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A ressignificação e a invenção das palavras como forma de representação do conhecimento nas prisões

Resignification and the invention of words as a form of representation of knowledge in prisons

Resumo:

A linguagem reflete perspectivas e vivências do contexto em que estamos inseridos e, com isso, permite a interação social entre as pessoas. A investigação da linguagem no escopo desta pesquisa está relacionada à utilização de palavras no contexto das prisões como uma forma específica de representação do conhecimento no referido contexto. Pode-se encontrar na linguagem aspectos relativos ao cotidiano das prisões, como procedimentos de segurança, disciplina, projetos em desenvolvimento, além das histórias de vida das pessoas ali inseridas. O universo do presente estudo é a Penitenciária Masculina de Florianópolis (Santa Catarina). Nesse sentido, os sujeitos desta pesquisa são as pessoas privadas de liberdade, e o objeto de estudo é a linguagem utilizada por elas. O objetivo principal é investigar as possíveis formas de representação do conhecimento, sob a perspectiva dos jogos de linguagem, da população carcerária. No que concerne aos procedimentos metodológicos, a pesquisa está caracterizada como descritiva, bibliográfica e qualitativa, que considera uma relação entre o mundo real e o sujeito. Em relação aos resultados, vinte e seis pessoas privadas de liberdade foram entrevistadas, e 460 termos utilizados na linguagem cotidiana da Penitenciária foram recuperados. A partir dos termos coletados, doze categorias foram elencadas para o agrupamento e acomodação conceitual de cada termo. Percebeu-se que a criação desta linguagem composta por termos inventados ou ressignificados vai além dos processos de socialização, pois se refere também a proteção, resistência e sobrevivência dentro dos ambientes prisionais. Com isso, os jogos de linguagem envolvidos nas comunicabilidades instituídas nas prisões são evidentes e as regras bem definidas.

Palavras-chave:
Linguagem na prisão; Representação do Conhecimento; Organização do conhecimento; Jogos de linguagem; População Carcerária

Abstract:

Language reflects perspectives and experiences from the context in which we are inserted, and this allows social interaction between people. The language investigation, in the scope of this research, is related to the use of words, in the context of prisons, as a specific way of representing knowledge in that context. Aspects related to the daily life of prisons can be found in the language, such as: security procedures, discipline and projects under development, in addition to the life stories of the people inserted there. The domains of the present study is the Male Penitentiary of Florianópolis/SC. In this sense, the subjects of this research are people deprived of liberty, and the object of study is the language used by them. The main objective is to investigate the possible forms of knowledge representation, from the perspective of language games, of prison’s population. With regards to methodological procedures, the research is characterized as descriptive, bibliographical and qualitative - which considers a relationship between the real world and the subject. Regarding the results, twenty-six people deprived of liberty were interviewed, and 460 terms used in the daily language at the Penitentiary were retrieved. From the collected terms, twelve categories were listed for the grouping and conceptual accommodation of each term. It was noticed that the creation of this language, composed of invented or resignified terms, goes beyond the socialization processes, it also refers to protection, resistance and survival within prison environments. This being said, the language games involved in the communicabilities instituted in prisons, are evident and the rules well defined.

Keywords:
Language in prison; Knowledge representation; Knowledge organization; Language games; Prison Population

Introdução

Este texto comunica um estudo relacionado à linguagem oral e/ou escrita utilizada pelas pessoas privadas de liberdade. Para tanto, o estudo foi desenvolvido na Penitenciária Masculina de Florianópolis, vinculada ao Complexo Penitenciário de Florianópolis, localizado na capital do Estado de Santa Catarina.

A linguagem utilizada nas prisões, assim como toda linguagem, está em incessante desenvolvimento. Em vista disso, para sua compreensão, é preciso interpretar as ambiências que estão incorporados. A linguagem “[...] está intrinsecamente no liame das relações de sociabilidade, no exercício do poder e em todas as dimensões e ambientes em que o homem está inserido” (Oliveira, 2013Oliveira, H. C. A linguagem no cotidiano prisional: enigmas e significados. Jundiaí: Paco Editorial, 2013., p. 19). Reflete perspectivas do contexto onde a pessoa foi/está alocada, com isso, os vocabulários linguísticos existentes nas prisões “contribuem para a sociabilidade, controle e comunicação interna e externa e se configura em elemento central da prática social” (Oliveira, 2013Oliveira, H. C. A linguagem no cotidiano prisional: enigmas e significados. Jundiaí: Paco Editorial, 2013., p. 89), além disso, as linguagens não são apenas verbais.

A linguagem é intrínseca às pessoas, “cabendo considerar e compreendê-la como interação, ou melhor, como ação/prática social e cultural dotada de efeitos de sentidos, em decorrência ao espaço e sujeitos que o compõem” (Oliveira, 2013Oliveira, H. C. A linguagem no cotidiano prisional: enigmas e significados. Jundiaí: Paco Editorial, 2013., p. 125). Com isso, apresentaremos as perspectivas sobre o uso das palavras e jogos de linguagem baseados nas perspectivas de Wittgenstein (1975)Wittgenstein, L.Investigações filosóficas. São Paulo: Abril Cultural, 1975., onde o autor afirma que a linguagem está em constante alteração, visto que é baseada no contexto histórico e cultural em que a pessoa vive, assim, apresentando múltiplas usabilidades. Portanto, a palavra pode ter mais de um significado, mais de uma forma de comunicação, por exemplo.

