Resumo
Este artigo foca a prática educativa do professor que, em meio às vicissitudes que caracterizam o movimento da sala de aula, tem por desafio encontrar seus alunos no âmbito da lógica natural da linguagem diária e conduzi-los ao âmbito da lógica matemática subjacente à teoria dos conjuntos que fundamenta a matemática do século 20. Consideramos a identidade A=A, criticada pela teoria hegeliana como lei fundamental do pensamento e adotada no campo da psicanálise como portal de entrada no discurso matemático. Discutimos um paradoxo importante na matemática e sua solução, distinguindo classe de conjunto. Damos especial atenção à introdução do conjunto vazio, dos pares não ordenados e dos conjuntos unitários na teoria de conjuntos ZFC. Seguindo as diretrizes lacanianas, mostramos como o discurso matemático sobre a aritmética, não só fica sujeito à contradição da autorreferência, mas sofre inevitável influência do inconsciente do sujeito que pretende enunciar um discurso sem sujeito. Na teoria lacaniana é localizada essa influência na concepção platônica e mostrada como está presente no conceito de Um. Fornecemos uma introdução à Lógica Intuicionista a partir da lógica mais adaptada à linguagem natural. Concluímos alertando os professores de matemática sobre a presença do inconsciente na relação institucional professor/aluno e justificamos o convite que lhes fazemos, para adotarem conosco o lema: ensina-se ouvindo, aprende-se falando .
Professor de matemática e lógica natural; Linguagem natural; Lógica matemática; Hegel e Lacan; Lógica intuicionista
Abstract
This article focuses on the educator's mission, which must be to meet students within the realm of the natural logic of everyday language and guide them toward mathematical logic, the underlying set theory that forms the foundation of 20th-century mathematics. We examine the identity A=A, critiqued Hegelian theory as a fundamental law of thought and adopted in the psychoanalysis field as the gateway into mathematical discourse. We discuss Russell's paradox and its resolution by distinguishing between class and set. Special attention is given to the introduction of the empty set, unordered pairs, and singleton sets in the ZFC set theory. Following Lacanian guidelines, we illustrate how the mathematical discourse on arithmetic is not only subject to the contradiction of self-reference but is also inevitably influenced by the unconscious of the subject attempting to articulate a discourse without subject. In Lacanian theory, this influence is located in the Platonic conception and shows how it is present in the concept of One. We provide an introduction to Intuitionistic Logic, which is more attuned to natural language. We conclude by cautioning mathematics educators about the presence of the unconscious in the institutional relationship between teacher and student and justify our invitation for them to join us in embracing the motto: Teach by listening, learn by speaking .
Mathematics teacher and natural logic; Natural language; Mathematical logic; Hegel and Lacan; Intuitionistic logic
1 Introdução: a Ágora e a Bolha
O conteúdo deste artigo pode ser posto em epígrafe. A função do professor de matemática é encontrar o aluno na Ágora, conduzi-lo à Bolha e devolvê-lo à Ágora antes de dar-lhe adeus.
Para precisar essa função do professor1, em artigo recente ( Baldino; Cabral, 2022 ) introduzimos dois conceitos, a Ágor a e a Bolha . A Ágora é o lugar necessariamente público onde todos nós falamos, somos reconhecidos por estabelecer uma audiência, somos ouvidos. É o lugar da linguagem natural onde o sujeito vai se constituir no campo do Outro, correndo o risco de falar e ser interrompido por atos falhos emergentes do inconsciente. Na Grécia antiga a Ágora era a praça onde a população se reunia para discutir as leis; depois tornou-se a praça do mercado, onde filósofos e sofistas debatiam. Hoje a Ágora é eletrônica, inclui as vias de mão única, como a mídia oficial, e as de mão dupla, como a mídia alternativa e as redes sociais. Tanto neste artigo quanto em nossas salas de aula, presenciais ou virtuais, estamos na Ágora.
Em 1824 Cauchy fundou, dentro da Ágora, uma Bolha semântica; ele vazou as definições da matemática na forma de convenções de linguagem “diz-se que” ( on dit que ). Com isso evitou o debate filosófico sobre o cálculo do século 17. A Bolha é a residência de uma comunidade de discurso que decide sobre o estatuto de validade das inferências. Com a Bolha, a matemática passou a se desenvolver sobre bases ditas rigorosas. O matemático habita a Ágora e emprega a linguagem natural como nós. ‘Função uniformemente contínua’ ele diz, mas, se nessa linguagem surge dúvida, ele se dirige à Bolha como a um templo; lá está escrito ‘diz-se que uma função é uniformemente contínua se para todo épsilon existe delta tal que...’ Essa convenção de linguagem é a forma histórica de um discurso que começou na Grécia Antiga, sob condições sociais singulares ( Cabral; Baldino, 2022 ).
Assim, a Ágora é o lugar da linguagem usual, apoiada numa lógica natural ; a Bolha é o lugar de um discurso que se pretende sem sujeito, apoiado na lógica matemática .
Normalmente, uma lógica consiste em uma linguagem formal ou informal juntamente com um sistema dedutivo e/ou uma semântica teórica de modelo. A linguagem possui componentes que correspondem a uma parte de uma linguagem natural como o inglês ou o grego. O sistema dedutivo serve para capturar, codificar ou simplesmente registrar argumentos que são válidos para uma determinada linguagem, e a semântica serve para capturar, codificar ou registrar os significados ou condições de verdade para pelo menos parte da linguagem ( Shapiro; Kouri Kissel, 2022 , tradução nossa)
Este artigo visa o professor que busca mais clareza sobre sua relação institucional com o aluno. Ele encontra seus alunos na Ágora, e faz parte de sua prática educativa conduzi-los à Bolha, entretanto, argumentamos, não pode abandoná-los lá. A aprendizagem exige do aluno flexibilidade na lida com os conceitos, eis o porquê de o professor ter de mostrar-lhe como voltar a Ágora para que possa usufruir da vantagem de saber comparar as duas lógicas. Vista de dentro da Bolha, a lógica natural parece fluída, imprecisa e deficiente. Vista da Ágora, a lógica matemática parece restrita demais para considerar a complexidade de fenômenos sociais e tende a alimentar políticas conservadoras; essa é uma questão de epistemologia política. Assim, o plano deste artigo é o que segue.
