não pode faltar para atender à necessidade imediata do tratamento. Porém, não conseguiam desenvolver um trabalho para além da entrega do medicamento. Referiram que a estrutura e as condições para o trabalho são limitadoras.

Dispensação a gente tenta fazer, mas é complicado, porque, na Secretaria, a gente não tem estrutura boa para isso. Não sei se vocês repararam (no) nosso guichê, ele não oferece privacidade nenhuma para o paciente. Então, a gente tem essa dificuldade para realizar uma boa dispensação. Alguns casos que precisam de um pouco de privacidade eu os chamo lá para salinha para conversar. (F1).

O período analisado mostra um ritmo de trabalho variado, com interrupções durante toda a jornada. As interrupções frequentes dificultam a conclusão de tarefas e acarretam a sobreposição de diferentes atividades. “Ao mesmo tempo que está dando baixa em receitas no computador, o farmacêutico responde dúvidas de usuários ou de outro profissional da UBS” (NO3).

Para o farmacêutico, as interrupções podem representar o reconhecimento do seu trabalho, quando pode tirar dúvidas ou solucionar problemas. Também, como um modo de interagir com a dinâmica de atendimentos e abrir espaço para a participação nos casos clínicos.

Na verdade, eu acho até bom que elas venham. Eu queria que viessem mais e perguntassem mais. A farmácia é meio excluída das decisões da SES. Se perguntassem e viessem atrás da gente para discutir algum caso clínico, seria muito interessante. Raramente alguém vem perguntar alguma coisa sobre algum caso. Mais sobre uma questão de falta medicamento, falta alguma coisa. Só vê essa função da farmácia como solicitante. Eu queria fazer mais parte dos casos clínicos que eu não tenho acesso. (F5).

Esse negócio de interrupção tem o lado bom e o lado ruim, porque muita gente vem aqui me perguntar, tirar dúvidas, é enfermeiro, é técnico, dúvidas com relação a medicamento, com relação a paciente, com relação a programas, que acaba que eu acho que é importante para a gente, a cada dia ir aprendendo mais, porque muitas vezes eu não sei o que eles perguntam, mas eu corro atrás e resolvo, é por isso que eles vêm me perguntar. (...) acaba sendo um reconhecimento do meu trabalho, eu não me sinto incomodada com isso. Tem horas que realmente isso se torna cansativo, mas até então eu consigo administrar isso direitinho. (F2).

O farmacêutico pode definir como vai utilizar seu tempo numa jornada de trabalho, priorizando uma tarefa ou outra que se espera que realize. Faz isso de acordo com sua percepção do que é importante para aquele momento, mas, ao longo do dia de trabalho, acontecem visitas, interrupções e imprevistos que podem exigir repensar a organização programada.

Discussão

Os resultados mostram um grupo de maioria feminina, jovem e de recente inserção na APS, graduado e atuando na Secretaria de Saúde há cerca de dez anos. Trabalham em farmácias com estruturas precárias e parecem ter poucas perspectivas de mudança. As principais ações profissionais desenvolvidas situam-se no âmbito técnico-gerencial, como solicitação e recebimento de medicamentos e controle de estoque da farmácia. As tarefas ligadas à assistência ao usuário são pontuais e esporádicas.

A situação da estrutura no contexto estudado não difere do encontrado em outros lugares do país. Estudos que investigaram infraestrutura das farmácias do SUS (Vieira, 2007VIEIRA, Fabiola S. Possibilidades de contribuição do farmacêutico para a promoção da saúde. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 12, n. 1, p. 213-220, 2007. https://doi.org/10.1590/S1413-81232007000100024. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232007000100024&lng=pt&tlng=pt . Acesso em: 20 set. 2021.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
; Araújo et al., 2008ARAÚJO, Aílson L. A. et al. Perfil da assistência farmacêutica na atenção primária do Sistema Único de Saúde. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 13, p. 611-617, 2008. https://doi.org/10.1590/S1413-81232008000700010. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232008000700010&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt . Acesso em: 7 nov. 2021.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
; Barbosa et al., 2017BARBOSA, Mariana M. et al. Infrastructure evaluation of pharmaceutical services in the national health system of Minas Gerais. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 22, n. 8, p. 2.475-2.486, 2017. https://doi.org/10.1590/1413-81232017228.10952017. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/28793065 /. Acesso em: 10 out. 2021
https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/28793065...
) mostram que nas unidades de saúde a farmácia ocupa espaços pequenos, sem necessariamente terem condições mínimas para armazenamento de medicamentos e atendimento adequado dos usuários.

