Resumo
Com o objetivo de operar o trabalho de campo como possibilidade de uma pesquisa afecção na/para/com Etnomatemática, lança-se mão de duas experiências realizadas em distintos grupos de investigação, sendo estes: a experiência antropológica-terapêutica da antropóloga Jeanne Favret-Saada, em uma comunidade de feitiçaria no Bocage, oeste da França; e a experiência cartográfica do autor em uma comunidade de remanescentes quilombolas do estado de São Paulo. Para afirmar a invenção de um corpo que desliza entre pesquisa e campo, são apresentados pelo menos três devires como expressão de sua potência: devir-feiticeira; devir-mandira; e devir-infância. Entende-se que estas experiências, compostas pelos devires apresentados, expressam o trabalho de campo na/para/com Etnomatemática como possibilidade de uma pesquisa afecção.
Palavras-chave:
Educação Matemática; Etnomatemática; Filosofias da Diferença; Cartografia
Abstract
With the objective of operating the fieldwork as a possibility of an affection research in/for/with Ethnomathematics, two experiments are performed in different research groups, namely: the anthropological-therapeutic experience of anthropologist Jeanne Favret-Saada, in a witchcraft community in Bocage, western France; and the cartographic experience of the author in a remaining community of quilombolas in the state of São Paulo. To affirm the invention of a body that slides between research and field, at least three types of devir are presented as an expression of their potency: to become a sorceress; to become a mandira; and to become a child. It is understood that all the experiences composed of the types of devir presented, express the fieldwork in/for/with Ethnomathematics as a possibility of an affection research.
Keywords:
(Mathematics) Education; Ethnomathematics; Philosophy of Difference; Cartography
1 Três linhas de anunciação
1.1 Etnomatemática: uma potência de novos possíveis (?)
Em 2019, a Etnomatemática comemorou 35 anos desde a conferência “Socio-Cultural bases of mathematics education”1 1 Em linhas gerais, naquele pronunciamento Ubiratan D’Ambrosio defendeu que grupos sociais desenvolvem em sua cultura diversos modos de conhecer e explicar o mundo, por ele chamado de “modos próprios de matematizar”, de produzir etno-matemática. Uma das importantes questões que D’Ambrosio alça nesta exposição ao propor uma etno-matemática é a questão “qual matemática?” iremos tratar quando assumimos a sociedade em sua diversidade de linguagem, códigos, valores, hábitos etc. Portanto, é deste lugar “sociocultural” que o autor irá pensar este “elemento de composição” etno, entendido em suas palavras não apenas como raça, mas também como cultura (linguagem, códigos, símbolos, atitudes de valores etc.). Estas particularidades culturais, segundo ele, implicam “naturalmente” ciência e práticas matemáticas (para isto, veja: D’Ambrosio, 1986, p. 5). , proferida por Ubiratan D’Ambrosio em agosto de 1984, no 5th International Congress of Mathematics Education (ICME), realizado em Adelaide, Austrália. Dada a quantidade de pesquisas que se empenhavam na produção de um conhecimento que poderia ser chamado de Etnomatemática, segundo Knijnik (1996)KNIJNIK, G. Exclusão e resistência: educação matemática e legitimidade cultural. [S. l.]: Artes Médicas, 1996., este evento talvez possa ser considerado um marco histórico desta área no cenário internacional.
Em 1985, a criação do International Study Group on Ethnomathematics (ISGEm)2 2 Este grupo foi criado pelos professores de Matemática Ubiratan D’Ambrosio, Gil Cuevas, Gloria Gilmer e Rick Scott. possibilitou à Etnomatemática uma ampla participação internacional, pois, além de encorajar e propiciar pesquisas em Etnomatemática em sua lista de discussão, o ISGEm tomou parte nas publicações de livros, artigos e pesquisas apresentadas em periódicos como o Journal of Mathematics and Culture e o Newsletter: Notices of North American Study Group on Ethnomathematics (NASGEm). Além deste espaço político e acadêmico propiciado pelo ISGEm, a Etnomatemática ganhou lugar em seções de importantes congressos internacionais como o International Congress of History of Science, o International Congress of Mathematics Education, o National Council of Teachers of Mathematics, entre outros.
À medida que a Etnomatemática foi ocupando e criando espaços políticos como estes – nacional e internacionalmente –, o número de pesquisas, produções acadêmicas, discussões etc., que se multiplicavam simultaneamente, foram sustentando a constituição de certas bases filosóficas, epistemológicas e metodológicas da área. Mesmo que o objetivo deste artigo não seja realizar um estado da arte da Etnomatemática3 3 Para acessar estas pesquisas de estado da arte da Etnomatemática, destaco alguns estudos que considero importantes, a saber: Paulus Gerdes, em 1997, realizou um “estado da arte” das pesquisas realizadas em Etnomatemática em todos os continentes. Este estudo foi apresentado no encontro anual American Association for the Advancement of Science com o título Survey of Current Work on Ethnomathematics (GERDES, 1997). No Brasil, Andréia Lunkes Conrado publicou um “estado da arte” intitulado como A pesquisa Brasileira em Etnomatemática: Desenvolvimento, Perspectivas, Desafios. Sua pesquisa objetivou mostrar os diversos estudos em Etnomatemática nas décadas de 1970 e 1980 (CONRADO, 2005). Mais recentemente, temos a tese de Caroline Mendes dos Passos, intitulada como Condições de produção e legitimação da Etnomatemática. Esta tese, aliada à sociologia de Pierre Bourdieu, objetivou a produção de um mapa da pesquisa em Etnomatemática no Brasil e o estudo das condições de produção e de legitimação da área (PASSOS, 2017). , destaco algumas importantes produções nesta época que apresentaram um esforço da Etnomatemática de se constituir enquanto possibilidade de problematizar a Matemática a partir de um critério cultural4 4 Ao realçar a questão “qual matemática?”, levantada por Ubiratan D’Ambrosio (1984), percebe-se um interesse do autor em problematizar a Matemática. Neste caso, evidencio-a com inicial maiúscula dado que, nesta época, é o fato de a matemática grega ocupar um lugar de destaque social que o faz propor tal questão. Na problematização proposta por Vithal e Skovsmose (1997), por exemplo, os autores compreenderão a etnomatemática como uma resposta ao Eurocentrismo da história da matemática, da matemática em si, e da educação matemática, pois, segundo eles, a prática etnomatemática coloca em evidência as relações de poder entre e dentre grupos culturais. Em suas palavras, os “estudos etnomatemáticos têm demonstrado como isto tem sido feito entre o Eurocentrismo da matemática acadêmica e a matemática de grupos culturais identificáveis” (VITHAL; SKOVSMOSE, 1997, p. 140). Desse modo, a pergunta “qual matemática?” é uma forma de afirmar que existem outras matemáticas expressadas no saber/fazer de diversas culturas. No entanto, a concepção de matemática não é homogênea dentro da área. Compreender este “fenômeno”, por exemplo, foi questão central da tese Etnomatemática: do ôntico ao ontológico, defendida por Roger Miarka. Ao tentar problematizar os modos como a etnomatemática se apresenta em sua região de inquérito, o autor buscou destacar quais concepções de matemática se mostravam presentes nas pesquisas em etnomatemática (MIARKA, 2011). Para tanto, Miarka (2011) selecionou cinco proeminentes pesquisadores, tendo como base os mais citados por brasileiros nas três edições da International Conference Ethnomathematics: Bill Barton, Eduardo Sebastiani Ferreira, Gelsa Knijnik, Paulus Gerdes e Ubiratan D’Ambrosio. Uma síntese da análise fenomenológica que Miarka (2011) realizou com cada um destes pesquisadores foi publicada, junto à Maria Aparecida Viggiani Bicudo, sob o título Matemática e/na/ou Etnomatemática. Neste artigo, os autores consideram que “[…] há uma forte convergência para a ideia de que a matemática é uma ciência que tem sido construída por seres humanos, por meio de articulações entre diversas culturas, que se mostra em uma corrente que muitos chamam de ‘Matemática Acadêmica’ ou ‘Matemática Ocidental’, ainda em expansão” (MIARKA; BICUDO, 2012, p. 152, destaque do autor). Por considerar esta ciência “ainda em expansão”, os modos de compreendê-la são notadamente diferenciados e sintetizados por Miarka e Bicudo (2012) em três grandes modos, realçados por eles da seguinte maneira: “[…] ela pode ser encontrada na etnomatemática, no sentido de que a ‘Matemática Ocidental’ é interna à etnomatemática, tomada esta, por sua vez, como um campo mais amplo, o que pode ser percebido na pesquisa de D’Ambrosio e de Barton. Para Knijnik, a etnomatemática é uma alternativa para a matemática (ou), ao tomar as práticas dos grupos culturais como jogos de linguagem que podem ser relacionados por meio de semelhanças de família, sem um núcleo como base para essa constituição. Para um terceiro grupo, formado por Gerdes e Sebastiani Ferreira, a matemática é algo abraçado à etnomatemática (e), ao conceber a matemática como um núcleo sólido direcionador da prática do pesquisador desse campo” (MIARKA; BICUDO, 2012, p. 156-157). . São elas: Mathematics, Education, and Society (DAMEROW; BISHOP; GERDES, 1989DAMEROW, P.; BISHOP, A. J.; GERDES, P. (org.). Mathematics, Education, and Society. Paris: UNESCO, 1989.)5 5 De caráter mais amplo, aqui estão reunidos os trabalhos apresentados no 6° ICME. Além de expor os vínculos dos pesquisadores da Educação Matemática para a constituição da Etnomatemática, este texto traz também inúmeros exemplos da relação entre matemática e cultura não apenas como um exercício da Etnomatemática, mas da própria Educação Matemática. Para pensar possíveis tensões entre esta conjunção Educação Matemática e Etnomatemática, ou seja, o quanto uma se desdobra na outra para a constituição de seus domínios teóricos e práticos, sugiro o texto Efeitos de poder e verdade do discurso da Educação Matemática (BAMPI, 1999). Neste artigo, a partir de uma rigorosa pesquisa documental, a autora coloca as preocupações da Etnomatemática como fundadoras da Educação Matemática. ; Ethnomathematics: a dialogue (ASHER; D’AMBROSIO, 1994ASHER, M.; D’AMBROSIO, U. Ethnomathematics: a dialogue. For de Learning of Mathematics, Vancouver, v. 14, n. 2, p. 36–43, 1994.)6 6 Sendo este um número especial de Etnomatemática da revista For the Learning of Mathematics, destaco alguns outros importantes textos para a área, a saber: Bishop (1994), Cultural Conflicts in Mathematics Education: Developing a Research Agenda; Gerdes (1994), Reflections on Ethnomathematics; e Zaslavsky (1994), “Africa Counts” and Ethnomathematics. ; Survey of Current Work on Ethnomathematics (GERDES, 1997GERDES, P. Survey of current work on ethnomathematics. In: POWELL, A. B.; FRANKENSTEIN, M. (org.). Ethnomathematics: challenging eurocentrism in mathematics education. New York: State University of New York Press, 1997. p. 331-371.); Mathematics Across Cultures The History of Non-Western Mathematics7 7 Este livro apresenta distintas relações entre matemática e cultura a partir de uma “História da Matemática não-ocidental”. Ademais, explora conhecimentos matemáticos de culturas fora dos Estados Unidos e da Europa como a matemática islâmica, chinesa, indígena, aborígene australiana, inca, egípcia, africana, entre outras. ; e L’EthnoMathématique en Afrique (GERDES, 2009GERDES, P. L’EthnoMathématique en Afrique. Maputo: Centre des études mozambicaines et de l'etnoscience, 2009.).
Em virtude dessa diversidade a que se abre à Etnomatemática desde sua fundação, muitas são as pesquisas que se desafiam a problematizar sua constituição filosófica, epistemológica, e metodológica8 8 Produzidos recentemente, destaco três estudos que apresentam e problematizam a Etnomatemática a partir de seu campo de legitimidade e/ou enunciação, salientando suas “alianças” e “filiações”. São eles: Marchon (2013), Passos (2017) e Fantinato e Freitas (2018). . Por exemplo, após sua tese de doutoramento, Etnomatemática: do ôntico ao ontológico (MIARKA, 2011MIARKA, R. Etnomatemática: do ôntico ao ontológico. 2011. 427 f. Tese (Doutorado em Educação Matemática) – Universidade Estadual Paulista “Júlio Mesquita Filho” (UNESP), Rio Claro, 2011.), Roger Miarka escolhe a lista eletrônica de discussão do ISGEm para questionar: “para onde apontam as tendências e preocupações contemporâneas da pesquisa em Etnomatemática?” (MIARKA, 2017MIARKA, R. Preocupações e Tendências Contemporâneas da Pesquisa em Etnomatemática presentes na Lista Eletrônica de Discussões do International Study Group on Ethnomathematics. Revemat: Revista Eletrônica de matemática, Florianópolis, v. 11, p. 268–282, 2017., p. 270). Na esteira deste questionamento, o autor analisa as mensagens da lista de discussão do ISGEm e apresenta um quadro com seis grupos de interesse de pesquisa nos quais a área se mostra, quais sejam: 1) Etnomatemática como busca pelo conhecimento do outro; 2) Etnomatemática na sala de aula; 3) Etnomatemática para trabalhar questões que envolvem o encontro cultural; 4) Etnomatemática e o pensar sobre suas próprias bases; 5) Etnomatemática como possibilidade de produção de conhecimento; e 6) Etnomatemática para desconstruir uma visão linear da história da Matemática (MIARKA, 2017MIARKA, R. Preocupações e Tendências Contemporâneas da Pesquisa em Etnomatemática presentes na Lista Eletrônica de Discussões do International Study Group on Ethnomathematics. Revemat: Revista Eletrônica de matemática, Florianópolis, v. 11, p. 268–282, 2017.).
Ainda que apresentadas sinteticamente, é importante mencionar que as possibilidades de enunciar tais categorias de interesse de pesquisa da Etnomatemática, ou de mapear suas condições de produção e legitimação – como faz Miarka (2017)MIARKA, R. Preocupações e Tendências Contemporâneas da Pesquisa em Etnomatemática presentes na Lista Eletrônica de Discussões do International Study Group on Ethnomathematics. Revemat: Revista Eletrônica de matemática, Florianópolis, v. 11, p. 268–282, 2017. no primeiro caso, e Passos (2017)PASSOS, C. M. Condições de produção e legitimação da Etnomatemática. 2017. 225 f. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), São Carlos, 2017. no segundo –, garante-nos entendê-la como área de pesquisa, seus lugares de constituição. No entanto, dada sua condição de território fronteiriço – por habitar um lugar entre a Educação, a Sociologia, a História, a Filosofia e a Antropologia, dentre outras áreas – garante-nos também a impossibilidade de entende-la enquanto unidade totalizante, afirmando-a enquanto movimento. Segundo Passos (2017PASSOS, C. M. Condições de produção e legitimação da Etnomatemática. 2017. 225 f. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), São Carlos, 2017., p. 206),
[…] são essas possibilidades de encontro e diálogo com o outro que vão questionar a estrutura macro e institucionalizada. Que vão questionar as regras, as normas e ações instituídas e legitimadas por todo um aparato institucional que envolve a temática. São questionamentos que, por surgirem da práxis, por se relacionarem com as práticas sociais, vão pouco a pouco propor mudanças e permitir que paulatinamente, mudanças em uma estrutura complexa sejam possíveis.
