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O retrato móvel de uma alma errante: Clarice Lispector tradutora de Oscar Wilde

The movable portrait of a wandering soul: Clarice Lispector translator of Oscar Wilde

Resumo

Amparados nos pressupostos da Literatura Comparada, dos Estudos Culturais e dos Estudos da Tradução, procuramos compreender as relações culturais que formaram (Bildung) Clarice Lispector em termos de sua identidade linguística, cultural e tradutória, a fim de estudar a tradução do romance O retrato de Dorian Gray (2016), assinada por Clarice em 1974 em diálogo com a sua novela de 1977, A hora da estrela (2020). Partindo da sua relativa proximidade com o imaginário judaico ao seu conhecimento do inglês, francês e espanhol, podemos entender Clarice como uma tradutora cultural. Dentre as várias conexões culturais que pudemos traçar no interior da novela de Clarice, as questões relativas às possibilidades e aos limites da representação literária e visual nos permitem lê-la em comparação com o romance de Wilde.

Palavras-chave:
Clarice Lispector; Oscar Wilde; tradução cultural

Abstract

Drawing on premises from Comparative Literature, Cultural Studies and Translation Studies, this paper seeks to understand the cultural relations that played a significant part in shaping Clarice Lispector’s linguistic, cultural and translational identity (Bildung), intending to establish a dialogue between the novel The Hour of the Star (2020), first published in 1977, and Clarice’s translation of The Picture of Dorian Gray [O Retrato de Dorian Gray (2016)], penned by Clarice in 1974. Starting from her relative closeness to the Jewish imaginary to her knowledge of English, French and Spanish, we can understand Clarice as a cultural translator. Among the various cultural connections, we can trace inside Clarice’s novel, the issues concerning the possibilities and the limits of literary and visual representation allows us to read Clarice’s novel tracing a comparison with Wilde’s novel.

Keywords:
Clarice Lispector; Oscar Wilde; cultural translation

Résumé

En partant des postulats de la Littérature Comparée, des Études Culturelles et des Études de Traduction, nous cherchons à comprendre des relations culturelles qui étaient significatives pour Clarice Lispector en termes de sa formation (Bildung) linguistique, identitaire, culturelle et de traduction, avec le but d’établir un dialogue entre le roman A hora da Estrela (2020), publié en 1977 et la traduction de The Picture of Dorian Gray [O Retrato de Dorian Gray (2016)], signée par Clarice en 1974. En commençant par sa relative proximité avec l’imaginaire juif, sa connaissance d’Anglais, Français et Espagnol, nous pouvons comprendre Clarice comme une traductrice culturel. Parmi plusieurs connexions que nous pouvons tracer dans le roman de Clarice, les questions qui concernent les possibilités et les limites de la représentation littéraire et visuel nous ont permis de le lire en comparaison avec le roman de Wilde.

Mots-clés:
Clarice Lispector; Oscar Wilde; Traduction Culturelle

Clarice Lispector e a angústia das imagens

Qualquer hesitação diante de uma escrita sobre a emblemática figura de Clarice Lispector parece, à priori, compreensível. Era, afinal, uma figura curiosa, como parece ser o tom que dita o texto “A esfinge”, capítulo introdutório de Clarice, uma biografia, de Benjamin Moser (2017MOSER, Benjamin. Clarice, uma biografia. Tradução de José Geraldo Couto. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.). Por outro lado, o historiador americano relata que o tratamento despendido por terceiros à escritora, que se comportavam como se estivessem diante de uma figura quase sacra, era-lhe odioso, ou no mínimo muito suspeito e até um equívoco. Afinal, como a própria parece deixar muito claro em “Perfil de seres eleitos”, “Foi assim que o equívoco passou a rodear o ser. Os outros acreditaram de um modo quase simplório que estavam vendo uma realidade imóvel e fixa, e olhando o ser como se olha um retrato” (LISPECTOR, 2016bLISPECTOR, Clarice. Perfil de seres eleitos. In: LISPECTOR, Clarice. Clarice Lispector: Todos os contos. Rio de Janeiro: Rocco, 2016b. p. 378-382., p. 379), e, mais adiante, no mesmo conto, “Quando o ser se via no retrato que os outros haviam tirado, espantava-se humilde diante do que os outros haviam feito dele. Haviam feito dele, nada mais, nada menos, que um ser eleito; isto é, haviam-no sitiado” (LISPECTOR, 2016bLISPECTOR, Clarice. Perfil de seres eleitos. In: LISPECTOR, Clarice. Clarice Lispector: Todos os contos. Rio de Janeiro: Rocco, 2016b. p. 378-382., p. 381).

A ideia de um retrato que só pudesse fixar os contornos mais externos e superficiais do ser, ainda quando se tratasse de um “retrato muito rico” (LISPECTOR, 2016bLISPECTOR, Clarice. Perfil de seres eleitos. In: LISPECTOR, Clarice. Clarice Lispector: Todos os contos. Rio de Janeiro: Rocco, 2016b. p. 378-382., p. 379), aparece já no conto mencionado, publicado por Clarice no livro A legião estrangeira, em 1964 (ver: GOTLIB, 2013GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: uma vida que se conta. 7. ed. rev. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013., p. 622), e republicado na coletânea Todos os contos (2016bLISPECTOR, Clarice. Perfil de seres eleitos. In: LISPECTOR, Clarice. Clarice Lispector: Todos os contos. Rio de Janeiro: Rocco, 2016b. p. 378-382.) - edição de que nos valemos neste ensaio. Esse aparecimento é extremamente significativo, sobretudo quando nos lembramos que em 1974 Clarice viria a assinar a tradução em língua portuguesa de O retrato de Dorian Gray, do escritor irlandês Oscar Wilde. O conto já nos dá indícios para pensarmos numa relação entre as suas produções literárias, situadas no âmbito da literatura brasileira, e as traduções de obras da literatura estrangeira levadas a cabo por Clarice, evidenciando suas possíveis semelhanças e diferenças. Eis o que a tradutora escreve na “Introdução” do romance: “E Oscar Wilde atingiu aquilo a que se tinha proposto. Através de Dorian Gray, deu o seu recado. Mostrou que a aparência nem sempre corresponde ao que vai ao íntimo” (LISPECTOR, 2016aLISPECTOR, Clarice. Introdução. In: WILDE, Oscar. O retrato de Dorian Gray. Texto em português/Tradução e adaptação de Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Rocco Jovens Leitores, 2016a. p. 11-13., p. 13).

Entretanto, a publicação de “Perfil de seres eleitos” é anterior à tradução do romance de língua inglesa, o que nos leva à seguinte pergunta: poderia Clarice ter lido o romance de Wilde muito antes de realizar a sua tradução? Ou, o que é ainda mais significativo, podemos pensar que a relação de Clarice com o romance de Oscar Wilde funciona como uma espécie de encontro com aquilo que é mais próprio à escritora brasileira, colocando em evidência a relação transferencial estabelecida entre o sujeito leitor/tradutor e o texto lido/traduzido, tal como formulado por Rosemary Arrojo em “A tradução e o flagrante da transferência: algumas aventuras textuais com Dom Quixote e Pierre Menard” (ARROJO, 1993ARROJO, Rosemary. A tradução e o flagrante da transferência: algumas aventuras textuais com Dom Quixote e Pierre Menard. In: ARROJO, Rosemary. Tradução, desconstrução e psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 1993. p. 151-175. Biblioteca Pierre Menard., p. 151-175).

Ora, se examinarmos, por exemplo, “A memória de Shakespeare” (2011BORGES, Jorge Luis. A memória de Shakespeare. In: BORGES, Jorge Luis. Nove ensaios dantescos & A memória de Shakespeare. Tradução Eloisa Jahn. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 92-102.) e “Pierre Menard, autor do Quixote” (2007BORGES, Jorge Luis. Pierre Menard, autor do Quixote. In: BORGES, Jorge Luis. Ficções. Tradução Davi Arrigucci Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 34-45.) do escritor argentino Jorge Luís Borges, vemos como as aproximações entre leitura, tradução e escritura podem guardar íntima relação. Ademais, uma das grandes preocupações do projeto intelectual e filosófico de Jacques Derrida é justamente o estudo das traduções, chegando a confessar, em “O que é uma tradução “relevante”?”, a sua “[...] admiração por aqueles e aquelas que considero os únicos a saber ler e escrever: as tradutoras e tradutores” (DERRIDA, 2000DERRIDA, Jacques. O que é uma tradução ‘relevante’? Tradução de Olivia Niemeyer Santos. Alfa: Revista de Linguística, São Paulo, v. 44, n. 1, p. 13-44, 2000. Disponível em: http://seer.fclar.unesp.br/alfa/article/view/4277 . Acesso em: 28 nov. 2021.
http://seer.fclar.unesp.br/alfa/article/...
, p. 14).