Nesse sentido, o que nos move é o desejo de compreender se os usos de palavras ressignificadas ou mesmo inventadas revelam formas específicas de representação do conhecimento em contextos prisionais. Assim, nosso objetivo é verificar possíveis formas de representação do conhecimento, sob a perspectiva dos jogos de linguagem, da população carcerária.

A representação do conhecimento “constitui uma estrutura conceitual que representa modelos de mundo, os quais [...] permitem descrever e fornecer explicações sobre os fenômenos que observamos” (Brascher; Café, 2008Brascher, M.; Café, L. Organização da Informação ou Organização do Conhecimento? In: ENANCIB, 9., 2008, São Paulo. Anais [...]. São Paulo: USP, 2008. Disponível em: Disponível em: http://repositorios.questoesemrede.uff.br/repositorios/handle/123456789/809 . Acesso em: 15 jun. 2021.
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, p. 6).

Contextualizando o universo da pesquisa, é importante frisar que o sistema prisional passou por diversas modificações até se constituir como o conhecemos hoje. Das motivações voltadas para a privação de liberdade, “a mais importante era o lucro, tanto no sentido restrito de fazer produtiva a própria instituição, quanto no sentido amplo de tornar o sistema penal parte do programa mercantilista do Estado” (Rusche; Kirchheimer, 1939Rusche, G.; Kirchheimer, O.Punição e estrutura social. Rio de Janeiro: Revan, 1939., p. 102).

De acordo com Melossi e Pavarini (2017, p. 13)Melossi, D.; Pavarini, M. Cárcere e fábrica: as origens do sistema penitenciário (séculos XVI-XIX). Rio de Janeiro: Revan, 2017., o sistema prisional originou-se com as casas de correção, consideradas os primeiros modelos de prisão na Inglaterra do século XVI, as quais tinham como objetivo recolher as pessoas apontadas como “ociosas, vagabundas, ladras e autoras de delitos de menor importância e submetê-las ao trabalho obrigatório e a uma rígida disciplina”.

A sociedade fundamentada no capitalismo2 Os autores declaram não haver conflito de interesses está em constante reestruturação no que diz respeito à economia e aos aspectos sociais em geral, e, nesta oportunidade, as classes dominantes influenciam na organização do mercado de trabalho, no custo da mão de obra desempenhada nas ações desenvolvidas e assim por diante (Melossi; Pavarini, 2017Melossi, D.; Pavarini, M. Cárcere e fábrica: as origens do sistema penitenciário (séculos XVI-XIX). Rio de Janeiro: Revan, 2017.). Como consequência dessas intervenções, percebe-se um mercado excludente que determina quem estará presente ou não nessas ambiências, ajudando a consolidar um processo de desigualdade social. Assim, as pessoas excluídas são aquelas vulnerabilizadas socialmente, sem quaisquer perspectivas de oportunidade em relação à educação, ao mercado de trabalho, à saúde, à segurança etc. Estas pessoas, não é descabido afirmar, estão mais próximas do sistema prisional do que aquelas que gozam dos privilégios do próprio sistema capitalista, e, muitas vezes, isso ocorre em virtude de sua cor de pele, etnia, classe social e localização geográfica.

Entretanto, é importante salvaguardar o fato de que cada prisão possui suas próprias dinâmicas e idiossincrasias, embora as razões que tracem o perfil geral das pessoas encarceradas no Brasil e no mundo, especialmente de ordem sócio-econômico-racial, sejam expressamente comuns nos mais diversos ambientes prisionais. Uma prisão no estado do Maranhão certamente apresenta dinâmicas e códigos de comunicação distintos de uma prisão em Santa Catarina ou em Alagoas, assim como uma prisão norueguesa em muito deve se distinguir de uma prisão argentina ou francesa.

Tradicionalmente, a organização do conhecimento (OC) desenvolvida na Ciência da Informação (CI) atende a um apelo técnico-científico e, por consequência, direciona seus estudos predominantemente a informações técnicas, profissionais, científicas e culturais produzidas e organizadas em áreas do conhecimento já consolidadas e/ou institucionalizadas, quase que via de regra preocupada com a eficiência da recuperação da informação. O presente estudo aponta perspectivas e interpretações direcionadas às populações marginalizadas, nesse caso, a população privada de liberdade, negligenciada pelas políticas públicas sancionadas e silenciadas pelas próprias lógicas sociais do capitalismo. Para além disso, é importante ressaltar o caráter, pode-se afirmar, inédito da temática desta pesquisa no campo da organização e representação do conhecimento no Brasil.

Do ponto de vista social, a população carcerária, para além do direito de ir e vir, perde também o poder de escolha sobre os mais diversos aspectos de suas vidas. Seus direitos são, muitas vezes, menosprezados pelas políticas públicas e legislações sancionados pelo Estado brasileiro, fato que acarreta na formação de grupos e comunidades marginalizadas e excluídas em inúmeros aspectos sociais, econômicos e educacionais.