Ao tratar destas duas formas de constituição da E(e)tnomatemática (área (E) e movimento (e)), Miarka (2017MIARKA, R. Preocupações e Tendências Contemporâneas da Pesquisa em Etnomatemática presentes na Lista Eletrônica de Discussões do International Study Group on Ethnomathematics. Revemat: Revista Eletrônica de matemática, Florianópolis, v. 11, p. 268–282, 2017., p. 281, destaque do autor) destaca que:
A força da Etnomatemática - nos parece - não reside em seus movimentos de ruptura, nem na sua possibilidade como área. A etnomatemática como movimento - aquela com e minúsculo - é combustível para aquela da área com E maiúsculo, que traz visibilidade para o movimento, na mesma medida em que a Etnomatemática se torna uma morada possível para que movimentos etnomatemáticos ocorram. Sua força, entendida assim, se dá em um processo de simbiose - ou seria de duelo? - entre área e movimento.
É na esteira dessa possibilidade do “encontro” e/ou dessa “simbiose” que este artigo se localiza – neste entre área (E) e movimento (e). Com isto, objetiva-se pensar o trabalho de campo como possibilidade de uma pesquisa afecção na/para/com Etnomatemática.
Cabe ressaltar que este texto se trata de um desdobramento do trabalho de campo realizado na Comunidade de Remanescentes Quilombolas do Mandira9
9
A comunidade de Remanescentes Quilombolas do Mandira está situada na cidade de Cananeia, interior do Estado de São Paulo (Brasil). Atualmente a comunidade é composta por aproximadamente cem integrantes, contando crianças e adultos.
. A pesquisa, que vem sendo realizada desde 2015, tem possibilitado a problematização de diversas questões que atravessam a Educação Matemática, em especial a Etnomatemática (GONDIM, 2018GONDIM, D. M. Ribeiras de Vales …e experimentações e grafias e espaços e quilombolas e… Dissertação (Mestrado em Educação Matemática) – Universidade Estadual Paulista “Júlio Mesquita Filho” (UNESP), Rio Claro, 2018.; GONDIM; MIARKA, 2020GONDIM, D. M.; MIARKA, R. The Mandira Quilombola Community and the Production of an Anthropophagic Identity. In: ROSA, M.; COPPE DE OLIVEIRA, C. (Org.). Ethnomathematics in Action. Springer International Publishing, 2020. p. 41–56. Disponível em: <http://link.springer.com/10.1007/978-3-030-49172-7_3>. Acesso em: 7 set. 2020.
http://link.springer.com/10.1007/978-3-0...
). Acentuo, ainda, que essas possibilidades emergem junto à uma aliança filosófica-epistemológica-metodológica com as filosofias contemporâneas, nomeadamente a filosofia da diferença de Gilles Deleuze (1925-1995) e Felix Guattari (1930-1992).
1.2 Proposições: uma ideia, uma prática, uma atitude e uma possibilidade
Ao levar em consideração o objetivo anunciado e a aliança com a filosofia da diferença de Gilles Deleuze e Felix Guattari, o exercício proposto neste artigo é constituído a partir de quatro movimentos simultâneos que o atravessam. Estes poderiam ser caracterizados como: 1) uma ideia da vida como imanência, potência, e beatitude absoluta; 2) uma prática antropofágica que não busca sustentar valores, mas uma vida em seus estados de expressão e expansão; 3) uma atitude cartográfica que traça os movimentos de um corpo composto por linhas longitudinais e latitudinais; 4) uma possibilidade de uma pesquisa afecção entre área e movimento.
Estes quatro movimentos são assumidos junto a três citações que não são tomadas como “referências” a serem dissecadas e esgotadas, mas como proposições a serem produzidas e tensionadas ao longo do texto.
Tendo dito isto, anuncia-se as três proposições:
[…1…]
Pode-se dizer da pura imanência que ela é UMA VIDA, e nada diferente disso. Ela não é imanência à vida, mas o imanente que não existe em nada também é uma vida. Uma vida é a imanência da imanência, a imanência absoluta: ela é potência completa, beatitude completa (DELEUZE, 2002DELEUZE, G. A imanência: uma vida. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 27, n. 2, p. 10–18, 2002. Tradução de Tomaz Tadeu., p. 12).
[…2…]
Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente (ANDRADE, 1928ANDRADE, O. Manifesto Antropófago. Revista de Antropofagia, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 3–7, 1928., p. 6).
[…3…]
O que conta na vida de alguém, indivíduo ou grupo, é um certo conjunto que pode ser chamado de cartografia. Uma cartografia é feita de linhas. Em outras palavras, somos feitos de linhas que variam de indivíduo a indivíduo, de grupo a grupo, podendo haver nelas tramas comuns (DELEUZE, 1977DELEUZE, G. Anti-Œdipe et Mille Plateaux. Cours du 15/02/1977. 1977. Disponível em: https://www.webdeleuze.com/textes/181. Acesso em: 20 jun. 2017.
https://www.webdeleuze.com/textes/181... , on-line).
1.3 Alterando questões: da figura teoremática às figuras problemáticas
É importante destacar que os quatro movimentos que compõem esta proposta são sustentados por uma outra forma de anunciar as questões que encorajam a escrita deste artigo. Como mencionado anteriormente, as proposições não buscam a sustentação de uma verdade a ser demonstrada e solucionada, mas a constituição de um plano problemático e problematizante possível de ser tensionado e operado na/para/com Etnomatemática. Assim, as singularidades que compõem o artigo – sejam elas do trabalho de campo ou da filosofia da diferença –, como aventa Deleuze (1969DELEUZE, G. Logique du sens. Paris: Les Éditions de Minuit, 1969., p. 127), “são distribuídas num campo devidamente problemático e surgem nesse campo como acontecimentos topológicos, os quais não estão ligados a alguma direção”.
Tendo isto em vista, as questões que operam os quatro movimentos deste artigo não são constituídas pela vontade de definir o trabalho de campo na/para/com Etnomatemática, mas por um desejo de ocupar-se dele enquanto acontecimento.
Entretanto, por que “enquanto acontecimento”? Ao comentar o livro Clio, de Péguy, Deleuze e Guattari (1991DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Qu'est-ce que la philosophie ?. Paris: Les Éditions de Minuit, 1991., p. 106-107, destaque do autor) afirmam que nesta obra existem duas maneiras de considerar o acontecimento, as quais eles distinguem: “[…] uma que consiste em passar ao longo do acontecimento, em recolher sua efetuação na história, seu condicionamento e seu apodrecimento na história” e outra que consiste em “remontar o acontecimento, em instalar-se nele como num devir, em rejuvenescer e envelhecer nele de uma só vez, em passar por todos os seus componentes ou singularidades”. Ocupar-se do campo enquanto acontecimento é, assim, o mesmo que instalar-se nele como num devir, um devir sempre outro. Isto porque, como defende Zourabichvili (2003)ZOURABICHVILI, F. Le vocabulaire de Deleuze. Paris: Ellipes, 2003., o acontecimento é inseparável do devir, uma vez que ele não é passado, nem presente, sequer futuro, mas o que se dá entre um ainda-aqui-e-já-passado (encore-là-et-déjà-passé) e um ainda-porvir-e-já-presente (encore-à-venir-et-déjà-là)10 10 Gilles Deleuze um dia declarou: “[…] em todos os meus livros procurei a natureza do acontecimento” (DELEUZE, 1990, p. 194), “[…] tudo que escrevi […] constituí em uma teoria dos signos e do acontecimento” (DELEUZE, 1990, p. 196). Ao escrever Logique du Sens, em 1969 – livro consagrado ao conceito de acontecimento, como afirmam Zourabichvili (1994) e Sasso e Villani (2003) –, Deleuze (1969) afirma, em sua 24° série dedicada à comunicação dos acontecimentos, que “nada subsiste além do Acontecimento, o Acontecimento só, Eventum tantum para todos os opostos, que comunica consigo mesmo através de sua própria distância, ressoando através de todas suas disjunções” (DELEUZE, 1969, p. 206). Mesmo que posteriormente, em Le pli. Leibniz et le barroque, Deleuze (1988) questionará Qu'est-ce qu'un événement ? (O que é um acontecimento?), é preciso considerar a seguinte proposição de Logique du Sens: “[…] não perguntaremos, portanto, qual é o sentido de um acontecimento: o acontecimento é o próprio sentido” (DELEUZE, 1969, p. 34). Dito isso, é importante ressaltar que o acontecimento “[…] não é exatamente o que acontece, mas alguma coisa no que acontece, alguma coisa a vir de conformidade ao que acontece” (DELEUZE, 1969, p. 175, destaque do autor). Ser ele inseparável do devir, como destaca Zourabichvili (2003), significa que ele encarna passado e futuro como forma de efetuação e contra-efetuação. Em uma longa citação da 21° série do Logique du Sens, Deleuze (1969, p. 177) dirá: “[…] em todo acontecimento, há de fato o momento presente da efetuação, o momento em que o acontecimento se encarna em um estado de coisas, um indivíduo, uma pessoa, aquele que designamos dizendo: eis que o momento chegou; e o futuro e o passado do acontecimento são julgados apenas em função desse presente definitivo, do ponto de vista daquele que o encarna. Mas há, por outro lado, o futuro e o passado do acontecimento tomado em si mesmo, que esquiva todo presente, porque ele está livre das limitações de um estado de coisas, sendo impessoal e pré-individual, neutro, nem geral, nem particular, eventum tantum…; ou melhor, que não tem outro presente que o do instante móvel que o representa, sempre desdobrado em passado-futuro, formando o que deve ser chamado de contra-efetuação”. Sobre o questionamento “o que é um acontecimento?” aqui destacado, Deleuze (1988) percorrerá uma linha de problematização, junto a Leibniz e Whitehead, para dizer que os acontecimentos são fluxos compostos de uma extensão [“[…] o acontecimento é uma vibração com um número infinito de harmônicas ou submúltiplos, como uma onda sonora, uma onda de luz, ou mesmo uma parte do espaço que fica cada vez menor ao longo de uma duração cada vez menor” (DELEUZE, 1988, p. 105)], uma intensidade [“[…] as séries extensivas têm propriedades intrínsecas (por exemplo, altura, intensidade, timbre de um som, ou tonalidade, valor, saturação de cor)” (DELEUZE, 1988, p. 105)] e, por fim, de um indivíduo [“[…] para Whitehead, o indivíduo é a criatividade, a formação de um Novo. Não mais o indefinido ou o demonstrativo, mas o pessoal” (DELEUZE, 1988, p. 105)]. .
Ao assumi-lo desta maneira, não se pergunta o que é o trabalho de campo? mas que pode o trabalho de campo?
A escolha por não perguntar o que é diz respeito à compreensão de que, como coloca Clareto (2013CLARETO, S. M. A matemática como acontecimento na sala de aula. Goiânia: [s. n.], 2013., [15]p.),
A pergunta o que é? remete a uma busca por uma essencialidade, pela substância daquilo que é, essencialmente. A essência diz daquilo que a coisa é, em si mesma: uma existência essencial, em si mesma. Ora, o pensamento mais hegemônico no Ocidente compreende a essência como aquilo que constitui o que é. O “em si mesmo” remete à substância. O que é remete à definição da coisa, à sua essência, à sua delimitação.
Apesar de Clareto (2013)CLARETO, S. M. A matemática como acontecimento na sala de aula. Goiânia: [s. n.], 2013. não explicitar qual perspectiva de essência ela designa como sendo aquela que diz que a coisa é, “em si mesma”, ao perguntar “que matemática acontece na sala de aula?”11 11 Ao levantar este questionamento, Clareto (2013, [15]p., destaque do autor) irá considerar a sala de aula como “um coletivo de forças que coloca as formas em movimento. Um lugar de pluralidade, da multiplicidade que se instaura como lugar do acontecimento”. a autora permite pressupor que esta essência é a mesma à qual Gilles Deleuze irá se opor – isto é, a essência platônica – ao considerar o acontecimento como uma possibilidade de instalar-se no devir12 12 Cabe ressaltar que esta “oposição” ao platonismo aqui declarada se trata de uma perspectiva de leitura feita a partir da filosofia deleuzeana, considerando também os autores aqui supracitados, como François Zourabichvili, Robert Sasso e Arnaud Villani. Porém, há quem defenda que as “fórmulas da imanência” ou de “reversão do platonismo” propostas na filosofia de Deleuze se tratem de uma forma muito particular de um platonismo. Cita-se, por exemplo, o texto Le platonisme aplati de Gilles Deleuze, de Stéphane Madelrieux (2008). .
Em análise realizada por Sasso e Villani (2003SASSO, R.; VILLANI, A. Le vocabulaire de Gilles Deleuze. Nice: Centre de recherche d'histoire des idées, 2003., p. 141) sobre o conceito de acontecimento em Deleuze, os autores irão ponderar que “[…] o acontecimento não é a essência platônica”, pois ele não é uma coisa em si mesma [“[…] reverter o platonismo é, em primeiro lugar, destituir as essências para substituí-las pelos acontecimentos como jatos de singularidades” (DELEUZE, 1969DELEUZE, G. Logique du sens. Paris: Les Éditions de Minuit, 1969. p. 69)], mas algo que acontece entre as coisas e a linguagem [“[…] o acontecimento pertence essencialmente à linguagem, está em uma relação essencial com a linguagem; mas a linguagem é o que se diz das coisas” (DELEUZE, 1969DELEUZE, G. Logique du sens. Paris: Les Éditions de Minuit, 1969., p. 34)]. Nas palavras de Zourabichvili (2003ZOURABICHVILI, F. Le vocabulaire de Deleuze. Paris: Ellipes, 2003., p. 38), “[…] um mundo de coisas ou essências não faria sentido por si só, lhe faltaria o sentido como diferença ou acontecimento, o que por si só torna os significados sensíveis e os geram no pensamento”. Por fim, além desta fronteira estabelecida entre a linguagem e as coisas, seguindo a análise de Sasso e Villani (2003)SASSO, R.; VILLANI, A. Le vocabulaire de Gilles Deleuze. Nice: Centre de recherche d'histoire des idées, 2003., sua idealidade não implica uma universalidade, pois, como afirma Deleuze (1969)DELEUZE, G. Logique du sens. Paris: Les Éditions de Minuit, 1969., o acontecimento é uma singularidade ou um “conjunto”13 13 Ao perguntar qu'est-ce qu'un événement idéal ? (o que é um acontecimento ideal?), Deleuze (1969, p. 67) responderá: “[…] é uma singularidade”. Desse modo, quando Deleuze (1969) fala do Acontecimento (Événement) com “A” (em português) ou com “E” maiúscula (em francês), o autor está considerando que os acontecimentos possuem uma comunicabilidade no que ele designará de Acontecimento, Eventum tantum, pois, em suas palavras, “[…] os acontecimentos são singularidades ideais que comunicam em um único Acontecimento” (DELEUZE, 1969, p. 69) ou, dito de outra maneira, “[…] mistura que extrai e purifica e mede tudo no instante sem mistura, em vez de tudo misturar […]” (DELEUZE, 1969, p. 179). de singularidades de natureza impessoal. Por isto, os acontecimentos-singularidades ou singularidades-acontecimentos14 14 Após conceber os acontecimentos como singularidades, o filósofo usará então estas duas nomenclaturas, singularités-événements (DELEUZE, 1969, p. 125) ou événements-singularités (DELEUZE, 1969, p. 127). não dizem respeito às categorias coletivo/privado, particular/geral ou individual/universal. Nas palavras de Deleuze (1969DELEUZE, G. Logique du sens. Paris: Les Éditions de Minuit, 1969., p. 178), “[…] tudo é singular e por isso coletivo e privado ao mesmo tempo, particular e geral, nem individual nem universal”.