No item 2, com um sofisma aritmético baseado na autorreferência inerente à linguagem, introduzimos o tema da identidade A=A , tratado por Hegel no segundo volume da Ciência da Lógica. No item 3, discutimos a importância dessa identidade para o professor de matemática e seu sentido surpreendente quando usada na linguagem natural. No item 4, abordamos a identidade A=A considerando as posições que estruturam o pensamento matemático. Começamos com a posição hegeliana segundo a qual a identidade, enquanto lei fundamental do pensamento, é contraditória. Abordamos também a posição hegeliana sobre a formação da universalidade da linguagem natural. Passamos pela posição lacaniana em que A=A inaugura o discurso matemático por violar uma lei básica do significante. Tomamos essa inauguração como constituindo o portal lacaniano de passagem da Ágora para a Bolha. Na Bolha, consideramos o paradoxo de Russell e mostramos três ramos da matemática que tratam de evitá-lo. Isso nos leva a procurar distinguir os conceitos de classe e de conjunto, colocados como idênticos nas teorias dos conjuntos ditas ingênuas, como a exposta por Halmos (1965) em seu livro que marcou a época de 1960. Deste livro, citamos uma observação sobre o conceito de número e focamos o conceito de par não ordenado para abordar o tema que Lacan desenvolve no Seminário 19: de onde vem o Um? Segundo Lacan, argumentamos que esse Um vem da intromissão do inconsciente do contador na aritmética da qual ele tenta se ausentar, tornando-a independente dele. Concluímos que não só a aritmética está sujeita à contradição da autorreferência, o que Gödel mostrou, mas que o discurso matemático não se livra da presença do inconsciente de quem o enuncia. No item 5, introduzimos a lógica intuicionista na versão de Lorenzen (1967) que chamamos dialógica , porque, nela, decide-se a veracidade dos enunciados por meio de diálogos que ocorrem no âmbito da linguagem natural. Terminamos discutindo um erro lógico recente da mídia ao declarar a ineficácia de um certo medicamento. No item 6, comentamos a deficiência do ensino de lógica na formação dos professores de matemática, justificando a necessidade deste artigo
Para além desse esboço, tendo afirmado que o aluno está situado do lado da lógica natural de sua linguagem materna e sabendo que esta, por vezes, lhe apresenta alguma dificuldade, o que fazer diante do portal lacaniano? Tanto para Lacan quanto para Hegel, a verdade está nas enunciações da Ágora, não nos enunciados da Bolha. Entretanto, Lacan rejeita o Absoluto de Hegel e o refere aos enunciados “absolutos” da matemática; nós argumentamos que, em Hegel, o Absoluto está nas enunciações da Ágora, embora ele não se valha dessa palavra ( Baldino; Cabral, 2017 ). Ficará agora mais clara a concepção epistemológica sobre as duas lógicas: a lógica natural vige na Ágora, a lógica matemática, na Bolha e o portal lacaniano é a possibilidade de transitar entre as duas . É suposto que o professor tenha sido preparado em sua formação para ter a desenvoltura de percorrê-lo sem tropeçar na soleira que marca o limite entre elas. A lógica matemática é bem conhecida, mas qual é a lógica da Ágora? Elas são diferentes.
2 A identidade A=A
Em uma mensagem à lista de discussão da Sociedade Brasileira de Educação Matemática (SBEM), comentando a situação política atual, um de nós escreveu o seguinte estímulo à reflexão:
Logo, logo, dois mais dois serão 5. Veja: Tome dois dedos de uma das mãos e dois da outra. Conte bem. São 5, dois a direita, dois da esquerda, além de você, que fez a conta. Se não fosse você falar, como eu saberia que você contou? E se não fosse você, não haveria mãos .
(Mensagem postada na lista de discussão da SBEM).
Parece brincadeira para estimular o raciocínio de crianças, mas aí está contido todo o drama humano: a autorreferência inevitável da linguagem . Trata-se da autorreferência inevitável da linguagem , e sabe-se que quando um sujeito fala, não se pode impedir que fale sobre o que está dizendo. No segundo capítulo do Seminário 11, e em vários outros lugares, Lacan (1995 , p. 26) dá este exemplo: “tenho três irmãos, Paulo, Ernesto e eu”. Outro exemplo de autorreferência são as várias formas do paradoxo do mentiroso, tão estimulantes para nossos alunos. Por exemplo, tome uma folha de papel em branco, e dos dois lados escreva: a proposição que está escrita do outro lado é falsa .
Para o professor de matemática, é importante saber que há uma lógica da linguagem natural, na qual ele se relaciona com os alunos, e uma restrição dessa linguagem, formando a lógica matemática. É suposto que, por imposição do trabalho didático, o professor deve levar os alunos a lidarem com a lógica matemática. Essa trajetória de uma lógica a outra pode ser feita de maneira mais ou menos arbitrária/democrática.
Vejamos como o paradoxo do dois mais dois são cinco se situa no âmbito da linguagem natural. Para isso suponhamos um interlocutor imaginário que não tenha formação ou qualquer reflexão sobre essa lógica além do senso comum, embora possa estar acostumado com a lógica matemática. Teremos um diálogo como o que segue.
S1: Como se resolve o sofisma de dois mais dois são cinco?
S2: É óbvio, basta separar o contador do contado. O contador não pode ser contado junto com o que ele conta.
S1: Será que “contador” e “contado” são conceitos óbvios? Um mais um pode ser um, no caso de um pato e uma jiboia; pode ser zero, caso eu perca duas flechas ao mirar um alvo; pode ser três, no caso do pai mais a mãe gerarem uma criança. Veja que o óbvio tem muitos pressupostos...
S2: Mas não é disso que se trata...
S1: Trata-se de quê?
S2; Trata-se de contagem...