Ainda na introdução de Clarice, uma biografia (2017MOSER, Benjamin. Clarice, uma biografia. Tradução de José Geraldo Couto. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.), o historiador norte-americano, ao comentar sobre a intensa curiosidade que a escritora brasileira despertava em torno de si, inclusive depois de seu falecimento em 1977, afirma o seguinte: “[...] é raro passar um mês sem que surja um livro examinando um ou outro aspecto da sua vida e obra” (MOSER, 2017MOSER, Benjamin. Clarice, uma biografia. Tradução de José Geraldo Couto. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 14). Mas se essa abundância de exames parece ser um motivo contra um novo estudo, encontramos, para esta reflexão, uma justificativa plausível na tese de doutoramento de Ferreira (2016FERREIRA, Rony M. Cardoso. Clarice Lispector: uma tradutora em fios de seda (teoria, crítica e tradução literária). Tese (Doutorado em Literatura) - Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Instituto de Letras, Universidade de Brasília, Brasília, 2016.) intitulada Clarice Lispector: uma tradutora em fios de seda (teoria, crítica e tradução literária). Ao se deter na fortuna crítica sobre a escritora, Ferreira (2016FERREIRA, Rony M. Cardoso. Clarice Lispector: uma tradutora em fios de seda (teoria, crítica e tradução literária). Tese (Doutorado em Literatura) - Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Instituto de Letras, Universidade de Brasília, Brasília, 2016.) afirma o seguinte:

Aliás, mesmo com uma fortuna crítica digna de menção, podemos dizer que faltava até 2013, ano em que iniciamos nosso projeto de pesquisa, um trabalho mais alentado na história da crítica clariceana sobre o papel de Lispector como tradutora. Antes de tudo, tratar desse papel é, no mínimo, trazer à reflexão crítica uma Clarice que não apareceu em vários livros, teses e dissertações a respeito da escritora brasileira. Esse não-aparecimento era totalmente perceptível há três anos, quando acessávamos o Banco de Teses e Dissertações da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoal de Nível Superior). Nesse Banco, que reúne os resumos e informações básicas a respeito das pesquisas de mestrado e doutorado defendidas no Brasil a partir de 1987, quando pesquisado no critério assunto “Tradução Clarice Lispector”, apareciam cerca de 30 trabalhos defendidos nos Programas de Pós-graduação no Brasil, sendo que nenhum deles trata, especifica e exclusivamente, do papel de Clarice Lispector como tradutora. (FERREIRA, 2016FERREIRA, Rony M. Cardoso. Clarice Lispector: uma tradutora em fios de seda (teoria, crítica e tradução literária). Tese (Doutorado em Literatura) - Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Instituto de Letras, Universidade de Brasília, Brasília, 2016., p. 21).

Hoje, distantes aproximadamente cinco anos desde a conclusão de sua tese, acreditamos que ainda haja pouco esclarecimento sobre o papel de Clarice Lispector enquanto tradutora de romances estrangeiros, sobretudo no que diz respeito aos estudos que colocam em diálogo as traduções levadas a cabo pela escritora e o seu próprio projeto intelectual. Em seu levantamento, o pesquisador atribui à Clarice um montante razoável de traduções assinadas: “Posições extremas a parte, o fato é que o nome próprio Clarice Lispector assina 46 traduções para o português a partir do espanhol, do inglês e do francês entre 1941 e 1977, ano de sua morte” (FERREIRA, 2016FERREIRA, Rony M. Cardoso. Clarice Lispector: uma tradutora em fios de seda (teoria, crítica e tradução literária). Tese (Doutorado em Literatura) - Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Instituto de Letras, Universidade de Brasília, Brasília, 2016., p. 61).

Além do vácuo existente na fortuna crítica de Clarice quanto a sua atividade tradutória, o exame do ofício da tradutora encontra respaldo no que propõem os Estudos da Tradução enviesados pela Literatura Comparada. Em “Tradução e recepção na prática comparatista”, de Tania Franco Carvalhal (2003CARVALHAL, Tania Franco. Tradução e recepção na prática comparatista. In: CARVALHAL, Tania Franco. O próprio e o alheio: ensaios de literatura comparada. São Leopoldo: Editora Unissinos, 2003. p. 217-259.), encontramos a seguinte afirmativa:

Se evocarmos a etimologia, traducere, do latim, significa “levar além”. Assim, a primeira função da tradução (e papel dos tradutores) é fazer circular um texto fora da literatura de origem, disseminá-lo, difundi-lo. O tradutor, por vezes designado de “barqueiro” (ele atravessa um rio, possibilita o acesso não só a uma obra literária gerada em outra língua, mas a costumes e princípios que o texto, traduzido, veicula. Essa transposição, que é em si mesma contextual, é uma prática de produção textual, paralela à própria criação literária. (CARVALHAL, 2003CARVALHAL, Tania Franco. Tradução e recepção na prática comparatista. In: CARVALHAL, Tania Franco. O próprio e o alheio: ensaios de literatura comparada. São Leopoldo: Editora Unissinos, 2003. p. 217-259., p. 219, grifo da autora).

Diante de tal passagem vemos como são profícuas as aproximações entre tradução e (re)criação, bem como o aspecto produtivo das traduções na disseminação de tendências literárias e estéticas, facilitando o diálogo entre culturas distintas - o que nos permite conjecturar que a empreitada tradutória realizada por Clarice Lispector pode, de maneira muito singular, ter lhe trazido estímulos criativos. Ou, o que também é possível, a tradução de O retrato de Dorian Gray pode ter proporcionado à escritora uma experiência de auto encontro. Desse modo, um estudo comparatista das suas traduções e o seu próprio projeto intelectual pode, à priori, permitir que estabeleçamos relações até o momento inimaginadas.

A partir dessas considerações iniciais, este artigo propõe um estudo comparatista da versão em língua portuguesa de The picture of Dorian Gray, de 1891, - assinada por Clarice Lispector em 1974 - e A hora da estrela (1977) - última novela de Clarice, publicada no ano seu falecimento -, no intuito de evidenciar que literatura e tradução travaram um proveitoso diálogo no âmbito do projeto intelectual de Lispector. Consequentemente, busca colocar em destaque a relevância do ofício da tradução a que se dedicou a escritora e outros intelectuais, apesar do papel do tradutor ser tomado, por parte da crítica, como atividade de menor significância quando se pensa na constituição dos projetos estéticos.

Brasileira e ucraniana, escritora e tradutora: Clarice entre o nacional e o estrangeiro

“Pode um lugar imprimir seus traços em alguém que o abandonou no início da infância? Aparentemente, não” (MOSER, 2017MOSER, Benjamin. Clarice, uma biografia. Tradução de José Geraldo Couto. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 28). A resposta para o honesto questionamento de Benjamin Moser em “Aquela coisa irracional”, ao tratar sobre a história da família Lispector e o nascimento de Clarice, em 1920, em Tchetchelnik, na Ucrânia, não nos parece, a princípio, tão imediata assim. Enquanto fato relativo à sua origem, o nascimento de Clarice em terras distantes, ainda que a futura escritora viesse a firmar morada no Brasil com apenas um ano de idade, não deixa de circunscrever a história da sua família, obrigada a deixar a sua pátria pelas circunstâncias da Primeira Guerra Mundial e da Revolução Russa, que se seguiria:

Pinkhas e Mania [respectivamente, o pai e a mãe de Clarice] tiveram sorte num aspecto. Em comparação com muitos judeus russos, atravessaram a guerra com relativa tranquilidade. Na remota Savran, distante do front, muitos dos horrores da Primeira Guerra Mundial passaram ao largo deles. [...] Mas, em contraste com a França e a Bélgica, o front oriental era o cenário de progroms que ultrapassavam tudo o que já acontecera e que a seu tempo atingiriam os Lispector. (MOSER, 2017MOSER, Benjamin. Clarice, uma biografia. Tradução de José Geraldo Couto. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 36).