Tendo isto em consideração, perguntar o que é o trabalho de campo? corresponde ao que Deleuze e Guattari (1980)DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mille Plateaux: capitalisme et Schizophrénie 2. Paris: Les Éditions de Minuit, 1980. chamam de figura teoremática. Esta, segundo os autores, trata-se de uma essência fixa que clama por uma perpetuação da razão. No entanto, ainda com Deleuze e Guattari (1980)DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mille Plateaux: capitalisme et Schizophrénie 2. Paris: Les Éditions de Minuit, 1980., suas transformações, suas deformações, suas ablações (todas suas variações) formam figuras problemáticas. Estas, ao contrário, são caracterizadas por Deleuze e Guattari (1980)DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mille Plateaux: capitalisme et Schizophrénie 2. Paris: Les Éditions de Minuit, 1980. como “essências morfológicas” ou “essências vagas”. Elas se distinguem das essências ideais que clamam pela conservação de um “em si mesma” homogeneizado e universalizado, pois elas são as singularidades-acontecimentos, problemática e problematizante15 15 Segundo Deleuze (1969, p. 69) “[…] o acontecimento por si mesmo é problemático e problematizante”. .
Esta noção deleuzo-guattarianiana das figuras problemáticas enquanto “essências vagas” é muito importante para o que é proposto neste artigo quando se anuncia a questão: que pode o trabalho de campo? Em primeiro caso, como já mencionado, porque se trata de ocupar-se do campo como acontecimento (instalar-se nele como num devir) para, então, operar com algo que se passa no campo. Por isto, ao perguntar que pode? diferentemente do o que é? pergunta-se pela potência, por um que aquilo suporta: suas transformações, metamorfoses, ablações, enfim, pelas potências de um devir16 16 Para Deleuze e Guattari, essas figuras problemáticas, essas morfologias e/ou essências vagas caracterizam os “vagabundos”, os nômades” [vide: Deleuze e Guattari (1980, p. 453)]. Ora, se elas são da ordem do nomos e não do logos, como afirmam os autores, é porque o nômade existe apenas em devir e em interatividade [vide: Deleuze e Guattari (1980, p. 537)]. . Em segundo caso, ao assumi-lo desta maneira, assume-se que ele é, em sua potência de comunicação, problemático e problematizante.
Por fim, ressalta-se ainda que essas figuras problemáticas, como afirmam Deleuze e Guattari (1980DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mille Plateaux: capitalisme et Schizophrénie 2. Paris: Les Éditions de Minuit, 1980., p. 454), “[…] emanam das coisas uma determinação que é mais do que coisidade, que é a da corporeidade, e que talvez até implique um espírito dos corpos”. É nessa corporeidade que os movimentos deste artigo se (inter)-conectam, ou seja, enquanto possibilidade de inventar um corpo entre pesquisa e campo. Portanto, perguntar que pode um trabalho de campo na/para/com Etnomatemática? significa, assim, perguntar que pode um corpo? e que pode um campo?
Em síntese, se essas figuras problemáticas, presentes no Traité de nomadologie: la machine de guerre de Gilles Deleuze e Felix Guattari, dizem respeito a corporeidades (ou talvez a um “espírito dos corpos”) é porque, “enquanto o teorema é da ordem das razões, o problema é afectivo e inseparável das metamorfoses, gerações e criações na própria ciência” (DELEUZE; GUATTARI, 1980DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mille Plateaux: capitalisme et Schizophrénie 2. Paris: Les Éditions de Minuit, 1980., p. 448, destaque do autor). Sua inseparabilidade das metamorfoses corresponde às potências do devir. Sua afectividade corresponde às potências de um corpo que não se reduz ao organismo. Estas duas correspondências não cessam de se (inter)-conectarem.
É junto a essas singularidades-acontecimentos, concebidas como um campo problemático e problematizante, que este artigo compõe a possibilidade de uma pesquisa afecção sob a seguinte suspeita: o trabalho de campo na/para/com Etnomatemática possibilita a criação de um corpo que é potência de afetar e ser afetado.
2 Corpo e campo como potências do devir…
2.1 Pesquisa (ENTRE) campo
Um campo é um plano de composição. Ele não preexiste ao pesquisador e nem o inverso. Eles são inventados ao mesmo tempo, são contemporâneos. No processo dessa realização, as linhas de forças que compõem um e outro deslizam-se um no outro; linhas que compõem o campo e linhas que compõem o pesquisador. Os mundos vão se desmanchando e outros vão se fazendo, trata-se de um processo de invenção. Essas linhas estranham-se, conectam-se, amarram-se, atritam-se… criando para si um corpo que mistura as singularidades que compõem o pesquisador e o campo. Segundo Deleuze (1981DELEUZE, G. Spinoza: philosophie pratique. Paris: Les Éditions de Minuit, 1981., p. 171), esse corpo “[…] pode ser qualquer coisa, pode ser um animal, pode ser um corpo sonoro, pode ser uma alma ou uma ideia, pode ser um corpus linguístico, pode ser um corpo social, uma coletividade”.
Nesta perspectiva, ao entender o campo como um plano de composição onde ele e o pesquisador são contemporâneos, não existe falar a respeito, dar voz, reconhecer determinadas práticas culturais etc. Estas coisas se tornam secundárias ou até mesmo improváveis, pois o que interessa está na ordem do sentido, ou do sensível, melhor, está na relação campo e pesquisador, constituída no encontro.
O encontro entre campo e pesquisador constitui-se em um comum que não significa, de modo algum, um lugar onde todas as coisas convergem, confluem, concordam: um lugar de paz. Não é também um lugar de completa divergência, discordância: um lugar de guerra. Não se trata nem de guerra e nem de paz, não é binário. Sua luta não é esta, mas a de uma vida, pois ela é assumida como essência primeira e última, pura imanência. É ela que faz vibrar o plano do sensível, dilatando as linhas duras da identidade e revelando um “ser do sensível” no campo, ao mesmo tempo em que este se apresenta como experiência17 17 Para Deleuze (1968), evocar um “être du sensible” (ser do sensível) significa dizer que a identidade não é mais conservada, pois “[…] é a diferença na intensidade […] que constitui o ser do sensível” (DELEUZE, 1968, p. 305), e a experiência, que ora era assumida como experiência possível, transforma-se em experiência real. Isso porque, segundo o autor, “[…] os dois sentidos da Estética se confundem a tal ponto que o ser do sensível se revela na obra de arte, ao mesmo tempo em que a obra de arte aparece como uma experiência” (DELEUZE, 1968, p. 94). Ora, se para Deleuze (1968, p. 182, destaque do autor) “[…] existe alguma coisa no mundo que força a pensar” é porque o ser do sensível é movido por esta “alguma coisa” que, em suas palavras, “[…] é objeto de um encontro fundamental e não de uma recognição” (DELEUZE, 1968, p. 182). Esta “alguma coisa”, “[…] objeto de um encontro”, “não é uma qualidade, mas um signo” (DELEUZE, 1968, p. 182, destaque do autor), aquilo que faz sinal, como o acontecimento que “[…] se efetua em nós, nos espera e nos faz sinal” (DELEUZE, 1968, p. 174, destaque do autor). . Não se trata sequer de alteridade, haja vista que tudo isso compõe as figuras teoremáticas. Por outro lado, o que se propõe é operar com figuras problemáticas, ou seja, escapar das formas e dos sujeitos, ocupando-se do campo como acontecimento, instalando-se nele como num devir, na imanência de uma vida.
Trata-se de assumir uma plasticidade do ato18 18 Deleuze (1981) compreende o ato como uma potência de afetar e ser afetado; este poder efetua as afecções de sua potência. Segundo ele: “[…] toda potência é ato, ativo, e em ato. A identidade da potência e do ato se explica da seguinte maneira: toda potência é inseparável de um poder de ser afetado, e este poder de ser afetado é constante e necessariamente preenchido pelas afecções que o efetuam” (DELEUZE, 1981, p. 134). , de pesquisar e entendê-lo como possibilidade para a experimentação de mundos ainda por vir. Mundos que ainda não se fizeram, que não estão lá nas categorias como pré-existentes. Mundos tateantes. Trata-se de deixar “[…] o método, a explicação e a interpretação desamparados” (FONSECA; NASCIMENTO; MARACHIN, 2015FONSECA, T. M. G.; NASCIMENTO, M. L.; MARACHIN, C. (org.). Pesquisar na diferença: um abecedário. Porto Alegre: Sulina, 2015., p. 101), lançando-os ao acaso do espaço e à eventualidade do tempo. Abandonar a dicotomia, a polaridade, o binarismo, e assumir a conjunção e… e… e…, pois “[…] não se está buscando algo já dado, deseja-se exatamente o que está sendo inventado” (FONSECA; NASCIMENTO; MARACHIN, 2015FONSECA, T. M. G.; NASCIMENTO, M. L.; MARACHIN, C. (org.). Pesquisar na diferença: um abecedário. Porto Alegre: Sulina, 2015., p. 102).
Deixar o método, a explicação e a interpretação desamparados não significa negá-los, mas tirá-los o chão. O fundo da significação. Duvidar de suas certezas teóricas. Colocá-las em xeque(-mate). Sacudi-las a ponto de não restar nenhum significante, deixando apenas uma pele plástica e sensível para que possa se movimentar junto às individuações que se engendram em um campo de pesquisa.
Para isto, é necessário, inicialmente, reconquistar o corpo, melhor, como diria Deleuze e Guattari (1980)DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mille Plateaux: capitalisme et Schizophrénie 2. Paris: Les Éditions de Minuit, 1980., criar para si um corpo. Um corpo que seja lugar do sensível na medida em que ele vibra junto às intensidades, às linhas de forças que ocupam aquele campo de pesquisa. Esse corpo, sim, seria a maior topia, como diz Foucault (2013)FOUCAULT, M. O corpo utópico: As heterotopias. Tradução de Salma Tannus Muchail. São Paulo: n-1 edições, 2013.. Ele “[…] é o que jamais se encontra sob outro céu, lugar absoluto, pequeno fragmento de espaço com o qual, no sentido estrito, faço corpo” (FOUCAULT, 2013FOUCAULT, M. O corpo utópico: As heterotopias. Tradução de Salma Tannus Muchail. São Paulo: n-1 edições, 2013., p. 7). Sua materialidade é também sua espiritualidade. Sua transcendência é também sua imanência. Segundo Deleuze (1977DELEUZE, G. Anti-Œdipe et Mille Plateaux. Cours du 15/02/1977. 1977. Disponível em: https://www.webdeleuze.com/textes/181. Acesso em: 20 jun. 2017.
https://www.webdeleuze.com/textes/181...
, 1981DELEUZE, G. Spinoza: philosophie pratique. Paris: Les Éditions de Minuit, 1981.), a potência desse corpo é expressa por uma geografia, ou seja, por suas longitudes e latitudes19
19
Para Deleuze (1977, 1981), a longitude de um corpo (ou um plano de composição) é definida pelas relações de repouso e movimento, de velocidades e lentidões. A latitude, determinada em função das longitudes, é um conjunto de afetos que preenchem um corpo, uma força clandestina, e que determina sua potência de afetar e de ser afetado.
.
Portanto, o encontro entre campo e pesquisador é a possibilidade de invenção de um corpo. É a possibilidade de uma cartografia a partir de suas latitudes (velocidades, lentidões, movimentos, repousos etc.) e longitudes (conjuntos de afetos que completam a potência de um corpo, poder de ser afetado). Esse corpo não seria nem forma, nem sujeito, apenas intensidades puras de experiências singulares ou, como diria Rolnik (2014)ROLNIK, S. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. 2. ed. Porto Alegre: Sulina, 2014., ponte de linguagem para afetos que pedem passagem. Seria, então, a expressão de um gesto do aprender que se dá no aqui e agora (GONDIM; MIARKA, 2018GONDIM, D. M.; MIARKA, R. Pensar com corpo como pensar com espaço: aforismos imagéticos que afirmam um aprender por trilhas. Educação Matemática e Revista, v. 23, p. 169–183, 2018., 2019GONDIM, D. M.; MIARKA, R. Uma comunidade dos cantos: notas de uma experiência em campo como expressão de uma educação (matemática) dos sentidos. HISTEMAT - Revista de História da Educação Matemática, São Paulo, v. 5, n. 2, p. 100–111, 2019.). Um aprender coetâneo à experimentação dos blocos de individuação. Um aprender que não seja recognição, mas pura invenção de um saber-com, um saber da relação entre os estados de longitudes e latitudes.
Spinoza (2017)SPINOZA, B. Ética. Tradução de Tomaz Tadeu. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017., em vez de perguntar o que é um corpo? pergunta o que pode um corpo? para fundar sua ciência dos afetos (CHAUÍ, 2016CHAUÍ, M. A nervura do real: imanência e liberdade em Espinoza. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.). Para o filósofo, é a potência (potentia), em vez do poder (potestas), que define um corpo, sendo ele positividade, ser e pura afirmação. Segundo Deleuze (1981)DELEUZE, G. Spinoza: philosophie pratique. Paris: Les Éditions de Minuit, 1981., Spinoza define um corpo qualquer de duas maneiras, quais sejam: cinética e dinâmica. Na primeira, compreende-o como uma multiplicidade de relações de repouso e movimento, de velocidades e de lentidões (longitudes); na segunda, compreende-o em sua potência de afetar e de ser afetado por outros corpos (latitudes).
Neste artigo, defende-se que ir a campo é constituir um corpo no meio destas duas proposições. Um corpo entre20
20
Segundo Deleuze e Guattari (1980, p. 37), “Entre as coisas não designa uma correlação localizável que vai de uma para outra e reciprocamente, mas uma direção perpendicular, um movimento transversal que as carrega uma e outra, riacho sem início nem fim, que rói suas duas margens e adquire velocidade no meio”.
cinética e dinâmica, entre latitudes e longitudes. Neste, a atitude que movimenta sua ação busca criar pontes de linguagens para afetos que pedem passagem. Trata-se de rasgar os organismos do corpo expressando sua molecularidade. Criar um plano comum de imanência das afecções enquanto imagens ou marcas corporais (DELEUZE, 1981DELEUZE, G. Spinoza: philosophie pratique. Paris: Les Éditions de Minuit, 1981.). Desse modo, o ato (ir a campo), enquanto potência ativa, é a constituição de um comum que determina o que, junto a Spinoza (2017)SPINOZA, B. Ética. Tradução de Tomaz Tadeu. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017., poderia ser chamado de corpo: potência de afetar e ser afetado. Um corpo que desliza entre latitudes e longitudes. Um corpo que, na direção de Deleuze (1977DELEUZE, G. Anti-Œdipe et Mille Plateaux. Cours du 15/02/1977. 1977. Disponível em: https://www.webdeleuze.com/textes/181. Acesso em: 20 jun. 2017.
https://www.webdeleuze.com/textes/181...
; 1981DELEUZE, G. Spinoza: philosophie pratique. Paris: Les Éditions de Minuit, 1981.), constitui o que Rolnik (2014)ROLNIK, S. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. 2. ed. Porto Alegre: Sulina, 2014., em sua cartografia sentimental, chamou de geografia dos afetos.
Nessa tentativa de inventar para si um corpo, pesquisador e campo se tornam inseparáveis. No entanto, isto não quer dizer que eles se confundem ou que se igualam, mas que se (des)dobram um no outro, traduzem-se um no outro, criando outros sentidos. Eles (se) multiplicam (em) sentidos, porque o acontecimento é o próprio sentido.