Segundo estudo de Leite et al. (2017LEITE, Silvana N. et al. Infrastructure of pharmacies of the primary health care in the Brazilian Unified Health System: analysis of PNAUM - services data. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 51, p. 1s-10s, 2017. https://doi.org/10.11606/S1518-8787.2017051007120. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rsp/article/view/139755/135036 . Acesso em: 17 ago. 2021.
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), o local destinado à dispensação dos medicamentos, onde se dá a relação entre o usuário e o dispensador, foi menor que 5 m2 em unidades de saúde do Nordeste. Além disso, essas áreas eram usadas para outras atividades, prejudicando o desenvolvimento de serviços de dispensação.

O espaço adequado para atendimento ao usuário não contribui para que as relações sejam humanizadas, para a promoção de bem-estar e confiança. A dificuldade de atender o usuário com individualidade, incluindo barreiras físicas, prejudica a comunicação efetiva e a relação terapêutica (Leite et al., 2017LEITE, Silvana N. et al. Infrastructure of pharmacies of the primary health care in the Brazilian Unified Health System: analysis of PNAUM - services data. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 51, p. 1s-10s, 2017. https://doi.org/10.11606/S1518-8787.2017051007120. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rsp/article/view/139755/135036 . Acesso em: 17 ago. 2021.
https://www.revistas.usp.br/rsp/article/...
; Melo et al., 2021MELO, Angelita C. et al. Community pharmacies and pharmacists in Brazil: a missed opportunity. Pharmacy Practice (Granada), Redondela, v. 19, 2021. https://doi.org/10.18549/pharmpract.2021.2.2467. Disponível em: http://scielo.isciii.es/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1885-642X2021000200018&nrm=iso . Acesso em: 27 fev. 2022.
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). A inadequação dos meios de trabalho influencia na atividade, podendo dificultá-la ou até mesmo impedi-la (Bertoncini, Pires e Scherer, 2011BERTONCINI, Judite H.; PIRES, Denise E.; SCHERER, Magda D. A. Condições de trabalho e renormalizações nas atividades das enfermeiras na saúde da família. Trabalho, Educação e Saúde , Rio de Janeiro, v. 9, n. 1, p. 157-173, 2011. https://doi.org/10.1590/S1981-77462011000400008. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1981-77462016000300871&lng=pt&tlng=pt . Acesso em: 8 ago. 2021.
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).

A estrutura é fundamental para a qualidade dos serviços, assim como os processos realizados e os resultados alcançados (Donabedian, 2005DONABEDIAN, Avedis. Evaluating the quality of medical care. Milbank Q, v. 83, n. 4, p. 691-729, 2005. https://doi.org/10.1111/j.1468-0009.2005.00397.x. Disponível em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/epdf/10.1111/j.1468-0009.2005.00397.x . Acesso em: 22 ago. 2021.
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), mas ela cumpre suas finalidades se os processos de trabalho e de gestão forem adequados. Inversamente, os processos não podem, sozinhos, ultrapassar limitações estruturais, e todas as três dimensões somente atingem seus objetivos finais com o alcance dos resultados (Santos e Santos, 2007SANTOS, Sandra M. C.; SANTOS, Leonor M. P. Avaliação de políticas públicas de segurança alimentar e combate à fome no período de 1995-2002: 1 - abordagem metodológica. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 23, n. 5, p. 1.029-1.040, 2007. https://doi.org/10.1590/S0102-311X2007000500005. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2007000500005&lng=pt&tlng=pt . Acesso em: 22 jul. 2021.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
).

Para orientar a atuação do farmacêutico na APS, existe um conjunto de diretrizes da Organização Mundial de Saúde (Organização Pan-Americana da Saúde, 2013ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE. Servicios farmacéuticos basados en la atención primaria de salud: documento de posición de la OPS/OMS.Washington, DC : OPS, 2013. 106p. (La Renovación de la Atención Primaria de Salud en las Américas, n. 6). Disponível em: http://www.paho.org/hq/index.php?option=com_docman&task=doc_download&gid=21579&Itemid=270 . Acesso em: 19 set. 2021.
http://www.paho.org/hq/index.php?option=...
), Ministério da Saúde (Brasil, 2014BRASIL. Ministério da Saúde. Cuidado farmacêutico na atenção básica. Brasília: MS, 2014. 108p. (Caderno 1: serviços farmacêuticos na atenção básica à saúde, v. 1). Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/servicos_farmaceuticos_atencao_basica_saude.pdf . Acesso em: 30 mar. 2022.
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoe...
) e, localmente, das Secretarias de Saúde dos Estados e do Distrito Federal, que definem as atividades que compõem os serviços farmacêuticos técnico-gerenciais e os serviços farmacêuticos técnico-assistenciais, assim como as atribuições do farmacêutico e as atividades que poderão ser realizadas por outros profissionais sob a sua supervisão (Distrito Federal, 2016DISTRITO FEDERAL (Estado). Carteira de serviços da atenção primária no DF. Brasília: Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal, 2016. 236 p.).

