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“Globalização” financeira e regimes cambiais

Financial ‘globalization’ and exchange rate regimes

RESUMO

Este artigo argumenta que, embora os fluxos internacionais de capital tenham aumentado rapidamente nas últimas décadas, os mercados financeiros ainda estão longe de formar um mercado global unificado. Ele também argumenta que o efeito do aumento da mobilidade de capital na autonomia da política econômica nacional continua a depender, em grande parte, da escolha do regime cambial.

PALAVRAS-CHAVE:
Fluxos de capital; globalização; regimes cambiais; política cambial; liberalização

ABSTRACT

This paper argues that, although international capital flows have increased rapidly in recent decades, financial markets are still far from forming a unified global market. It also argues that the effect of increasing capital mobility on national economic policy autonomy continues to depend, to a large extent, on the choice of the exchange rate regime.

KEYWORDS:
Capital flows; globalization; exchange rate regimes; exchange rate policy; liberalization

1. INTRODUÇÃO

A dimensão financeira é considerada por muitos autores como o aspecto decisivo do processo de internacionalização das décadas recentes. Robert Wade, por exemplo, observa que “a multinacionalização mais dramática ocorreu no plano financeiro” (Wade, 1996WADE, Robert (1996). “Globalization and its limits: reports of the death of the national economy are greatly exaggerated”. In: Suzanne Berger & Ronald Dore (orgs.), National diversity and global capitalism. Ithaca, New York, Cornell University Press.: 64). Michel Rogalski refere-se às finanças como o “núcleo duro da mundialização” (Rogalski, 1997ROGALSKI, Michel (1997). “Mondialisation: présentation et remarques complémentaires”. La Pensée, 309, jan-mar.: 9).

De fato, é nesse terreno que as transações internacionais vêm apresentando expansão mais acentuada. Também é aqui que fica mais evidente como o avanço tecnológico pode superar as barreiras naturais de tempo e espaço que separam os mercados nacionais.1 1 International Monetary Fund (1997b: 46). A remoção de controles sobre os movimentos internacionais de capital e a desregulamentação dos mercados financeiros domésticos, combinadas com o rápido progresso tecnológico em computação e comunicações e com a diversificação e sofisticação crescentes dos instrumentos financeiros, produziram ampliação extraordinária dos mercados, especialmente dos fluxos internacionais.2 2 The Economist (1995: 3-4).

Até os anos 60, os países desenvolvidos mantiveram controles relativamente rigorosos sobre os movimentos internacionais de capital. No início da década de 70, teve início um processo gradual de liberalização, que se estendeu por mais de vinte anos. Como o desmantelamento dos controles internacionais ocorreu em um período de desregulamentação dos mercados domésticos e de rápida inovação financeira e tecnológica, o resultado foi um dramático crescimento dos fluxos brutos de capital, especialmente desde os anos 80.3 3 International Monetary Fund (1997b: 60).

Para as principais economias desenvolvidas, as transações internacionais brutas em títulos e ações, por exemplo, que equivaliam a menos de 10% do PIB em 1980, passaram a representar quase sempre bem mais do que 100% em 1995.4 4 Idem, ibidem. De acordo com levantamento trienal realizado pelo BIS, o giro diário médio nos mercados cambiais também vem aumentando a taxas elevadas, passando de um total estimado em US$ 188 bilhões em 1986, para US$ 590 bilhões em 1989, US$ 820 bilhões em 1992 e nada menos que US$ 1.190 bilhões em 1995.5 5 Idem (64). O BIS observa, contudo, que a maior parte da taxa anual média de crescimento de 13,2%, registrada entre 1992 e 1995, deve ser atribuída à depreciação do dólar dos EUA, moeda presente em mais de 80% das transações. Ajustada para excluir os efeitos dessa depreciação, a taxa média de crescimento diminui para 6,2% ao ano nesse período (International Monetary Fund, 1996: 31, 120). Para se ter uma ideia do que isso significa, basta assinalar que, em 1995, as reservas totais nos bancos centrais dos países desenvolvidos, alcançavam U$ 764 bilhões6 6 International Monetary Fund (1997a: S6, S37). O dado inclui reservas de ouro contabilizadas a DES 35 a onça. , menos de dois terços do giro diário nos mercados de câmbio. Outra área de crescimento rápido tem sido o mercado de derivativos. Entre fins de 1986 e fins de 1995, o valor de contratos envolvendo derivativos financeiros selecionados (futuros e opções de juros, futuros e opções de moeda, e futuros e opções de índices de mercados de ações) aumentou de US$ 618 bilhões para US$ 9.185 bilhões. O número anual de contratos com esses tipos de derivativos financeiros, negociados em mercados organizados, passou de 315 milhões em 1986 para 1.210 milhões em 1995.7 7 International Monetary Fund (1996: 68-69).