Esperamos com esta pesquisa que a população carcerária tenha o devido reconhecimento científico por parte da área da organização do conhecimento (OC) e que a OC reconheça esta população como uma comunidade que produz, utiliza e representa sistematicamente um conhecimento organizado. Oferecer ao contexto da organização do conhecimento e da Ciência da Informação aspectos terminológicos que efetivamente ocorrem nos ambientes prisionais, colocando-os no rol dos ambientes pesquisados nas universidades, não somente pode promover a justa visibilidade das populações carcerárias como, principalmente, pode também retirá-las da marginalização científico-acadêmico no que se referem às áreas informacionais.

Concepções de jogos de linguagem nas prisões e representação do conhecimento

Respaldamo-nos aqui em alguns aspectos dos jogos de linguagem apresentados por Ludwing Wittgenstein (1975)Wittgenstein, L.Investigações filosóficas. São Paulo: Abril Cultural, 1975. em sua obra intitulada Investigações filosóficas. Os estudos de Wittgenstein estão estruturados em duas fases: a primeira fase com a publicação do livro Tractatus Lógico-Philosophicus (primeira edição de 1921), onde Wittgenstein afirmava que a linguagem tinha uma estrutura lógica e possuía isomorfismos, ou seja, a mesma representação entre linguagem lógica e mundo.

Em sua segunda fase, Wittgenstein (1975)Wittgenstein, L.Investigações filosóficas. São Paulo: Abril Cultural, 1975. passou a questionar as discussões projetadas anteriormente, como o significado de elucidação. Nesta fase, a elucidação passa a estar vinculada a um ponto de vista avançado em que o conteúdo é o método em ação (Grayling, 2001Grayling, A. C.Wittgenstein. São Paulo: Loyola, 2001.). Nesta segunda fase, seus estudos estão voltados para a multiplicidade das línguas e suas mais diversas formas lógicas, certificando-se de que coisas que não são referenciadas no mundo podem ter significados.

A linguagem materializa os pensamentos e, com isso, permite a comunicação entre as pessoas. A compreensão de um determinado assunto diz respeito ao conhecimento adquirido ao longo de uma trajetória, ou pessoal, ou profissional e/ou acadêmica. Assim, podemos inferir que, na ótica de Wittgenstein (1975)Wittgenstein, L.Investigações filosóficas. São Paulo: Abril Cultural, 1975., para uma pessoa que está fora do universo prisional um determinado termo não significará nada, até que ela conheça seu significado.

A linguagem é um “lugar de conflito, de confronto ideológico, em que a significação se apresenta em toda sua complexidade” (Oliveira, 2013Oliveira, H. C. A linguagem no cotidiano prisional: enigmas e significados. Jundiaí: Paco Editorial, 2013., p. 38). Os processos linguísticos estão vinculados aos processos históricos, sociais e culturais presentes na sociedade e nas ações humanas, portanto, é considerada uma prática social.

A língua é o meio onde a linguagem é expressa, está definida como “um sistema de signos vocais utilizados como meio de comunicação entre membros de um grupo social” (Martelotta, 2018Martelotta, M. E.Manual de linguística. São Paulo: Contexto, 2018., p. 16). As pessoas estão sujeitas à língua, à história e aos aspectos ideológicos, assim, constituem-se perante aos acontecimentos do cotidiano e produzem sentidos neles mesmos (Orlandi, 2020Orlandi, E. P.Análise de discurso: princípios e procedimentos. São Paulo: Pontes Editores, 2020.).

A linguagem proporciona a interação em sociedade, cada grupo social conta com características específicas, que poderão ser distinguidas pelo modo que a pessoa se comunica. A língua está em constante mutação, visto que a “necessidade de buscar novas expressões para designar novos objetos, conceitos e formas de relação social” (Martelotta, 2018Martelotta, M. E.Manual de linguística. São Paulo: Contexto, 2018., p. 19) são perceptíveis ao longo das décadas, e estão presentes em aspectos culturais de cada grupo.

Esses signos são palavras e gestos que representam objetos de um determinado contexto, sendo assim, cada palavra dispõe de um significado. Ou seja, “[...] as palavras do nosso cotidiano já chegam até nós carregadas de sentidos que não sabemos como se constituíram e que, no entanto, significam em nós e para nós” (Orlandi, 2020Orlandi, E. P.Análise de discurso: princípios e procedimentos. São Paulo: Pontes Editores, 2020., p. 18).

Evidencia-se que a linguagem sofre variações independentes do grupo em que está inserida. Martelotta (2018)Martelotta, M. E.Manual de linguística. São Paulo: Contexto, 2018. apresenta a variação regional, associada a distância regional de cada grupo social, influenciando assim nos significados das palavras e, também, em suas pronúncias. A variação social, ligada às diferenças socioeconômicas dos grupos, promove a variação de registros e falas, influenciada pelo grau de formalidade de cada contexto, como variações lexicais e gramaticais.

