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Migrações Internas: evoluções e desafios

DESENVOLVIMENTO RURAL

Migrações Internas: evoluções e desafios* * Exposição feita pelo autor no Seminário sobre População e Pobreza, promovido pelo Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Social (Ibrades) de 13 a 16 de agosto de 2001, em Brasília (DF).

Alfredo José Gonçalves

AS MIGRAÇÕES costumam figurar como o lado visível de fenômenos invisíveis. Aparecem muitas vezes como a superfície agitada de correntes subterrâneas. Verdadeiros termômetros que, ao mesmo tempo, revelam e escondem transformações ocultas. Os grandes deslocamentos humanos, via de regra, precedem ou seguem mudanças profundas, seja do ponto de vista econômico e político, seja em termos sociais e culturais. Os maremotos históricos provocam ondas bravias que deslocam em massa populações e povos inteiros. Numa palavra, a mobilidade humana é em geral um sintoma de grandes transições. Quando ela se intensifica, algo ocorreu ou está para ocorrer, ou melhor, algo está ocorrendo nos bastidores da história.

Se o planeta está em movimento, através de milhões de seres humanos deslocando-se de um lado para outro, ou se as estradas do Brasil estão povoadas de caminhantes - não é exagero falar de um momento de profundas transformações. Para alguns autores, como Boaventura Souza Santos, Michael Hardt e Antonio Negri, por exemplo, trata-se de uma crise sem retorno do paradigma modernidade, no bojo da qual engendra-se uma nova transição paradigmática.

Migração e pobreza

Neste Seminário sobre População e Pobreza, o tema das migrações ganha particular relevância. Historicamente, no Brasil, é difícil falar de pobreza sem atentar para os grandes deslocamentos da população, como também é difícil falar destes deslocamentos sem relacioná-los à exclusão social. Isto não significa estabelecer, sem mais, uma causalidade mecânica e imediata entre pobreza e migração. Mais apropriadamente, podemos afirmar que os dois componentes em questão têm funcionado, na história do país, como duas faces de uma realidade mais ampla. Constituem, simultaneamente, causa e efeito dos problemas estruturais da sociedade brasileira.

Não se pode atribuir unicamente às migrações a pobreza e a violência urbanas, como faz muitas vezes o senso comum. Por outro lado, também não se pode responsabilizar somente a pobreza do campo pelo êxodo rural em massa. A miséria que se espalha pelas cidades e o esvaziamento do campo têm, como se sabe, causas bem mais complexas. Fatores como a crise econômica e o desemprego crescente, as transformações no mundo do trabalho e a precarização de suas relações - entre outros - contribuem decisivamente tanto para o quadro de indigência que se amplia, quanto para os deslocamentos compulsórios da população pobre.

Entretanto, não podemos também desconhecer as mútuas implicações entre o fenômeno das migrações e a espiral de empobrecimento por que passa a sociedade brasileira nos dias atuais. Limitaremos nossa abordagem ao deslocamento dos trabalhadores e das camadas mais pobres da população, sem esquecer, entretanto, a migração cada vez mais acentuada de profissionais liberais e de técnicos das empresas multinacionais.

Ainda uma última observação. Expressões como "migração forçada" ou "migração compulsória", que estão na tônica destas páginas, não pretendem subestimar a existência e a importância dos deslocamentos livres e espontâneos. O direito fundamental de ir e vir está na base de qualquer programa de luta pela cidadania. Na sociedade brasileira atual, contudo, a grande maioria da população, especialmente os setores condenados à exclusão social, deixam sua terra e sua gente não por um ato livre, mas por motivos de vida ou morte. Está em jogo a própria sobrevivência. Daí nossa insistência em que ao direito de ir e vir corresponde o direito de "ficar". Quantos migrantes que hoje percorrem as estradas, se pudessem optar, decidiriam permanecer no solo onde enterraram seus mortos! Migrar deve ser uma decisão livre e não forçada pela sobrevivência.