A finalidade deste artigo, que corresponde essencialmente a um dos capítulos de um trabalho mais amplo (Batista Jr., 1997BATISTA JR., Paulo Nogueira (1997) Os Mitos da “Globalização” (1997). Mimeo. Série Assuntos Internacionais, nº 52, Instituto de Estudos Avançados, Universidade de São Paulo, set.), é dupla. Primeiro, procura-se questionar a ideia de que a internacionalização financeira recente tenha o alcance sugerido por termos como “globalização” ou “mundialização” financeira. Segundo, argumenta-se que o efeito dos crescentes movimentos de capitais sobre o grau de autonomia das políticas econômicas nacionais depende, em grande medida, do regime cambial escolhido. Regimes cambiais semelhantes ao que vem sendo adotado no Brasil nos anos recentes revelam-se particularmente vulneráveis em face do volume e velocidade crescentes dos fluxos financeiros internacionais.

2. “GLOBALIZAÇÃO” FINANCEIRA?

A internacionalização financeira é mais limitada do que sugerem os números mencionados na introdução ou o uso frequente de expressões como “globalização financeira” ou “mundialização do capital financeiro”. Como se lê em um documento recente do FMI, dedicado à questão da “globalização”, “o grau de integração dos mercados de capital é muito mais limitado do que parecem sugerir os fluxos brutos [de capital]”.8 8 International Monetary Fund (1997b: 61). Os movimentos líquidos de capital não apresentam o mesmo crescimento explosivo, observa o documento, e são bastante modestos quando comparados ao PIB ou aos níveis registrados durante o auge do padrão-ouro, antes de 1914. Na década de 90, os países desenvolvidos vêm apresentando desequilíbrios médios em conta corrente da ordem de apenas 2% do PIB.9 9 Idem, ibidem. Ver, também, Batista Jr. (1997: 9-11).

De uma forma geral, as aplicações financeiras domésticas ainda são preponderantes por larga margem. Martin Feldstein observa que embora a eliminação de controles de capital, especialmente nos países desenvolvidos, tenha ampliado as possibilidades de movimentação do capital entre países, a maior parte dos proprietários e administradores de fundos financeiros continua preferindo concentrar as suas aplicações nos mercados nacionais. “A maior parte da poupança fica nos países de origem”, diz ele, “e muito do capital que se move internacionalmente está buscando ganhos temporários e se desloca rapidamente quando as condições mudam”. Em consequência, um país não pode contar com fluxos sustentados de capital externo para financiar o investimento doméstico, mesmo quando as oportunidades locais de investimento são atraentes (Feldstein, 1995FELDSTEIN, Martin (1995). “Global capital flows: too little, not too much”. The Economist, 24 de junho.: 72-3).

O ponto de vista de Feldstein é confirmado por uma análise do comportamento dos investidores institucionais de países desenvolvidos, apresentada em outro documento do Fundo Monetário Internacional10 10 International Monetary Fund (1995: 165-74). . Recorde-se que nos países desenvolvidos, e crescentemente nos países em desenvolvimento, os mercados de títulos têm sido cada vez mais dominados por um número relativamente pequeno de grandes investidores institucionais, notadamente fundos de pensão e companhias de seguro. Os ativos totais dos trezentos maiores investidores institucionais dos EUA aumentaram de 30% do PIB daquele país em 1975 para mais de 110% do PIB em 1993. Os fundos de pensão, as companhias de seguro e os fundos mútuos em cinco dos principais países desenvolvidos (EUA, Japão, Alemanha, Reino Unido e Canadá) administravam US$ 13 trilhões em ativos em 1993, um valor significativamente maior do que o estoque de US$ 9 bilhões da dívida governamental dos países do G-7.11 11 Idem (165-6).