Com isso, as prisões tornam-se espaços de “múltiplos sentidos e representações sociais [...], reorganizando significados que podem proporcionar um novo pensar” (Oliveira, 2013Oliveira, H. C. A linguagem no cotidiano prisional: enigmas e significados. Jundiaí: Paco Editorial, 2013., p. 122) e novas ações como “análise e interpretação das formas de ser, estar, agir, se comportar” (Adorno, 1991Adorno, S. Sistema penitenciário no Brasil: problemas e desafios.Revista USP, v. 1, n. 9, p. 65-78, 1991. Disponível em: Disponível em: https://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/25549/27294 . Acesso em: 8 jun. 2021.
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, p. 12). Nessas instituições, a linguagem pode ser manifestada por meio de gestos, expressões corporais, greves, barulhos, silêncios etc.

As mensagens nas instituições totais, circulam por meio de sistemas ocultos de comunicação. Um desses sistemas são, técnicas de falar sem mover os lábios e sem olhar para a pessoa que a mensagem está sendo direcionada (Goffman, 2019Goffman, E. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 2019.).

Assim, a linguagem nas prisões é adaptada a partir dos contextos e ambiências em que as pessoas estão inseridas, ou seja, os termos possuem determinados significados e são ressignificados diante das circunstâncias impostas. Geralmente, a rotatividade no sistema prisional é vasta, com isso, os vocabulários vão sendo ampliados e têm mais de um conceito dependendo da situação utilizada ou região. Os códigos são modificados de acordo com a necessidade ou descoberta dos seus significados.

Tomamos como exemplo a palavra jumbo no contexto prisional. Jumbo tem como significado “[...] bolsa transparente em que os visitantes levam os alimentos e os produtos de limpeza e higiene” (Araujo, 2019Araujo, E. Um dia de visita: o drama de familiares de detento. São Paulo: Independently Published, 2019., p. 19). Para as pessoas inseridas de alguma forma, seja como visita, como funcionário, como detento, no universo do sistema prisional, a palavra jumbo, quando pronunciada, será compreendida. Essa palavra e seu significado estão integrados a um jogo de linguagem estabelecido pelas comunidades carcerárias e é utilizada em um determinado contexto, o sistema prisional.

A linguagem na prisão apresenta aspectos sobre o cotidiano das prisões em diversos pontos de vista, como, os procedimentos de segurança, as disciplinas, os projetos desenvolvidos, a organicidade da instituição, bem como as histórias de vida das pessoas condenadas (Oliveira, 2013Oliveira, H. C. A linguagem no cotidiano prisional: enigmas e significados. Jundiaí: Paco Editorial, 2013.).

Para Wittgenstein (1975)Wittgenstein, L.Investigações filosóficas. São Paulo: Abril Cultural, 1975., as regras estabelecidas na comunicação cotidiana, nos contextos e em cada comunidade são representadas por jogos de linguagem. Isto significa que, utilizamos a linguagem para descrever, informar, afirmar, dar ordens, fazer perguntas, adivinhar enigmas, fazer piadas, resolver problemas, sobreviver, sociabilizar, comunicar e/ou resistir, ou seja, para uma série de atividades (Grayling, 2001Grayling, A. C.Wittgenstein. São Paulo: Loyola, 2001.).

Cada palavra desempenha uma função nesses jogos, para além disso; o tom da pronúncia e a expressão facial também são considerados assim que as palavras são proferidas. Os jogos de linguagem proporcionam a utilização de uma regra temporária onde as palavras assumem significados próprios e estão vinculadas a uma atividade ou uma forma de vida.

Nos jogos de linguagem, as regras são estabelecidas, ensinadas e, posteriormente, colocadas em prática. O jogo é praticado da seguinte forma: as palavras possuem significados, e esses significados deverão ser compreendidos em um determinado contexto. Após a compreensão, essas palavras serão utilizadas no cotidiano e esse cotidiano proporcionará regras propostas por uma determinada comunidade para utilização das palavras (Wittgenstein, 1975Wittgenstein, L.Investigações filosóficas. São Paulo: Abril Cultural, 1975.).

Diante disso, o que se propõe estudar é a representação do conhecimento a partir dos termos utilizados na prisão. Neste sentido, Brascher e Café (2008, p. 6-8)Brascher, M.; Café, L. Organização da Informação ou Organização do Conhecimento? In: ENANCIB, 9., 2008, São Paulo. Anais [...]. São Paulo: USP, 2008. Disponível em: Disponível em: http://repositorios.questoesemrede.uff.br/repositorios/handle/123456789/809 . Acesso em: 15 jun. 2021.
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afirmam que a organização e representação do conhecimento partem dos princípios contidos nos conceitos e constroem “[...] modelos de mundo que se constituem em abstrações da realidade”, ou seja, são processos de “[...] modelagem do conhecimento que visa a construção de representações do conhecimento”. Embora as citadas autoras defendam que tais modelos de mundo se concretizam em sistemas de organização do conhecimento, como classificações e vocabulários controlados, nossa ênfase está mais voltada para a articulação e para os jogos que podem ocorrer na comunicação dos contextos prisionais, especialmente na ressignificação e/ou invenções de palavras articuladas pelas pessoas presas, o que, por si só, já pode ser considerado uma forma de representação do conhecimento.