Segundo a Carteira de Serviços da Atenção Primária do Distrito Federal (Distrito Federal, 2016DISTRITO FEDERAL (Estado). Circular n. 012. Atribuições dos Farmacêuticos nos Centros de Saúde. Brasília, p. 13-3, 2014. ), as ações de responsabilidade do farmacêutico são programação de medicamentos e produtos para saúde, educação em saúde, ações de farmacovigilância, atuação em conjunto com a equipe e realização de orientação farmacêutica e acompanhamento farmacêutico. As ações supervisionadas por ele são, dentre outras: solicitação, recebimento, armazenamento, controle de estoque, inventário e descarte de medicamentos (Distrito Federal, 2016DISTRITO FEDERAL (Estado). Circular n. 012. Atribuições dos Farmacêuticos nos Centros de Saúde. Brasília, p. 13-3, 2014. ).

O presente estudo evidencia que o farmacêutico tem sua atuação centrada na organização e gestão dos serviços farmacêuticos, sobretudo na logística do medicamento. Contrariando as orientações contidas na Carteira de Serviços do DF, o farmacêutico assume, sobretudo, as ações que seriam da responsabilidade dos técnicos sob a sua supervisão. Observa-se que no conjunto das tarefas realizadas, no momento da pausa, da interrupção ou do trabalho gerencial, o menor tempo gasto é com o usuário. Corroborando com esses achados, pesquisa com atores envolvidos na assistência farmacêutica, vinculados ao Governo Federal e Distrital, identificou que a ausência da prestação dos serviços clínicos é a principal lacuna observada no processo de avaliação da assistência farmacêutica na atenção primária (Soares, Brito e Galato, 2020SOARES, Leticia S. S.; BRITO, Evelin S.; GALATO, Dayani. Percepções de atores sociais sobre Assistência Farmacêutica na atenção primária: a lacuna do cuidado farmacêutico. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 44, n. 125, p. 411-426, 2020. https://doi.org/10.1590/0103-1104202012510. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/j3FQQgDzB8Kbv4Lm4hQPFCR/?lang=pt . Acesso em: 25 out. 2021.
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).

Os resultados encontrados no Distrito Federal acompanham a realidade do país (Melo et al., 2021MELO, Angelita C. et al. Community pharmacies and pharmacists in Brazil: a missed opportunity. Pharmacy Practice (Granada), Redondela, v. 19, 2021. https://doi.org/10.18549/pharmpract.2021.2.2467. Disponível em: http://scielo.isciii.es/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1885-642X2021000200018&nrm=iso . Acesso em: 27 fev. 2022.
http://scielo.isciii.es/scielo.php?scrip...
). Um estudo que avaliou os serviços farmacêuticos em todos os estabelecimentos públicos de saúde vinculados ao SUS, em 465 municípios de 17 unidades da federação, concluiu que as atividades assistenciais não são realizadas de forma consistente em todas as regiões do Brasil, indicando a prevalência quase que exclusiva do componente logístico (Araújo et al., 2017ARAÚJO, Suetônio Q. et al. Organização dos serviços farmacêuticos no Sistema Único de Saúde em regiões de saúde. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 22, n. 4, p. 1.181-1.191, 2017. https://doi.org/10.1590/1413-81232017224.27042016. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232017002401181&lng=pt&tlng=pt . Acesso em: 1 ago. 2021.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
). Associado ao mesmo estudo, o trabalho de Costa et al. (2014) identificou como incipiente a presença de serviços farmacêuticos clínicos no gerenciamento da terapia medicamentosa.

A busca de explicações para esses resultados de pesquisa deve ser cuidadosa. Análises precipitadas da predominância dos serviços técnico-gerenciais podem levar à culpabilização dos farmacêuticos, como se a assistência farmacêutica não fizesse parte da atenção integral à saúde e, portanto, não fosse de responsabilidade multiprofissional. A concepção de outros profissionais da APS de que o farmacêutico é o profissional do medicamento e é desnecessária a sua presença regular pode contribuir para reforçar a escolha de focar naquilo que é necessário e valorizado, o que “seria decorrente de um contexto histórico de pouca inserção em atividades de atenção básica e de falta de reconhecimento social, além de formação técnica com pouca ênfase na parte clínica e no Sistema Único de Saúde” (Barberato, Scherer e Lacourt, 2019BARBERATO, Luana C.; SCHERER, Magda D. A.; LACOURT, Rayane M. C. The pharmacist in the Brazilian primary health care: insertion under construction. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 24, n. 10, p. 3.717-3.726, 2019. https://doi.org/10.1590/1413-812320182410.30772017. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/FnYZKhZG6QJxWfmHJsVz8dH/?lang=en . Acesso em: 9 jul. 2021.
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, p. 3720).