Não teríamos aí, manifestado na vida de Clarice, algo da ordem do destino ou do acaso? Eliminando de “destino” o sentido de uma manifestação ou interferência divina, temos no mínimo uma história da ordem da diáspora e da sobrevivência, na medida do possível venturosa e não por isso menos traumática.1 1 “Se levarmos em conta que as duas filhas mais velhas de Mania não foram mortas nem violentadas, que sua terceira filha sobreviveu ao parto de uma mãe sifilítica, que seu marido sobreviveu e que ela própria viveu o suficiente para ver sua família instalada em segurança num país estrangeiro, pode-se considerar que ela teve mais sorte do que a maioria.” (MOSER, 2017, p. 44). Conforme nos informa o biógrafo de Clarice, muitas dessas experiências estão relatadas na literatura de sua irmã, Elisa Lispector, que muito escreveu sobre a família. Outro ponto que consideramos relevante diz respeito aos hábitos de leitura de seu pai, Pinkhas Lispector, que nos são informados por Elisa na seguinte passagem:

Lia de tudo quanto podia trazer das grandes livrarias nas suas frequentes viagens. Mas, além de Bialik e Dostoiévski, entre outros autores, também lia, ou melhor: estudava a Guemurá (o Talmud). O piedoso sentimento religioso do pai, a quem sempre vira debruçado sobre os Livros Santos, nele havia se transformado num pensamento a um tempo espiritual e humanista. (LISPECTOR apudMOSER, 2017MOSER, Benjamin. Clarice, uma biografia. Tradução de José Geraldo Couto. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 33).

Até aqui talvez já tenhamos reunido de maneira satisfatória um conjunto de fatos e de experiências que caracterizariam o início da vida de Clarice, bem como alguns delineamentos sobre o ambiente familiar em que a escritora viria a crescer e se desenvolver - imprimindo rastros inapagáveis em sua subjetividade e, por que não dizer, em sua literatura. Chamamos a atenção para os aspectos culturais presentes em tal ambiente: a língua russa e, se não os valores, pelo menos, em alguma medida, o imaginário da cultura judaica. Tais aspectos fazem-nos retornar à pergunta de Moser (2017MOSER, Benjamin. Clarice, uma biografia. Tradução de José Geraldo Couto. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.) com a qual iniciamos esta seção, e respondê-la de modo diferente: os traços da antiga pátria marcariam sobretudo os seus pais e as suas irmãs mais velhas, retornando à escritora por meio dos relatos das memórias contadas pelos seus familiares, bem como da educação despendida à menina durante a infância.

No entanto, não ignoremos as lições legadas por Sigmund Freud em O mal-estar na civilização (2010FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. In: FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos (1930-1936). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 13-122.), em que o psicanalista austríaco delineia algumas bases de sua teoria sobre a formação do “Eu”, comparando a vida psíquica com os estágios de desenvolvimento de Roma. A sua hipótese é de que, tal como os resíduos e as ruínas das suas mais antigas fases poderiam permanecer presentes em suas fases posteriores, o mesmo fenômeno marcaria a vida psíquica. Eis como Freud conclui o seu raciocínio:

Talvez devêssemos nos contentar em afirmar que o que passou pode ficar conservado na vida psíquica, não tem necessariamente que ser destruído. De toda maneira é possível que também na psique elementos antigos sejam apagados ou consumidos - via de regra ou excepcionalmente - a tal ponto que não possam ser reanimados e restabelecidos. É possível, mas nada sabemos a respeito. Podemos tão só nos ater ao fato de que a conservação do passado na vida psíquica é antes a regra do que a surpreendente exceção. (FREUD, 2010FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. In: FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos (1930-1936). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 13-122., p. 24).

A metáfora do palimpsesto se ajusta muito bem a essa hipótese, especialmente quando nos lembramos do conto “A memória de Shakespeare”, de Borges (2011BORGES, Jorge Luis. A memória de Shakespeare. In: BORGES, Jorge Luis. Nove ensaios dantescos & A memória de Shakespeare. Tradução Eloisa Jahn. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 92-102.). A obra do escritor argentino - um dos mais notáveis literatos do século XX - transcende o âmbito da ficção para fornecer bases teóricas para os estudos literários. No conto mencionado, o narrador-personagem e escritor Herman Soergel herda as memórias de Shakespeare de seu antigo possuidor, Daniel Thorpe. O método que descobre para a ativação das memórias do dramaturgo e poeta inglês é simples: bastaria que ele próprio lesse alguns dos livros que Shakespeare, à sua época, teria lido:

De Quincey afirma que o cérebro do homem é um palimpsesto. Cada nova escrita recobre a anterior e é recoberta pela seguinte, mas a memória todo-poderosa pode exumar toda e qualquer impressão, por passageira que tenha sido, se lhe derem o estímulo suficiente. A julgar por seu testamento, não havia um único livro, nem mesmo a Bíblia, na casa de Shakespeare, mas ninguém ignora as obras que ele frequentou: Chaucer, Gower, Spenser, Christopher Marlowe, a Crônica de Holinshed, o Montaigne de Florio, o Plutarco de North. Eu possuía a memória de Shakespeare de forma latente; a leitura, ou seja, a releitura daqueles velhos volumes seria o estímulo que procurava. (BORGES, 2011BORGES, Jorge Luis. A memória de Shakespeare. In: BORGES, Jorge Luis. Nove ensaios dantescos & A memória de Shakespeare. Tradução Eloisa Jahn. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 92-102., p. 97).

Através de tais (re)leituras, Soergel libera as memórias herdadas e passa a conhecer momentos singulares vividos pelo seu primeiro dono. O conto, de certo modo, nos ajuda a visualizar quão significativas são as experiências e as leituras na vida dos sujeitos. Aqui, vemos somada a matéria intelectual à dimensão da vida psíquica como delineada por Freud. Em suma, o que é mais significativo para o estudo que fazemos de Clarice Lispector tradutora do romance de Oscar Wilde é notar como, desde a sua mais tenra infância, a futura escritora brasileira esteve às voltas em uma intensa relação com o “outro” e com o “estrangeiro”. Relação essa que se manifesta já na condição diaspórica da vinda de sua família para o Brasil, e que viria a se intensificar ao longo da vida da escritora - seja por meio da leitura ou da tradução de obras da literatura, seja através das incontáveis viagens que Clarice realizaria ao exterior.

Podemos pensar que tais experiências adquirem um caráter de “formação”, num sentido derivado da noção alemã de Bildung, tanto para Clarice individualmente quanto para a língua e a nação na qual a escritora viria lançar a sua obra ficcional e as suas traduções. Não é fortuito, por exemplo, que Clarice tenha sido considerada “estrangeira” por grande parte de seus críticos, mesmo fixando morada no Brasil já em sua infância e produzindo uma literatura em língua portuguesa (ver: MOSER, 2017MOSER, Benjamin. Clarice, uma biografia. Tradução de José Geraldo Couto. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 19-24). Aqui, vemos logo uma abertura para pensarmos o seu projeto intelectual a partir das proposições críticas de Homi K. Bhabha apresentadas em seu livro O local da cultura (1998BHABHA, Homi K. O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila et al. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.), às quais retornaremos em um momento mais oportuno.

A Bildung, a tradução e a experiência do estrangeiro

A fim de esclarecer a que nos referimos por Bildung, temos, em A prova do estrangeiro, do estudioso francês Antoine Berman (2002BERMAN, Antoine. A prova do estrangeiro: cultura e tradução na Alemanha romântica: Herder, Goethe, Schegel, Novalis, Humboldt, Schleiermacher, Hölderlin. Tradução de Maria Emília Pereira Chanut. Bauru: EDUSC, 2002.), um amplo estudo sobre as teorias da tradução e da cultura dispersas através dos escritos de diversos intelectuais da Alemanha romântica, “de Novalis, Friedrich Schlegel e A. W. Schlegel a Schleiermacher [...]” (BERMAN, 2002BERMAN, Antoine. A prova do estrangeiro: cultura e tradução na Alemanha romântica: Herder, Goethe, Schegel, Novalis, Humboldt, Schleiermacher, Hölderlin. Tradução de Maria Emília Pereira Chanut. Bauru: EDUSC, 2002. p. 27), bem como em “Herder, Goethe, Humboldt e Hölderlin” (BERMAN, 2002BERMAN, Antoine. A prova do estrangeiro: cultura e tradução na Alemanha romântica: Herder, Goethe, Schegel, Novalis, Humboldt, Schleiermacher, Hölderlin. Tradução de Maria Emília Pereira Chanut. Bauru: EDUSC, 2002., p. 27). Em primeiro lugar, lemos em “Lutero ou a tradução como fundação”, a importância da tradução da Bíblia do latim para o alemão, que viria a produzir nada menos que o grande acontecimento histórico que hoje conhecemos por Reforma.

