RESUMO
Objetivo: Analisar vídeos do Youtube® que apresentam a execução do procedimento de curativo em ferida contaminada.
Método: Pesquisa exploratória descritiva qualitativa, realizada na plataforma de compartilhamento de vídeos Youtube®. A busca guiou-se por palavras-chaves, no período compreendido entre novembro e dezembro de 2023. Para a análise crítica dos vídeos utilizou-se instrumento elaborado conforme a literatura científica relacionada aos cuidados com feridas contaminadas.
Resultados: Foram identificados 24 vídeos e nenhum apresentou plena conformidade. Dentre os resultados encontrados, destaca-se: a falta de checagem do prontuário e identificação do paciente; a não realização da higiene das mãos; a manipulação incorreta do pacote de curativo estéril; o não seguimento dos princípios de limpeza; ausência de ferramentas para avaliação da ferida, a falta de identificação do curativo e a ausência do registro de enfermagem.
Conclusão: Os vídeos do Youtube® que tratam do procedimento de curativo em ferida contaminada devem ser consumidos com prudência, quando usados para fins educativos na enfermagem.
DESCRITORES:
Educação em Enfermagem; Uso da Internet; Filme e Vídeo Educativo; Ferimentos e Lesões; Bandagens
HIGHLIGHTS
O consumo de vídeos para aprendizagem é uma realidade universitária.
O Youtube® apresenta vídeos sobre curativos.
Etapas críticas do procedimento estavam em desacordo com a literatura.
Vídeos sobre curativo em feridas devem ser consumidos com prudência.
ABSTRACT
Objective: To analyze YouTube® videos showing the dressing procedure for contaminated wounds.
Method: Qualitative descriptive exploratory research conducted on the YouTube® video sharing platform. The search was guided by keywords, during the period between November and December 2023. For the critical analysis of the videos, an instrument was used that was developed in accordance with scientific literature related to the care of contaminated wounds.
Results: 24 videos were identified, none of which were fully compliant. Among the results found, the following stand out: failure to check medical records and identify patients; failure to perform hand hygiene; incorrect handling of sterile dressing packages; failure to follow cleaning principles; absence of tools for wound assessment; failure to identify dressings; and absence of nursing records.
Conclusion: YouTube® videos dealing with the dressing procedure for contaminated wounds should be viewed with caution when used for educational purposes in nursing.
KEYWORDS:
Education, Nursing; Internet Use; Instructional Film and Video; Wounds and Injuries; Bandages
HIGHLIGHTS
The consumption of videos for learning is a reality in universities.
YouTube® features videos about dressings.
Critical steps in the procedure were inconsistent with the literature.
Videos about wound dressing should be viewed with caution.
RESUMEN
Objetivo: Analizar vídeos de YouTube® que muestran la realización del procedimiento de vendaje en heridas contaminadas.
Método: Investigación exploratoria descriptiva cualitativa, realizada en la plataforma de intercambio de vídeos Youtube®. La búsqueda se realizó mediante palabras clave, en el periodo comprendido entre noviembre y diciembre de 2023. Para el análisis crítico de los vídeos se utilizó un instrumento elaborado según la bibliografía científica relacionada con el cuidado de heridas contaminadas.
Resultados: Se identificaron 24 vídeos y ninguno presentaba plena conformidad. Entre los resultados encontrados, se destaca: la falta de verificación del historial clínico y la identificación del paciente; la falta de higiene de las manos; la manipulación incorrecta del paquete de vendajes estériles; el incumplimiento de los principios de limpieza; la ausencia de herramientas para evaluar la herida, la falta de identificación del vendaje y la ausencia de registro de enfermería.
Conclusión: Los vídeos de YouTube® que tratan sobre el procedimiento de vendaje en heridas contaminadas deben consumirse con precaución cuando se utilizan con fines educativos en enfermería.
DESCRIPTORES:
Educación en enfermería; Uso de Internet; Película y Vídeo Educativos; Heridas y Lesiones; Vendajes
HIGHLIGHTS
El consumo de vídeos para el aprendizaje es una realidad universitaria.
Youtube® ofrece vídeos sobre vendajes.
Las etapas críticas del procedimiento no se ajustaban a la bibliografía.
Los vídeos sobre el vendaje de heridas deben consumirse con precaución.