Desta maneira, já é possível traçar algumas linhas dessa geografia junto à questão: que pode o trabalho de campo na/para/com Etnomatemática? O trabalho de campo é uma possibilidade para inventar para si um corpo entre pesquisa e campo. Um corpo que desliza, em velocidades e lentidões, e rói estas duas margens criando movimentos compostos por uma ideia, uma prática, uma atitude e uma possibilidade. Ele se constitui língua para fazer passar os afetos distribuídos cartograficamente. Ele é composto por essências vagas, ablações e transformações. Ele é uma figura problemática e problematizante. Ele é pura invenção. Uma maneira de instalar-se no acontecimento como num devir.
É sob essa perspectiva filosófica-epistemológica-metodológica que se apoia a possibilidade de uma pesquisa afecção neste artigo. Uma vez que a suspeita parte da concepção de que o trabalho de campo possibilita a criação de um corpo que é potência de afetar e ser afetado, onde o que importa são os processos com os quais esse corpo é inventado. Assim, são as transformações que compõem a figura problemática e problematizante desse corpo que importam, suas “essências morfológicas”. O que se deseja afirmar é que este corpo só existe em devir.
Tendo isto em vista, serão apresentadas a seguir três figuras problemáticas (talvez “essências vagas” ou “espíritos dos corpos”) que expressam a criação de um corpo que só existe em devir e em comunicabilidade com outros. Para tanto, elas são caracterizadas neste artigo da seguinte maneira: devir-feiticeira; devir-mandira; e devir-infância. Na figura um, apresenta-se a experiência de campo de uma antropóloga francesa junto a uma comunidade de feitiçaria no Bocage, oeste da França. Nas figuras dois e três, apresenta-se uma experiência de campo realizada na Comunidade de Remanescentes Quilombolas do Mandira. Acredita-se que, junto a estas figuras, os quatro movimentos aqui anunciados (uma ideia; uma prática; uma atitude; e uma possibilidade) vão se compondo enquanto plano de consistência das questões e da suspeita apresentadas.
2.2 Figura 1: devir-feiticeira
Jeanne Favret-Saada, antropóloga francesa nascida na Tunísia, ao realizar uma pesquisa de campo entre os anos 1969 e 1972 em uma comunidade de feitiçaria no Bocage, apresenta, em seu livro Désorceler (FAVRET-SAADA, 2009FAVRET-SAADA, J. Désorceler. Paris: Éditions de l’Olivier, 2009.), uma prática antropológica-terapêutica baseada em um ocupar-se dos acontecimentos. A antropóloga cria para si um corpo entre pesquisa e campo afetado por expressões da feitiçaria. Ela apresenta um corpo enfeitiçado pelas práticas de encantamento do Bocage; povoado por velocidades e lentidões de uma potência de ser afetado. Ao instalar-se no meio, ela cria um corpo enfeitiçado por essas intensidades de instantes-já. Um corpo que só existe em devir.
A invenção desse corpo antropológico-terapêutico de Favret-Saada não se constitui a partir da observação de um objeto (campo) exterior a ela. Sequer pela descrição minuciosa que sua prática etnográfica poderia lhe oferecer21 21 Esta descrição pode ser acessada no livro de Jeanne Favret-Saada e José Contreras (1981), Corps pour corps. Enquête sur la sorcellerie dans le Bocage. Neste livro, os autores apresentam as notas de campo feitas por Favret-Saada, e serve como um grande material de estudo de campo para aqueles que se interessam pela sorcellerie. . A proposta que Favret-Saada (2009)FAVRET-SAADA, J. Désorceler. Paris: Éditions de l’Olivier, 2009. nos apresenta não está no campo da pesquisa participativa, nem da pesquisa-ação, mas do que aqui é denominado como pesquisa afecção22 22 Cabe ressaltar que alguns pesquisadores que trabalham com os referencias das filosofias contemporâneas, especialmente Gilles Deleuze, Felix Guattari, Michel Foucault, entre outros, irão chamar tal prática de pesquisa – que se funda em um “mergulho no plano da experiência” – de pesquisa intervenção. Vide: Passos e Barros (2010, p. 17-31). . Quer dizer, uma pesquisa que seja possibilidade para a criação de um corpo: potência de afetar e ser afetado; enfeitiçar e ser enfeitiçado.
Conceber o campo como um plano comum de imanência é entender que ele não é absoluto, não está pronto e nem determinado, mas se fazendo, ou seja, ele é um plano de composição. Jeanne não participa da feitiçaria como uma agente externa ou interna, operando com a dualidade etnográfica interno/externo (estar dentro ou estar fora)23 23 No âmbito da pesquisa em Etnomatemática, sugere-se aqui a prática “terapia-desconstrucionista” proposta por Tamayo-Osório (2017), na qual a autora problematiza essa dualidade (estar dentro e estar fora) junto a um trabalho de campo realizado em uma comunidade indígena na Colômbia. . Favret-Saada (1977FAVRET-SAADA, J. Les mots, la mort, les sorts. La sorcellerie dans le Bocage. Paris: Éditions Gallimard, 1977., p. 38) destaca:
De qualquer forma, em nenhum momento tive a possibilidade de escolher entre a subjetivação e o método objetivo como me ensinaram, se pelo menos eu quisesse tomar os meios para responder minha pergunta inicial (o que eles estão tentando moldar durante uma crise de bruxaria?). Em todo caso, trabalhar dessa forma me permitiu escapar a uma limitação que a etnografia objetivante encontra regularmente e que não é sublinhada, mas que parece evidente: refiro-me à sua dependência de um corpus finito de observações empíricas e textos nativos coletados no campo. A qualquer nova pergunta, esta etnografia responde se ela se encontra ou não no corpus, se ela se verifica ou não nos dados empíricos: ela não pode afirmar nada do que não encontra uma referência no corpus. Para mim, o fato de que os camponeses do Bocage me forçavam a produzir um certo número de declarações da mesma forma que eles (ou seja, a ser um codificador) me permitiu ir além dos limites de um corpus ou, o que equivale à mesma coisa, a incluir meu próprio discurso nele.
É neste movimento, onde não existe uma distância entre a pesquisadora e os nativos, bem como entre ela e si mesma, que sua “outra etnografia”, como a própria autora destaca, não deseja observar as práticas ali presentes e descrevê-las, ao contrário disso, ela se instala entre pesquisa e campo, e um corpo afetado pela feitiçaria é criado. O être affecté (ser afetado), como nomeia a antropóloga seu último capítulo em Désorceler, expressa a potência de um corpo inseparável das metamorfoses. É por isto que suas expressões são assumidas neste artigo como apresentação de um devir-feiticeira.
O devir-feiticeira em Favret-Saada (2009)FAVRET-SAADA, J. Désorceler. Paris: Éditions de l’Olivier, 2009. é compreendido aqui como uma figura problemática que inventa um corpo entre pesquisa e campo. Esta figura expressa transformações e ablações não apenas do campo, mas também da antropóloga – são estados de lentidões e de velocidades entre uma margem e outra. Ela é problemática na medida em que, como colocam Deleuze e Guattari (1980)DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mille Plateaux: capitalisme et Schizophrénie 2. Paris: Les Éditions de Minuit, 1980., não se ocupa das razões, mas das afecções: potência de afetar e ser afetada, enfeitiçar e ser enfeitiçada. Segundo a autora, “[…] quando se está em um tal lugar, é-se bombardeado com intensidades específicas (chamemo-las de afetos), que geralmente não são significáveis. Esse lugar e as intensidades que a ele são associadas devem, pois, ser experimentados: é a única forma de abordá-los” (FAVRET-SAADA, 2009FAVRET-SAADA, J. Désorceler. Paris: Éditions de l’Olivier, 2009., p. 156, destaque do autor). Assim, esse corpo, que só existe em devir-feitiçaria, é possibilidade de experimentação das intensidades que são distribuídas no plano comum de imanência da sorcellerie no Bocage.
De acordo com a leitura feita de Favret-Saada (2009)FAVRET-SAADA, J. Désorceler. Paris: Éditions de l’Olivier, 2009. neste artigo, ocupar/-se d/este entre não indica uma capacidade cognoscente do pesquisador (sujeito) de dizer sobre o campo (objeto), sequer de dá-lo voz, mas de constituir um corpo que é expressão dos devires, de sua potência de afetar e ser afetado, de um instalar-se no acontecimento como num devir. Trata-se de lançar-se às aberturas de mundos possíveis, experimentar suas linhas extensivas e intensivas, sair do logos, do éthos, precipitar-se na imanência de uma vida. No entanto, instalar-se nesse entre pesquisa e campo, enfeitiçar-se, é correr o risco de feiticeiro… Segundo Favret-Saada (2009FAVRET-SAADA, J. Désorceler. Paris: Éditions de l’Olivier, 2009., p. 158-159),
[…] quando um etnógrafo aceita ser afetado, isto não implica que ele se identifica com o ponto de vista nativo, nem que aproveita da experiência de campo para fazer cócegas em seu ego. Aceitar ser afetado; no entanto, supõe que se corra o risco de ver seu projeto de conhecimento desaparecer. Pois, se o projeto de conhecimento for onipresente, nada acontece. Mas se algo acontece e seu projeto de conhecimento não se perdeu em uma aventura, então uma etnografia é possível.
Há um desaparecimento de mundos engendrado em uma pesquisa afecção. O ato, que é inseparável de sua potência de afetar e ser afetado, envolve um desmanchamento das razões e das essências puras; a escrita desses mundos se faz a partir de apagamentos das certezas epistemológicas e metodológicas. Poderíamos dizer, junto a Manoel de Barros (2016)BARROS, M. O livro das ignorãnças. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2016., que para apalpar essas intimidades dos mundos (suas transformações, ablações, essências vagas… potências do devir) é necessário que o pesquisador se envolva em um processo de desaprendizado, 8 horas por dia. De outra maneira, trata-se de criar tatos sensíveis às intensidades que circulam no plano de composição, ou seja, significa criar para si um corpo que seja ele pura intensidade e extensão das longitudes e latitudes.
Sem reduzir à generalidade, pesquisas acadêmicas que incluem o trabalho de campo envolvem horas e mais horas de dedicação à construção das metodologias e dos procedimentos metodológicos. Os pesquisadores vivem entre a tensão do saber e do não-saber. Saber o que se quer com a pesquisa (já delimitada nos objetivos, nos questionamentos, nos métodos etc.) e não saber o que exatamente os espera em campo – onde não é possível alcance dos “bisturis” epistemológicos que buscam dissecar um corpo como o fazem em um necrotério. Pergunta-se: O que usar? O que fazer? Entrevistas?! Questionários?! Filmagens?! Observação?! Participação?! Intervenção?! Etnografia?! Cartografia?! Pesquisa-ação?! Descrição?! Diário de campo?! Etc. Etc. Etc.
Ao propor uma pesquisa afecção, pretende-se um escapar destas questões e assumir o entre pesquisa e campo como expressão de essências vagas: figuras do devir. Dito de outro modo, trata-se de criar um corpo neste entre que seja uma topia (spatium), e não um éthos ou logos. Um corpo que seja a expressão de um instalar-se no acontecimento como num devir.
O que se propõe neste artigo é o desafio de criar para si um corpo, de assumi-lo como potência de individuações fora da forma e do sujeito. “Eu preciso ter um corpo, é uma necessidade moral, uma exigência. E, em primeiro lugar, tenho que ter um corpo porque há obscuridade em mim” (DELEUZE, 1988DELEUZE, G. Le pli. Leibniz et le baroque. Paris: Les Éditions de Minuit, 1988., p. 113). Um corpo que existe em sua potência. Propõe-se, assim, uma postura filosófica-epistemológica-metodológica que assuma o lugar do corpo (suas velocidades, lentidões, movimentos, repousos etc.: longitudes) e o corpo como lugar (sua potência de afetar e ser afetado: latitudes). Dessa maneira, o entre pesquisa e campo é compreendido inseparavelmente de sua potência afectiva (afecções do corpo (SPINOZA, 2017SPINOZA, B. Ética. Tradução de Tomaz Tadeu. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017.)). Ele é assumido como uma superfície tópica, e não utópica.
Tendo em vista que em Favret-Saada (2009)FAVRET-SAADA, J. Désorceler. Paris: Éditions de l’Olivier, 2009. é apresentado um despencar neste entre pesquisa e campo, é importante destacar que o corpo inventado nesse lugar expressa um aprender genético aos seus devires. Um aprender contemporâneo à afecção. Um aprender que não está firmado no Eu cognitivo, mas na emergência das figuras problemáticas. Um aprender que acontece ao mesmo tempo em que o campo se apresenta como experimentação. No caso de Favret-Saada (2009)FAVRET-SAADA, J. Désorceler. Paris: Éditions de l’Olivier, 2009., trata-se de um aprender de feiticeira. Ela é embruxada pela feitiçaria, e o aprender se expressa em gestos que fazem comunicar (os) afetos. Em um exemplo, ela diz:
[…] digo a um camponês, ecoando algo que ele me disse: ‘Então, eu sonhei que…”, e seria difícil comentar sobre este ‘então’. Ou, meu interlocutor comenta, sem estabelecer uma ligação: ‘Outro dia, fulano lhe disse que… Hoje, você está com essas espinhas no rosto…’. O que é dito aí, implicitamente, é a afirmação de que sou afetada (FAVRET-SAADA, 2009FAVRET-SAADA, J. Désorceler. Paris: Éditions de l’Olivier, 2009., p. 157).
Ao tratar de suas “angústias” em campo, dos limites dos recursos metodológicos, a antropóloga revela:
Uma das situações que eu estava vivendo em campo era quase inenarrável: era tão complexa que desafiava a rememoração e, de qualquer forma, afetava-me demais. Estas sessões de desenfeitiçamento que participei, seja como enfeitiçada (minha vida pessoal estava passando por um crivo e fui instada a modificá-la), seja como testemunha dos clientes, mas também da terapeuta (era constantemente instada a intervir instantaneamente). Nos primeiros dias, eu fazia muitas notas quando chegava em casa, mas era mais para acalmar a angústia de ter me engajado pessoalmente. Uma vez que eu aceitei ocupar o lugar designado para mim nas sessões, quase nunca mais tomei notas: tudo se passava muito rápido, deixei as situações acontecerem sem fazer perguntas e, da primeira sessão até a última, não entendi quase nada do que estava acontecendo. Mas eu registrei discretamente cerca de trinta sessões, das aproximadamente duzentas que participei, para constituir um material sobre o qual eu poderia trabalhar mais tarde (FAVRET-SAADA, 2009FAVRET-SAADA, J. Désorceler. Paris: Éditions de l’Olivier, 2009., p. 157).
Nesse plano comum de imanência, é inventada essa linguagem possível de comunicação que não está escrita na palavra, mas nos sentidos, nos silêncios, nos apagamentos, na corporeidade. Ou, como diria a autora, não está no saber da feitiçaria, mas em seu poder enquanto potência de afetar (FAVRET-SAADA, 1977FAVRET-SAADA, J. Les mots, la mort, les sorts. La sorcellerie dans le Bocage. Paris: Éditions Gallimard, 1977.). Trata-se de uma comunicação sem significado e involuntária, em que se assume o lugar de ser afetado, de ocupar um “lugar da afecção”, sendo que o que importa não é a comunicação de uma informação, mas o desdobramento de uma força em outra. Segundo Deleuze (1981DELEUZE, G. Spinoza: philosophie pratique. Paris: Les Éditions de Minuit, 1981., p. 172), neste plano de composição (ou imanência):
[…] não há mais forma, mas apenas relações de velocidade entre partículas ínfimas de uma matéria não formada. Não há mais um sujeito, apenas estados afectivos individuantes da força anônima. Aqui, o plano só retém movimentos e repousos, cargas emocionais dinâmicas: o plano será percebido com o que ele nos faz perceber, e à medida que avançamos.