Esse acontecimento teve íntima relação com o modo pelo qual Lutero procedera a sua tradução, afinal, “Existiam naquela época outras traduções alemãs da Bíblia - a primeira tendo aparecido em 1475 -, mas eram cheias de latinismos. Lutero, por sua vez, visa logo de início a germanização, à Verdeustchung, dos textos sagrados” (BERMAN, 2002BERMAN, Antoine. A prova do estrangeiro: cultura e tradução na Alemanha romântica: Herder, Goethe, Schegel, Novalis, Humboldt, Schleiermacher, Hölderlin. Tradução de Maria Emília Pereira Chanut. Bauru: EDUSC, 2002., p. 49). A tarefa tradutória empreendida por Lutero tinha como horizonte o falar popular e cotidiano de seus conterrâneos. Por outro lado, sendo ele mesmo múltiplo, tal tradução deveria, de uma só vez, reunir essa multiplicidade de falares e elevá-lo a uma língua comum ou língua franca, de tal modo que, “Ao recusar fazer uma ‘tradução crítica’, dedicada às ‘particularidades’ do original, Lutero soube criar uma obra acessível ao povo alemão, capaz de fornecer uma base sólida ao novo sentimento religioso, o da Reforma” (BERMAN, 2002BERMAN, Antoine. A prova do estrangeiro: cultura e tradução na Alemanha romântica: Herder, Goethe, Schegel, Novalis, Humboldt, Schleiermacher, Hölderlin. Tradução de Maria Emília Pereira Chanut. Bauru: EDUSC, 2002., p. 48).

É nesse sentido que se fala em um duplo marco histórico-cultural da bíblia luterana: aquele mais imediato, contemporâneo mesmo, e o que viria a se seguir formando uma tradição da tradução, iniciada pelos românticos:

Se a Bíblia luterana instaura um corte na história da língua, da cultura e das letras alemãs, ela instaura igualmente um outro no domínio das traduções. Ela sugere, além disso, que a formação e o desenvolvimento de uma cultura própria e nacional podem e devem passar pela tradução, ou seja, por uma relação intensiva e deliberada com o estrangeiro. (BERMAN, 2002BERMAN, Antoine. A prova do estrangeiro: cultura e tradução na Alemanha romântica: Herder, Goethe, Schegel, Novalis, Humboldt, Schleiermacher, Hölderlin. Tradução de Maria Emília Pereira Chanut. Bauru: EDUSC, 2002., p. 62, grifos do autor).

A passagem grifada pelo autor é extremamente significativa para darmos continuidade às nossas reflexões em torno da noção de Bildung. Nela, por si só, já vemos aludido aquilo o que vínhamos falando sobre as traduções empreendidas por Lispector, aqui colocando em relevo a tradução de O retrato de Dorian Gray, assinada pela escritora em 1974: as traduções de obras de literatura estrangeira funcionando como uma espécie de aprofundamento da língua, das letras e da cultura que as acolhe; sendo, antes de tudo, um aprofundamento mais íntimo para o próprio tradutor. A partir delas, um tradutor conhece as possibilidades e as problemáticas inerentes à sua língua a partir da “traduzibilidade” da obra de partida, sendo exemplar o caso de Lutero; além de permitir o contato com tendências estéticas outras.

Em “A Bildung e a exigência da tradução”, terceiro capítulo do mencionado livro de Berman, o estudioso francês, encontrando a noção de Bildung dispersa nos escritos de Goethe, Herder, Schiller, Fichte e Hegel, além de outros tantos românticos, reconhece em tais reflexões uma multiplicidade de significados. Em sentido corrente, a Bildung pode ser entendida como “cultura”, mas também “formação”, e, enquanto tal, ela designa ao mesmo tempo um processo e seu resultado: “Pela Bildung, um indivíduo, um povo, uma nação, mas também uma língua, uma literatura, uma obra de arte em geral se formam e adquirem assim uma forma, uma Bild” (BERMAN, 2002BERMAN, Antoine. A prova do estrangeiro: cultura e tradução na Alemanha romântica: Herder, Goethe, Schegel, Novalis, Humboldt, Schleiermacher, Hölderlin. Tradução de Maria Emília Pereira Chanut. Bauru: EDUSC, 2002., p. 80). A Bildung é então necessária enquanto um processo que se realiza a partir de um mesmo que se desdobra, e pela experiência e reconhecimento da alteridade, reconcilia-se consigo e se expande. Nessa perspectiva, a Bildung é associada à tradução:

Essa breve caracterização esquemática da Bildung mostra imediatamente que ela está intimamente relacionada com o movimento da tradução: pois este parte, com efeito, do próprio, do mesmo (o reconhecido, o cotidiano, o familiar), para ir em direção ao estrangeiro, ao outro (o desconhecido, o maravilhoso, o Unheimlich) e, a partir dessa experiência, retornar ao seu ponto de partida. (BERMAN, 2002BERMAN, Antoine. A prova do estrangeiro: cultura e tradução na Alemanha romântica: Herder, Goethe, Schegel, Novalis, Humboldt, Schleiermacher, Hölderlin. Tradução de Maria Emília Pereira Chanut. Bauru: EDUSC, 2002., p. 84, grifos do autor).

Quando publica A hora da estrela, seu último livro, em 1977 - ano também de seu falecimento -, Clarice tinha 57 anos de idade. Jovem, certamente, para falecer; mas são bons anos de intensas experiências - literárias ou não. Tal como afirma na “Introdução” de sua versão em língua portuguesa de O retrato de Dorian Gray, o único romance de Oscar Wilde “Surgiu na época em que o escritor conheceu a glória literária. Seu nome aparecera, antes, em contos, histórias, comédias e outros gêneros apreciados por adultos e crianças” (LISPECTOR, 2016LISPECTOR, Clarice. Perfil de seres eleitos. In: LISPECTOR, Clarice. Clarice Lispector: Todos os contos. Rio de Janeiro: Rocco, 2016b. p. 378-382.a, p. 11), assim como a tradutora já gozava de grande reconhecimento pelo conjunto de sua obra. Por outro lado, diferentemente do escritor irlandês, Clarice já havia publicado diversos romances (GOTLIB, 2013GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: uma vida que se conta. 7. ed. rev. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013., p. 607-628): Perto do coração selvagem (1943), O lustre (1945), A cidade sitiada (1949), A maçã no escuro (1961), A paixão segundo G.H. (1964), Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres (1969). Água viva (1973) e A hora da estrela (1977) são normalmente classificadas como novelas.

Mas o que tais publicações nos fazem notar é a imensa maturidade e a experiência literária de Clarice, sobretudo quando levamos em consideração o intenso reconhecimento que a escritora foi conquistando ao longo de sua vida. Isso para ficarmos somente no âmbito de sua produção “maior”, sem mencionar a miríade de contos e crônicas também publicados. E sem desmerecer esse conjunto, que fora, sem dúvidas, cabal para o seu amadurecimento e para a sua formação estética, lembremos que, entre 1941 e 1977, Clarice assina 46 traduções de obras da literatura estrangeira para a língua portuguesa. Em 1974, é a vez de O retrato de Dorian Gray; e depois dele, serão mais 24 títulos (FERREIRA, 2016FERREIRA, Rony M. Cardoso. Clarice Lispector: uma tradutora em fios de seda (teoria, crítica e tradução literária). Tese (Doutorado em Literatura) - Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Instituto de Letras, Universidade de Brasília, Brasília, 2016., p. 53-59).

Deste modo, quando publica a novela em 1977, Clarice é indubitavelmente uma escritora formada, em amplos os sentidos, assim como são amplos os sentidos de Bildung - conceito ao qual vínhamos nos referindo. Por conseguinte, fica fácil compreender por que motivos devemos evitar fixar um retrato de Clarice: a escritora brasileira viveu permanentemente sob a condição de uma alma errante.