Números

O censo demográfico de 2000 revelou que nada menos de 137.669.439 habitantes residem na zona urbana, o que eqüivale a 81,22% do total da população brasileira. De acordo com os censos do IBGE, na década de 1960, 13 milhões de pessoas trocaram o campo pela cidade; nos dez anos seguintes, esse número se elevou para 15,5 milhões. Tudo indica que desde 1970, quando a população rural passou a ser minoritária, até os dias de hoje, mais de 40 milhões de brasileiros migraram do campo para a zona urbana. Se levarmos em conta que a região Sudeste concentra, sozinha, 72.282.411 habitantes, ou seja, 42,6% da população do país, e tem um percentual de urbanização da ordem de 90,52%, fica ainda mais evidente o crescimento da cidade em detrimento do campo.

Só o estado de São Paulo, por exemplo, representa 21,8% da população do Brasil, com 36.966.527 pessoas, sendo que quase um terço destas aglomeram-se no município da capital. Das capitais brasileiras, aliás, 12 já superam a marca de um milhão de habitantes, enquanto a metade delas está acima de dois milhões. A cidade de Palmas, capital do estado de Tocantins, ilustra bem o quadro: de 1991 a 2000, pulou de 24.251 para 136.554 habitantes.

Igualmente ilustrativo é o caso do Distrito Federal. Na mesma década, passou de 1.601.094 para 2.043.169 habitantes, representando uma taxa de crescimento de 2,77% ao ano, superior à média nacional, que é de 1,63%. Recanto das Emas, Riacho Fundo e Santa Maria, cidades satélites do Distrito Federal, cresceram respectivamente a taxas anuais de 51,88%, 24,96% e 24,32%. Isso explica a manchete de capa do Correio Braziliense, de 11 de agosto último, segundo a qual "Distrito Federal tem quase 80 mil favelados". De acordo com a matéria, "estudo recente, de junho deste ano, da Secretaria de Habitação, revela que 3,5% da população urbana do DF vive em favelas. São 77,4 mil pessoas de baixa renda, morando em 17.505 barracos construídos em locais como a Estrutural - sem as mínimas condições de infra-estrutura, como saneamento básico e serviços públicos" (Correio Braziliense, 11 ago. 2001:6).

Rostos e rumos

Ainda conforme os dados do IBGE, censo/2000, as regiões onde houve maior crescimento populacional na última década foram o Norte do país, as áreas litorâneas, as cidades médias do interior, o Centro-Oeste e o entorno do Distrito Federal. Esse crescimento, que em todos os casos é superior à média nacional, indica novos rumos dos fluxos migratórios dentro do país. Confirmando tal fato, os estados que mais cresceram na década foram Amapá (5,74% a.a.), Roraima (4,57% a.a.), Amazonas (3,43% a.a.), Acre (3,29% a.a.) e Distrito Federal (2,77% a.a.).

É bom lembrar, entretanto, que a migração para o Norte não se destina à área rural, como ocorreu em décadas passadas, mediante programas de colonização dirigida e da migração do Sul para o extremo Norte do país. Atualmente os migrantes, alguns já de segunda geração, buscam, na verdade, a área urbana. Vejamos o crescimento anual de alguns municípios, durante os anos 90: Buritis (RO), 29,09%; Campo Novo (RO), 23,20%; Sapezal (MT), 21,54%; Palmas (TO), 21,34%; Confresa (MT), 20,84%. É a zona urbana que se expande, ampliam-se as periferias. As cidades não crescem nem se desenvolvem; simplesmente, se incham. Adquirem muitos vícios das metrópoles, sem lograr seus serviços básicos e seus benefícios.