O sentimento de não valorização e não reconhecimento do trabalho, expresso nas entrevistas, pode estar na raiz da explicação do porquê o farmacêutico assume o que não é dele, como as tarefas que seriam dos técnicos e, inclusive, a gestão dos materiais médico-hospitalares. Rotular as escolhas do farmacêutico como baseadas em visão reduzida e simples fornecimento de medicamentos aos usuários, conforme interpretação simplista comum na gestão pública (Santos e Soares, 2016SANTOS, Rosana I.; SOARES, Luciano. Saúde e cidadania. In: SANTOS, Rosana I. et al. Assistência farmacêutica no Brasil: política gestão e clínica: políticas de saúde e acesso a medicamentos. Florianópolis: UFSC, 2016. p. 59-112. ), é não compreender os dramas do trabalho humano.

Para compreender o trabalho no seu sentido mais amplo, é preciso ir além do conhecimento das normas e da realização de um checklist da execução das tarefas prescritas, é preciso buscar a explicação, junto aos protagonistas do trabalho, do que orienta as suas escolhas (‘Se eu não fizer, falta’). No trabalho não há mera execução, pois o indivíduo é convocado pelo meio para resolver problemas e ser eficaz, ele precisa mobilizar recursos e capacidades infinitamente mais vastos do que os que explicitamente a tarefa cotidiana requer (Schwartz, 2000SCHWARTZ, Yves. Le paradigme ergologique ou un mètier de philosophe. Toulouse: Octarès, 2000. 763p.).

Os resultados do presente estudo poderiam nos levar a um julgamento da não conformidade do que é feito pelos farmacêuticos em relação ao trabalho prescrito e idealizado. Entretanto, cruzando os achados das entrevistas com os da observação, considera-se que eles agem no sentido de garantir o acesso dos usuários aos medicamentos e demais insumos essenciais como prioridade.

É a distância entre o prescrito e o real que cria a subjetividade no trabalho. São as inconstâncias, novidades e imprevistos no trabalho que requisitam os profissionais para gerirem as infidelidades do meio e para agirem em competência, o que é sempre um desafio não só no âmbito individual, mas coletivo (Schwartz e Durrive, 2007bSCHWARTZ, Yves; DURRIVE, Louis. Técnicas e competências. In: BRITO, Jussara; ATHAYDE, Milton (org.). Trabalho e ergologia: conversas sobre a atividade humana . Niterói: EdUFF , 2007b. p. 85-102. ).

Considerações finais

A análise do trabalho dos profissionais na atenção primária permitiu identificar a distância existente entre o trabalho prescrito e as condições concretas da sua realização, assim como os dilemas e os esforços vividos para garantir o acesso dos usuários ao medicamento. Os farmacêuticos se movem entre as normas, os limites da estrutura, aquilo que eles avaliam como sendo exigência dos usuários, dos gestores e da equipe e a sua própria capacidade de agir.

Apesar dos limites estruturais das farmácias, há elementos no contexto, revelados pelos farmacêuticos, que podem favorecer a ampliação das atividades técnico-assistenciais: a garantia do acesso aos medicamentos como princípio ético; as normativas; a postura de aprendizagem dos profissionais e de abertura para enfrentar o inusitado; a conexão com necessidades da equipe da UBS; a ação coletiva dos farmacêuticos; e a formação sobre o cuidado farmacêutico.

Com base nos resultados encontrados, pode-se afirmar que ainda são necessárias sistematizações da experiência do farmacêutico na APS para o fortalecimento da assistência farmacêutica no SUS.

Agradecimentos

A Rayane Lacourt, Lais Bié e Loyane Chaves, da Universidade de Brasília, pela contribuição na coleta de dados.

Referências

  • Financiamento

    Trabalho financiado pela Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal, protocolo n. 4478.25.30322.06072015.
  • Aspectos éticos

    A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Brasília, parecer n. 51631015.5.3001.5553, de 4 de abril de 2016.
  • Apresentação prévia

    Esse artigo é resultante da dissertação de mestrado intitulada “Análise da atividade de trabalho do farmacêutico na atenção primária no Distrito Federal, Brasil”, de Luana Chaves Barberato, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência e Saúde Coletiva da Universidade de Brasília, em 2017. Dissertação realizada no âmbito da pesquisa “O trabalho do farmacêutico na atenção primária à saúde no Distrito Federal”, coordenada por Magda Duarte dos Anjos Scherer.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    20 Nov 2021
  • Aceito
    14 Mar 2022
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