A hora da estrela entre a experiência intelectual e a tradução cultural

Se vínhamos colocando em destaque as experiências literárias da escritora já na fase madura, não devemos nos esquecer que os primeiros anos da aventura de Clarice Lispector no Brasil também foram agitados. Em biografia já consagrada, Clarice: uma vida que se conta (2013GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: uma vida que se conta. 7. ed. rev. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013.), Nádia Battella Gotlib assim resume os primeiros anos da família Lispector em terras brasileiras:

Chegaram ao Brasil e aportaram no Nordeste: em Maceió, capital de Alagoas, onde tinham parentes. Apesar de ser a capital do estado, Maceió era uma cidade muito pequena. Clarice tinha um ano e três meses: era março de 1922. E lá ficaram três anos. De alagoas foram para Recife, onde devem ter chegado por volta de 1925: Clarice tinha quase cinco anos. (GOTLIB, 2013GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: uma vida que se conta. 7. ed. rev. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013., p. 46).

A primeira fase da vinda da família Lispector para o Brasil é marcada por grandes tormentas. Além dos traumas da Guerra Civil na Ucrânia e a abominável consequência dos pogroms na vida de Mánia - a mãe da escritora - cuja doença viria a se intensificar cada vez mais, a adaptação da família em terras brasileiras só ocorreria em Recife, ainda que parcialmente, isto é, com todas as suas limitações e dificuldades. Estabelecidos numa espécie de comunidade que reunia cerca de 350 famílias judias no bairro Boa Vista, as crianças iam para a escola e, na primeira delas, Clarice, que tinha como primeira língua o português, aprende a ler e a escrever, permanecendo nela até por volta dos sete anos. 1929 é o ano do provável início dos estudos de Clarice no Colégio Hebreu-Iídiche-Brasileiro, onde a garota estudaria o iídiche e o hebraico. Quando parte junto com o pai e as irmãs para o Rio de Janeiro, Clarice tem 14 anos e, nesse meio tempo, a situação da mãe se agrava até a fatalidade: “A doença da mãe e a pobreza foram, pois, fatos marcantes” (GOTLIB, 2013GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: uma vida que se conta. 7. ed. rev. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013., p. 59).

Nessa pequena e incompleta fotografia textual de sua infância, sobressaem detalhes como o intenso sofrimento de sua família, as línguas de Clarice e a relação da escritora com o imaginário judaico. Gotlib (2013GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: uma vida que se conta. 7. ed. rev. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013.), depois de comentar sobre os mitos acerca da primeira língua da escritora, faz importantes considerações sobre a sua relação com as línguas estrangeiras. Em primeiro lugar, a biógrafa trata das línguas que Clarice aprendeu, e que delas se utilizaria para a tradução:

Além delas, há que mencionar ainda as outras línguas estrangeiras que falou, quando morou fora: o francês, o inglês e o espanhol. O francês, lendo francês. [...]. E em Berna, através de conversas com a empregada Rosa, que só falava francês. Clarice escrevia também em inglês. O conhecimento dessas línguas lhe será útil mais tarde, quando passará a trabalhar como tradutora de livros para o português. (GOTLIB, 2013GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: uma vida que se conta. 7. ed. rev. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013., p. 50).

Do inglês, Clarice traduz O retrato de Dorian Gray, publicado pela editora Tecnoprint em 1974. Abrimos aqui um parêntese para ressaltar que a versão assinada por Clarice não traz a denominação de “tradução”, mas de “adaptação” (ver: FERREIRA, 2016FERREIRA, Rony M. Cardoso. Clarice Lispector: uma tradutora em fios de seda (teoria, crítica e tradução literária). Tese (Doutorado em Literatura) - Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Instituto de Letras, Universidade de Brasília, Brasília, 2016., p. 54). Também na seção “Cronologia abreviada” da biografia escrita por Gotlib (2013GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: uma vida que se conta. 7. ed. rev. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013.), na entrada que diz respeito ao ano de 1974, lemos o seguinte: “Traduz tanto romances de autores famosos - como O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, que adapta para o público juvenil, como livros que tratam de assuntos de interesse geral [...]” (p. 626). Essa questão não deixa de ser, por si só, um capítulo a ser estudado à parte.

Na passagem seguinte, Gotlib (2013GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: uma vida que se conta. 7. ed. rev. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013.) comenta sobre a relação de Clarice com o iídiche e o imaginário da cultura judaica:

E há que mencionar, sobretudo, o iídiche, língua falada pelos pais em casa e com os parentes e amigos da comunidade judaica, língua que Clarice ouvia na infância e também nunca falou. E nem a ela se refere. Curioso esse silêncio. Mais um significativo silêncio, entre tantos, na obra de Clarice, sobre as suas origens.

[...]. Mas a cultura hebraica, transfigurada metaforicamente, há de se manifestar na sua obra futura. Entre outras transfigurações, sob a forma de grito de rebeldia, denunciando a fome e a impotência da personagem, ela também prisioneira, como os Macabeus, mas que, como eles, resiste, nordestina na cidade grande, massacrada por um sistema social desumano: Macabéa. (GOTLIB, 2013GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: uma vida que se conta. 7. ed. rev. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013., p. 50).

Macabéa é a derradeira personagem de Clarice na novela de 1977, A hora da estrela. E o título da obra bem poderia ser outro: “O direito ao grito”, ou “Ela não sabe gritar”, ou “Registro dos fatos antecedentes”, ou “Uma sensação de perda”. As possibilidades são múltiplas, várias delas apresentadas numa página que antecede a “Dedicatória do autor (Na verdade, Clarice Lispector)” - que por sua vez antecede o início da voz narrativa enunciada por Rodrigo S.M. As conjunções “ou” são, portanto, antes aditivas que alternativas. Os títulos são sugeridos por Clarice por meio de Rodrigo S.M. - o “autor”, na realidade o narrador-personagem e escritor que vislumbra todos os precários contornos da vida de Macabéa por meio de um único olhar: “Como é que sei o que vai se seguir e que ainda o desconheço, já que nunca o vivi? É que numa rua do Rio de Janeiro peguei no ar de relance o sentimento de perdição no rosto de uma nordestina” (LISPECTOR, 2020LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 2020., p. 10). Todo o silêncio de uma vida - de Macabéa ou de Clarice? - será então emoldurado num livro. No ato de conceber a sua criatura, Rodrigo S.M. reflete sobre o método e o estilo mais apropriados para tal, procurando equilibrar frieza, ética e simplicidade:

Tenho então que falar simples para captar a sua delicadeza e vaga existência. Limito-me a humildemente - mas sem fazer estardalhaço de minha humildade que já não seria humilde - limito-me a contar as fracas aventuras de uma moça numa cidade toda feita contra ela. (LISPECTOR, 2020LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 2020., p. 13).

E enquanto avança, as analogias e as reflexões sobre o fazer artístico e literário são frequentemente comparadas às outras artes e/ou aos outros modos e efeitos de representação e de expressão. Fotografia: “Juro que este livro é feito sem palavras. É uma fotografia muda” (p. 14). Pintura: “Escrevo em traços vivos e ríspidos de pintura” (p. 15). Criação: “O fato é que tenho nas minhas mãos um destino e no entanto não me sinto com o poder de livremente inventar: sigo uma oculta linha fatal. Sou obrigado a procurar uma verdade que me ultrapassa” (p. 18). Abstração: “Também quero o figurativo assim como um pintor que só pintasse cores abstratas quisesse mostrar que o fazia por gosto, e não por não saber desenhar” (p. 19-20).

Ora, se não é algo muito próximo o que temos encenado logo no início da narrativa de Oscar Wilde: as últimas pinceladas do modelo Dorian Gray pelas mãos do pintor Basil Hallward, que elabora uma espécie de obra-prima extremamente fiel à beleza do modelo. “No centro da sala, em alto cavalete, via se o retrato de um moço de extraordinária beleza. [...] - É a sua obra-prima, Basil. A melhor coisa que você já fez - Disse lorde Henry.” (WILDE, 2016WILDE, Oscar. O retrato de Dorian Gray. Texto em português/Tradução e adaptação de Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Rocco Jovens Leitores, 2016., p. 15).

Em todo caso, essa tentativa de fidelidade, por mais satisfatória que seja, é sempre parcial. A representação somente toca naquilo que é mais aparente, superficial e externo, não sem deixar marcas de seu criador. Na novela de Clarice, S.M. tem consciência desse fato: “A ação dessa história terá como resultado minha transfiguração em outrem e minha materialização enfim em objeto” (LISPECTOR, 2020LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 2020., p. 18). E também Basil Hallward, no romance de Wilde: “- Harry, todo retrato pintado com sentimento retrata o artista e não o modelo. O modelo é apenas um pretexto. Não é ele que o artista revela. Eu diria que o pintor, na sua tela, se revela a si próprio” (WILDE, 2016WILDE, Oscar. O retrato de Dorian Gray. Texto em português/Tradução e adaptação de Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Rocco Jovens Leitores, 2016., p. 18).