S1: Trata-se então do terno ‘contador’, ‘contagem’, ‘contado’. Os exemplos mostram que a relação entre esses conceitos não é óbvia; ela, deve ser justificada. Você atribui prioridade do ‘contador’ e ‘contado’ sobre a ‘contagem’ ou prioridade da ‘contagem’ sobre eles?
S2: Digamos que eu admita a prioridade de ‘contador’ e ‘contado’.
S1: Então você deve explicar o que são ‘contador’ e ‘contado’ sem falar em ‘contagem’, já que eles são logicamente anteriores.
S2: Ora, o ‘contador’ é o ‘contador’, o ‘contado’ é o ‘contado’...Todos sabem disso...
S1: Concordo. Você sustenta que A é A e que B é B.
S2: Sim, isso é óbvio.
S1: Tudo bem, apenas registro que você assume que A=A é uma lei universal do pensamento. Se você assumisse a prioridade da ‘contagem’, como universalmente óbvia, terminaria assumindo a mesma identidade de ‘contagem’ é ‘contagem’ como dada.
(Diálogo entre S1 e S2).
3 A identidade A=A na lógica natural
Nas dificuldades com a relação A=A, não se trata de deficiência ou de falta de alguma coisa, como os tais pré-requisitos . A posição epistemológica é outra: a lógica matemática é uma severa restrição da lógica natural. Sem conhecer a lógica natural o professor ficará tentado a punir o aluno, pela via da avaliação seletiva inerente ao sistema de créditos; os cursos de cálculo são o esteio desse calvário nos cursos STEM. Que critério terá o professor para exercer essa inevitável função que pode ser determinante na vida do aluno?
Examinemos, pois, esta identidade A=A no âmbito da lógica natural. No nível dos enunciados vigentes na lógica matemática, A=A apenas diz da identidade de algo consigo mesmo; parece uma trivialidade. Porém, essa identidade é muito usada na linguagem natural, onde ela tem sentido bem definido.2 Por exemplo, Deus é Deus (qualquer um sabe), a lei é a lei (vale para todos etc.), uma aposta é uma aposta (tem que pagar), o Seminário é o Seminário 3(todos que o frequentam sabem disso).
A primeira parte da proposição, Deus é... gera a expectativa de que o predicado vá acrescentar o sujeito. Na continuação da proposição, o predicado se esvazia para dentro do sujeito e gera uma certa frustração que nos leva a pensar na totalidade do que poderia ter sido dito e que foi amputada, a saber, os atributos de Deus etc. Portanto, na enunciação de A = A , o segundo A não repete o primeiro ; ele é antes, a totalidade dos atributos do primeiro . Então, em vez de A=A , a fórmula da identidade deve ser escrita A ≠ {A} Isso leva a concluir que a igualdade indica que o sujeito não é a totalidade de seus predicados, o pensador não é a totalidade de seus pensamentos, o matemático não é a totalidade dos teoremas que ele demonstrou etc.
Foi essa identidade que nosso interlocutor S2 usou ao refutar o sofisma do dois mais dois são cinco . Quando ele disse, por exemplo, que o contador é o contador , ele estava dizendo que o contador não é a totalidade dos atributos de contador na nossa sociedade, isto é, na nossa universalidade. Ademais, é preciso considerar que esses atributos são bem diferentes dos atributos na universalidade da sociedade tribal. Foi essa diferença que, no decorrer do diálogo, chamamos de pressupostos do óbvio . Nosso S2 estava certo, só não soube argumentar: era disso que se tratava .
4 A identidade A = A na lógica matemática
Hegel (2017 , p. 58-62) mostra que quem sustenta que A = A é uma lei fundamental do pensamento, se contradiz, e termina dizendo o oposto, que é a diferença, A ≠ A , que é essa lei. O argumento de Hegel repousa em um fenômeno da linguagem natural: quando se afirma algo, a negação vem junto . Em particular, A = A só faz sentido como negação de A ≠ A , ou seja, A = A traz junto consigo a negação de que o segundo A possa ser diferente do primeiro. Em outras palavras, para que A = A seja entendida, A ≠ A é pressuposta como negada. Por isso Hegel diz que A = A , a identidade tão cara aos matemáticos que a consideram uma lei básica do pensamento, é uma lei contraditória, pois a afirmação não pode ser assumida se simultaneamente sua própria negação não for admitida, embora não simbolizada. A Matemática assenta-se sobre uma contradição que os matemáticos tratam de evitar.
4.1 A posição lacaniana
Lacan adentrou pelas sinuosidades do campo da lógica, uma vez que a experiência analítica é o lugar para a escuta de uma fala. Portanto, a relação entre o campo da lógica e o campo analítico é estabelecida a partir da linguagem natural. Trata-se da escuta, na lógica natural, do sujeito do inconsciente que se constitui no campo da linguagem, mais precisamente, no campo das enunciações. O sujeito do enunciado é distinto do sujeito da enunciação (Lacan, 1995, p. 133; 1998, p. 814). A língua francesa é privilegiada para a psicanálise por distinguir os pronomes que significam eu . O moi é o sujeito do enunciado, como no discurso da lógica matemática; o je é sujeito da enunciação, da linguagem natural, agente das irrupções do inconsciente no campo das enunciações, como lapsos de memória ou linguagem. É nesse sentido que se entende a abordagem lacaniana que atenta para o sujeito interrogado na linguagem. O sujeito persiste como distinto de suas representações significantes e daquilo que o Outro lhe devolve como resposta, que nunca é exatamente o que o sujeito gostaria de ouvir. Todo o trabalho da psicanálise aponta na direção de livrar o sujeito “da ilusão de que o significante atende à função de representar o significado” (Lacan, 1998, p. 501). A fala é uma cadeia de associações entre elementos que produz o sentido de atestar que nenhum significante, por si só, consiste em significação, ou seja, um significante só causa significação quando articulado com outros , como assinalado em Lacan (2008 , p. 55) “Na cadeia do significante, sempre a mesma, trata-se, pois, da relação do significante com outro significante”.