Os jogos de linguagem apresentam elucidações voltadas às circunstâncias cognitivas e orais, ou seja, é possível identificar o contexto e o mundo em que o termo está inserido. Nesse sentido, ainda consideramos que tais jogos podem guardar relações com a noção de representação do conhecimento apresentada por Brascher e Café (2008)Brascher, M.; Café, L. Organização da Informação ou Organização do Conhecimento? In: ENANCIB, 9., 2008, São Paulo. Anais [...]. São Paulo: USP, 2008. Disponível em: Disponível em: http://repositorios.questoesemrede.uff.br/repositorios/handle/123456789/809 . Acesso em: 15 jun. 2021.
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.

A representação do conhecimento (RC) é caracterizada como uma representação de mundo, descrevendo situações, objetos e coisas. Utiliza-se de “[...] linguagens específicas, frases ou números que correspondem à descrição ou condição [deste] mundo” (Oliveira; Carvalho, 2008Oliveira, H. C.; Carvalho, C. L.Gestão e representação do conhecimento. Goiás: Instituto de Informática, 2008. Disponível em: https://ww2.inf.ufg.br/sites/default/files/uploads/relatorios-tecnicos/RT-INF_003-08.pdf. Acesso em: 19 out. 2022. , p. 10).

A representação “[...] é um processo mental pelo qual o indivíduo busca o significado, descrevendo o que deve ser representado e designado, onde a relação sujeito-objeto se estreita para que se possa alcançar a interpretação do mundo a ser representado” (Novo, 2013Novo, H. F. Representação do conhecimento ou representação conceitual? uma investigação epistemológica no âmbito da Ciência da Informação e da filosofia nas considerações de Deleuze e Guatarri.Ponto de Acesso, v. 7, n. 3, p. 114-129, 2013. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/revistaici/article/view/9328/6939 . Acesso em: 19 out. 2022.
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, p. 116).

O ato de representar está vinculado ao “[...] processo cognitivo humano, aquele que culmina com a representação primária do conhecimento, situando-se no âmbito do registro do pensamento [...] incluindo as etapas da percepção, identificação, interpretação, reflexão e codificação” (Alvarenga, 2003Alvarenga, L. Representação do conhecimento na perspectiva da ciência da informação em tempo e espaço. Encontro Bibli, v. 1, n. 15, p. 18-40, 2003. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/eb/article/view/1518-2924.2003v8n15p18/5233 . Acesso em: 19 out. 2022.
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, p. 21).

Procedimentos Metodológicos

Este estudo está caracterizado como descritivo e exploratório, visto que o intuito é registrar e descrever informações sobre uma determinada população ou fenômeno sem interferir nos dados. Geralmente, a pesquisa descritiva usa técnicas de questionário e observação (Prodanov; Freitas, 2013Prodanov, C. C.; Freitas, E. C. Metodologia do Trabalho Científico: métodos e técnicas da pesquisa e do trabalho acadêmico. Novo Hamburgo: Editora Feevale, 2013.). Iremos descrever aspectos e ações presentes nas instituições penais referente aos termos utilizados especificamente pela população carcerária.

A pesquisa exploratória proporciona “[...] maior familiaridade com o problema, com vistas a torná-lo mais explícito ou a construir hipóteses. A grande maioria dessas pesquisas envolve [...] entrevistas com pessoas que tiveram experiências práticas com o problema do pesquisado” (Gerhardt; Silveira, 2009Gerhardt, T. E.; Silveira, D. T. (org.).Métodos de pesquisa. Rio Grande do Sul: UFRGS Editora, 2009., p. 35).

Baseia-se, também, em pesquisa bibliográfica, ou seja, “[...] elaborada a partir de material já publicado, constituído principalmente por: livros, revistas, publicações em periódicos e artigos científicos, jornais, boletins, monografias, dissertações, teses”, entre outros (Prodanov; Freitas, 2013Prodanov, C. C.; Freitas, E. C. Metodologia do Trabalho Científico: métodos e técnicas da pesquisa e do trabalho acadêmico. Novo Hamburgo: Editora Feevale, 2013., p. 54). A abordagem do problema está imbricada na pesquisa qualitativa, que “[...] considera que há uma relação dinâmica entre o mundo real e o sujeito [...] interpretação dos fenômenos e a atribuição de significação são processos básicos desta pesquisa” (Prodanov; Freitas, 2013Prodanov, C. C.; Freitas, E. C. Metodologia do Trabalho Científico: métodos e técnicas da pesquisa e do trabalho acadêmico. Novo Hamburgo: Editora Feevale, 2013., p. 70).

Para a coleta de dados, utilizamos técnicas provenientes da etnografia. A etnografia proporciona, por meio de observação, entrevista e anotações em diário de campo, o conhecimento do cotidiano das instituições, a linguagem e os sentimentos dessa comunidade. Adentrar na Penitenciária de Florianópolis, enquanto pesquisadores, foi fundamental para coleta de dados, pois, ao estar em companhia dos sujeitos da pesquisa, pudemos compreender os aspectos citados anteriormente.