Dados o volume e o rápido crescimento dos fundos sob administração institucional, é importante verificar qual o grau de diversificação internacional desses investidores. Os dados disponíveis não dão sustentação à tese de que estaria havendo um forte e generalizado processo de internacionalização que pudesse justificar o uso de termos como “globalização financeira”. As estatísticas apresentadas no documento do FMI mostram que embora tenha ocorrido alguma diversificação internacional em determinados setores, o comportamento dos investidores institucionais, particularmente dos fundos de pensão e das companhias de seguro, continua marcado por um forte viés em favor dos mercados nacionais. O FMI atribui esse viés a uma combinação de fatores: a) ao caráter ainda relativamente recente dos processos de diversificação internacional dos portfólios de investidores institucionais; b) à marcada preferência de investidores individuais por ativos domésticos, em função de custos de transação, risco cambial, incertezas sobre retornos esperados e pouca familiaridade com mercados e leis tributárias no exterior; e) a restrições governamentais a aplicações no exterior; e d) a aversão ao risco por parte dos administradores de fundos de pensão e outros investimentos.12 12 Idem (168-9). Feldstein oferece explicação semelhante para o viés nacional dos investidores institucionais: “The reluctance of portfolio managers to invest more in foreign securities may reflect [...] a concern about low-probability events, such as repayment default or currency non-convertibility. Portfolio managers and fiduciary committees may also see their task as ‘acting prudently’ rather than maximising a risk-adjusted return” ( Feldstein, 1995 : 73).

Os fundos de pensão dos EUA, por exemplo, que administravam um total de US$ 3,6 trilhões de ativos em 199313 13 International Monetary Fund (1995: 166). , tinham apenas 5,7% desse total aplicados no exterior. Os da Alemanha, 4,5%. Os do Japão, 9%. Só os fundos de pensão do Reino Unido, com 19,7% dos seus ativos aplicados em papéis estrangeiros, é que revelam uma abertura mais significativa ao exterior (tabela 1).

Tabela 1
Participação de Títulos Estrangeiros na Carteira de Investidores Institucionais de Países Desenvolvidos Selecionados

As companhias de seguro de vida, que depois dos fundos de pensão são os investidores institucionais de maior peso, também apresentam forte propensão a aplicar no seu país de origem e a julgar pelos dados reproduzidos na tabela 1 são quase sempre mais introvertidas do que os fundos de pensão. As seguradoras dos EUA, por exemplo, mantinham apenas 3,7% dos seus portfólios aplicados em outros países em 1992. As da Alemanha, 1% em 1991. As do Japão, 9% em 1993. O grau de abertura a aplicações externas só é mais significativo no caso dos fundos mútuos, particularmente na Alemanha e no Reino Unido. Mas, mesmo nesses países, as aplicações domésticas ainda são dominantes nos portfólios dos fundos mútuos (tabela 1).

A propensão dos investidores institucionais a aplicar nos chamados mercados emergentes é ainda menor. Embora tenha havido um aumento dessas aplicações nos anos recentes, o percentual dos portfólios institucionais investido nesses mercados é muito reduzido. Estimava-se que, em 1995, os investidores institucionais mantinham, em média, apenas cerca de 1% dos seus ativos em países em desenvolvimento.14 14 Idem (172).

É verdade que a tabela 1 também mostra que, no caso dos fundos de pensão, vem ocorrendo um aumento gradual da participação das aplicações no exterior desde 1980, pelo menos. Os fundos de pensão dos EUA, por exemplo, mantinham apenas O,7% do seu ativo no exterior em 1980. Os do Japão, 0,5%.

Por outro lado, no caso das companhias de seguro de vida a tendência não é tão clara. As dos EUA e do Canadá, por exemplo, vêm diminuindo o peso relativo das suas aplicações no exterior desde 1980. O mesmo vem ocorrendo nos anos 90 no caso das companhias de seguro do Japão e, em menor medida, do Reino Unido (tabela 1).