Por extensão, artista e modelo se (con)fundem na criação: “O motivo por que não tenciono expor este retrato é o receio de ter deixado nele o segredo da minha alma” (WILDE, 2016WILDE, Oscar. O retrato de Dorian Gray. Texto em português/Tradução e adaptação de Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Rocco Jovens Leitores, 2016., p. 18-19). Em A hora da estrela (1977), as figuras de Clarice, Rodrigo S.M. e Macabéa também se embaralham. E isso Benedito Nunes já havia afirmado em “O jogo da identidade”, capítulo de seu livro O drama da linguagem (1995NUNES, Benedito. O jogo da identidade. In: NUNES, Benedito. O drama da linguagem: uma leitura de Clarice Lispector. 2. ed. São Paulo: Ática, 1995. p. 160-171.): “O narrador de A hora da estrela é Clarice Lispector, e Clarice Lispector é Macabéa tanto quanto Flaubert foi Madame Bovary” (NUNES, 1995NUNES, Benedito. O jogo da identidade. In: NUNES, Benedito. O drama da linguagem: uma leitura de Clarice Lispector. 2. ed. São Paulo: Ática, 1995. p. 160-171., p. 169). Afinal, quem é a pobre nordestina? Qual seria o nome mais apropriado para tal criatura; alguém de que não se sente pena, mas ao mesmo tempo se procura evitar a gravidade do destino? E quem é Rodrigo S.M.? O narrador-personagem escritor que mora no Rio de Janeiro, ele próprio tendo sido criado no Nordeste quando criança: “Sem falar que eu em menino me criei no nordeste” (LISPECTOR, 2020LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 2020., p. 10).

A literatura e a tradução entre os limites das fronteiras culturais

Sejam essas relações inconscientes ou deliberadas, o que se estabelece entre Clarice Lispector, sua novela e suas traduções é algo da ordem de uma confusão babélica; a impossibilidade de se delimitar as fronteiras entre o que é próprio e o que é alheio; a vã tentativa de significar, de representar, de fixar um nome: o curioso caso de um livro com vários títulos possíveis. No conjunto da produção intelectual de Lispector, o exercício da tradução e o da escritura nos fazem lembrar o que em Jacques Derrida lemos como “o mito da origem do mito, a metáfora da metáfora, a narrativa da narrativa, a tradução da tradução” (DERRIDA, 2006DERRIDA, Jacques. Torres de Babel. Tradução de Junia Barreto. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006., p. 11), a cena primordial da cultura - a desconstrução da torre de Babel:

A “torre de Babel” não configura apenas a multiplicidade irredutível das línguas, ela exibe um não-acabamento, a impossibilidade de completar, de totalizar, de saturar, de acabar qualquer coisa que seria da ordem da edificação, da construção arquitetural, do sistema e da arquitetônica. O que a multiplicidade de idiomas vai limitar não é apenas uma tradução “verdadeira”, uma entr’expressão [entr’expression] transparente e adequada, mas também uma ordem estrutural, uma coerência do constructum. Existe aí (traduzamos) algo como um limite interno à formalização, uma incompletude da construtura [constructure]. Seria fácil e até certo ponto justificado ver-se aí a tradução de um sistema em desconstrução. (DERRIDA, 2006DERRIDA, Jacques. Torres de Babel. Tradução de Junia Barreto. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006., p. 12).

Em seu texto, Derrida (2006DERRIDA, Jacques. Torres de Babel. Tradução de Junia Barreto. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.) subscreve a tentativa impossível e necessária do tradutor, entendendo a tradução não somente como atividade interlinguística, mas, como nas palavras de Marcos Siscar (2000SISCAR, Marcos. Jacques Derrida, o intraduzível. Alfa: Revista de Linguística, São Paulo, v. 44, n. 1, p. 59-70, 2000.), “A estrutura de passagem de uma experiência não linguística para a língua” (SISCAR, 2000SISCAR, Marcos. Jacques Derrida, o intraduzível. Alfa: Revista de Linguística, São Paulo, v. 44, n. 1, p. 59-70, 2000., p. 59). Evocando a narrativa de Babel, suas reflexões nos lembram sempre o intercâmbio e a reunião de diversos povos, línguas e culturas num mesmo espaço e a sua subsequente dispersão. Próprio das cenas com estrutura mítica, seus acontecimentos têm data imprecisa, quando não completamente desconhecida. Por outro lado, a problemática da tradução nunca deixou de ser constante, com diversos desdobramentos para o pensamento sobre a cultura na contemporaneidade, assunto de grande interesse da Literatura Comparada e dos Estudos Culturais.

É desse modo que podemos refletir sobre qual é o sentido de se interrogar, afirmar, ou negar a nacionalidade da literatura clariceana, por exemplo. Com isso, somos naturalmente levados a mais uma série de questionamentos, como, por exemplo, qual é o modelo de literatura, o significado de nacionalidade, e, sobretudo, as concepções de sujeito, de cultura, de linguagem e de representação que se tem implícitas em perguntas como estas.

Para uma boa parte delas, o crítico indo-britânico Homi K. Bhabha (1998BHABHA, Homi K. O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila et al. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.) nos oferece sólidas reflexões. Seu projeto de interpretação e crítica da cultura tem amplo alcance, e passa pela análise dos discursos que formaram, na modernidade, as visões que se tornaram hegemônicas acerca da cultura, da nação, do sujeito, da linguagem e da representação.

Em primeiro lugar, sobre a questão da nacionalidade de Clarice Lispector, torna-se de grande valia tentarmos imaginar o período de sua infância em que sua família se estabelecia numa comunidade de judeus em Maceió. Ainda que não tenhamos aqui uma referência fotográfica para nos ajudar a visualizar tal cenário de forma mais concreta, tal imagem, por fugaz e disforme que seja, nos aparece como um valioso símbolo para que pensemos sobre as relações culturais no século XX e na contemporaneidade. Como defende Bhabha (1998BHABHA, Homi K. O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila et al. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.),

Isso porque a demografia do novo internacionalismo é a história da migração pós-colonial, as narrativas da diáspora cultural e política, os grandes deslocamentos sociais de comunidades camponesas e aborígenes, as poéticas do exílio, a prosa austera dos refugiados políticos e econômicos. É nesse sentido que a fronteira se torna o lugar a partir do qual algo começa a se fazer presente [...].

Os próprios conceitos de culturas nacionais hegemônicas, a transmissão consensual ou contígua de tradições históricas, ou comunidades étnicas “orgânicas” - enquanto base do comparativismo cultural -, estão em um profundo processo de redefinição. (BHABHA, 1998BHABHA, Homi K. O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila et al. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998., p. 24, grifos do autor).

Desse ponto de vista, não é mais concebível pensarmos em nenhuma espécie de isolacionismo cultural, de tradição, continuidade linear e origem. É por tais motivos que pensamos o projeto literário de Clarice tendo por base as noções de “hibridismo” e de “tradução cultural”: “O trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com ‘o novo’ que não seja parte do continuum de passado e presente. Ele cria uma ideia do novo como ato insurgente de tradução cultural” (BHABHA, 1998BHABHA, Homi K. O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila et al. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998., p. 27). Tais questões têm implicações mais profundas, fazendo-nos refletir sobre noções como de linguagem e identidade que estão na base dos discursos que formaram a modernidade e de nos oferecer alternativas. Bhabha (1998BHABHA, Homi K. O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila et al. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.), ao estudar os discursos coloniais, consegue notar um descompasso nas representações formuladas por sujeitos de nações colonizadoras sobre os povos colonizados em relação às representações elaboradas por esses mesmos povos em relação a si e sobre os seus colonizadores. Como ressalta Lynn Mario de Souza (2004SOUZA,Lynn Mario T. Menezes de. Hibridismo e Tradução Cultural em Bhabha. In: ABDALA JÚNIOR, Benjamin (org.). Margens da Cultura. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004. p. 113-133.), importante estudioso da obra do crítico indo-britânico, em seu artigo “Hibridismo e tradução cultural em Bhabha”,

Nesse confronto de representações, o que aparentava estar em jogo, para esses escritores, era a forma mais fiel, verdadeira ou autêntica de descrever o sujeito colonial, fosse ele colonizado ou colonizador. O enfoque de Bhabha, no entanto, era entender o que realmente estava realmente em jogo nesse confronto: se eram as linguagens usadas para representar os sujeitos ou se era o que se entendia por sujeito - isto é, a questão da construção da identidade. Acreditamos que tenha sido da necessidade de pensar essas duas questões, e da percepção de que as duas estão intimamente imbricadas, que surgiu o crescente interesse de Bhabha, a partir daí, de pensar o hibridismo, uma vez que sua discussão de hibridismo aborda a questão sempre a partir da perspectiva da linguagem e da identidade. (SOUZA, 2004SOUZA,Lynn Mario T. Menezes de. Hibridismo e Tradução Cultural em Bhabha. In: ABDALA JÚNIOR, Benjamin (org.). Margens da Cultura. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004. p. 113-133., p. 114).