Neste sentido, a coleta de dados foi realizada na Penitenciária de Florianópolis, localizada no Estado de Santa Catarina e vinculada ao Complexo Penitenciário de Florianópolis, idealizado em 1929 e construído em 1930.

Para identificar os termos utilizados pelas pessoas privadas de liberdade, foi elaborado um questionário pré-estabelecido com perguntas abertas, contextualizando a linguagem empregada nas prisões, seus termos, origens, utilização e conceitos. O questionário foi aplicado presencialmente por meio de entrevistas realizadas com vinte e seis pessoas privadas de liberdade.

Para o registro dessas informações, utilizou-se um diário de campo, visto que, pesquisadores, que desenvolveram seus projetos com o mesmo cunho etnográfico e com a realização de entrevistas em ambientes prisionais, afirmam que a utilização de gravadores, muito provavelmente, provoca um sentimento de intimidação e um desconforto para o entrevistado (Biondi, 2018Biondi, K.Junto e Misturado: uma etnografia do PCC. São Paulo: Editora Terceiro Nome, 2018.).

As anotações realizadas no diário de campo proporcionam a transformação “[...] de acontecimentos passados, que existe apenas em seu próprio momento de ocorrência, em um relato, que existe em sua inscrição e que pode ser consultado novamente” (Geertz, 2019Geertz, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2019., p. 14).

Ressalta-se que a interpretação e compreensão dos dados são individuais, visto que, cada pesquisador tem um entendimento e observação distinto de momentos, contextos, leituras e trajetórias de vida. Portanto, estar em campo é interpretar qualquer coisa, por exemplo, uma situação, um poema, estórias, pessoas, rituais e instituições (Geertz, 2019Geertz, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2019.).

Como mencionado anteriormente, para esta pesquisa as técnicas utilizadas foram observação e entrevista. A observação é “[...] o ato de perceber as atividades e os inter-relacionamentos das pessoas no cenário de campo através dos cinco sentidos do pesquisador” (Angrosino, 2009Angrosino, M.Etnografia e observação participante. São Paulo: Artmed, 2009., p. 56).

A observação é composta por diversas particularidades, algumas delas são: realizar anotações sobre o campo rotineiramente, explicar durante a coleta de dados o contexto em que os dados foram coletados, descrição dos participantes, dos seus comportamentos e interações ao decorrer da pesquisa, registrar conversas formais e informais de uma maneira cronológica e identificar os participantes por meio de códigos, assim, preservando sua identidade e auxiliando na recuperação das informações desejadas para posterior escrita (Angrosino, 2009Angrosino, M.Etnografia e observação participante. São Paulo: Artmed, 2009.).

Já a entrevista, “[...] é um processo que consiste em dirigir a conversação de forma a colher informações relevantes” (Angrosino, 2009Angrosino, M.Etnografia e observação participante. São Paulo: Artmed, 2009., p. 61). As perguntas podem ser trocadas ao longo do desenvolvimento da pesquisa e das necessidades encontradas. A entrevista se torna uma parceria entre o pesquisador e o membro da comunidade que pode, inclusive, auxiliar no remanejamento das questões.

O objetivo da entrevista é “[...] sondar significados, explorar nuances, capturar as áreas obscuras que podem escapar às questões de múltipla escolha que meramente se aproximam da superfície de um problema” (Angrosino, 2009Angrosino, M.Etnografia e observação participante. São Paulo: Artmed, 2009., p. 62).

A partir disso, para compreender o andamento e as etapas da pesquisa em campo, relatamos aqui algumas experiências vivenciadas. Os trâmites foram iniciados em novembro de 2021, com uma reunião na Penitenciária de Florianópolis para evidenciar a pesquisa e acertarmos os detalhes do seu desenvolvimento na unidade, como o dia do início da pesquisa, o setor que a acolheria, os limites determinados pela unidade prisional, os procedimentos de segurança e quem seria o responsável pelo projeto dentro da unidade.

A observação em campo e as entrevistas iniciaram no dia 29 de novembro de 2021 e finalizaram no dia 02 de fevereiro de 2022, alocada ao setor de saúde, juntamente com a Unidade Básica de Saúde (UBS) da Penitenciária Masculina de Florianópolis, ambiente com pessoas acolhedoras e dispostas a auxiliar no desenvolvimento da pesquisa. A unidade está à disposição para as investigações, no entanto, a circulação estava vinculada às visitas realizadas pelos profissionais de saúde. A partir disso, as observações aconteceram nos atendimentos que os enfermeiros e técnicos em enfermagem realizam durante a semana em toda à Penitenciária.

Com as observações, percebe-se o andamento da unidade e dos procedimentos administrativos, a estrutura da Penitenciária Masculina de Florianópolis, os protocolos de saúde e a linguagem utilizada dentro daquele ambiente prisional. As observações em diferentes prédios da Instituição foram realizadas no período vespertino, e no período matutino foram realizadas as entrevistas. Geralmente, chegamos no ambiente da entrevista e iniciamos uma conversa com o plantonista dos policiais penais que estão responsáveis pelo dia e com o chefe da mesa. Cada prédio e cada plantonista determina como será o andamento da entrevista.