Na leitura aqui apresentada, o que Favret-Saada exprime em Désorceler opera em uma lógica do sentido em que o plano só é percebido por aquilo que ele a faz perceber, à medida que ela avança na ordem afectiva da corporeidade. Ela vai nutrindo o corpo entre pesquisa e campo com estas “essências vagas” que são os gestos da feitiçaria. É este nutrimento que permite, aqui, junto a Oswald de Andrade (1928)ANDRADE, O. Manifesto Antropófago. Revista de Antropofagia, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 3–7, 1928., a sustentação de uma prática antropofágica: Abaporu, gente que come gente. Nesta prática, a vida não é sustentada por seus valores, mas por seus estados de expressão, expansão e intensidade; “tudo se passava muito rápido”, afirma a antropóloga.
Se a prática antropológica-terapêutica de Favret-Saada aqui é assumida como uma prática antropofágica, é porque, como coloca Japy-Mirim (2014JAPY-MIRIM. Of Anthropophagy. In: MARQUES, P. N. (org.). The Forest and the School. Berlin: Archives Books, 2014. p. 122–124.) em seu texto Of Anthropophagy, a antropofagia oferece o sentido da vida, a transformação do Tabu em Totem24 24 Para uma análise sobre a temática da antropofagia, sugere-se a leitura de Nodari (2014). Nesta obra, estão incluídos diversos estudos que incluem análises que interconectam estudos da antropologia, psicanálise, filosofia, entre outras. No capítulo citado acima, Japy-Mirim (2014, p. 122) propõe uma rápida entrada do que poderia ser compreendido por uma transformação do tabu em totem na perspectiva de uma cultura antropofágica, ou seja, um manifesto que busca “igualdade política. Igualdade econômica. O império, o feudalismo, a abolição de privilégios, a produção como objetivo final”. . No próximo tópico, serão apresentados duas figuras problemáticas, denominadas devir-mandira e devir-infância, nas quais se assume o sentido da vida e a experiência de campo realizada em uma comunidade quilombola como sendo um exercício de expressão de algo que se passa no campo: um aprender de Mandira e de criança.
2.3 Figura dois e três: devir-mandira e devir-infância25 25 Nesta seção será utilizada a primeira pessoa do singular por se tratar de uma análise da experiência de campo do autor. Entende-se que a escolha pela primeira pessoa do singular, neste caso, possibilita uma aproximação do leitor com a narrativa. Cabe ressaltar, no entanto, que, neste caso, a primeira pessoa do singular é composta por uma multiplicidade de outros que a compõe enquanto singularidade. Estes “outros” são tanto humanos quanto inumanos, os moradores da comunidade, os espaços, a natureza, enfim, o que compõe as singularidades-campo em comunicabilidade.
Em 2015, iniciei uma aproximação com a Comunidade de Remanescentes Quilombolas do Mandira com intuito de lá realizar uma pesquisa de campo em um período mínimo de um semestre. Esta aproximação foi realizada, inicialmente, via página do Facebook26 26 Vide: https://www.facebook.com/QuilomboDoMandira/ da comunidade à qual apresentei o interesse de campo. Eles me solicitaram o projeto de pesquisa para que fosse avaliado em reunião da associação de moradores do Mandira e, após isso, compartilharam o número pessoal de um dos moradores que viria a ser meu interlocutor até a ida a campo. Durante seis meses, trocamos diversas mensagens e ligações para tratar de questões técnicas em relação ao período de campo, como quanto tempo eu ficaria na comunidade, no que eu tinha interesse de participar, onde eu ficaria hospedado, entre outras questões.
A proposta, então, era permanecer no quilombo durante o período de julho a dezembro de 2016, sem sair da comunidade. Cabe ressaltar, porém, que após este período – dado que a pesquisa continua até então – outras imersões foram planejadas nos anos de 2018, 2019 e 2020. No entanto, estas não foram contínuas como a primeira em 2016, mas mais pontuais, ou seja, com propostas mais diretas no que diz respeito à pesquisa. Por exemplo, em 2018, realizei uma imersão de uma semana, pernoitando na comunidade, para a realização de um documentário da Festa de Santo Antônio27 27 Geralmente, esta festa é realizada no mês de junho na comunidade e tem uma periodicidade anual. Em linhas gerais, trata-se de uma festa em louvor a Santo Antônio, Padroeiro da comunidade em questão. . Em 2019 e 2020, foram realizadas também outras diversas imersões desta mesma forma, que tinham como objetivo a produção de curtas-metragens das práticas culturais da comunidade.
**
Quando fui realizar meu período de campo na comunidade quilombola do Mandira, muni-me das mais diversas ferramentas de pesquisa. Levei gravadores, cadernos de campo, câmeras etc. Durante um período curto, ficava atento a tudo que parecia acontecer, cada movimento, cada fala; fazia diversas anotações em meu caderno de campo. Eu estava acometido pela ilusão de que poderia compreender a produção das práticas culturais entre as categorias de legitimação identitária do Estado fazendo uso desses instrumentos28 28 As categorias utilizadas para reconhecimento de uma comunidade tradicional, de acordo com o Decreto n° 3.551, de 04 de agosto de 2000 são: Saberes; Celebrações; Formas de Expressão; e Lugares. Além destes, o decreto possibilita que outras categorias sejam abertas. Para uma problematização deste documento, veja Gondim (2018). . Em virtude disso, durante o primeiro período contínuo em 2016, realizei em torno de 25 entrevistas com os pertencentes à comunidade quilombola em questão. Estas entrevistas desdobraram muitas horas de conversa com os mandiranos29 29 Expressão utilizada por eles ao se referirem aos integrantes da comunidade. , contatos, brincadeiras, e expressões que, por maior que fosse minha destreza na transcrição, são inenarráveis, pois se inscrevem no sensível.
No entanto, é preciso informar que essas conversas foram realizadas como expressão da minha angústia por pensar que não tinha um material que eu pudesse trabalhar na escrita da dissertação. O que me escapava era que a ida ao jogo de futebol significava a reserva de uma vaga no carro para mim (os jogos de sinuca constituíam uma relação de espera pela minha presença no final do futebol); que a ida ao mangue esperava a minha presença na ajuda com o trabalho com as ostras; que a limpeza do mangue me esperava como um alguém que era parte da equipe; que a comunicação havia se reconfigurado não apenas na ordem do sentido, mas também do sentimento de amizade que estava sendo inventado. Eu já não era o pesquisador da UNESP que chegara no início, mas o mineirinho. Já havia um devir engendrado, chamemo-lo de: devir-mandira.
Quando me livrei dos bisturis do necrotério, do desejo de dissecar uma cultura como quem disseca um corpo morto, tive a experiência de ser afetado, enfeitiçado. Estava sendo criado um corpo entre pesquisa e campo que não era nem um e nem outro. Este corpo era a possibilidade de deslizar-se entre um e outro. Junto aos mandiranos, instalei-me entre terra e mar: tornei-me aprendiz de mandira. A fronteira para a invenção desse corpo é o porto da maré30 30 Lugar onde os mandiranos deixam seus barcos, tanto quando vão para o mangue trabalhar com as ostras quanto quando chegam do trabalho. . Os mandiranos também criam para si um corpo nesse entre terra e mar: um corpo-mangue. Esse corpo não é nem terra e nem mar, mas um deslize no entre estas duas coisas. Ele é movediço e engole as duas margens. Ele determina latitudes e longitudes do Mandira: uma cartografia.
A invenção desse corpo poderia ser cartografada de diversos modos, muitos que eu até desconheço e que fogem à minha percepção. Como prática, passei horas selecionando ostras, quebrando, extraindo, lavando… Atolei-me na lama do mangue, experimentei sentir o movimento das águas errando a remada, até que aprender a dar direção à canoa fosse algo imediato e emergente. O nativo entrou para dentro do mangue e disse:
Mineirinho, vira o barco para mim e me espera naquela outra ponta do mangue.
(Diálogo entre o pesquisador e o nativo, 2016).
Neste momento, ele sumiu mangue adentro. Com a água, o remo, a canoa, o movimento, e mais sabe-se lá o que era necessário para virar aquela canoa, eu estava perdido em uma superfície onde era necessário um aprender. Um aprender que, em suas palavras, está na palma das mãos.
Conheço isto aqui como a palma das minhas mãos.
(Diálogo entre o pesquisador e o nativo, 2016).
Que seria um “conhecer” na palma das mãos? Eu só queria conseguir virar o barco, percorrer o percurso na ilha e esperá-lo na outra ponta do mangue. Claro, era preciso usar as mãos… era preciso tirar o conhecimento da cabeça e colocá-lo nas mãos. Fazer o remo remar, dar direção à canoa. Inocente pesquisador, com um conhecimento na cabeça, não sabe usar as mãos.
Perguntei a um dos nativos:
Como você aprendeu a estar no mangue?
Ele respondeu:
Não sei…
Insisti na pergunta e a fiz novamente:
Mas como não sabe?
Ele disse:
Um dia, quando criança, estava aqui com meu pai e aprendi, andando no mangue.
(Diálogo entre o pesquisador e o nativo, 2016).
Um aprendiz de Mandira não requer “informação”, mas um “estar” no mangue, andando… aprendendo, ao mesmo tempo. Esse processo não é apenas para alguém que está fora da comunidade, como era meu caso, mas levado rigorosamente por eles mesmos. Eles afirmam: “aprendi, andando no mangue”. Esta figura se repete em diversas de suas práticas, como, por exemplo, quando tratam da prática da caça. Eles dizem: “a gente vê o rastro dele [do bicho], vai achando o carreiro e aí deixa a isca. A gente vai andando no mato e vai aprendendo onde cada bicho fica” (ANDRADE; TATTO, 2013ANDRADE, A. M.; TATTO, N. Inventário Cultural de Quilombos do Vale do Ribeira. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2013., p. 166).
O conhecer da (e na) mata e do (e no) mangue que vai se inscrevendo na “palma das mãos” não precede o andar no mato, o seguir o rastro do bicho e ir achando seu carreiro para deixar a isca. Pelo contrário, ele se dá junto, “a gente vai andando no mato e aprendendo onde cada bicho fica”.
Enquanto pesquisador ou mineirinho, fui criando modos de andar no mato e aprendendo ao mesmo tempo. Inscrevendo nas palmas das mãos algo que se dá andando e aprendendo. É um processo lento e duradouro, pois não clama por antecedentes, mas por algo que nomeei na pesquisa de experiência no (e do) espaço.
Não se pode negar a importância dos diversos procedimentos metodológicos e dos dispositivos de produção de dados (gravadores, câmeras, caderno de campo etc.) possíveis quando se vai a campo, eles podem nos servir como uma caixa de ferramentas31 31 Em uma conversa com Michel Foucault, publicada no livro Microfísica do Poder, Gilles Deleuze dirá que “uma teoria é como uma caixa de ferramentas. Não tem a ver com o significante… É preciso que sirva, é preciso que funcione. E não para si mesma. Se não há pessoas para utilizá-la, a começar pelo próprio teórico que deixa então de ser teórico, é que ela não vale nada ou que o momento ainda não chegou” (FOUCAULT, 2017, p. 132, destaque do autor). . No entanto, como coloca Favret-Saada (2009)FAVRET-SAADA, J. Désorceler. Paris: Éditions de l’Olivier, 2009., é necessário aceitar ser afetado e colocar-se no lugar que lhe é designado. Deixar que seu projeto de certezas se desmanche. Em meu caso, inscrever as trajetórias, um conhecimento, nas palmas das mãos, não se tornou apenas uma “metáfora” para dizer do quanto o corpo era impregnado de mangue, de mata, de maré, de terra, mas uma prática própria de registro do campo na falta do caderno que havia abandonado. Um exercício que, no final, configurava-se mais como uma prática do esquecimento do que da memória. Melhor, estava sendo inventada uma memória das mãos. O toque nas águas ou mesmo o uso de uma ferramenta para quebrar ostras desmanchavam minhas anotações, restando, apenas, um aprendiz de Mandira que se dava ali, no encontro mangue, maré, ostra…
**
Ao entregar um conjunto de câmeras às crianças da escola EMEIF “Sítio Mandira”, realizei uma oficina que, em linhas gerais, buscava fotografar a comunidade. As fotografias produzidas pelas crianças não se limitaram à representação do lugar, à narratividade do espaço ou à sua historicidade. Ao contrário disso, se apresentaram como uma possibilidade de abertura do “corpo para a passagem das cenas do mundo em sua proliferação de mensagens que assume assim o sentido de um registro” do instante (FONSECA; NASCIMENTO; MARACHIN, 2015FONSECA, T. M. G.; NASCIMENTO, M. L.; MARACHIN, C. (org.). Pesquisar na diferença: um abecedário. Porto Alegre: Sulina, 2015., p. 119).
As imagens produzidas pelas crianças me instalaram em um outro entre, um meio de puro fluxo contínuo e de intensidades imanentes, engendrando outro devir: chamemo-lo de devir-infância.
As crianças me apresentam, com suas afecções-imagens, um ocupar o Mandira como possibilidade de invenção de um corpo entre pesquisa e campo, de experimentar mundos ainda por vir, não-narrativos, não-históricos, assimétricos, não-hierárquicos… Elas me apresentam possibilidades para apalpar as intimidades do mundo em um exercício de desaprendimento. Nas afecções-imagens das crianças, o Mandira se expressa como possibilidade de encontros com um acaso e uma eventualidade, pois, como coloca Deleuze (1981DELEUZE, G. Spinoza: philosophie pratique. Paris: Les Éditions de Minuit, 1981., p. 69), essas imagens, que também podem ser entendidas como Ideia, “[…] formam certo estado (constitutio) do corpo e do espírito afetados […]. De um estado a outro, de uma imagem ou ideia à outra, há, portanto, transições, passagens vivenciadas, durações mediante as quais passamos para uma perfeição maior ou menor”.
Se por um lado, seja na fotografia ou nas entrevistas, os adultos nos apresentam um mundo narrativo, histórico, biográfico, significado, por outro, as crianças nos apresentam uma biografia larvar. A dissertação corria o risco do encantamento, pois meu corpo havia sido afetado por mundos larvares, mundos-vespas; enfim, fui tomado por um devir-infância que não deseja explicar, representar, apenas inventar mundos possíveis em um processo de experimentação completamente antropofágico. Desse modo, se Jeanne Favret-Saada (2009)FAVRET-SAADA, J. Désorceler. Paris: Éditions de l’Olivier, 2009. havia se tornado uma aprendiz de feiticeira em sua etnografia no Bocage, tornei-me aprendiz de criança em minha experiência no quilombo mandirano.
Com a câmera nas mãos, apresentando a comunidade, uma criança diz:
Rio, o rio que leva para a casa do meu amigo.
(Diálogo da criança com a câmera nas mãos, 2016).
Neste caso, o rio não era uma identidade histórica da comunidade, mas a possibilidade de chegar à casa do amigo. Com a câmera nas mãos, elas iam andando e aprendendo; elas encontravam uma flor bonita e diziam, “vamos lá…”. A câmera não filma rostos, apenas um “andando no mato e aprendendo” que, no encontro, apresenta uma flor bonita. Seu andando vai escrutando os cantos da comunidade, deslocando a narrativa histórica e permitindo que o espaço apresente suas próprias marcas32 32 Vide vídeo gravado pelas crianças entre 17m05 e 20min45: https://www.youtube.com/watch?v=btzhuadrm28. .