Desse modo, não bastaria, portanto, representar tais sujeitos a partir de imagens corrigidas ou mais autênticas, mas compreender quais concepções de linguagem e de sujeito estariam envolvidos nessas significações. Bhabha (1998BHABHA, Homi K. O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila et al. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.) compreende a significação enquanto perpassada pela différance derridiana, de tal modo que o objeto literário é entendido como processo de enunciação, ao invés de pura mimesis. A concepção de sujeito é, pois, a mesma da psicanálise: “O sujeito do discurso da diferença é dialógico ou transferencial à maneira da psicanálise. Ele é constituído através do lócus do Outro [...]” (BHABHA, 1998BHABHA, Homi K. O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila et al. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998., p. 228). Daí a se pensar o signo sob as formulações de Bakhtin, a partir das quais Bhabha (1998BHABHA, Homi K. O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila et al. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.) postula as noções de “lócus de enunciação” e “terceiro espaço”. Ao analisarmos o “lócus de enunciação” daquele que fala ou representa, podemos notar toda uma série de elementos heterogêneos, que constituem o hibridismo do sujeito e, portanto, do seu discurso:

Para Bhabha, para entender a representação, é primordial entender o lócus de enunciação do narrador, do escritor, ou, enfim, o lócus de enunciação de quem fala; isso porque, diferentemente do conceito de enunciados prontos, homogêneos e fechados, o conceito de lócus de enunciação revela esse lócus atravessado por toda a gama heterogênea das ideologias e valores socioculturais que constituem qualquer sujeito; é nisso - que Bhabha chama de “terceiro espaço” - que toda a gama contraditória e conflitante de elementos linguísticos e culturais interagem e constituem o hibridismo. (SOUZA, 2004SOUZA,Lynn Mario T. Menezes de. Hibridismo e Tradução Cultural em Bhabha. In: ABDALA JÚNIOR, Benjamin (org.). Margens da Cultura. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004. p. 113-133., p. 119).

Quanto a isso, A hora da estrela (2020LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 2020.) não deixa de ter rastros da própria vida de Clarice Lispector, sejam deliberados ou não - e alguns dos exemplos são as incontáveis projeções de seu próprio “eu” enquanto escritora na figura de Rodrigo S.M. E a escolha por um escritor homem não é fortuita: “Aliás - descubro eu agora - também eu não faço a menor falta, e até o que escreve um outro escreveria. Um outro escritor, sim, mas teria que ser homem porque escritora mulher pode lacrimejar piegas” (LISPECTOR, 2020LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 2020., p. 12, grifo nosso).

Mas também na personagem Macabéa, enquanto datilógrafa e retirante: “Ela que deveria ter ficado no sertão de Alagoas com vestido de chita e sem nenhuma datilografia, já que escrevia tão mal, só tinha até o terceiro ano primário” (LISPECTOR, 2020LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 2020., p. 13, grifo nosso). E isso seriam apenas detalhes se a própria Clarice não se deixasse mostrar na “Dedicatória do autor”, conforme visto e também explorado por Benedito Nunes (1995NUNES, Benedito. O jogo da identidade. In: NUNES, Benedito. O drama da linguagem: uma leitura de Clarice Lispector. 2. ed. São Paulo: Ática, 1995. p. 160-171.):

Uma outra presença, que disputa com a do narrador, insinua-se nessa modalidade de fala: a presença da própria escritora, já declarada na dedicatória da obra, e cuja interferência estende-se à sua caprichosa denominação, A hora da estrela sendo apenas um dentre treze títulos diferentes que lhe podem ser atribuídos.

Suspendendo, pois, a sua máscara pública de ficcionista acreditada ao identificar-se com S.M. - na verdade Clarice Lispector - e por intermédio dele com a própria nordestina, Macabéa - a quem se acha colado o autor interposto -, Clarice Lispector se faz igualmente personagem. (NUNES, 1995NUNES, Benedito. O jogo da identidade. In: NUNES, Benedito. O drama da linguagem: uma leitura de Clarice Lispector. 2. ed. São Paulo: Ática, 1995. p. 160-171., p. 154).

E o que talvez seja mais relevante, já que o questionamento sobre a sua nacionalidade sempre importunou a escritora, é não só o espaço da narrativa - ambientada no Rio de Janeiro -, mas também e sobretudo a origem das personagens: Macabéa, de Maceió; e S.M., do Nordeste, simplesmente. A elaboração de um destino verossímil por meio de uma narrativa; o destino de uma moça, de quem S.M. só tem o conhecimento de que seja nordestina, de quem só se captou um olhar, o suficiente para se imaginar e inventar toda a trama de uma vida; vida dentre tantas outras igualmente apagadas - “Como a nordestina, há milhares de moças espalhadas por cortiços, vagas de cama num quarto, atrás de balcões trabalhando até a estafa. Não notam sequer que são facilmente substituíveis e que tanto existiriam como não existiriam” (LISPECTOR, 2020LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 2020., p. 12). Clarice não se ausenta em falar das mazelas da pátria que a acolheu. Mas não nos esqueçamos: o escritor - S.M. -, enquanto reflete sobre o seu próprio fazer artístico, não deixa de manifestar uma profunda desconfiança em relação ao ato de representar, consciente de que o caráter e o destino de Macabéa não passam de invenção.

Em segundo lugar: de onde vem o nome da personagem, senão de uma referência direta ao imaginário judaico, de forte presença na vida de Clarice e de grande importância na constituição de sua subjetividade? E por que as tantas referências às outras artes, sobretudo a pintura, em A hora da estrela? Por que S.M. compara tantas vezes o fazer literário com a pintura de um retrato? Ou ainda: em certo momento, Macabéa vê uma versão de Humilhados e ofendidos, do escritor russo Fiódor Dostoiévski, na mesa de “Seu Raimundo” -, o que a leva a refletir sobre a sua própria condição: “Pensou, pensou e pensou! Chegou à conclusão que na verdade ninguém jamais a ofendera, tudo que acontecia era porque as coisas são assim mesmo e não havia luta possível, para que lutar?” (LISPECTOR, 2020LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 2020., p. 36).

Tanto em A hora da estrela (2020LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 2020.) quanto em O retrato de Dorian Gray (2016WILDE, Oscar. O retrato de Dorian Gray. Texto em português/Tradução e adaptação de Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Rocco Jovens Leitores, 2016.), ambos os artistas personagens nutrem um certo fascínio ou idolatria pelos seus modelos. Mas se na novela de Lispector o encanto de S.M. por Macabéa é motivado pela insignificância da personagem, no romance de Wilde o jovem Dorian Gray é alguém dotado de uma beleza e simplicidade descomunais. Eis o porquê de Basil Hallward tentar protegê-lo a todo custo das influências de seu amigo e Lorde Henry Wotton: “- Harry, ouça bem: Dorian Gray é o meu melhor amigo. Não tente modificá-lo. Há muita gente, criaturas maravilhosas por aí… Vá procurar uma dessas. Pense bem: a minha vida de artista depende dele” (WILDE, 2016WILDE, Oscar. O retrato de Dorian Gray. Texto em português/Tradução e adaptação de Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Rocco Jovens Leitores, 2016., p. 25). Vã tentativa. Em poucos minutos de convivência, o cinismo de lorde Henry começa a exercer um certo efeito sobre o modelo:

As palavras do outro tinham-lhe tocado uma corda secreta.

Só a música o agitava assim. Mas a música não lhe mostrava um mundo novo… Palavras! Simples palavras! Que magia possuíam até o ponto de dar forma plástica a coisas informes! Que é que pode ser tão real como as palavras?