No caso dos fundos mútuos, só se observa aumento da participação de aplicações no exterior nos EUA, de 6,6% dos ativos totais em 1991 para 10,1% em 1993. Já no Canadá, país para o qual há mais dados, nota-se uma tendência de queda da importância relativa das aplicações em papéis estrangeiros, de 19,9% em 1980 para 17,5% em 1990 e 17,1% em 1993. Uma diminuição do grau de internacionalização também se observa nas aplicações dos fundos mútuos da Alemanha, do Japão e do Reino Unido (tabela 1).

A preponderância dos mercados nacionais também aparece de forma esmagadora nos dados referentes aos mercados de títulos e ações. Em 1995, o estoque de títulos (bônus, notas, commercial paper e títulos do Tesouro) em circulação nos mercados domésticos dos países do G-7 era treze vezes maior do que o estoque de títulos emitidos por esses países nos mercados internacionais: US$ 21,5 trilhões contra US$ 1,6 trilhão15 15 Nos mercados domésticos, predominam os títulos emitidos pelo setor público, que responderam por 63,7% do estoque de títulos domésticos em fins de 1995 (International Monetary Fund, 1996: 59). Esse documento do FMI observa que “although the domestic debt markets are much larger than the international market, they have grown more slowly in recent years, reflecting fiscal consolidation efforts in industrial countries, which has slowed the rate of public issues” (Idem: 58). (tabela 2). Nos mercados acionários, também predominam as transações internas. Em 1994, as emissões domésticas de ações em cinco dos principais países desenvolvidos (Alemanha, Canadá, EUA, França e Reino Unido) alcançaram US$ 167 bilhões, o equivalente a treze vezes o valor emitido por companhias desses países nos mercados internacionais (tabela 3).

Tabela 2
Mercados Domésticos e Internacionais de Títulos nos Países do Grupo dos 7
Tabela 3
Emissões Domésticas e Internacionais de Ações para Países Desenvolvidos Selecionados

Em suma, quando se considera a introversão dos investidores institucionais dos países desenvolvidos e o peso dos mercados financeiros domésticos em comparação com os internacionais, fica claro que é prematuro admitir a existência de um mercado “global” de capitais. É o que conclui, também, o já citado documento do FMI sobre a questão da “globalização”: “os mercados financeiros tornaram-se crescentemente integrados, mas estão longe de formar um único mercado global”.16 16 International Monetary Fund, 1997b, p. 65.

Diante do predomínio dos fluxos e estoques financeiros domésticos, e dado o regime de flutuação cambial administrada entre as principais moedas, não surpreende que estudo recente publicado pela OCDE tenha concluído que é relativamente baixo o grau de interdependência ou sincronização entre as taxas de juro de longo prazo das três principais economias desenvolvidas: os EUA, o Japão e a Alemanha. A influência de fatores externos pode ter aumentado, observa a OCDE, em função da maior diversificação internacional dos portfólios dos investidores em bônus. Não obstante, as taxas de juro de longo prazo continuam sendo determinadas primordialmente pelas condições econômicas domésticas. “Entre as três maiores economias”, conclui o estudo, “as taxas de câmbio absorvem, em larga medida, as pressões resultantes de divergências entre as taxas de juro de um país e as dos seus parceiros; em consequência, as taxas de juro de longo prazo, bem como as de curto, em uma das três maiores economias podem variar, e frequentemente variam, de forma relativamente independente dos desenvolvimentos nas duas outras economias”.17 17 Organisation for Economic Co-operation and Development (1996: 34). Ver também Intemational Monetary Fund (1997b: 64). Um exemplo recente do baixo grau de sincronização entre as taxas de juro de longo prazo dos países desenvolvidos ocorreu no início de 1996, quando se verificou, de um lado, significativo aumento dos juros no Canadá, no Reino Unido e nos EUA e, de outro, queda na Europa continental e estabilidade no Japão. Para uma análise do movimento divergente das taxas de juro de longo prazo nos principais países desenvolvidos no início de 1996, ver International Monetary Fund (1996: 16-7). O FMI atribui essas divergências na variação das taxas de longo prazo ao fato de que as economias do Canadá, do Reino Unido e dos EUA encontravam-se em estágio diferente do ciclo econômico, com taxas de crescimento relativamente rápidas em comparação com as observadas na Europa continental e no Japão (Idem: 17).