INTRODUÇÃO
Cerca de 2% a 6% dos indivíduos no mundo irão desenvolver algum tipo de ferida, principalmente aqueles com faixa etária compreendida entre 65 anos ou mais, devido ao fato da ocorrência de danos na estrutura e na capacidade funcional da pele, tornando-a mais fragilizada. Os custos relacionados aos cuidados de pessoas com feridas podem chegar a US$60 bilhões por ano nos Estados Unidos e englobam 2% a 4% dos gastos com a área da saúde no Continente Europeu. Além desses eventos, haverá também aumento da resistência aos antibióticos, sobrecarga da equipe de enfermagem e efeitos maléficos na qualidade de vida desses indivíduos1. A partir desses dados, compreendemos a importância da realização de curativos em feridas contaminadas, conforme indicam as melhores práticas, evidências científicas e com técnica apropriada.
O ambiente de aprendizagem, através de recursos audiovisuais, alterou o modo com que os estudantes, de forma geral, acessam informações. Dentre esses recursos, a plataforma Youtube ® pode ser citada, uma vez que oferece uma aproximação maior dos estudantes com os temas os quais se deseja conhecer. Essa plataforma apresenta potencial educativo e proporciona ao usuário espaço e liberdade para assistir e criar conteúdos2. Quando utilizada com finalidade educativa na graduação propicia retenção facilitada do conteúdo, interesse despertado e engajamento na respectiva disciplina3.
O uso da plataforma oferece ainda inúmeras vantagens no que se refere à educação, porém, destaca-se a importância de se refletir sobre o seu papel nesse processo. O uso indiscriminado e não crítico dos conteúdos postados e acessados podem levar, por exemplo, ao não aprofundamento da temática, a qual se deseja estudar, devido a grande quantidade de informações; e a ausência de checagem da veracidade dos materiais podem fazer com que os consumidores, no caso os universitários, acreditem que se trata de práticas verdadeiras e absolutas, sem análise crítica corroboradas pelas literaturas pertinentes4.
Nesta perspectiva, é salutar refletir sobre conteúdos direcionados ao ensino na área da saúde, em especial aqueles voltados à enfermagem, disponíveis na plataforma YouTube ®, uma vez que a produção e a procura destes vídeos é uma realidade entre graduandos de enfermagem, que buscam observar e aprender procedimentos, a fim de replicá-los na prática clínica. Neste aspecto, um procedimento crítico, como o de curativo em ferida contaminada, deve ser realizado criteriosamente, haja vista a complexidade que envolve o cuidado de pessoas com feridas.
O Youtube ® possui em seu escopo diversos conteúdos postados no formato vídeo, todos de livre e fácil acesso, porém, aqueles que elaboram e publicam esses materiais nem sempre se atentam à literatura científica, muitas vezes falam e demonstram práticas baseadas em suas próprias crenças e conhecimentos empíricos, portanto, nem todos podem ser utilizados para fins educacionais. Ao considerarmos que vídeos postados na referida plataforma podem ser consultados por docentes e, sobretudo, estudantes da área da saúde, em especial de enfermagem, questiona-se “Qual a qualidade da demonstração e execução do procedimento de curativo em ferida contaminada em vídeos do Youtube ®?” Diante do exposto, definiu-se como objetivo analisar uma seleção de vídeos do Youtube ® que apresentam a execução de procedimentos de curativo em ferida contaminada.
MÉTODO
Trata-se de pesquisa exploratória descritiva, com abordagem qualitativa, realizada na plataforma de compartilhamento de vídeos Youtube ®, no endereço virtual: www.youtube.com. A plataforma foi escolhida devido à facilidade no acesso por parte de seus usuários em consultar informações de qualquer natureza. Os dados foram coletados após a visita aos vídeos que apresentaram a execução dos procedimentos de curativo em ferida contaminada.
Os termos utilizados para a busca no site foram: curativo contaminado, curativo contaminado com pinças, curativo de ferida contaminada, limpeza de ferida contaminada, curativo de ferida infectada e curativo de ferida aberta. Adicionou-se o uso dos filtros de pesquisa, da própria plataforma, sendo eles: data do upload (nos últimos 5 anos), tipo (vídeo), duração (4-20 minutos) e ordem (data de envio). Como critérios de elegibilidade, apenas vídeos que utilizam a Língua Portuguesa do Brasil foram inclusos e demonstrações que fazem alusão ao ambiente médico - hospitalar. Buscas individualizadas foram realizadas para cada termo e os 100 primeiros vídeos5 foram selecionados, todos em Língua Portuguesa. Excluíram-se aqueles que apresentavam apenas uma parte do procedimento, caracterizados como “Shorts”, e vídeos patrocinados por empresas ou pessoas jurídicas.