Por exemplo, na Padaria da Penitenciária de Florianópolis, a conversa com os sujeitos da pesquisa foi realizada a partir da cela que fica acoplada na unidade. Quando chegamos pela primeira vez, apresentamo-nos, explicamos a pesquisa, como funcionava, assinamos o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e iniciamos a entrevista. Já na parte Interna, outro prédio da instituição destinado às pessoas que cumprem o regime fechado, dependendo do plantão, as entrevistas aconteceram na “passagem”, um local onde as pessoas presas passam para ir às suas celas, ou na parte da frente do Complexo Penitenciário, onde ocorriam os atendimentos de saúde e jurídico. Entretanto, outros plantonistas optaram por encaminhar a pessoa à sala da UBS, que fica na parte frontal, para que a entrevista transcorresse tranquilamente.

Nenhum policial penal acompanhou as entrevistas, apenas tiraram e colocaram as pessoas em suas celas. No entanto, os pesquisadores e os entrevistados estavam separados por grades, seja elas por “canudos3 3 Como citar este artigo/How to cite this article: Costa, A.; Sales, R. A ressignificação e a invenção das palavras como forma de representação do conhecimento nas prisões. Transinformação, v. 35, e237239, 2023. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2318-0889202335e237239 ”, seja por grades nas janelas, seja por grades na sala da UBS. Dependendo da galeria da Penitenciária de Florianópolis, conversávamos com o Voz4 Costa, A. contribuiu devidamente na concepção e desenho, análise e interpretação dos dados, revisão e aprovação da versão final do artigo. Sales, R. contribuiu devidamente na concepção e desenho, análise e interpretação dos dados, revisão e aprovação da versão final do artigo. , explicávamos o intuito e o desenvolvimento da pesquisa, e ele organizava quem gostaria participar e estaria disponível para isso.

Depois desses procedimentos, uma pessoa por vez foi entrevistada. Houve entrevistas que duraram 10 minutos e entrevistas que duraram três horas e meia, e essa diferença dependia muito da disponibilidade da pessoa entrevistada, dos procedimentos administrativos que estavam sendo desenvolvidos no prédio e da compreensão do plantonista. Em seguida, apresentamos as perguntas e a conversa fluiu com os entrevistados respondendo aos poucos e com calma para que pudéssemos anotar suas respostas. Entrevistamos pessoas que estão há nove meses no sistema prisional e pessoas que estão a quinze anos.

As entrevistas mais longas foram além das perguntas que estavam estipuladas no questionário. Os entrevistados contaram suas experiências de quando estavam em liberdade, suas histórias de vida, contaram dos familiares e das atividades que realizavam em suas celas para passar o tempo.

Ressalta-se que essa pesquisa passou pelo Comitê de Ética da Universidade Federal de Santa Catarina, bem como pelo Comitê de Ética da Secretaria de Administração Prisional do Estado de Santa Catarina.

Discussão e resultado

Vinte e seis pessoas que estão privadas de liberdade foram entrevistadas, e 460 termos utilizados na linguagem cotidiana foram coletados. Percebe-se os conceitos dos termos e suas relações dependendo do contexto inserido dentro da Penitenciária Masculina de Florianópolis.

Os entrevistados mencionam que a convivência faz com que termos específicos sejam utilizados. Assim que chegam à Penitenciária, as pessoas que estão presas aprendem com as pessoas mais velhas e com seus colegas de cela.

Quando perguntamos o porquê da criação desta linguagem, a resposta é unânime. A criação foi para que os policiais penais e a administração não soubessem o assunto que estava sendo tratado e, consequentemente, para sobrevivência dentro das prisões. No entanto, a partir, também, da convivência, o administrativo foi compreendendo o uso dos termos.

Com essa descoberta, outras formas de comunicação foram surgindo, como as Libras da cadeia, ou seja, a utilização de sinais para conversar. Outra forma é a troca de sílabas das palavras, por exemplo, o termo “ligado” torna-se “gadoli”.

À medida que os termos foram coletados, perguntamos a um dos entrevistados onde surgiu, qual era a referência e associação entre o termo e o significado atribuído dentro das prisões. Ele respondeu que alguns dos termos são retirados do próprio dicionário.

Em uma primeira análise, é perceptível a presença de algumas palavras no dicionário. Outras palavras são a representação imagética do termo, como, “vaquinha” significa “leite” e “visor” significa óculos. E outras palavras são uma abreviação do termo, exemplo: RQ significa Rabo Quente, uma espécie de resistência feita dentro da própria cela ou, então, PH, que significa Papel Higiênico.

Alguns termos são utilizados apenas por um determinado grupo, tendo como exemplo o vocabulário Pajubá empregado pelas mulheres trans em suas galerias, conhecida também como Paredão LGBT. Para exemplificar, apresentaremos um quadro com 59 termos dos 460 recuperados.