Essa constatação sobre a linguagem estabelece um dos princípios fundamentais na psicanálise, expresso intencionalmente em forma circular: “um significante é o que representa um sujeito para outro significante” ( Lacan, 1995 , p. 197); o sujeito é efeito do significante, é “aquilo que um significante representa para outro significante” ( Lacan, 2012 , p. 198). Dessa conceituação deriva-se que o significante pode significar tudo, exceto a si mesmo, e que é preciso que esse postulado fundamental do discurso seja violado para que o discurso matemático se inaugure ( Lacan, 1992 , p. 84). Isso significa que a lei A=A que nós escrevemos A ≠ {A} permanece válida na matemática, apesar de logicamente contraditória. Ela constitui o portão de passagem da lógica natural para a lógica matemática. Chamamos essa passagem de portal lacaniano, não tanto pela lógica matemática a qual ele conduz, mas mais pela lógica natural, muito mais rica, que ele deixa para trás, permitindo que se volte a ela depois.
4.2 Sobre o paradoxo da autorreferência
Os matemáticos preferem ignorar Hegel, que mostra que o pensamento é fundado na expressão da contradição absoluta, a admitir que isso que chamam a matemática funda-se numa lei contraditória. Porém, essa contradição emergiu em sua ciência 70 anos depois de Hegel, no início do século passado, sob a forma do paradoxo de Russell-Frege. Trinta anos depois Gödel mostrou que essa contradição é inevitável até na aritmética. Essa contradição se enuncia assim: se A é a classe de todas as classes que não pertencem a si mesmas, será que A pertence a si mesma ou não? Para esclarecer o professor sobre a confusão entre classe e conjunto, geralmente feita nas apresentações da teoria dos conjuntos, daremos aqui uma introdução resumida a esses dois conceitos.
As classes se originam na lógica natural, com Peano, em 1889. As classes são definidas a partir de atributos . Por exemplo, o atributo sobrinho permite formar a classe dos sobrinhos do Pato Donald cujos elementos têm o atributo por predicado, além de se distinguirem por outros predicados, como, por exemplo, seus nomes :
{Huguinho, Zezinho, Luisinho}
Hegel já advertia sobre a impossibilidade de dizer todos os predicados de uma coisa, como os do pedaço de papel sobre o qual escrevia. Na linguagem natural há muitas maneiras de dizer um atributo. Para tornar precisa a diferença de classes definidas por atributos diferentes, Frege definiu duas classes como iguais quando elas têm os mesmos elementos, isto é, A é igual a B quando todo x pertencente a A também pertence a B e vice-versa.
Quando se fala em classes, a autorreferência se impõe desde o início. Por exemplo, a classe das coisas verdes não é uma coisa verde, mas a classe das coisas que se definem com menos de trinta palavras é uma coisa que se define com menos de trinta palavras, portanto é um elemento de si mesma. Daí vem a questão sobre a classe A de todas as classes que não pertencem a si mesmas. Será que essa classe pertence a si mesma? Se A pertence a A , ela satisfaz a condição de pertinência, que diz que ela não pertence a si mesma. Isso não pode ser. Portanto ela deve não pertencer a si mesma, ou seja, ela fica excluída da classe de todas as classes que não pertencem a si mesmas, a condição de não pertinência a si mesma lhe é negada, ou seja, ela deixa de não pertencer a si mesma
A lógica natural não se perturba com a esquisitice dessa classe; o âmbito das enunciações está acostumado com esquisitices mais graves, como os discursos que justificam as guerras. É só quando se transpõe o portal lacaniano que essa classe causa vertigens no âmbito dos enunciados, porque na lógica matemática, deixar de não pertencer significa pertencer ; na lógica matemática, não de não é sim. Nessa lógica, se a classe A fica excluída de todas as que não pertencem a si mesmas, ela deve pertencer a si mesma, ou seja, se não pertencer a si mesma, deve pertencer a si mesma. Novamente, chega-se a uma contradição.
Observemos, porém, que essa segunda contradição dependeu de três condições: do si mesma , do todas e a do não de não é sim . Esse paradoxo causou vertigens aos matemáticos quando Bertrand Russel o apresentou a Gottlob Frege em 1901; o trabalho de Frege já estava no prelo. Para evitar o paradoxo, a maioria dos matemáticos se impede de considerar o todas em seus enunciados. Resulta daí a teoria dos conjuntos de Zermelo-Frankel com o axioma da escolha (ZFC) tão bem exposta por Halmos (1965) em Naïve set theory . Outros matemáticos preferem renunciar a que a negação da negação signifique afirmação; são chamados intuicionistas.4Bertrand Russel preferiu evitar a autorreferência; ele desenvolveu a teoria dos tipos: se os elementos de uma classe são de tipo zero, a ⋲ classe é de tipo um e as classes que têm por elementos essas classes são de tipo dois etc. Uma classe não pode ser do mesmo tipo de seus elementos, portanto não pode pertencer a si mesma.
4.3 A=A na teoria dos conjuntos exposta por Halmos
Embora ele diga que é ingênua ( naïve ), a ZFC exposta por Halmos (1965) é um esforço para fundar a matemática apenas em enunciados, reduzindo drasticamente as enunciações da lógica natural. Primeiro são depurados os enunciados: só há dois enunciados considerados válidos, x ∈ A e A = B . Os demais enunciados são obtidos desses por recorrência: dois enunciados ligados por um dos conectivos e (∧), ou, (∨), se...então... (¬) ou um enunciado precedido de não (¬) é, novamente um enunciado válido. Nos enunciados, distinguem-se constantes e variáveis. Supõe-se que as constantes a, b, c, ... tenham significados conhecidos e que a variáveis x , y , z , ... possam ser substituídas por conjuntos. Quando uma variável x não é precedida de um quantificador, ∀x ou Ǝx, diz-se que ela é livre e o enunciado chama-se sentença. 5Uma vez depurados os enunciados, os conjuntos são definidos passo a passo por meio de axiomas.