No caso do crescimento das cidades médias do interior, verifica-se um rechaço do fluxo Nordeste-Sudeste. Ou seja, boa parte dos migrantes continuam dirigindo-se aos grandes centros urbanos, como São Paulo, Rio e Belo Horizonte. Mas, em seguida, são rechaçados para o interior, buscando regiões como Ribeirão Preto, Triângulo Mineiro e outras, para onde muitas indústrias também estão se mudando. Por outro lado, um número considerável dessas cidades médias passaram a ser o local de destino para aqueles que, ao deixar o campo, evitam as capitais devido sobretudo às notícias de desemprego e violência. Vale citar os casos de Londrina (PR), Caxias do Sul (RS), Campina Grande (PB), Feira de Santana (BA), Caruaru (PE) - como novos pólos de atração!

O crescimento das áreas litorâneas, por sua vez, deve-se especialmente ao incremento do turismo em regiões como Porto Seguro (BA), litoral fluminense e litoral paulista, como também o litoral dos estados nordestinos. Como sabemos, o turismo abre um número considerável de postos de trabalho no campo dos serviços em geral, o que se torna fator de grande atração para os migrantes. Além disso, a presença de turistas amplia o chamado mercado informal, atraindo grande número de "trabalhadores autônomos" ou vendedores ambulantes.

Por fim, o crescimento do Centro-Oeste, com destaque para o Distrito Federal e seu entorno, e para a capital de Tocantins, como mencionado, explica-se pelo inchamento da chamada fronteira intensiva. A esperança de um terreno na periferia onde construir a casa própria não deve ser descartada. "A política de doação de lotes", praticada pelo governo atual do DF, "apenas organiza os focos de miséria que surgem no Distrito Federal" (Correio Braziliense, 11 ago.2001:6). Palmas, como capital de um novo estado, também tem sido local de destino de muita gente. A construção civil, o setor de serviços e o mercado informal absorvem parte do contingente que aí busca vida melhor.

Do ponto de vista pastoral, vale lembrar que estes números, estas porcentagens e estes caminhos, aparentemente frios e neutros, representam nomes e rostos bem concretos. Gente que trabalha e sofre, sonha e espera, luta e busca - percorrendo com teimosia as estradas do país.

Rotas

Ampliando o quadro dos deslocamentos populacionais, podemos identificar, nos tempos atuais, cinco movimentos mais expressivos do fenômeno migratório: êxodo rural em massa, migrações temporárias ou sazonais, migrações limítrofes e/ou latino-americanas, migrações para a fronteira agrícola e migrações circulares ou pendulares.

Comecemos com o êxodo rural. Como observa-se pelas estatísticas dos itens anteriores, o esvaziamento do campo, embora tenha sofrido uma certa desaceleração nas duas últimas décadas, permanece intenso e contínuo. Ainda é de longe o maior movimento espacial da população brasileira. A migração do Nordeste para o Sudeste persiste como o fluxo mais significativo, mas não podemos esquecer a urbanização das regiões Norte e Centro-Oeste, bem como dos estados do Nordeste. De resto, em todas as unidades federais, com maior ou menor intensidade, prossegue o movimento de urbanização que marcou a segunda metade do século passado. Conforme dados do IBGE, o ritmo da urbanização no país vem diminuindo progressivamente, mas as taxas ainda se mantêm elevadas. Não apenas as capitais e metrópoles, mas também as pequenas e médias cidades vêm absorvendo o afluxo do êxodo rural.

As migrações temporárias ou sazonais ocorrem, especialmente, em direção às safras agrícolas. As safras da cana-de-açúcar, do café, da laranja, da uva - entre outras - são responsáveis por grandes fluxos de trabalhadores que, por um período de 4, 5, 6 ou 7 meses, deixam sua terra natal e se dirigem às regiões da agro-indústria. Bahia, Ceará, Paraíba e outros estados do Nordeste figuram como as áreas principais de origem desses migrantes. Quanto ao destino, podemos citar os estados de Pernambuco, São Paulo e Mato Grosso do Sul. Alguns estados, como Minas Gerais e Paraná, por exemplo, são simultaneamente pólos de origem e destino desses trabalhadores. Regiões de irrigação, como Petrolina (PE) e Juazeiro (BA), atraem igualmente números expressivos de trabalhadores temporários/sazonais.