3. FLUXOS FINANCEIROS INTERNACIONAIS E REGIMES CAMBIAIS

À luz de todos esses dados, pode parecer difícil entender a frequência com que se faz referência ao poder dos mercados financeiros “globalizados” e sua suposta capacidade de estabelecer vetos inamovíveis à condução das políticas econômicas nacionais. Em parte, isso se explica pelo fato de que o grau de internacionalização financeira hoje existente é sensivelmente maior do que o observado durante o sistema de Bretton Woods, nos anos 50 e 60. A interdependência das políticas macroeconômicas, embora provavelmente menor do que nos tempos do padrão-ouro, é certamente maior do que a que havia na época dos mercados financeiros mais segmentados e regulados, característicos das duas décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial.

Nas décadas de 50 e 60, um regime de câmbio fixo ou bandas cambiais estreitas era compatível com algum grau de autonomia nacional na condução da política monetária, sobretudo no curto prazo. Países submetidos a choques assimétricos ou a ciclos econômicos não-sincronizados podiam, dentro de certos limites, praticar políticas monetárias divergentes, de acordo com suas prioridades nacionais, e ainda assim assegurar estabilidade das suas taxas de câmbio por algum tempo. Episódios de ataques especulativos contra moedas frágeis eram bastante comuns, mas os bancos centrais mostravam-se capazes de resistir por mais tempo à desvalorização cambial.

O quadro agora é diferente. A tendência à integração dos mercados, desde os anos 70, cria situações novas e novos desafios para as políticas econômicas nacionais. As formas de intervenção estatal não são as mesmas de trinta ou quarenta anos atrás. O crescimento das operações financeiras internacionais coloca limitações maiores à condução das políticas nacionais, particularmente no campo monetário-cambial. Os fluxos líquidos de capital podem ser menores do que nas décadas anteriores à Primeira Guerra Mundial, mas o volume bruto de transações financeiras, assim como a velocidade de deslocamento internacional dos fundos, são atualmente muito maiores.18 18 The Economist (1995: 9). Ver, também, International Monetary Fund (1997b: 116).

Contudo, no debate brasileiro, nem sempre se destacam as implicações mais relevantes dessas mudanças no quadro financeiro internacional. Uma delas é justamente a dificuldade cada vez maior que têm os bancos centrais, mesmo os de maior peso, de sustentar o tipo de regime cambial que o Brasil resolveu adotar no passado recente. A ampliação dos fluxos internacionais de capital vem tornando cada vez mais difícil a defesa de regimes que se caracterizam por ancoragem cambial flexível, isto é, aqueles que estabelecem sistemas ajustáveis de câmbio fixo, prefixações, bandas cambiais estreitas etc.

Barry Eichengreen discute, desse ângulo, as perspectivas para os arranjos monetários e cambiais no século XXI. Eichengreen argumenta de forma persuasiva que, por causa do volume crescente de ativos líquidos ou voláteis e da maior mobilidade internacional do capital, a tendência é no sentido de uma polarização dos regimes cambiais factíveis, com crescente inviabilidade de regimes intermediários que envolvem a fixação de metas cambiais explícitas. Para ele, os países serão cada vez mais obrigados a optar entre dois sistemas básicos: a) a flutuação cambial administrada, que já é o regime cambial dos principais países desenvolvidos desde o início dos anos 70; b) a unificação monetária ou regimes que se aproximem disso, como o currency board (Eichengreen, 1994EICHENGREEN, Barry (1994). International monetary arrangements for the 21st century. Washington, D.C., The Brookings Institution.). Nesse último caso, inclui-se, como se sabe, o modelo adotado na Argentina desde 1991, que acarreta forte perda de autonomia nos campos monetário e cambial e só é aplicado, mesmo assim raramente, em economias muito pequenas ou que passaram por crises monetárias profundas (Batista Jr., 1993BATISTA JR., Paulo Nogueira (1993). “A armadilha da dolarização”. Estudos Econômicos, v. 23, nº 3, set./dez.).