Entrar em um devir-infância, neste caso, demandava experimentar a comunidade por suas bordas, por seus cantos. Não era o mesmo que ir à Casa de Pedra e escutar as informações históricas que os moradores tinham a apresentar, mas experienciar suas larvas, seus restos, suas marcas próprias. Aquelas que não foram escritas na história, mas que são apresentadas no andando no mato e aprendendo. Aquelas que vão sendo escritas nas palmas das mãos para se configurar em um conhecimento que se deu num processo de apalpamento das intimidades dos mundos. Isto porque este devir é sempre experienciativo. Está sempre na ordem dos sentidos, dos sensíveis. É inventar para si um corpo sensível que vibre junto aos tons dos mundos. É inventar um amanhecer. Renovar o mundo com borboletas. É assumir o corpo como um laboratório. É experimentar sua potência de afetar e de ser afetado, de ser enfeitiçado, de inventar outras comunicações. Trata-se de produzir uma corpografia que não é da ordem do logos (corpologia) e do éthos (etologia), mas do pathos (uma patografia). É lançar-se às aberturas dos mundos e assumir uma linha clandestina. Trata-se, assim, de assumir a fronteira não como lugar que separa o eu do outro, mas como um precipício que engole essas dualidades no meio, e compõe um corpo andando no mato e aprendendo.
Um outro exemplo dessa figura problemática que é o devir-infância é a experiência com a maré. Enquanto para mim se tratava de um estranhamento completo pegar o remo e dar direção à canoa, as crianças, desde a infância, inventam uma maneira de remar no mar em terra. Elas saíam aos cantos da comunidade gritando com seus amigos e dizendo:
Vamos brincar de maré!
(Notas de campo do pesquisador, 2016).
Neste brincar, as crianças mandiranas realizavam um processo que poderia ser chamado de iniciação à maré. Às vezes com a canoa que já não mareia, outras com uma canoa imaginária. Elas se sentavam na canoa em grupo de dois ou três, como geralmente trabalhavam os adultos. Com um pau nas mãos (que devém remo naquele momento), elas remavam em terra firme. Por vezes, movimentam o corpo como quem está na maré (e estavam). Sentiam abalos da água… Elas traziam toda a lógica do mar para a terra. Fabulavam o espaço. Inventavam um corpo entre terra e mar.
No meu caso, era necessário, então, envolver-me como aprendiz de criança. Criar um corpo que brinca de maré, que sente seus abalos movimentando o remo. Um corpo que iniciasse a maré em terra firme, inscrevendo nas mãos um estar na maré que, para além da fabulação, inicia um ir remando e aprendendo, um andando no mangue, brincando de maré.
3 Algumas considerações
Essas figuras problemáticas, que só existem em devir, são sustentadas pela ideia (imagens-afeções) de uma vida como imanência e potência absoluta; por uma prática antropofágica que sustenta essa vida em estado de expressão e expansão; e por uma atitude cartográfica que busca traçar movimentos latitudinais e longitudinais de um corpo que é pura potência de afetar e ser afetado. A partir da oportunidade de operar entre área (E) e movimento (e), uma suspeita emerge: o trabalho de campo na/para/com Etnomatemática é possibilidade de uma pesquisa afecção.
Ao assumir a potência das figuras problemáticas, sustentadas pelos três movimentos (ideia, prática e atitude), a possibilidade de uma pesquisa afecção vai se desdobrando em figuras que são potências do devir. Neste artigo, foram apresentadas três figuras de devir, quais sejam: devir-feiticeira, devir-mandira e devir-infância. Como defendido, essas figuras não clamam por serem definidas, racionalizadas, mas apenas cartografadas.
Essas potências do devir – que são também potências de um corpo criado entre pesquisa e campo – são operadas a partir de uma alteração da pergunta o que é o trabalho de campo? para que pode o trabalho de campo? Com isto, o trabalho de campo aqui não é compreendido como algo a ser definido, mas como um plano consistência ou de composição. Esses planos, como afirma Deleuze (1977DELEUZE, G. Anti-Œdipe et Mille Plateaux. Cours du 15/02/1977. 1977. Disponível em: https://www.webdeleuze.com/textes/181. Acesso em: 20 jun. 2017.
https://www.webdeleuze.com/textes/181...
, n.p), jamais preexistem,
ele[s] acontece[m] ao mesmo tempo em que um grupo de indivíduos ou individuações o[s] traça[m]. É um plano de imanência absoluta, mas essa imanência é precisamente imanente aos graus de velocidades e de lentidão, aos movimentos e repousos, aos poderes de ser afetado que o constroem de um lado para outro.
Se para Deleuze (1977DELEUZE, G. Anti-Œdipe et Mille Plateaux. Cours du 15/02/1977. 1977. Disponível em: https://www.webdeleuze.com/textes/181. Acesso em: 20 jun. 2017.
https://www.webdeleuze.com/textes/181...
; 1981DELEUZE, G. Spinoza: philosophie pratique. Paris: Les Éditions de Minuit, 1981.) um corpo e uma cartografia são feitos de linhas latitudinais e longitudinais, são eles também um plano de consistência ou de composição. Além disso, poderia ser inferido que, sendo os planos e a vida imanências absolutas, o corpo é uma vida. Assim, quando é perguntado que pode um trabalho de campo? é o mesmo que perguntar que pode uma vida? pois é ele, o trabalho de campo, assumido como uma vida.
No plano de consistência ou de composição, afirma Deleuze (1977)DELEUZE, G. Anti-Œdipe et Mille Plateaux. Cours du 15/02/1977. 1977. Disponível em: https://www.webdeleuze.com/textes/181. Acesso em: 20 jun. 2017.
https://www.webdeleuze.com/textes/181...
, não existe passado e nem futuro, apenas devir. Ele só existe em devir. É por isso que, neste artigo, defende-se a possibilidade de uma pesquisa afecção marcada por um tempo ainda-aqui-e-já-passado (encore-là-et-déjà-passé) e um ainda-porvir-e-já-presente (encore-à-venir-et-déjà-là). Planos de consistência e composição que não são povoados por sujeitos e nem por formas, mas por povoamentos, individuações, figuras problemáticas. Desse modo, defender uma pesquisa afecção na/para/com Etnomatemática trata-se de defender a possibilidade de invenção de um corpo entre pesquisa e campo, ou seja, uma pesquisa que seja ela a expressão dessas figuras problemáticas, dessas ablações, de potências do devir.
Nas figuras do devir aqui apresentadas, os corpos possuem uma individualidade de gesto da feitiçaria, de velocidades e lentidões dos corpos, da maré, da terra, da fabulação da maré em terra, de movimentos e repousos. Assim, foi apresentada uma prática de pesquisa que não se caracteriza por sua racionalidade, mas por seus afetos e por sua potência de afetar. Além disso, foi considerado que defender tal possibilidade, ou seja, de uma pesquisa afecção na/para/com Etnomatemática, é ocupar-se do campo como num devir, inventando um corpo entre pesquisa e campo ao mesmo tempo em que o campo se apresenta como experimentação.
Por fim, cabe considerar que, se aqui defende-se uma pesquisa afecção como possibilidade na/para/com Etnomatemática, é porque criar para si um corpo entre pesquisa e campo é uma questão de vida ou morte. É aí, nesse entre, onde tudo se decide (DELEUZE; GUATTARI, 1980DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mille Plateaux: capitalisme et Schizophrénie 2. Paris: Les Éditions de Minuit, 1980.).
-
1
Em linhas gerais, naquele pronunciamento Ubiratan D’Ambrosio defendeu que grupos sociais desenvolvem em sua cultura diversos modos de conhecer e explicar o mundo, por ele chamado de “modos próprios de matematizar”, de produzir etno-matemática. Uma das importantes questões que D’Ambrosio alça nesta exposição ao propor uma etno-matemática é a questão “qual matemática?” iremos tratar quando assumimos a sociedade em sua diversidade de linguagem, códigos, valores, hábitos etc. Portanto, é deste lugar “sociocultural” que o autor irá pensar este “elemento de composição” etno, entendido em suas palavras não apenas como raça, mas também como cultura (linguagem, códigos, símbolos, atitudes de valores etc.). Estas particularidades culturais, segundo ele, implicam “naturalmente” ciência e práticas matemáticas (para isto, veja: D’Ambrosio, 1986D’AMBROSIO, U. Socio-Cultural Bases for Mathematical Education. In: CARSS, M. (Org.). Proceedings of the Fifth International Congress on Mathematical Education. Boston, MA: Birkhäuser Boston, 1986. p. 1–6. Disponível em: <http://link.springer.com/10.1007/978-1-4757-4238-1_1>. Acesso em: 5 nov. 2020.
http://link.springer.com/10.1007/978-1-4... , p. 5). -
2
Este grupo foi criado pelos professores de Matemática Ubiratan D’Ambrosio, Gil Cuevas, Gloria Gilmer e Rick Scott.
-
3
Para acessar estas pesquisas de estado da arte da Etnomatemática, destaco alguns estudos que considero importantes, a saber: Paulus Gerdes, em 1997, realizou um “estado da arte” das pesquisas realizadas em Etnomatemática em todos os continentes. Este estudo foi apresentado no encontro anual American Association for the Advancement of Science com o título Survey of Current Work on Ethnomathematics (GERDES, 1997GERDES, P. Survey of current work on ethnomathematics. In: POWELL, A. B.; FRANKENSTEIN, M. (org.). Ethnomathematics: challenging eurocentrism in mathematics education. New York: State University of New York Press, 1997. p. 331-371.). No Brasil, Andréia Lunkes Conrado publicou um “estado da arte” intitulado como A pesquisa Brasileira em Etnomatemática: Desenvolvimento, Perspectivas, Desafios. Sua pesquisa objetivou mostrar os diversos estudos em Etnomatemática nas décadas de 1970 e 1980 (CONRADO, 2005CONRADO, A. L. A pesquisa brasileira em Etnomatemática: desenvolvimentos, perspectivas, desafios. 2005. 150 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade do Estado de São Paulo (USP), São Paulo, 2005.). Mais recentemente, temos a tese de Caroline Mendes dos Passos, intitulada como Condições de produção e legitimação da Etnomatemática. Esta tese, aliada à sociologia de Pierre Bourdieu, objetivou a produção de um mapa da pesquisa em Etnomatemática no Brasil e o estudo das condições de produção e de legitimação da área (PASSOS, 2017PASSOS, C. M. Condições de produção e legitimação da Etnomatemática. 2017. 225 f. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), São Carlos, 2017.).
-
4
Ao realçar a questão “qual matemática?”, levantada por Ubiratan D’Ambrosio (1984), percebe-se um interesse do autor em problematizar a Matemática. Neste caso, evidencio-a com inicial maiúscula dado que, nesta época, é o fato de a matemática grega ocupar um lugar de destaque social que o faz propor tal questão. Na problematização proposta por Vithal e Skovsmose (1997VITHAL, R.; SKOVSMOSE, O. The End of Innocence: A Critique of ‘Ethnomathematics’. Educational Studies in Mathematics, Bélgica, v. 34, p. 131–157, 1997. DOI: https://doi.org/10.1023/A:1002971922833.
https://doi.org/10.1023/A:1002971922833... ), por exemplo, os autores compreenderão a etnomatemática como uma resposta ao Eurocentrismo da história da matemática, da matemática em si, e da educação matemática, pois, segundo eles, a prática etnomatemática coloca em evidência as relações de poder entre e dentre grupos culturais. Em suas palavras, os “estudos etnomatemáticos têm demonstrado como isto tem sido feito entre o Eurocentrismo da matemática acadêmica e a matemática de grupos culturais identificáveis” (VITHAL; SKOVSMOSE, 1997VITHAL, R.; SKOVSMOSE, O. The End of Innocence: A Critique of ‘Ethnomathematics’. Educational Studies in Mathematics, Bélgica, v. 34, p. 131–157, 1997. DOI: https://doi.org/10.1023/A:1002971922833.
https://doi.org/10.1023/A:1002971922833... , p. 140). Desse modo, a pergunta “qual matemática?” é uma forma de afirmar que existem outras matemáticas expressadas no saber/fazer de diversas culturas. No entanto, a concepção de matemática não é homogênea dentro da área. Compreender este “fenômeno”, por exemplo, foi questão central da tese Etnomatemática: do ôntico ao ontológico, defendida por Roger Miarka. Ao tentar problematizar os modos como a etnomatemática se apresenta em sua região de inquérito, o autor buscou destacar quais concepções de matemática se mostravam presentes nas pesquisas em etnomatemática (MIARKA, 2011MIARKA, R. Etnomatemática: do ôntico ao ontológico. 2011. 427 f. Tese (Doutorado em Educação Matemática) – Universidade Estadual Paulista “Júlio Mesquita Filho” (UNESP), Rio Claro, 2011.). Para tanto, Miarka (2011)MIARKA, R. Etnomatemática: do ôntico ao ontológico. 2011. 427 f. Tese (Doutorado em Educação Matemática) – Universidade Estadual Paulista “Júlio Mesquita Filho” (UNESP), Rio Claro, 2011. selecionou cinco proeminentes pesquisadores, tendo como base os mais citados por brasileiros nas três edições da International Conference Ethnomathematics: Bill Barton, Eduardo Sebastiani Ferreira, Gelsa Knijnik, Paulus Gerdes e Ubiratan D’Ambrosio. Uma síntese da análise fenomenológica que Miarka (2011)MIARKA, R. Etnomatemática: do ôntico ao ontológico. 2011. 427 f. Tese (Doutorado em Educação Matemática) – Universidade Estadual Paulista “Júlio Mesquita Filho” (UNESP), Rio Claro, 2011. realizou com cada um destes pesquisadores foi publicada, junto à Maria Aparecida Viggiani Bicudo, sob o título Matemática e/na/ou Etnomatemática. Neste artigo, os autores consideram que “[…] há uma forte convergência para a ideia de que a matemática é uma ciência que tem sido construída por seres humanos, por meio de articulações entre diversas culturas, que se mostra em uma corrente que muitos chamam de ‘Matemática Acadêmica’ ou ‘Matemática Ocidental’, ainda em expansão” (MIARKA; BICUDO, 2012MIARKA, R.; BICUDO, M. A. V. Matemática e/na/ou Etnomatemática? Revista Latinoamericana de Etnomatemática, [s. l.], v. 5, n. 1, p. 149-158, feb. 2012. ISSN 2011-5474. Disponível em: https://www.revista.etnomatematica.org/index.php/RevLatEm/article/view/40. Acesso em: 09 jun. 2020.
https://www.revista.etnomatematica.org/i... , p. 152, destaque do autor). Por considerar esta ciência “ainda em expansão”, os modos de compreendê-la são notadamente diferenciados e sintetizados por Miarka e Bicudo (2012)MIARKA, R.; BICUDO, M. A. V. Matemática e/na/ou Etnomatemática? Revista Latinoamericana de Etnomatemática, [s. l.], v. 5, n. 1, p. 149-158, feb. 2012. ISSN 2011-5474. Disponível em: https://www.revista.etnomatematica.org/index.php/RevLatEm/article/view/40. Acesso em: 09 jun. 2020.
https://www.revista.etnomatematica.org/i... em três grandes modos, realçados por eles da seguinte maneira: “[…] ela pode ser encontrada na etnomatemática, no sentido de que a ‘Matemática Ocidental’ é interna à etnomatemática, tomada esta, por sua vez, como um campo mais amplo, o que pode ser percebido na pesquisa de D’Ambrosio e de Barton. Para Knijnik, a etnomatemática é uma alternativa para a matemática (ou), ao tomar as práticas dos grupos culturais como jogos de linguagem que podem ser relacionados por meio de semelhanças de família, sem um núcleo como base para essa constituição. Para um terceiro grupo, formado por Gerdes e Sebastiani Ferreira, a matemática é algo abraçado à etnomatemática (e), ao conceber a matemática como um núcleo sólido direcionador da prática do pesquisador desse campo” (MIARKA; BICUDO, 2012MIARKA, R.; BICUDO, M. A. V. Matemática e/na/ou Etnomatemática? Revista Latinoamericana de Etnomatemática, [s. l.], v. 5, n. 1, p. 149-158, feb. 2012. ISSN 2011-5474. Disponível em: https://www.revista.etnomatematica.org/index.php/RevLatEm/article/view/40. Acesso em: 09 jun. 2020.
https://www.revista.etnomatematica.org/i... , p. 156-157). -
5
De caráter mais amplo, aqui estão reunidos os trabalhos apresentados no 6° ICME. Além de expor os vínculos dos pesquisadores da Educação Matemática para a constituição da Etnomatemática, este texto traz também inúmeros exemplos da relação entre matemática e cultura não apenas como um exercício da Etnomatemática, mas da própria Educação Matemática. Para pensar possíveis tensões entre esta conjunção Educação Matemática e Etnomatemática, ou seja, o quanto uma se desdobra na outra para a constituição de seus domínios teóricos e práticos, sugiro o texto Efeitos de poder e verdade do discurso da Educação Matemática (BAMPI, 1999BAMPI, L. Efeitos de poder e verdade do discurso da Educação Matemática. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 1, n. 24, p. 115–143, 1999.). Neste artigo, a partir de uma rigorosa pesquisa documental, a autora coloca as preocupações da Etnomatemática como fundadoras da Educação Matemática.