As sentenças podem ser usadas como atributos na lógica natural para formar classes.6 Por exemplo, a sentença x=x , forma a classe de todos os conjuntos; a sentença x ∉ x
x ∉ x forma a classe do paradoxo de Russell. Porém, na lógica matemática, essas classes não são conjuntos, porque não se consegue obtê-las por meio dos axiomas: uma sentença só define um conjunto a partir de um conjunto dado, nunca a partir de todos os conjuntos . Esse é o axioma da especificação: dado um conjunto A e uma sentença P(x), existe o conjunto {x∣x ∈ A ∧ P(x)}. Com esse axioma a ZFC evita o paradoxo de Russell. De fato, para fazer um conjunto a partir da sentença x ∉ x é preciso considerar um conjunto qualquer X e dizer: seja A o conjunto A = {x∣x ∈ X ∧ x ∉ x} Se A ∉ A, segue que A ∈ X ∧ A ∉ A, contradição. Portanto A ∉ A. Nesse caso, ou A ∉ X ou ¬(A ∉ A). Os matemáticos da teoria ZFC aceitam a dicotomia é ou não é (terceiro excluído) e que não de não é sim (negação da negação), logo rejeitam ¬(A ∉ A ); porém, sobra-lhes A ∉ X. Conclui Halmos que, seja qual for a classe X , existe uma classe que não pertence a X , ou seja, “nada contém tudo” ( Halmos, 1965 , p. 6). Não há paradoxo.
A igualdade de dois conjuntos é definida a partir da pertinência, como nas classes: dois conjuntos são iguais se têm os mesmos elementos. O primeiro axioma é existe um conjunto , digamos A. O axioma da especificação e a sentença x ≠ x permitem extrair desse conjunto um conjunto φ = {x∣ x ≠ x}. Esse conjunto é chamado vazio, porque não tem elementos: se a ∈ φ segue a ≠ a, o que é impossível até na lógica natural. Notemos, porém, que não ter elementos não é um atributo a partir do qual se defina vazio; é por ser assim definido que ele é vazio . Ao contrário das classes, os conjuntos não são definidos por atributos nem seus elementos são distinguidos por predicados.
Outro axioma diz que, dados dois conjuntos A e B , pode-se formar o conjunto {A, B} chamado par não ordenado . Se o segundo conjunto for igual ao primeiro, tem-se o conjunto {A} , cujo único elemento é A , chamado unitário ( singleton ) de A . Em particular, {φ} é o unitário do vazio. O par ordenado (a,b) é definido como o conjunto {a,{a,b}}.
4.4 O inconsciente e o Um
Uma vez que se tenha transposto o portal lacaniano todos os conceitos devem ser formulados em termos de enunciados e sobre conjuntos. As classes ficam para trás, no domínio das enunciações. Elas eram definidas por atributos e seus elementos eram descritos por predicados; era impossível dizer todos os predicados de uma coisa e, cada vez que se tentava isso, os predicados mudavam ligeiramente de sentido. O aqui e o agora nos escapavam entre os dedos. Uma vez transposto o portal e violado o postulado fundamental do significante que pode representar tudo, exceto a si mesmo, a identidade A=A é desnudada de atributos e predicados, e a diferença A ≠ {A} reduz-se apenas à diferença entre um conjunto e seu conjunto unitário. Pelo menos é isso que almeja a lógica matemática.
Entre os conceitos formulados em termos de enunciados e conjuntos está o conceito de número. Halmos (1965 , p. 44, tradução nossa) apresenta o axioma que introduz os números naturais: “existe um conjunto que contém o 0 e o sucessor de cada um de seus elementos” Antes dessa página ele tenta evitar usar o conceito de número. Por exemplo, no conceito de par não ordenado, ele poderia dizer: dado o conjunto A e dado o conjunto B, existe um conjunto {A, B} que tem apenas A e B como elementos . Evitaria falar em dois . Porém, nada impede que o segundo conjunto seja igual ao primeiro, caso em que o par ordenado se reduz a um conjunto unitário {A} = {B} . A dificuldade começa quando se adota a formulação aparentemente equivalente: dados conjuntos quaisquer , A e B . Como decidir se dois conjuntos quaisquer são iguais ou diferentes? Não se pode contar com atributos e predicados como no caso das classes.
Halmos (1965 , p. 9, tradução nossa) adota um estratagema para evitar essa dificuldade: “Para reassegurar os inquietos ( reassure worriers ) apressemo-nos a observar que palavras como ‘dois’, ‘três’ e ‘quatro’ não se referem aos conceitos matemáticos [...] essas palavras são meras abreviações de ‘algo’ e de algo mais’ repetidas um número adequado de vezes” Ou seja, Halmos reconhece que algo das enunciações se intromete na lógica matemática através do portal lacaniano . Esse algo nos permite distinguir dois ou mais conjuntos que não através do exame de seus predicados, visto que eles não os têm? Que coisa é essa, vinda das enunciações, domínio do sujeito do inconsciente ( je ), que se intromete no domínio dos enunciados, exclusivo do eu consciente ( moi )? Essa coisa nos permite dizer: este é Um , aqueles são outros. Lacan enfatiza que não se trata de percepção do dois que teria se fundido em um por superação ( Aufhebunbg ) hegeliana.
Como se explica que do nada surja algo? Ora, escrever {φ = 1} significa que do vazio surge o Um. Quando se estuda teoria dos conjuntos, isso parece trivial. Explica-se: falar nada é Um silêncio , determinado pela expectativa frustrada de que algo seria dito; é silêncio bem determinado. É assim que se explica que do nada surja algo, mas a pergunta a ser feita é outra: por que achamos {φ} = 1 trivial? Porque estamos acostumados com isso cada vez que abrimos a boca ou nos fazemos representar por um significante perante outro significante. Do inconsciente que, para nós é nada, surge um sonho, um chiste ou um ato falho. Estamos bem acostumados com essa emergência do Um no campo da fala, mas não nos damos conta dela. Quando a percebemos, já é tarde, ela já ocorreu.