Vale sublinhar, ainda, que os responsáveis pelas grandes obras, as empresas de construção civil, o trabalho doméstico e até os serviços em geral preferem, em não poucos casos, contratar a mão-de-obra temporária. Ela se adapta perfeitamente à oscilação da demanda nos setores apontados e, além disso, isenta a empresa dos encargos sociais mais onerosos e permanentes. É comum, nas regiões de origem, falar das mulheres como "viúvas de maridos vivos", as quais, na ausência dos homens, têm de assumir, além da casa, a busca da água e da lenha, bem como o trato do roçado. Quanto aos trabalhadores, em alojamentos provisórios e precários nos locais de destino, amargam em geral uma situação extremamente precária de vida e trabalho.

As migrações limítrofes, como o nome sugere, ocorrem na fronteira do Brasil com os países vizinhos: Paraguai, Uruguai, Bolívia, Peru e Venezuela. Por um lado, podemos assinalar o constante vaivém de pessoas que cruzam e recruzam a fronteira pelos mais diferentes motivos, desde o tráfico de drogas até a busca de emprego. Cidades como Corumbá (MS), Guajará-Mirim (RO), Foz do Iguaçu (PR) - só para citar algumas - são palco freqüente desse ir e vir. Por outro lado, há os migrantes que se mudam definitivamente de outros países para o Brasil, como os latino-americanos, que residem em São Paulo, Porto Alegre, Curitiba e nas cidades fronteiriças; e há os brasileiros que migram para o exterior, como os chamados "brasiguaios" ou "brasilianos", respectivamente no Paraguai e na Bolívia. Sem falar dos que, mais recentemente, se dirigem à Europa, aos EUA e ao Japão. Mas isso já é assunto para o tema das migrações externas, o qual não faz parte desta abordagem.

O movimento de migrantes em direção à fronteira agrícola vem sofrendo, de década para década, significativo decréscimo. A razão é dupla: por um lado, esgotam-se as "terras livres", ou melhor, à medida de sua valorização, elas vão sendo progressivamente acumuladas nas mãos de poucos latifundiários e de empresas agroindustriais, pecuaristas ou mineradoras. Destinam-se a projetos nem sempre transparentes e, não raro, à especulação imobiliária, como reservas de valor ou "terras de negócio". Por outro lado, as dificuldades de produção, escoamento e comercialização dos produtos desestimulam novas experiências para os pequenos e médios produtores rurais. A falta de uma política agrícola voltada para a pequena produção tem levado a grande maioria dos "colonos do Sul" à miséria e à periferia das cidades locais, quando não os faz retornar ao local de origem. O sonho da terra própria, para muitos, se reduz a um pesadelo por causa do acúmulo de dívidas. Não raro se ouve dizer que o Banco do Brasil é o cemitério dos agricultores. A cidade de Cuiabá ilustra bem o empobrecimento progressivo dos agricultores que em década recentes sonharam com o eldorado no Norte do país. Na ocasião, a capital de Mato Grosso funcionou como uma espécie de funil, o qual concentrava e dispersava pela fronteira agrícola os migrantes que vinham do Sul. Hoje, ela representa o mesmo papel de funil em direção inversa, isto é, recolhe os desiludidos da terra, reenviando-os seja a outras regiões, seja em menor quantidade aos locais de origem, ou simplesmente os acolhe em sua periferia cada vez mais inchada.

Entendemos por migrações circulares ou pendulares o movimento diário ou semanal de trabalhadores dentro das grandes metrópoles ou entre localidades vizinhas. Podemos citar, ainda, os "bóias-frias", os quais, embora trabalhando na zona rural, povoam as chamadas "pontas de rua" das pequenas e médias cidades. Tais deslocamentos de curta distância crescem na proporção direta do aumento do desemprego e subemprego, como também da instabilidade social. Relacionam-se, via de regra, ao trabalho informal ou a relações extremamente precárias de trabalho. Neste caso, não é exagero afirmar que os trabalhadores trocam de emprego e de casa quase como trocam de roupa. No seu humor sombrio, costumam dizer que "trabalho não falta, o que falta é emprego". Correndo atrás de "bicos" e disputando as migalhas do mercado, vêem-se forçados a um vaivém contínuo por uma sobrevivência cada vez mais difícil.