Sim, havia coisas de sua adolescência que só agora faziam sentido. A vida tomava um colorido vivo. Era como se estivesse caminhando através do fogo. Como não o percebera antes? (WILDE, 2016WILDE, Oscar. O retrato de Dorian Gray. Texto em português/Tradução e adaptação de Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Rocco Jovens Leitores, 2016., p. 30).

Podemos dizer que esse fato aparentemente banal sustenta ao mesmo tempo tanto as diferenças quanto as semelhanças mais fundamentais entre as obras. Macabéa, de um lado, completamente desprovida de qualquer caráter significativo, Dorian Gray, do outro, o modelo ideal. Desconsiderando a diferença formal entre as narrativas - A hora da estrela (2020LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 2020.), declinada em primeira pessoa quando pensamos na voz narrativa de S.M., e O retrato de Dorian Gray, em terceira -, ambas, de algum modo, problematizam a questão da representação enquanto a inapreensão do ser, seja pela palavra (a inevitável ficcionalização da vida de Macabéa), seja pelas artes plásticas. E com relação à questão da influência de Henry Wotton sobre a personalidade de Dorian Gray, é essa a chave do distanciamento entre a primeira imagem pintada pelo artista - fiel à beleza do modelo - e a sua forma final - completamente deteriorada - no encerramento do romance, depois de sucessivas mudanças causadas pelos inúmeros pecados e crimes cometidos por Dorian:

Não haveria um modo de voltar atrás em tudo o que fizera? Arrependia-se, agora, de ter feito, num momento de orgulho e vaidade, aquele maldito trato. Que sobre o seu retrato recaísse o peso dos seus dias. E a ele, ao seu belo físico, fosse reservado o esplendor da eterna juventude! (WILDE, 2020, p. 153).

O que tudo isso poderia representar? A hora da estrela (1977), enquanto produto cultural - mais especificamente, enquanto objeto literário - é também concebido com base em outros textos, em outras práticas artísticas, em outros imaginários culturais e estéticos, acionados por Clarice a partir de sua experiência de leitora, de tradutora (e aqui colocamos ênfase em O retrato de Dorian Gray), bem como de seu conhecimento de outras línguas e de outras culturas. Desse modo, Clarice não deixa de realizar uma “tradução cultural”, já que as referências múltiplas, os traços de outras línguas, culturas, literaturas e artes comportam uma ampla rede de diferenças que não se diluem num todo completamente transparente. Nas palavras de Bhabha (1998BHABHA, Homi K. O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila et al. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.), “A ‘diferença’ do saber cultural que ‘acrescenta’ mas não ‘soma’ é inimiga da generalização implícita do saber ou da homogeneização implícita da experiência [...]” (p. 229), pois, tendo em vista o constante e intenso contato cultural estabelecido pela escritora durante a sua vida, diversas outras camadas ainda estão à espera de uma leitura crítica, em cujo papel básico subjaz a (sobre)vida da obra clariceana, no sentido mais amplo do termo.

Clarice, uma tradutora de si e dos outros

Dentre os inúmeros e irrecuperáveis volumes que compuseram a biblioteca de leituras de Clarice Lispector, até onde se sabe pelo menos 46 deles foram de textos de literatura estrangeira e que acabaram, por um motivo ou outro, sendo traduzidos pela escritora para a língua portuguesa. Seja por questões financeiras, seja pelo prazer da atividade intelectual, o fato é que tanto quanto as leituras mais despretensiosas, as empreitadas tradutórias que realizou colocam Clarice, dentre um perfil de leitores possíveis, num grupo definitivamente mais seleto. Como em “A memória de Shakespeare”, não há sujeito que passe incólume às suas leituras. Menos ainda, poderíamos dizer, às suas traduções, já que tal ato pressupõe uma atenção ainda maior. Traduzir, portanto, não deixa de ser uma atividade de extrema intimidade com o outro, com o estrangeiro, com o diferente.

Nesse ato de inquestionável proximidade, há algo de busca e aventura. Não há retorno possível sem transformação. A formação intelectual de Clarice passa pelas suas leituras, experiências e traduções. A Bildung é o processo da maturação, aquisição de uma forma, o que não pode acontecer sem a experiência da alteridade. O refinamento da escrita clariceana passa por muitos outros. O que seria a tradução de O retrato de Dorian Gray e a escrita de A hora da estrela se essas tivessem sido não as últimas mas as primeiras produções de Clarice? Não é possível sequer imaginar, somente chamar a atenção para algo que parece até trivial: no intervalo de tempo entre a primeira e a última de suas produções, há algo que não deixou de acontecer, e isto é precisamente a vida.

Vida, com toda a sua complexidade. Dores, alegrias, descobertas, mudanças, paixões, esperanças, promessas, decepções. Tudo isso são ingredientes para a criação literária, e disso a obra de Clarice está impregnada. Vida sua, vidas outras. A hora da estrela é dedicada “[...] a todos esses que em mim atingiram zonas assustadoramente inesperadas, todos esses profetas do presente que a mim me vaticinaram a mim mesmo a ponto de eu neste instante explodir em: eu” (LISPECTOR, 2020LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 2020., p. 7). Talvez a palavra que melhor possa traduzir o empenho intelectual de Clarice seja essa: tradutora. De si, e dos outros.

Referências

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  • FERREIRA, Rony M. Cardoso. Clarice Lispector: uma tradutora em fios de seda (teoria, crítica e tradução literária). Tese (Doutorado em Literatura) - Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Instituto de Letras, Universidade de Brasília, Brasília, 2016.
  • BERMAN, Antoine. A prova do estrangeiro: cultura e tradução na Alemanha romântica: Herder, Goethe, Schegel, Novalis, Humboldt, Schleiermacher, Hölderlin. Tradução de Maria Emília Pereira Chanut. Bauru: EDUSC, 2002.
  • BHABHA, Homi K. O local da cultura Tradução de Myriam Ávila et al Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.
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  • CARVALHAL, Tania Franco. Tradução e recepção na prática comparatista. In: CARVALHAL, Tania Franco. O próprio e o alheio: ensaios de literatura comparada. São Leopoldo: Editora Unissinos, 2003. p. 217-259.
  • DERRIDA, Jacques. O que é uma tradução ‘relevante’? Tradução de Olivia Niemeyer Santos. Alfa: Revista de Linguística, São Paulo, v. 44, n. 1, p. 13-44, 2000. Disponível em: http://seer.fclar.unesp.br/alfa/article/view/4277 Acesso em: 28 nov. 2021.
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  • DERRIDA, Jacques. Torres de Babel Tradução de Junia Barreto. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.
  • GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: uma vida que se conta. 7. ed. rev. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013.
  • FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. In: FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos (1930-1936) Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 13-122.
  • LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela Rio de Janeiro: Rocco, 2020.
  • LISPECTOR, Clarice. Introdução. In: WILDE, Oscar. O retrato de Dorian Gray Texto em português/Tradução e adaptação de Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Rocco Jovens Leitores, 2016a. p. 11-13.
  • LISPECTOR, Clarice. Perfil de seres eleitos. In: LISPECTOR, Clarice. Clarice Lispector: Todos os contos. Rio de Janeiro: Rocco, 2016b. p. 378-382.
  • MOSER, Benjamin. Clarice, uma biografia Tradução de José Geraldo Couto. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
  • NUNES, Benedito. O jogo da identidade. In: NUNES, Benedito. O drama da linguagem: uma leitura de Clarice Lispector. 2. ed. São Paulo: Ática, 1995. p. 160-171.
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  • SOUZA,Lynn Mario T. Menezes de. Hibridismo e Tradução Cultural em Bhabha. In: ABDALA JÚNIOR, Benjamin (org.). Margens da Cultura São Paulo: Boitempo Editorial, 2004. p. 113-133.
  • WILDE, Oscar. O retrato de Dorian Gray Texto em português/Tradução e adaptação de Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Rocco Jovens Leitores, 2016.
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    “Se levarmos em conta que as duas filhas mais velhas de Mania não foram mortas nem violentadas, que sua terceira filha sobreviveu ao parto de uma mãe sifilítica, que seu marido sobreviveu e que ela própria viveu o suficiente para ver sua família instalada em segurança num país estrangeiro, pode-se considerar que ela teve mais sorte do que a maioria.” (MOSER, 2017MOSER, Benjamin. Clarice, uma biografia. Tradução de José Geraldo Couto. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 44).

Editado por

Parecer Final dos Editores

Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    10 Set 2022
  • Aceito
    28 Set 2022
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