O mesmo ponto de vista é defendido por Max Corden, para quem o tamanho dos fluxos internacionais de capital, relativamente aos fundos à disposição dos bancos centrais, dificulta enormemente a defesa dos diferentes tipos de sistemas ajustáveis de câmbio fixo. A não ser em países que possam e desejem impor controles cambiais efetivos, sistemas cambiais desse tipo não são mais factíveis. A escolha, escreve ele, é entre a flutuação administrada e um “regime sólido” na forma de uma união mone­tária ou de um currency board.19 19 Corden (1994: 292-306). Evidentemente, os países que optam por um “regime sólido” estão abdicando do uso da taxa cambial como instrumento de ajustamento do balanço de pagamentos. Essa opção implica transferir o controle sobre a política monetária a um país hegemônico (no caso do currency board), adotar a moeda emitida por outro país (caso do Panamá) ou estabelecer uma união monetária com um banco central comum (caso da união monetária europeia). Segundo Corden, excluídos os poucos países que escolherem um currency board e aqueles que eventualmente participarem da união monetária europeia, a flutuação administrada parece estar em vias de se tomar a norma geral (Idem: 304-5). Os regimes intermediários, que estabelecem metas ou âncoras cambiais ajustáveis, como, por exemplo, o regime cambial que desmoronou na Europa em 1992-3, ou o sistema mexicano, que veio abaixo em dezembro de 1994, ou o que vigora hoje no Brasil, estão se tornando cada vez mais vulneráveis num mundo marcado por uma tendência à integração dos mercados financeiros e por crescente mobilidade internacional de capitais. Em certas circunstâncias, a defesa desse tipo de regime cambial pode revelar-se extraordinariamente custosa em termos de diminuição das reservas internacionais do banco central. Ou exigir taxas de juro internas proibitivamente elevadas.

Em 1997, a fragilidade desse regime foi novamente comprovada pelo colapso das moedas de diversos países do leste da Ásia. Até meados do ano passado, a maioria dos bancos centrais desses países vinha procurando estabilizar as taxas nominais de câmbio, mantendo o preço do dólar dos EUA em moeda nacional dentro de uma certa faixa de variação. A partir de julho, ataques especulativos poderosos, alimentados pela enorme massa de recursos voláteis em circulação nos mercados internacionais, resultaram em pressões irresistíveis contra as “âncoras” cambiais desses países, que foram sucumbindo sucessivamente, com alto custo em termos de desestabilização do quadro macroeconômico no leste da Ásia e de repercussões financeiras e comerciais em outras regiões do mundo. Essa experiência constitui mais uma ilustração dos perigos associados ao modelo cambial em vigor no Brasil.

Em um contexto internacional de ampla mobilidade de capitais, a preservação da estabilidade econômica e da autonomia nacional na condução das políticas monetárias e cambiais depende, em grande medida, da escolha do regime cambial. Como se sabe, a flutuação cambial é o regime que melhor permite conciliar a internacionalização financeira com a persistência de divergências entre a situação e as prioridades das diferentes economias nacionais. Não é por acaso que, com poucas exceções, tem havido marcada preferência por regimes de flutuação cambial administrada, com diferentes graus de intervenção dos bancos centrais nos mercados de câmbio20 20 De acordo com o FMI, “policy makers came to appreciate that with floating exchange rates, capital mobility was not incompatible with independent monetary policy conducted to stabilize domestic economic activity” (International Monetary Fund, 1997b: 116). . Essa tem sido a tendência não só nos países desenvolvidos, como também nos países em desenvolvimento (Eichengreen, 1996EICHENGREEN, Barry (1996). Globalizing capital: a history of the international monetary system. Princeton, Princeton University Press.: 136-92).