Raízes

Para entender as migrações internas, será preciso encarar de frente alguns nós ou estrangulamentos que, para usar a expressão de Caio Prado Júnior, fazem parte da formação econômica e política do Brasil. Fazem parte, igualmente, da formação histórica e cultural de nossa sociedade. São verdadeiros entraves do desenvolvimento social na história do país.

O primeiro deles é a concentração da terra, da riqueza e do poder. Os estudiosos da sociedade brasileira não se cansam de sublinhar o tripé em que se assenta a economia do Brasil, desde os tempos coloniais: latifúndio, monocultura de exportação e trabalho escravo. Ao longo da história, a concentração só fez aumentar, engendrando uma elite que acumula uma enorme fatia da renda nacional, e tem se revelado extremamente retrógrada e avessa a qualquer transformação. No caso da terra, cada vez que se procurou mexer na propriedade fundiária, a tensão oculta transformou-se em conflito aberto e até armado. É do conhecimento geral o número de assassinatos que a luta pela terra tem semeado por todo território nacional. Na verdade, a intuição de Gilberto Freire permanece bem viva e atual. O Brasil da Casa Grande & Senzala não é o Brasil de ontem. A coexistência entre uma elite abastada e a exclusão social da maioria da população é uma realidade da história deste país. O fosso entre os dois extremos tem aumentado cada vez mais, a ponto de se falar em apartheid social. Permanece igualmente viva a expressão de Raymundo Faoro, pois Os donos do poder seguem controlando os destinos da nação. Evidente que este estado de coisas está na raiz de muitos movimentos migratórios.

Outro nó que estrangula a população assalariada é a questão das relações de trabalho. Um dos lados do tripé retro apontado é o trabalho escravo. Aqui também a história não mudou muito. No Brasil, como de resto em todo o mundo, o capitalismo revela hoje uma enorme contradição: ao mesmo tempo que desenvolve a tecnologia mais avançada, ressuscita formas de trabalho execradas e prescritas ao lixo da história. É o caso, para citar alguns exemplos, do trabalho escravo, do trabalho infantil, do trabalho domiciliar, do trabalho feminino com remuneração inferior, do trabalho temporário, do trabalho por tarefa, do free lancer, do trabalho "autônomo"... enfim, um mercado informal que cresce na proporção da exclusão social. Termos como flexibilização e terceirização são janelas para entender esse processo que vem precarizando as relações de trabalho. Diminuem os empregos estáveis e multiplicam-se os "bicos". Se na história do Brasil os gastos com o trabalho sempre foram mínimos, hoje tornam-se irrisórios. Uma vez mais, o trabalhador vê-se obrigado a um vaivém compulsório e, não raro, ao esfacelamento do grupo familiar, apenas para suprir, e mal, as despesas com a sobrevivência.

Mais recentemente, o entrave da dívida externa e interna veio agravar a situação. Como vimos nos debates em torno da Terceira Semana Social Brasileira e na realização do Simpósio Tribunal e Plebiscito Nacional da Dívida Externa, o endividamento progressivo aprofunda as dívidas sociais, ao mesmo tempo que gera na população novas carências. O FMI, o Banco Mundial e outros organismos financeiros internacionais impõem metas que exigem, por parte do governo, freqüentes ajustes fiscais para aumentar o superávit primário. Os cortes orçamentários recaem, na grande maioria dos casos, sobre a área social, comprometendo as políticas públicas e a qualidade de vida da população mais pobre. Daí a falta de recursos para a educação, a saúde, o transporte público, a habitação, a geração de novos empregos e, peculiarmente, para a Reforma Agrária e para a Política Agrícola. O destino da nação e sua própria soberania se vêem subordinados aos novos e antigos Donos do poder, dos quais a elite brasileira e a elite internacional, especialmente o setor financeiro, são simultaneamente cúmplices e juizes. Ainda desta vez, não é difícil perceber as implicações do endividamento externo e interno para o agravamento das migrações compulsórias.