-
6
Sendo este um número especial de Etnomatemática da revista For the Learning of Mathematics, destaco alguns outros importantes textos para a área, a saber: Bishop (1994)BISHOP, A. J. Cultural Conflicts in Mathematics Education: Developing a Research Agenda. For the Learning of Mathematics, Vancouver, v. 14, n. 2, p. 15–18, 1994., Cultural Conflicts in Mathematics Education: Developing a Research Agenda; Gerdes (1994)GERDES, P. Reflections on Ethnomathematics. For the Learning of Mathematics, British Columbia, v. 14, n. 2, p. 19–22, 1994., Reflections on Ethnomathematics; e Zaslavsky (1994)ZASLAVSKY, C. “Africa Counts” and Ethnomathematics. For the Learning of Mathematics, Edmonton, v. 14, n. 2, p. 3–8, 1994., “Africa Counts” and Ethnomathematics.
-
7
Este livro apresenta distintas relações entre matemática e cultura a partir de uma “História da Matemática não-ocidental”. Ademais, explora conhecimentos matemáticos de culturas fora dos Estados Unidos e da Europa como a matemática islâmica, chinesa, indígena, aborígene australiana, inca, egípcia, africana, entre outras.
-
8
Produzidos recentemente, destaco três estudos que apresentam e problematizam a Etnomatemática a partir de seu campo de legitimidade e/ou enunciação, salientando suas “alianças” e “filiações”. São eles: Marchon (2013)MARCHON, F. L. Entrelaçamentos e Possibilidades Filosóficas em Etnomatemática. 2013. 138 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2013., Passos (2017)PASSOS, C. M. Condições de produção e legitimação da Etnomatemática. 2017. 225 f. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), São Carlos, 2017. e Fantinato e Freitas (2018)FANTINATO, M. C.; FREITAS, A. V. (org.). Etnomatemática: Concepções, Dinâmicas e Desafios. Rio de Janeiro: Paco Editorial, 2018..
-
9
A comunidade de Remanescentes Quilombolas do Mandira está situada na cidade de Cananeia, interior do Estado de São Paulo (Brasil). Atualmente a comunidade é composta por aproximadamente cem integrantes, contando crianças e adultos.
-
10
Gilles Deleuze um dia declarou: “[…] em todos os meus livros procurei a natureza do acontecimento” (DELEUZE, 1990DELEUZE, G. Pourparlers. Paris: Les Éditions de Minuit, 1990., p. 194), “[…] tudo que escrevi […] constituí em uma teoria dos signos e do acontecimento” (DELEUZE, 1990DELEUZE, G. Pourparlers. Paris: Les Éditions de Minuit, 1990., p. 196). Ao escrever Logique du Sens, em 1969 – livro consagrado ao conceito de acontecimento, como afirmam Zourabichvili (1994)ZOURABICHVILI, F. Deleuze: Une philosophie de l’événement. Paris: Presses Universitaires de France, 1994. e Sasso e Villani (2003SASSO, R.; VILLANI, A. Le vocabulaire de Gilles Deleuze. Nice: Centre de recherche d'histoire des idées, 2003.) –, Deleuze (1969)DELEUZE, G. Logique du sens. Paris: Les Éditions de Minuit, 1969. afirma, em sua 24° série dedicada à comunicação dos acontecimentos, que “nada subsiste além do Acontecimento, o Acontecimento só, Eventum tantum para todos os opostos, que comunica consigo mesmo através de sua própria distância, ressoando através de todas suas disjunções” (DELEUZE, 1969DELEUZE, G. Logique du sens. Paris: Les Éditions de Minuit, 1969., p. 206). Mesmo que posteriormente, em Le pli. Leibniz et le barroque, Deleuze (1988)DELEUZE, G. Le pli. Leibniz et le baroque. Paris: Les Éditions de Minuit, 1988. questionará Qu'est-ce qu'un événement ? (O que é um acontecimento?), é preciso considerar a seguinte proposição de Logique du Sens: “[…] não perguntaremos, portanto, qual é o sentido de um acontecimento: o acontecimento é o próprio sentido” (DELEUZE, 1969DELEUZE, G. Logique du sens. Paris: Les Éditions de Minuit, 1969., p. 34). Dito isso, é importante ressaltar que o acontecimento “[…] não é exatamente o que acontece, mas alguma coisa no que acontece, alguma coisa a vir de conformidade ao que acontece” (DELEUZE, 1969DELEUZE, G. Logique du sens. Paris: Les Éditions de Minuit, 1969., p. 175, destaque do autor). Ser ele inseparável do devir, como destaca Zourabichvili (2003)ZOURABICHVILI, F. Le vocabulaire de Deleuze. Paris: Ellipes, 2003., significa que ele encarna passado e futuro como forma de efetuação e contra-efetuação. Em uma longa citação da 21° série do Logique du Sens, Deleuze (1969DELEUZE, G. Logique du sens. Paris: Les Éditions de Minuit, 1969., p. 177) dirá: “[…] em todo acontecimento, há de fato o momento presente da efetuação, o momento em que o acontecimento se encarna em um estado de coisas, um indivíduo, uma pessoa, aquele que designamos dizendo: eis que o momento chegou; e o futuro e o passado do acontecimento são julgados apenas em função desse presente definitivo, do ponto de vista daquele que o encarna. Mas há, por outro lado, o futuro e o passado do acontecimento tomado em si mesmo, que esquiva todo presente, porque ele está livre das limitações de um estado de coisas, sendo impessoal e pré-individual, neutro, nem geral, nem particular, eventum tantum…; ou melhor, que não tem outro presente que o do instante móvel que o representa, sempre desdobrado em passado-futuro, formando o que deve ser chamado de contra-efetuação”. Sobre o questionamento “o que é um acontecimento?” aqui destacado, Deleuze (1988)DELEUZE, G. Le pli. Leibniz et le baroque. Paris: Les Éditions de Minuit, 1988. percorrerá uma linha de problematização, junto a Leibniz e Whitehead, para dizer que os acontecimentos são fluxos compostos de uma extensão [“[…] o acontecimento é uma vibração com um número infinito de harmônicas ou submúltiplos, como uma onda sonora, uma onda de luz, ou mesmo uma parte do espaço que fica cada vez menor ao longo de uma duração cada vez menor” (DELEUZE, 1988DELEUZE, G. Le pli. Leibniz et le baroque. Paris: Les Éditions de Minuit, 1988., p. 105)], uma intensidade [“[…] as séries extensivas têm propriedades intrínsecas (por exemplo, altura, intensidade, timbre de um som, ou tonalidade, valor, saturação de cor)” (DELEUZE, 1988DELEUZE, G. Le pli. Leibniz et le baroque. Paris: Les Éditions de Minuit, 1988., p. 105)] e, por fim, de um indivíduo [“[…] para Whitehead, o indivíduo é a criatividade, a formação de um Novo. Não mais o indefinido ou o demonstrativo, mas o pessoal” (DELEUZE, 1988DELEUZE, G. Le pli. Leibniz et le baroque. Paris: Les Éditions de Minuit, 1988., p. 105)].
-
11
Ao levantar este questionamento, Clareto (2013CLARETO, S. M. A matemática como acontecimento na sala de aula. Goiânia: [s. n.], 2013., [15]p., destaque do autor) irá considerar a sala de aula como “um coletivo de forças que coloca as formas em movimento. Um lugar de pluralidade, da multiplicidade que se instaura como lugar do acontecimento”.
-
12
Cabe ressaltar que esta “oposição” ao platonismo aqui declarada se trata de uma perspectiva de leitura feita a partir da filosofia deleuzeana, considerando também os autores aqui supracitados, como François Zourabichvili, Robert Sasso e Arnaud Villani. Porém, há quem defenda que as “fórmulas da imanência” ou de “reversão do platonismo” propostas na filosofia de Deleuze se tratem de uma forma muito particular de um platonismo. Cita-se, por exemplo, o texto Le platonisme aplati de Gilles Deleuze, de Stéphane Madelrieux (2008)MADELRIEUX, S. Le platonisme aplati de Gilles Deleuze. Philosophie, Paris, v. 2, n. 97, p. 42-58, 2008. DOI: 10.3917/philo.097.0042. Disponível em: https://www.cairn.info/revue-philosophie-2008-2-page-42.htm. Acesso em: 08 jun. 2020.
https://www.cairn.info/revue-philosophie... . -
13
Ao perguntar qu'est-ce qu'un événement idéal ? (o que é um acontecimento ideal?), Deleuze (1969DELEUZE, G. Logique du sens. Paris: Les Éditions de Minuit, 1969., p. 67) responderá: “[…] é uma singularidade”. Desse modo, quando Deleuze (1969)DELEUZE, G. Logique du sens. Paris: Les Éditions de Minuit, 1969. fala do Acontecimento (Événement) com “A” (em português) ou com “E” maiúscula (em francês), o autor está considerando que os acontecimentos possuem uma comunicabilidade no que ele designará de Acontecimento, Eventum tantum, pois, em suas palavras, “[…] os acontecimentos são singularidades ideais que comunicam em um único Acontecimento” (DELEUZE, 1969DELEUZE, G. Logique du sens. Paris: Les Éditions de Minuit, 1969., p. 69) ou, dito de outra maneira, “[…] mistura que extrai e purifica e mede tudo no instante sem mistura, em vez de tudo misturar […]” (DELEUZE, 1969DELEUZE, G. Logique du sens. Paris: Les Éditions de Minuit, 1969., p. 179).
-
14
Após conceber os acontecimentos como singularidades, o filósofo usará então estas duas nomenclaturas, singularités-événements (DELEUZE, 1969DELEUZE, G. Logique du sens. Paris: Les Éditions de Minuit, 1969., p. 125) ou événements-singularités (DELEUZE, 1969DELEUZE, G. Logique du sens. Paris: Les Éditions de Minuit, 1969., p. 127).
-
15
Segundo Deleuze (1969DELEUZE, G. Logique du sens. Paris: Les Éditions de Minuit, 1969., p. 69) “[…] o acontecimento por si mesmo é problemático e problematizante”.
-
16
Para Deleuze e Guattari, essas figuras problemáticas, essas morfologias e/ou essências vagas caracterizam os “vagabundos”, os nômades” [vide: Deleuze e Guattari (1980DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mille Plateaux: capitalisme et Schizophrénie 2. Paris: Les Éditions de Minuit, 1980., p. 453)]. Ora, se elas são da ordem do nomos e não do logos, como afirmam os autores, é porque o nômade existe apenas em devir e em interatividade [vide: Deleuze e Guattari (1980DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mille Plateaux: capitalisme et Schizophrénie 2. Paris: Les Éditions de Minuit, 1980., p. 537)].
-
17
Para Deleuze (1968)DELEUZE, G. Différence et Répétition. Paris: Presses Universitaires de France, 1968., evocar um “être du sensible” (ser do sensível) significa dizer que a identidade não é mais conservada, pois “[…] é a diferença na intensidade […] que constitui o ser do sensível” (DELEUZE, 1968DELEUZE, G. Différence et Répétition. Paris: Presses Universitaires de France, 1968., p. 305), e a experiência, que ora era assumida como experiência possível, transforma-se em experiência real. Isso porque, segundo o autor, “[…] os dois sentidos da Estética se confundem a tal ponto que o ser do sensível se revela na obra de arte, ao mesmo tempo em que a obra de arte aparece como uma experiência” (DELEUZE, 1968DELEUZE, G. Différence et Répétition. Paris: Presses Universitaires de France, 1968., p. 94). Ora, se para Deleuze (1968DELEUZE, G. Différence et Répétition. Paris: Presses Universitaires de France, 1968., p. 182, destaque do autor) “[…] existe alguma coisa no mundo que força a pensar” é porque o ser do sensível é movido por esta “alguma coisa” que, em suas palavras, “[…] é objeto de um encontro fundamental e não de uma recognição” (DELEUZE, 1968DELEUZE, G. Différence et Répétition. Paris: Presses Universitaires de France, 1968., p. 182). Esta “alguma coisa”, “[…] objeto de um encontro”, “não é uma qualidade, mas um signo” (DELEUZE, 1968DELEUZE, G. Différence et Répétition. Paris: Presses Universitaires de France, 1968., p. 182, destaque do autor), aquilo que faz sinal, como o acontecimento que “[…] se efetua em nós, nos espera e nos faz sinal” (DELEUZE, 1968DELEUZE, G. Différence et Répétition. Paris: Presses Universitaires de France, 1968., p. 174, destaque do autor).
-
18
Deleuze (1981)DELEUZE, G. Spinoza: philosophie pratique. Paris: Les Éditions de Minuit, 1981. compreende o ato como uma potência de afetar e ser afetado; este poder efetua as afecções de sua potência. Segundo ele: “[…] toda potência é ato, ativo, e em ato. A identidade da potência e do ato se explica da seguinte maneira: toda potência é inseparável de um poder de ser afetado, e este poder de ser afetado é constante e necessariamente preenchido pelas afecções que o efetuam” (DELEUZE, 1981DELEUZE, G. Spinoza: philosophie pratique. Paris: Les Éditions de Minuit, 1981., p. 134).