Lacan foi buscar essa emergência do Um em Platão; passou quase todo o ano de 1972 falando disso no Seminário 19. O estratagema de Halmos é apresentado em seu livro, disponível desde 1960. É provável que Lacan o tenha lido, porque no Seminário 19, ocorrido nos anos 1971-1972, encontramos o seguinte: “A partir do momento em que interrogamos esse Um (...) é impossível relacioná-lo seja com o que for, exceto com a série dos números inteiros, que não é nada além desse Um” ( Lacan, 2012 , p. 128). Voltando à formação do universal em Hegel, Lacan (2012 , p. 131) acrescenta “Não há existência senão contra um fundo de inexistência” e conclui: tal como o inconsciente, o Um é “o que só existe ao não ser [...]”.
As crianças, que ainda não estão acostumadas com irrupções do inconsciente e confundem sonho com realidade, acham estranha a resposta zero para um problema. Não lhes é óbvia a diferença entre o zero como nada e o zero como falado, ou seja, o zero como elemento do Um, objeto do pensamento. Porém, quando o Sputnik subiu, em 1957, essa obviedade estava sobre a mesa de trabalho dos matemáticos e foi transferida intacta para o ensino elementar com o movimento da matemática moderna, animado pelo casal belga George e Frederique Papy, e adotado, por exemplo, no Colégio de São Bento no Rio de Janeiro, conforme Costa (2013) . Naturalmente, as classes foram chamadas conjuntos; não havia outro jeito de referir conjuntos a algo sensível. “A diferença entre a classe e o conjunto é que, quando a classe se esvazia, não há mais classe, porém, quando o conjunto se esvazia, ainda existe o elemento do conjunto vazio” ( Lacan, 2012 , p. 106).
Assim, se quisermos o grafema completo das duas lógicas, escrevemos a identidade A=A no domínio das enunciações, incluindo as classes, como estabelecemos acima:
atributo ≠ {predicados} sujeito ≠ {representações significantes}
No domínio dos enunciados, A=A deve ser escrita sujeito1 ≠ {A ≠ {A}}. Nesse grafema, o primeiro sinal de diferença indica o portal lacaniano. Nele, o sujeito recebe o índice 1 para indicar que, do domínio das enunciações, ele só traz o Um. O A ≠ {A} que fica dentro dos colchetes indica a consequência milenar do Um inconsciente, diferenciando os conjuntos A e B para formar o par ordenado {A} e o conjunto A de seu unitário {A} . O resto, ou seja, a lógica matemática, é obra dos enunciados conscientes do eu ( moi ). O sujeito-indexado é o matemático. A lógica matemática organiza seus resultados apenas em termos de enunciados. Foi dessa necessidade que surgiu o paradoxo de Russel. O discurso matemático tenta não depender do autor. Gödel provou que esse é um empreendimento sujeito à contradição da autorreferência. Aprendemos de Lacan que o Je sempre se intromete, levando o Um debaixo do braço.
5 Dialógica, a lógica efetiva de Lorenzen
A lógica intuicionista é mais próxima da lógica natural que a lógica matemática. Daremos aqui a versão de Lorenzen da lógica intuicionista visando o professor que, assoberbado com suas aulas não teria tempo reaprender a pensar de maneira intuicionista. A lógica intuicionista7 seria mais adequada para pensar a Ágora. Porém, para o professor formado na lógica da matemática da teoria ZFC vigente na Bolha, não há a possibilidade de reaprender a pensar segundo os dez axiomas da lógica intuicionista. Numa dedução fica sempre a dúvida: será que estou usando algo proibido? Para esse problema, apresentamos a lógica efetiva exposta por Lorenzen (1967) a partir de sistematização de diálogos típicos dos que ocorrem na Ágora, entre um proponente (P) e um oponente (O). Por exemplo, consideremos a afirmação seguinte sobre os números perfeitos: “existem números ímpares que são perfeitos. (‘Perfeito’ qualifica um número que é igual à soma de seus divisores próprios. Assim 6=1+2+3, 28=1+2+4+7+14 são perfeitos.)” ( Lorenzen, 1967 , p. 18, tradução nossa). Até hoje, não se sabe se essa proposição é verdadeira ou falsa. Para decidir, seria necessário examinar uma infinidade de números ou, pelo menos, ficar examinando um por um sine die . Entretanto, para a lógica matemática, a proposição é verdadeira ou falsa, mesmo que não se tenha um roteiro que leve à decisão, como no caso de uma proposição como existe um planeta habitado . Por exemplo: existem dois números irracionais a e b tais que ab é racional ( Pfenning, 2023 , p. 3).
Poderia, então, um matemático ficar famoso por afirmar que a seguinte proposição é um teorema da lógica: existe pelo menos um número ímpar perfeito ou todo número ímpar é imperfeito . Teorema de Mr. Fields? Ora, na lógica intuicionista, que chamamos dialógica, é “simplesmente falso, afirmar ser capaz de tratar o infinito como o finito” ( Lorenzen, 1967 , p. 19, tradução nossa). Na lógica natural, na dialógica, a lei do terceiro excluído p∨¬p e a dupla negação ¬ ¬a ⇒ a são problemáticas. Por exemplo deixar de desobedecer pode não implicar obediência, caso a criança estivesse desobedecendo para obter um reconhecimento da ordem do gozo; ela simplesmente o procura noutra coisa. No recente debate sobre a cloroquina, a mídia insistiu em dizer de comprovada ineficácia quando se sabia apenas de não comprovada eficácia.
A dialógica também conta com uma dezena de axiomas, mas estes não são abstratos, são 12 regras que estipulam como um jogador deve8 responder quando o outro se valer de um dos seis grafemas seguintes: conectivos e (∧), ou (∨), se...então ...(→), não (¬) e quantificadores para todo (∀) e existe algum (Ǝ). Parece-nos adequado chamar esta lógica de dialógica .