A estiagem periódica no semi-árido brasileiro e a indústria da seca constituem outro nó que está na raiz das migrações. Porém, não podemos cair na ingenuidade de que a seca é fator predominante da saída em massa do Nordeste e de Minas Gerais. A seca apenas agrava uma situação fundiária já extremamente desigual. Mais que a seca, o que expulsa o nordestino é a cerca. Cerca que, como hoje sabemos, concentra não somente a terra, mas também a água. Podemos afirmar que a estiagem marca a hora da partida, mas a causa profunda do êxodo reside na estrutura fundiária já assinalada. Não devemos confundir as motivações aparentes e superficiais com as razões estruturais da saída em massa. De resto, à concentração da terra e da água, haveria que acrescentar o patriarcalismo e o coronelismo, tão arraigados na cultura brasileira, e dos quais muita gente se liberta no ato mesmo de migrar para a cidade.

Por fim, ainda um novo entrave que estrangula o desenvolvimento brasileiro: a corrupção. Também esta encontra-se fortemente impressa na história e na cultura do país. Se a dívida externa representa uma sangria em parte substancial dos recursos do país e a concentração de riqueza acumula outra grande fatia, a corrupção acaba por completar o quadro de exploração. Fatos e rumores recentes têm trazido à tona o enorme desvio dos recursos públicos em favor de interesses privados. As maiores autoridades do legislativo, como também representantes do judiciário e do executivo, têm realizado vultosas extorsões no erário da nação. Entre o púbico e o privado desenvolve-se, de forma oculta e escandalosa, uma promiscuidade que vem denunciar, novamente, a apropriação patrimonial dos bens coletivos. Com isso, grande parte dos recursos que saem de Brasília em direção às regiões menos desenvolvidas, mediante programas sociais, acabam beneficiando principalmente os intermediários, isto é, políticos e empresários inescrupulosos. Quanto às famílias para as quais se destinavam tais recursos, quantas delas não acabam caindo na estrada!

Desafios

Passemos agora aos desafios que as migrações levantam para os movimentos sociais em geral e, em particular, para a ação da Igreja. O primeiro deles é a acolhida. Tanto na saída quanto na chegada, os migrantes passam por um processo muitas vezes traumático de ruptura. O golpe da migração costuma ser duro e profundo. Situações de solidão, de saudade e de anomia repetem-se com freqüência. Na saída, sofre quem parte e quem fica; na chegada, nem sempre é tranqüila a adaptação ao novo local. Nesses momentos, não raro o desespero pode bater à porta. Daí a necessidade de criar e fortalecer grupos de acolhida, por meio dos quais os laços rompidos possam ser gradualmente reatados. A integração com a nova vizinhança requer, por outro lado, o apoio na luta por emprego e moradia, escola e saúde, enfim, para reiniciar uma nova vida. Aqui são de extrema importância as relações de amizade e compadrio, bem como as redes de solidariedade entre os próprios migrantes. Como identificar e aprofundar tais redes? Ou, então, como fazer da comunidade cristã um novo elo na rede, onde o migrante possa sentir-se em casa em qualquer lugar em que se encontre?