-
19
Para Deleuze (1977DELEUZE, G. Anti-Œdipe et Mille Plateaux. Cours du 15/02/1977. 1977. Disponível em: https://www.webdeleuze.com/textes/181. Acesso em: 20 jun. 2017.
https://www.webdeleuze.com/textes/181... , 1981DELEUZE, G. Spinoza: philosophie pratique. Paris: Les Éditions de Minuit, 1981.), a longitude de um corpo (ou um plano de composição) é definida pelas relações de repouso e movimento, de velocidades e lentidões. A latitude, determinada em função das longitudes, é um conjunto de afetos que preenchem um corpo, uma força clandestina, e que determina sua potência de afetar e de ser afetado. -
20
Segundo Deleuze e Guattari (1980DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mille Plateaux: capitalisme et Schizophrénie 2. Paris: Les Éditions de Minuit, 1980., p. 37), “Entre as coisas não designa uma correlação localizável que vai de uma para outra e reciprocamente, mas uma direção perpendicular, um movimento transversal que as carrega uma e outra, riacho sem início nem fim, que rói suas duas margens e adquire velocidade no meio”.
-
21
Esta descrição pode ser acessada no livro de Jeanne Favret-Saada e José Contreras (1981)FAVRET-SAADA, J.; CONTRERAS, J. Corps pour corps. Enquête sur la sorcellerie dans le Bocage. Paris: Éditions Gallimard, 1981., Corps pour corps. Enquête sur la sorcellerie dans le Bocage. Neste livro, os autores apresentam as notas de campo feitas por Favret-Saada, e serve como um grande material de estudo de campo para aqueles que se interessam pela sorcellerie.
-
22
Cabe ressaltar que alguns pesquisadores que trabalham com os referencias das filosofias contemporâneas, especialmente Gilles Deleuze, Felix Guattari, Michel Foucault, entre outros, irão chamar tal prática de pesquisa – que se funda em um “mergulho no plano da experiência” – de pesquisa intervenção. Vide: Passos e Barros (2010PASSOS, E.; BARROS, R. B. A cartografia como método de pesquisa intervenção. In: PASSOS, E.; KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L. Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2010. p. 17-31., p. 17-31).
-
23
No âmbito da pesquisa em Etnomatemática, sugere-se aqui a prática “terapia-desconstrucionista” proposta por Tamayo-Osório (2017)TAMAYO-OSORIO, C. Venha, vamos balançar o mundo, até que você se assuste: uma terapia do desejo de escolarização moderna. 2017. 295 f. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2017., na qual a autora problematiza essa dualidade (estar dentro e estar fora) junto a um trabalho de campo realizado em uma comunidade indígena na Colômbia.
-
24
Para uma análise sobre a temática da antropofagia, sugere-se a leitura de Nodari (2014)NODARI, A. The transformation of the Taboo into Totem: Notes on an Anthropophagic Formula. In: MARQUES, P. N. (org.). Where to sit at the dinner table? Berlin: Archives Books, 2014. p. 409–454.. Nesta obra, estão incluídos diversos estudos que incluem análises que interconectam estudos da antropologia, psicanálise, filosofia, entre outras. No capítulo citado acima, Japy-Mirim (2014JAPY-MIRIM. Of Anthropophagy. In: MARQUES, P. N. (org.). The Forest and the School. Berlin: Archives Books, 2014. p. 122–124., p. 122) propõe uma rápida entrada do que poderia ser compreendido por uma transformação do tabu em totem na perspectiva de uma cultura antropofágica, ou seja, um manifesto que busca “igualdade política. Igualdade econômica. O império, o feudalismo, a abolição de privilégios, a produção como objetivo final”.
-
25
Nesta seção será utilizada a primeira pessoa do singular por se tratar de uma análise da experiência de campo do autor. Entende-se que a escolha pela primeira pessoa do singular, neste caso, possibilita uma aproximação do leitor com a narrativa. Cabe ressaltar, no entanto, que, neste caso, a primeira pessoa do singular é composta por uma multiplicidade de outros que a compõe enquanto singularidade. Estes “outros” são tanto humanos quanto inumanos, os moradores da comunidade, os espaços, a natureza, enfim, o que compõe as singularidades-campo em comunicabilidade.
- 26
-
27
Geralmente, esta festa é realizada no mês de junho na comunidade e tem uma periodicidade anual. Em linhas gerais, trata-se de uma festa em louvor a Santo Antônio, Padroeiro da comunidade em questão.
-
28
As categorias utilizadas para reconhecimento de uma comunidade tradicional, de acordo com o Decreto n° 3.551, de 04 de agosto de 2000 são: Saberes; Celebrações; Formas de Expressão; e Lugares. Além destes, o decreto possibilita que outras categorias sejam abertas. Para uma problematização deste documento, veja Gondim (2018)GONDIM, D. M. Ribeiras de Vales …e experimentações e grafias e espaços e quilombolas e… Dissertação (Mestrado em Educação Matemática) – Universidade Estadual Paulista “Júlio Mesquita Filho” (UNESP), Rio Claro, 2018..
-
29
Expressão utilizada por eles ao se referirem aos integrantes da comunidade.
-
30
Lugar onde os mandiranos deixam seus barcos, tanto quando vão para o mangue trabalhar com as ostras quanto quando chegam do trabalho.
-
31
Em uma conversa com Michel Foucault, publicada no livro Microfísica do Poder, Gilles Deleuze dirá que “uma teoria é como uma caixa de ferramentas. Não tem a ver com o significante… É preciso que sirva, é preciso que funcione. E não para si mesma. Se não há pessoas para utilizá-la, a começar pelo próprio teórico que deixa então de ser teórico, é que ela não vale nada ou que o momento ainda não chegou” (FOUCAULT, 2017FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Tradução de Roberto Machado. 6. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2017., p. 132, destaque do autor).
-
32
Vide vídeo gravado pelas crianças entre 17m05 e 20min45: https://www.youtube.com/watch?v=btzhuadrm28.
Agradecimentos
O autor agradece à Comunidade de Remanescentes Quilombolas do Mandira, pela abertura a essa parceria desde 2015. À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pelo financiamento da pesquisa no mestrado e, também, à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), pelo financiamento da pesquisa no doutorado, processos n° 2017/23227-1 e 2019/01101-1.
Referências
- ANDRADE, O. Manifesto Antropófago. Revista de Antropofagia, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 3–7, 1928.
- ANDRADE, A. M.; TATTO, N. Inventário Cultural de Quilombos do Vale do Ribeira São Paulo: Instituto Socioambiental, 2013.
- ASHER, M.; D’AMBROSIO, U. Ethnomathematics: a dialogue. For de Learning of Mathematics, Vancouver, v. 14, n. 2, p. 36–43, 1994.
- BAMPI, L. Efeitos de poder e verdade do discurso da Educação Matemática. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 1, n. 24, p. 115–143, 1999.
- BARROS, M. O livro das ignorãnças Rio de Janeiro: Alfaguara, 2016.
- BISHOP, A. J. Cultural Conflicts in Mathematics Education: Developing a Research Agenda. For the Learning of Mathematics, Vancouver, v. 14, n. 2, p. 15–18, 1994.
- CHAUÍ, M. A nervura do real: imanência e liberdade em Espinoza. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
- CLARETO, S. M. A matemática como acontecimento na sala de aula Goiânia: [s. n.], 2013.
- CONRADO, A. L. A pesquisa brasileira em Etnomatemática: desenvolvimentos, perspectivas, desafios. 2005. 150 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade do Estado de São Paulo (USP), São Paulo, 2005.
- D’AMBROSIO, U. Socio-Cultural Bases for Mathematical Education. In: CARSS, M. (Org.). Proceedings of the Fifth International Congress on Mathematical Education Boston, MA: Birkhäuser Boston, 1986. p. 1–6. Disponível em: <http://link.springer.com/10.1007/978-1-4757-4238-1_1>. Acesso em: 5 nov. 2020.
» http://link.springer.com/10.1007/978-1-4757-4238-1_1 - DAMEROW, P.; BISHOP, A. J.; GERDES, P. (org.). Mathematics, Education, and Society Paris: UNESCO, 1989.
- DELEUZE, G. A imanência: uma vida. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 27, n. 2, p. 10–18, 2002. Tradução de Tomaz Tadeu.
- DELEUZE, G. Pourparlers Paris: Les Éditions de Minuit, 1990.
- DELEUZE, G. Le pli. Leibniz et le baroque Paris: Les Éditions de Minuit, 1988.
- DELEUZE, G. Spinoza: philosophie pratique. Paris: Les Éditions de Minuit, 1981.
- DELEUZE, G. Anti-Œdipe et Mille Plateaux. Cours du 15/02/1977. 1977. Disponível em: https://www.webdeleuze.com/textes/181 Acesso em: 20 jun. 2017.
» https://www.webdeleuze.com/textes/181 - DELEUZE, G. Logique du sens Paris: Les Éditions de Minuit, 1969.
- DELEUZE, G. Différence et Répétition Paris: Presses Universitaires de France, 1968.
- DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Qu'est-ce que la philosophie ? Paris: Les Éditions de Minuit, 1991.
- DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mille Plateaux: capitalisme et Schizophrénie 2. Paris: Les Éditions de Minuit, 1980.
- FANTINATO, M. C.; FREITAS, A. V. (org.). Etnomatemática: Concepções, Dinâmicas e Desafios. Rio de Janeiro: Paco Editorial, 2018.
- FAVRET-SAADA, J.; CONTRERAS, J. Corps pour corps. Enquête sur la sorcellerie dans le Bocage Paris: Éditions Gallimard, 1981.
- FAVRET-SAADA, J. Désorceler. Paris: Éditions de l’Olivier, 2009.
- FAVRET-SAADA, J. Les mots, la mort, les sorts. La sorcellerie dans le Bocage Paris: Éditions Gallimard, 1977.
- FONSECA, T. M. G.; NASCIMENTO, M. L.; MARACHIN, C. (org.). Pesquisar na diferença: um abecedário. Porto Alegre: Sulina, 2015.
- FOUCAULT, M. Microfísica do poder Tradução de Roberto Machado. 6. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2017.
- FOUCAULT, M. O corpo utópico: As heterotopias. Tradução de Salma Tannus Muchail. São Paulo: n-1 edições, 2013.
- GERDES, P. L’EthnoMathématique en Afrique Maputo: Centre des études mozambicaines et de l'etnoscience, 2009.
- GERDES, P. Reflections on Ethnomathematics. For the Learning of Mathematics, British Columbia, v. 14, n. 2, p. 19–22, 1994.
- GERDES, P. Survey of current work on ethnomathematics. In: POWELL, A. B.; FRANKENSTEIN, M. (org.). Ethnomathematics: challenging eurocentrism in mathematics education. New York: State University of New York Press, 1997. p. 331-371.
- GONDIM, D. M. Ribeiras de Vales …e experimentações e grafias e espaços e quilombolas e… Dissertação (Mestrado em Educação Matemática) – Universidade Estadual Paulista “Júlio Mesquita Filho” (UNESP), Rio Claro, 2018.
- GONDIM, D. M.; MIARKA, R. Pensar com corpo como pensar com espaço: aforismos imagéticos que afirmam um aprender por trilhas. Educação Matemática e Revista, v. 23, p. 169–183, 2018.
- GONDIM, D. M.; MIARKA, R. The Mandira Quilombola Community and the Production of an Anthropophagic Identity. In: ROSA, M.; COPPE DE OLIVEIRA, C. (Org.). Ethnomathematics in Action Springer International Publishing, 2020. p. 41–56. Disponível em: <http://link.springer.com/10.1007/978-3-030-49172-7_3>. Acesso em: 7 set. 2020.
» http://link.springer.com/10.1007/978-3-030-49172-7_3 - GONDIM, D. M.; MIARKA, R. Uma comunidade dos cantos: notas de uma experiência em campo como expressão de uma educação (matemática) dos sentidos. HISTEMAT - Revista de História da Educação Matemática, São Paulo, v. 5, n. 2, p. 100–111, 2019.
- JAPY-MIRIM. Of Anthropophagy. In: MARQUES, P. N. (org.). The Forest and the School Berlin: Archives Books, 2014. p. 122–124.
- KNIJNIK, G. Exclusão e resistência: educação matemática e legitimidade cultural. [S. l.]: Artes Médicas, 1996.
- MADELRIEUX, S. Le platonisme aplati de Gilles Deleuze. Philosophie, Paris, v. 2, n. 97, p. 42-58, 2008. DOI: 10.3917/philo.097.0042. Disponível em: https://www.cairn.info/revue-philosophie-2008-2-page-42.htm Acesso em: 08 jun. 2020.
» https://doi.org/10.3917/philo.097.0042» https://www.cairn.info/revue-philosophie-2008-2-page-42.htm - MARCHON, F. L. Entrelaçamentos e Possibilidades Filosóficas em Etnomatemática 2013. 138 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2013.
- MIARKA, R. Etnomatemática: do ôntico ao ontológico. 2011. 427 f. Tese (Doutorado em Educação Matemática) – Universidade Estadual Paulista “Júlio Mesquita Filho” (UNESP), Rio Claro, 2011.
- MIARKA, R. Preocupações e Tendências Contemporâneas da Pesquisa em Etnomatemática presentes na Lista Eletrônica de Discussões do International Study Group on Ethnomathematics. Revemat: Revista Eletrônica de matemática, Florianópolis, v. 11, p. 268–282, 2017.
- MIARKA, R.; BICUDO, M. A. V. Matemática e/na/ou Etnomatemática? Revista Latinoamericana de Etnomatemática, [s. l.], v. 5, n. 1, p. 149-158, feb. 2012. ISSN 2011-5474. Disponível em: https://www.revista.etnomatematica.org/index.php/RevLatEm/article/view/40 Acesso em: 09 jun. 2020.
» https://www.revista.etnomatematica.org/index.php/RevLatEm/article/view/40 - JAPY-MIRIM. Of Anthropophagy. In: MARQUES, P. N. (org.). Where to sit at the dinner table? Berlin: Archives Books, 2014. p. 122-124.
- NODARI, A. The transformation of the Taboo into Totem: Notes on an Anthropophagic Formula. In: MARQUES, P. N. (org.). Where to sit at the dinner table? Berlin: Archives Books, 2014. p. 409–454.
- PASSOS, C. M. Condições de produção e legitimação da Etnomatemática 2017. 225 f. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), São Carlos, 2017.
- PASSOS, E.; BARROS, R. B. A cartografia como método de pesquisa intervenção. In: PASSOS, E.; KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L. Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2010. p. 17-31.
- ROLNIK, S. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. 2. ed. Porto Alegre: Sulina, 2014.
- SASSO, R.; VILLANI, A. Le vocabulaire de Gilles Deleuze Nice: Centre de recherche d'histoire des idées, 2003.
- SPINOZA, B. Ética Tradução de Tomaz Tadeu. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017.
- TAMAYO-OSORIO, C. Venha, vamos balançar o mundo, até que você se assuste: uma terapia do desejo de escolarização moderna. 2017. 295 f. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2017.
- VITHAL, R.; SKOVSMOSE, O. The End of Innocence: A Critique of ‘Ethnomathematics’. Educational Studies in Mathematics, Bélgica, v. 34, p. 131–157, 1997. DOI: https://doi.org/10.1023/A:1002971922833
» https://doi.org/10.1023/A:1002971922833 - ZASLAVSKY, C. “Africa Counts” and Ethnomathematics. For the Learning of Mathematics, Edmonton, v. 14, n. 2, p. 3–8, 1994.
- ZOURABICHVILI, F. Deleuze: Une philosophie de l’événement. Paris: Presses Universitaires de France, 1994.
- ZOURABICHVILI, F. Le vocabulaire de Deleuze Paris: Ellipes, 2003.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
30 Nov 2020 -
Data do Fascículo
Sep-Dec 2020
Histórico
-
Recebido
12 Dez 2019 -
Aceito
21 Jul 2020