5.1 Regras para implicação e negação
Acreditamos que a dialógica possa ser levada à sala de aula na forma de jogo. O jogo se desenvolve preenchendo um quadro de duas colunas, uma para o proponente, outra para o opositor. O proponente coloca uma proposição na sua primeira posição, que chamaremos berlinda . Nestas regras, P provar significa P provar a partir de assunções anteriores de O. O proponente deve responder conforme a regra, mas antes de fazê-lo, pode questionar alguma assunção anterior do oponente; falaremos em direito de retardo . As regras de 1 a 8 equivalem as regras do intuicionismo. Essas 12 regras devem ser entendidas aplicando-as sobre os exemplos que seguem.
Na regra 1, P lança a implicação; O deve se responsabilizar pelo antecedente e P deve provar o consequente. Ressalva: antes de provar b , P pode usar seu direito de retardo e questionar alguma assunção anterior de O , inclusive a .
Na regra 2, O lança a implicação. P assume o antecedente e O assume o consequente, mas P deve saber provar a independentemente de O se responsabilizar por b . O jogo segue pelas partes esquerdas das células divididas. Uma vez que P prove a ele deve levar em conta a assunção b do oponente e garantir uma estratégia de ganho prosseguindo pelas partes direitas das células divididas. O quadro se divide em dois subquadros.
Na regra 3, P se compromete a provar uma negação; O deve sustentar o negado. Na regra 4, O sustenta a negação e P deve provar o negado.
Exemplo 1
Digamos que o proponente ponha a proposição a → ¬ ¬ a na berlinda.
Diante de uma implicação, a regra 1 diz que o oponente deve se responsabilizar pelo antecedente, e o proponente deve provar o consequente. Assim é preenchida a linha 2. O oponente está agora diante de uma negação ¬(¬p). A regra 3 diz que ele deve se responsabilizar pelo negado, a saber ¬ a, o que faz na sua coluna da linha 3. Agora é o proponente que tem de responder a uma negação. A regra 4 diz que ele deve provar o negado, a sabner, a . Essa é sua última afirmação; se o oponente duvidar, o proponente dirá: foi você mesmo que afirmou isso na linha 2 . O proponente provou a última afirmação que fez usando apenas o que o oponente já tinha sustentado antes . Conclui-se que a proposição na berlinda é um teorema da dialógica ; o proponente tem uma estratégia vencedora que funciona seja a proposição a verdadeira ou falsa. Vejamos se a proposição recíproca também é um teorema. . Na linha 2, o proponente poderia usar seu direito de retardo segundo a ressalva da regra 1 e questionar a proposição a que o oponente lançou como antecedente da implicação. Porém, isso não lhe convém, porque a essa altura, nem o proponente nem o opositor sabem se a é verdadeira. A comunidade deveria ser consultada e o proponente não teria mostrado estratégia de ganho.
Em 2, pela regra 1, o oponente deve assumir o antecedente. O proponente pode optar por assumir o consequente ou usar seu direito de retardo e sustentar a assunção ¬¬a que o oponente usou antes. O quadro do jogo se divide em dois subquadros, preenchidos em paralelo. No primeiro caso, o oponente pedirá uma prova de a . O proponente não tem como provar a a partir da linha 2 do oponente (é isso mesmo que está em jogo) e tem que consultar a comunidade para saber se a é verdadeira ou falsa. No segundo caso, o oponente aplica a ressalva da regra 1 e pede confirmação de ¬¬a. O oponente deve responder regra 3 e se responsabilizar pelo negado ¬a. Pela regra 4, o proponente se obriga a provar o negado, que agora é a . Novamente ele terá de consultar a comunidade. O proponente não consegue uma estratégia vencedora; a veracidade da proposição é apenas contingente, isto é, depende da veracidade do componente a ; não é um teorema da dialógica.
5.2 Regras para conjunção e disjunção
Na regra 5, P afirma a conjunção, O pede provas de a e de b; P deve provar ambas. O quadro se divide em dois subquadros que correm em paralelo. P deve exibir estratégia de ganho para cada um deles.
Na regra 6, O afirma a conjunção e é obrigado a se responsabilizar por cada uma, a e b. Abrem-se dois subquadros. Basta que P exiba trajetória de ganho para um deles.
Na regra 7, P lança a disjunção e O pode pedir que P se responsabilize por a ou por b . Abrem-se dois quadros; P deve exibir estratégia de ganho para um deles.
Na regra 8, O lança a disjunção; P questiona a disjunção e O se responsabiliza por a ou por b . O quadro se divide em dois subquadros que correm em paralelo. P deve exibir trajetória de ganho para ambos.
Exemplo 2 .
Na lógica matemática, a implicação a → b equivale a ¬a ∨ b. Na dialógica, da segunda segue a primeira, mas a recíproca não é um teorema.
P põe na berlinda uma implicação. Pela regra 1, O deve assumir o antecedente e P o consequente. O consequente também é uma implicação; O deve assumir o antecedente a e P o consequente b . Porém, antes de assumir b , P usa seu direito de postergar e pede confirmação da afirmação de O feita na linha 2. Essa afirmação é uma disjunção. Pela regra 7, O pode optar por assegurar ¬a ou b . Se optar por ¬a, P poderá reunir as afirmações de O em 3 e 4 sob uma conjunção e O terá de reconhecer que afirmou uma contradição; perdeu. Então O não jogará ¬a na linha 4; deverá se responsabilizar por b. Ora, esse b é o consequente da linha 2 cuja prova P tinha postergado. A prova agora consiste em apontar que O já se responsabilizou por b na linha 4. O perde de novo, P tem estratégia vencedora e a proposição na berlinda é um teorema da dialógica. Vejamos a recíproca.
P lança a implicação na berlinda. Pela regra 1, O deve assumir o antecedente e P o consequente. O consequente é uma disjunção posta por P . Pela regra 7, O questiona a disjunção e P oferece a confirmação de ¬a. Pela regra 3, O se responsabiliza por a e P é obrigado a consultar a comunidade. Continuando a regra 7, O confirma b . Novamente P deve recorrer à comunidade.
5.3 As regras para os quantificadores
Na regra 9, P deve provar a(n) para uma escolha arbitrária de n dada por O .
Na regra 10, basta que P prove a(n) para um n à escolha de P .
Na regra 11, basta que P prove a(n) com n à escolha de P .