Em segundo lugar, vem o desafio de resgatar a história e a cultura dos migrantes, seja em termos individuais, seja em termos coletivos. Numa sociedade cada vez mais plural e multiétnica, como trabalhar pela aceitação do outro, do estranho, do diferente? Como abrir espaços onde os distintos grupos e pessoas possam se manifestar? Sem cair num saudosismo ineficaz, como valorizar as expressões culturais e religiosas, fazendo delas novos instrumentos de readaptação e de luta? A libertação e a construção da cidadania passa, necessariamente, pela superação dos traumas acumulados pelo caminho. Isto exige tempo e espaço para contar a própria história. Falar é uma forma de exorcizar os medos e as sombras que dominam o passado. A história pessoal e coletiva será um pesado fardo, se não formos capazes de transformá-la em fonte de novas experiências. Por outro lado, a luta pela cidadania real não pode esquecer a dimensão antropológica do canto, da música, da dança, da alegria e da festa.

Um terceiro desafio é a luta pelos direitos do migrante. Neste caso, torna-se decisivo o combate a todo tipo de migração forçada. Isto nos leva à luta pela terra e na terra. Apoiar os movimentos no campo e os esforços pela Reforma Agrária e por uma efetiva política agrícola é, sem dúvida, uma forma de evitar a saída compulsória de milhares de famílias. A fixação do homem na terra, com condições reais de vida e trabalho, é uma forma de diminuir o movimento maciço de migrantes. Sem esquecer, jamais, a liberdade de ir e vir. Nem a fixação nem a migração podem ser forçadas. No caso dos trabalhadores temporários, é preciso acompanhar de perto os contratos de trabalho estabelecidos, bem como os acertos finais. Quanto aos migrantes em geral, quando chegam a um novo local, como engajá-los na busca por melhores condições de vida e trabalho? Uma acolhida real e efetiva desdobra-se em esforços pelo fortalecimento das lutas populares, seja no sindicato e em associações, seja nos movimentos sociais e organizações de base. Parafraseando Euclides da Cunha, podemos dizer que o migrante é, antes de tudo, um forte. Um lutador nos caminhos da sobrevivência. Como fazer dele um lutador coletivo, no sentido de acreditar nas mudanças estruturais de uma sociedade injusta?

Uma presença nos locais de saída e chegada dos migrantes constitui o quarto desafio. Origem e destino são dois pólos do processo migratório, especialmente no que diz respeito às migrações temporárias e pendulares. Entre ambos, os migrantes constróem uma ponte pela sobrevivência, sua e da família. O desafio é unir os dois lados do movimento, construir uma ponte pastoral, a qual possa acompanhar ao mesmo tempo as comunidades das regiões de saída e os alojamentos nos locais de trabalho? A presença cá e lá, além de fortalecer a resistência pessoal do migrante, cria oportunidades para o apoio efetivo à conscientização, organização e mobilização. Evidente que no caso do vaivém contínuo, em que origem e destino se diluíram em movimentos repetidos e desordenados, o acompanhamento é mais complexo.

Um outro desafio é a questão do universo urbano. Quando falamos de universo urbano não nos referimos somente à área da cidade. O universo urbano inclui, mas ultrapassa a cidade. Muito mais que fechado em limites espaciais, ele é uma nova mentalidade, uma nova linguagem, um novo jeito de ser - se quisermos, uma nova cultura! O ser urbano é o cidadão do século XXI. Esta cultura, na qual predomina o pluralismo religioso e muitiétnico, não se restringe à geografia da cidade. Por vezes, ela até exerce maior fascínio no campo. Trata-se de um universo que se contrapõe ao universo rural; como em grande parte do globo, a sociedade brasileira vive a transição de um universo para outro. Transição que, vale repetir, é também experimentada por aqueles que jamais saíram dos grotões e dos sertões do campo. A sedução do modo de vida urbano chega aos lugares mais afastados via televisão ou por intermédio dos próprios migrantes, em suas idas e retornos.

Aqui torna-se necessário fazer uma distinção: pastoral urbana, nesta compreensão mais ampla, não significa pastoral da cidade, e sim a busca de respostas evangélicas para os desafios dessa nova mentalidade, a qual se encontra tanto nas ruas e praças quanto nos sítios e fazendas. Sabemos que o cristianismo nasceu na cidade, mas se consolidou num universo rural. Como, nos dias atuais, traduzir a Boa Nova do Evangelho para este novo habitante do planeta, o homem e a mulher urbanos? Entre outras coisas, isso exige grande abertura ao pensamento plural, ao ecumenismo e ao diálogo inter-religioso.