Com base nos termos aqui apresentados, 12 categorias foram desenvolvidas, são elas: (1) Instrumentos improvisados e criados dentro da Penitenciária: com objetos adquiridos dentro da instituição; (2) Procedimentos realizados por funcionários da unidade; (3) Alimentação: incluindo alimentos, procedimentos para que a alimentação aconteça e objetos relacionados a alimentação; (4) Vocabulário Pajubá: termos utilizados por mulheres transexuais e travestis; (5) Objetos; (6) Cela: estrutura das celas; (7) Características das pessoas presente naquele ambiente; (8) Necessidades fisiológicas; (9) Procedimentos de segurança da unidade realizada por funcionários; (10) Status relacionados aos sentimentos das pessoas; (11) Procedimentos e regras realizadas pelas pessoas que estão privadas de liberdade; e (12) Materiais ilícitos.

Para melhor visualização, identificamos as categorias e seus termos no Quadro 1.

Quadro 1.
Termos coletados em campo.

As categorias formuladas acima podem, por exemplo e para estudos futuros, servir de base ou ponto de partida para a construção de algum sistema de organização do conhecimento, como vocabulários controlados ou classificações, especializados na linguagem nos estabelecimentos prisionais, salvaguardadas as distintas realidades que existem nas diferentes instituições penais.

É importante observar que a ressignificação de algumas palavras já existentes ou mesmo a invenção de outras se dá como uma forma de representar o conhecimento mediante um contexto não somente de comunicação, mas também de sobrevivência. A ressignificação de “bruxa” para designar “vassoura” (categoria objetos), de “branca de neve” para designar “açúcar” (categoria alimentação), ou a invenção da palavra “bizu” para designar “ideia” (categoria procedimentos e regras) pode ser visto como representações de conhecimentos apenas para fins de comunicação contextual. Já a ressignificação de “branca” para “cocaína”, de “biqueira” para “boca de fumo” (ambas da categoria de ilícitos), ou a ressignificação de “açúcar” para “X9” (da categoria características pessoais), são representações que operam não somente a comunicação entre os envolvidos, mas também suas próprias sobrevivências.

Observamos, assim, que parte expressiva da representação do conhecimento manifestada na linguagem na prisão se dá por meio de uma articulação de palavras inventadas ou ressignificadas, cujas utilizações e efeitos se concretizam por meio de um jogo criado e organizado pelos próprios detentos, que ora podem apenas mexer na ordem das sílabas (como “gadoli” significar “ligado”), ora ressignificar o que já existe (como “alpiste” significar “arroz”) ou, ainda, por meio da invenção, como “acelerão” significar “pessoa que erra”. Trata-se, a nosso ver, de uma manifestação concreta de organização e representação do conhecimento operacionalizada por meio dos jogos de linguagem no contexto carcerário Quadro 2.

Quadro 2.
Categorias e seus termos

Considerações Finais

A representação do conhecimento, entendida aqui como formas de construir-se modelos de mundo que se constituem em abstrações da realidade, dá-se definitivamente de maneira contextual e é conduzida pelas formas de linguagem, principalmente pela utilização. Por trás do processo de comunicação não está somente o propósito de socializar e transmitir conhecimentos, mas, conforme visto neste estudo, está também no propósito de proteger-se, de sobreviver. Para isso, lançar mão de jogos de linguagem que estrategicamente são temporários em suas regras de utilização, pois se estabelecem de acordo com seus contextos, é uma postura que evidencia uma forma de representar o conhecimento de acordo com o ambiente.

No entanto, a pesquisa revela que, embora tais jogos de linguagem flexibilizem a comunicação entre os envolvidos, eles também se consolidam em regras bem definidas, como regras presentes em qualquer esforço de organizar-se o conhecimento. No caso da população carcerária aqui investigada, os jogos de linguagem que permitem a comunicação mais condizente com o cotidiano analisado se constroem e se solidificam estrategicamente por meio da ressignificação, alteração e invenção de palavras, codificada e decodificada pelas pessoas presas, seja lançando mão de um comportamento escrito ou oral.

Por fim, acreditamos que os resultados alcançados neste estudo podem alimentar, ou pelo menos inspirar, tanto a reflexão a respeito de formas de representação do conhecimento em ambientes marginalizados, quanto a amplificação de pesquisas na área da organização e representação do conhecimento de cunho social, atenta a realidades de vulnerabilidades que, embora propositadamente precarizadas, também organizam e representam seus conhecimentos.

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Editor

  • César Pereira
  • 2
    “Denominação do modo de produção em que o capital, sob suas diferentes formas, é o principal meio de produção. O capital pode tomar a forma de dinheiro ou de crédito para a compra da força de trabalho e dos materiais necessários à produção, a forma de maquinaria física ou, finalmente, a forma de estoques de bens acabados ou de trabalho em processo” (Bottomore, 1988Bottomore, T.Dicionário do pensamento marxista. Rio de Janeiro: Zahar, 1988. Disponível em: Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/2543654/mod_resource/content/2/Bottomore_dicion%C3%A1rio_pensamento_marxista.pdf . Acesso em: 8 jun. 2021.
    https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.p...
    , p. 90).
  • 3
    Canudo refere-se aos corredores por onde as pessoas privadas de liberdade caminham dentro dos estabelecimentos prisionais.
  • 4
    Pessoa responsável por ser o porta voz de determinada ala da Penitenciária Masculina de Florianópolis.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    23 Dez 2022
  • Revisado
    12 Abr 2023
  • Aceito
    31 Maio 2023
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