Como lembra o presidente do Bundesbank, Hans Tietmeyer, é comum que as políticas e prioridades dos Estados nacionais variem em direções ou tempos diferentes. Por esse motivo, há limites para o que pode ser alcançado pelos esforços de coordenação internacional. “Se isso vale para as políticas financeiras em geral”, observa ele, “deve valer especialmente para quaisquer tentativas de ‘formalizar’ arranjos cambiais. [...] Sejamos realistas: no futuro previsível, acordos cambiais ‘formalizados’ entre as principais moedas do mundo não são um caminho viável para se seguir” (Tietmeyer, 1995TIETMEYER, Hans (1995). “Establishing a vision for stabilization and reform”. In: James M. Boughton & K. Sarwar Lateef (orgs.), Fifty years after Bretton Woods: the future of the IMF and the World Bank. Washington, D.C., International Monetary Fund and World Bank Group.: 208-9).

No entanto, o predomínio do regime de flutuação cambial está longe de reduzir os bancos centrais à condição de atores coadjuvantes. Agindo isoladamente ou em combinação com outros bancos centrais, as autoridades monetárias nacionais, particularmente nas economias desenvolvidas, conservam considerável poder de intervenção e continuarão a exercer grande influência sobre a trajetória das taxas de câmbio, a despeito de tudo o que se afirma sobre o poder supostamente irresistível dos mercados financeiros “globalizados”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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    International Monetary Fund, 1997bINTERNATIONAL Monetary Fund (1997b). World economic outlook: globalization, opportunities and challenges. Washington, D.C., maio., p. 65.
  • 17
    Organisation for Economic Co-operation and Development (1996ORGANISATION for Economic Co-operation and Development (1996). OECD Economic Outlook 60. Paris, dezembro.: 34). Ver também Intemational Monetary Fund (1997b: 64). Um exemplo recente do baixo grau de sincronização entre as taxas de juro de longo prazo dos países desenvolvidos ocorreu no início de 1996, quando se verificou, de um lado, significativo aumento dos juros no Canadá, no Reino Unido e nos EUA e, de outro, queda na Europa continental e estabilidade no Japão. Para uma análise do movimento divergente das taxas de juro de longo prazo nos principais países desenvolvidos no início de 1996, ver International Monetary Fund (1996INTERNATIONAL Monetary Fund (1996). International capital markets: developments, prospects and key policy issues. Washington, D.C., setembro.: 16-7). O FMI atribui essas divergências na variação das taxas de longo prazo ao fato de que as economias do Canadá, do Reino Unido e dos EUA encontravam-se em estágio diferente do ciclo econômico, com taxas de crescimento relativamente rápidas em comparação com as observadas na Europa continental e no Japão (Idem: 17).
  • 18
    The Economist (1995THE ECONOMIST Newspaper Limited (1995). A Survey of the World Economy. 7 de outubro.: 9). Ver, também, International Monetary Fund (1997bINTERNATIONAL Monetary Fund (1997b). World economic outlook: globalization, opportunities and challenges. Washington, D.C., maio.: 116).
  • 19
    Corden (1994CORDEN, W. Max (1994). Economic policy, exchange rates and the international system. Oxford, Oxford University Press.: 292-306). Evidentemente, os países que optam por um “regime sólido” estão abdicando do uso da taxa cambial como instrumento de ajustamento do balanço de pagamentos. Essa opção implica transferir o controle sobre a política monetária a um país hegemônico (no caso do currency board), adotar a moeda emitida por outro país (caso do Panamá) ou estabelecer uma união monetária com um banco central comum (caso da união monetária europeia). Segundo Corden, excluídos os poucos países que escolherem um currency board e aqueles que eventualmente participarem da união monetária europeia, a flutuação administrada parece estar em vias de se tomar a norma geral (Idem: 304-5).
  • 20
    De acordo com o FMI, “policy makers came to appreciate that with floating exchange rates, capital mobility was not incompatible with independent monetary policy conducted to stabilize domestic economic activity” (International Monetary Fund, 1997bINTERNATIONAL Monetary Fund (1997b). World economic outlook: globalization, opportunities and challenges. Washington, D.C., maio.: 116).
  • 21
    JEL Classification: F31; F62.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 1998
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