Por fim, como último desafio, o que é a Pastoral dos Migrantes? As estruturas eclesiais, tanto do ponto de vista geográfico quanto burocrático, estão circunscritas a uma espécie de "feudos", áreas fechadas e autônomas, diretamente dependentes do centro romano ou diocesano. Os migrantes, em seu constante vaivém, desconhecem as fronteiras de dioceses e paróquias. O desafio, neste caso, é criar mecanismos pastorais que possam acompanhar de forma dinâmica e ágil o movimento migratório, independentemente dos limites territoriais. Estamos falando de uma Igreja mais aberta e acolhedora aos que se encontram espalhados pelos caminhos. Por vezes temos a sensação de que as portas de entrada aos sacramentos estão fechadas para os "mal casados" e para os que se encontram "fora de casa". Quem sabe novos vicariatos, equipes volantes, missões populares sejam, entre outros, alguns dos instrumentos a serem implementados, na perspectiva de responder ao desafio da mobilidade humana em suas mais diferentes formas.

Conclusão

A título de conclusão, resta dizer que o quadro das migrações se insere no contexto mais amplo da sociedade brasileira e da economia mundial globalizada. O modelo neoliberal adotado pelas elites e pelo governo, subordinando a política e a economia às exigências do capital financeiro nacional e internacional, agrava ainda mais o penoso vaivém de amplos setores da população. Os trabalhadores são impelidos a uma mobilidade freqüente e, ao mesmo tempo, acabam sendo barrados em todo tipo de fronteira. O deslocamento em massa, nos dias atuais, põe a nu uma grande contradição dos chamados países desenvolvidos. Por um lado, eles abrem a porta dos fundos para a entrada de migrantes ilegais, pois necessitam de mão-de-obra fácil e barata para determinados serviços "sujos e mal pagos". Por outro, fecham-lhes a porta da frente, negando a eles os direitos básicos e o estatuto de trabalhadores, à medida em que os mantêm na clandestinidade. Sem documentos, tornam-se vulneráveis a todo tipo de exploração, discriminação e preconceito.

A concentração de renda, por uma parte, e a exclusão social, por outra, agravam ainda mais a instabilidade e a insegurança, tanto em nível nacional quanto internacional. A fome e a miséria levam milhões à estrada, à periferia e às ruas, quando não à desnutrição e à morte! A mobilidade humana hoje converteu-se num fenômeno planetário. Deslocamentos em massa espalham-se por todas as direções do globo.

Na contramão desse modelo, movimentos sociais, entidades e organizações populares vêm apontando soluções concretas. A construção de um projeto alternativo para o Brasil e para o mundo passa, obrigatoriamente, pelas milhares de pequenas iniciativas que já estão em curso. Trata-se de abrir caminhos novos, no sentido de uma economia solidária, justa e fraterna, social e ecologicamente sustentável. Se é verdade que os migrantes e os excluídos carregam sobre os ombros o peso da globalização econômica, também é verdade que levam no coração o sonho de globalizar a solidariedade, de um amanhã renovado. Como ponto final, podemos afirmar que o Fórum Social Mundial, realizado em Porto Alegre (RS), em janeiro de 2001, representou um salto qualitativo na construção do projeto de uma nova civilização.

Alfredo José Gonçalves é padre da Congregação dos Missionários de São Carlos, escalabrinianos, integrante do Serviço Pastoral dos Migrantes e assessor do Setor Pastoral Social da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Faz parte do Conselho Consultivo de Travessia – Revista do Migrante.

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    Exposição feita pelo autor no Seminário sobre População e Pobreza, promovido pelo Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Social (Ibrades) de 13 a 16 de agosto de 2001, em Brasília (DF).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Mar 2005
    • Data do Fascículo
      Dez 2001
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