Na regra 12, P deve provar a(n) com n dado por O .
Exemplo 3
Como exemplo da aplicação da dialógica na linguagem corrente consideremos a insistência com que a mídia assumiu que, por não haver prova científica da eficácia da cloroquina contra o COVID-19, isso significaria uma prova da ineficácia desse medicamento contra o referido vírus. Em resumo: se não há prova da eficácia, então a ineficácia é comprovada . Examinemos essa implicação pela via da dialógica.
Diremos a(x) quando x é prova da eficácia e b(x) quando x é prova da ineficácia. Sobre esses conceitos, admite-se de saída, que não podem ter suas validades questionadas, ou seja, a existência de um exclui a existência do outro:
Observemos que, segundo a dialógica, essas premissas não são equivalentes. De fato,
é um teorema. Porém, aplicando esse resultado, por exemplo a (1), tem-se
que não é equivalente a (2) porque a dupla negação não implica a afirmação: deixar de não existir não significa existir. Na verdade, de (2) segue (4) como teorema, mas não vale a reciproca.
A proposição usada pela mídia é: ¬Ǝx a(x) → Ǝx b (x). Vejamos o diálogo.
Pela regra 1, abrem-se duas possiblidades para o proponente: ou responder imediatamente pelo consequente, ou questionar o antecedente, usando seu direito de retardo. No primeiro caso, pela regra 11, O pede confirmação e P oferece np. O pede conformação e P é obrigado a recorrer à comunidade para veracidade de b(np). No segundo caso, pelas regras 3 e 12, O oferece mo, P duvida e O recorre à comunidade. Conclui-se que a proposição usada pela mídia não é um teorema, tem veracidade apenas contingente. De onde vem esse erro da mídia? Vem de confundir a proposição com a recíproca, que foi assumida na primeira proposição de (2) como expressão da não contradição pressuposta nos processos científicos. Não é verdade que, como toda água que contém NaCl é salgada, toda água salgada deverá conter NaCl; existem outros sais.
6 Palavras finais, mas não definitivas
Espera-se que, ao final de um artigo do qual não se pode dizer que seja de fácil leitura em razão da matemática e de teorias discutidas, o professor de matemática seja motivado a se interrogar sobre o que poderá levar para sua sala de aula. Porém, a pergunta que gostaríamos de fazer é esta: o que ele levaria se não o tivesse lido? Sabemos que é um desafio, pois se trata de o professor de matemática colocar em causa seu próprio desejo. Desse modo, como da clínica se apreende, o professor é convocado para lidar com o desejo do aluno, embora em sua formação isso nunca tenha sido tematizado. A lógica matemática lhe foi apresentada com ça va sans dire . Não lhe disseram que, no ensino da matemática elementar, a diferença entre zero e um vem junto com a formação do inconsciente do aluno. Não lhe disseram que esse inconsciente “[...] é discurso do Outro [...]” ( Lacan, 1998 , p. 829) o seu discurso, que ele aprendeu na formação social em que vive e sobre o qual jamais refletiu.
As reflexões, interpretações e até mesmo as assertivas aqui têm caráter provocativo que possam levar o professor de matemática a encontrar o aluno no âmbito da lógica natural da linguagem diária e conduzi-lo ao âmbito da lógica matemática. Porém, analisado o funcionamento da instituição escolar à luz da economia, conclui-se que as salas de aulas estão sujeitas ao sistema de créditos que consiste na concessão de certificados mediante disputa fundada na meritocracia de conteúdos. Então, o ideal é afastar o desejo do aluno da premiação do sistema de créditos e levá-lo de volta ao valor de uso de sua força de trabalho qualificada e conhecimento, embora nem sempre seja possível, pois Freud já alertava sobre a impossibilidade da profissão educar. Diz Lacan (1995 , p. 258): “se a transferência é o que da pulsão desvia a demanda, o desejo do analista é aquilo que a traz ali de volta. O mesmo vale para o professor.
Informados pela psicanálise, resta dizer ao professor: teu aluno é teu sintoma. O que vem de lá, foste tu mesmo que lá puseste. É o teu desejo que também está em jogo. Ama teu sintoma como a ti mesmo, ensina Lacan. Se tens dificuldade em ouvir teu aluno, sabe que é a ti mesmo que não queres ouvir. Se queres ensinar, para de falar e escuta, porque é ouvindo que se ensina e falando que se aprende .
Agradecimentos
Agradecemos ao colega Alexandre Pais por interessantes observações durante o preparo deste artigo e comentários importantes.
Referências
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» https://plato.stanford.edu/archives/win2022/entries/logic-classical/
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1
Referimo-nos como função a responsabilidade que o professor assume ao compreender que ele precisa simplesmente oferecer leque de objetos com os quais seus alunos possam se idenitificar para reorganizar suas posições de sujeitos do desejo nos processos de aprendizagem. Essa função do professor de ter de encontrar seu aluno, exige que ele se coloque na posição de ouvinte genuíno, caindo de sua posição de sujeito tudo saber.
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2
Hegel (2017 , p. 54) usa a expressão “tudo é igual a si mesmo” para se referir que algo permanece invariante diante de uma dada transformação. Sobre a diferença entre enunciado e enunciação , ver o Seminário 11 de Lacan, 1995 , p. 132, onde este discute o paradoxo do mentiroso.
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3
J. L. Lions sobre o nível científico de seu Seminário em 1977.
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4
Para informações sobre o intuicionismo, consultar https://encyclopediaofmath.org/wiki/Intuitionism
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5
Essa terminologia varia na literatura.
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6
Para informações básicas sobre o tema, consultar https://en.wikipedia.org/wiki/Class_(set_theory)
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7
Para informações rápidas sobre o assunto, ver https://en.wikipedia.org/wiki/Intuitionistic_logic
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8
Não escapamos de usar o significante deve ao longo da discussão concernente a como os jogadores respondem em atenção às regras que caracterizam as imposições no ato de jogar em que suas escolhas são condicionadas.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
16 Set 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
18 Out 2023 -
Aceito
14 Fev 2024