A coleta de dados ocorreu entre os meses de novembro a dezembro de 2023. Para tal, procedeu-se à busca no dia 11 de novembro de 2023 pelas pesquisadoras, de forma independente, e os links inseridos na planilha do Excel®. A avaliação crítica dos vídeos foi realizada por meio de dois instrumentos elaborados pelas autoras, tomando-se como referencial estudos semelhantes6-8, também de forma independente. Após as informações serem alocadas em planilha e realizada uma primeira rodada de avaliação, as divergências e síntese final ocorreram mediante suporte de duas enfermeiras estomaterapeutas.
Com relação aos instrumentos, o primeiro comportou itens sobre a caracterização dos vídeos: data da postagem, quantidade de visualizações, tempo de duração, autor, executores do procedimento (docentes, discentes, enfermeiros, outros); quantidade de curtidas, comentários dos usuários e referências utilizadas para elaboração do vídeo.
O segundo instrumento, elaborado após consulta a livros, manuais e diretrizes para manejo e tratamento de feridas9-13, contemplou elementos considerados fundamentais para a execução do procedimento. As etapas foram agrupadas em domínios denominados de pré- procedimento, planejamento, execução e finalização do procedimento.
Após visualização dos vídeos na íntegra, os itens que compõem cada domínio foram avaliados em não realizado (NR), parcialmente realizado (PR), realizado (R) ou não se aplica (NA) e dispostos em números percentuais.
Todos os comentários disponíveis abaixo dos vídeos foram captados e inseridos no programa wordcloud, disponível em www.worldcloud.online/pt, os quais viabilizaram a obtenção da síntese de palavras positivas e negativas proferidas pelos visualizadores dos conteúdos. Os aspectos éticos foram fundamentados na Resolução 510/2016.
RESULTADOS
A busca inicial na plataforma Youtube ® resultou em 352 vídeos. Aplicados os critérios de elegibilidade, 286 foram excluídos por não apresentarem o procedimento completo e/ou por serem patrocinados por empresas ou pessoas jurídicas. Dos 66 vídeos que sobraram, 42 eram duplicados, resultando, ao final, em 24 vídeos elegíveis para análise crítica individual. Para sua identificação utilizou-se números cardinais, V1, V2 e assim sucessivamente.
Os 24 vídeos analisados somaram 929.089 mil visualizações e 49.760 mil curtidas. Observou-se predomínio da publicação dos vídeos no ano de 2020 (cinco; 20,8%), seguido de 2021 (oito; 33,3%) e 2022 (seis; 25%). Dos 24 vídeos, 18 (75%) apresentaram tempo mediano (entre 5min - 15min59seg), percentagem igual encontrada para os autores, sendo pessoas físicas. Em 11 (45,8%) vídeos, os participantes eram enfermeiros, em 10 (41,7%) discentes de enfermagem, e em três (12,5%) não foi possível identificar se os autores eram profissionais ou acadêmicos. Com relação às referências bibliográficas, em 23 (95,8%) vídeos não houve a disponibilização de quais referências foram utilizadas para a produção.
Pré-procedimento
A Tabela 1 apresenta os itens que compuseram a análise crítica das etapas elencadas no domínio pré-procedimento, com destaque aos momentos críticos observados na identificação do paciente, indagação sobre alergias, desinfecção da área de trabalho e higiene de mãos. Outros resultados são apresentados abaixo.
Planejamento
No domínio planejamento (Tabela 2), sobressaem-se resultados relativos aos materiais utilizados para a realização da técnica propriamente dita, o uso dos equipamentos de proteção individual (EPIs), o uso das soluções de limpeza, uso de coberturas primárias e secundárias e, de modo adicional, curativos cuja demonstração foi realizada em membros superiores e inferiores (MMSS/MMII), pois, dos 24 vídeos, em 11 (45,8%) a demonstração da técnica ocorreu em pernas ou tornozelos, e em quatro (16,7%) em MMSS.
Execução
No domínio execução, incluiu-se os itens que se relacionam à execução da técnica propriamente dita e, na análise apresentada, considerou-se apenas os vídeos em que houve o uso de pinças estéreis e luvas cirúrgicas (16 vídeos), sendo os oito vídeos restantes, desconsiderados, por serem demonstrados com luvas de procedimento e pinças não estéreis. Dos itens em análise, evidenciou-se o predomínio de etapas em desacordo com a literatura científica consultada, com destaque à manipulação segura de pacotes de curativos com pinças estéreis. A tabela 3 apresenta o resultado completo de todos os itens analisados.
Constatou-se que não foram utilizadas (n=24; 100%) ferramentas de avaliação da ferida. Com relação aos desbridamentos utilizados, houve predomínio do instrumental com pinças (12; 50%), seguido do mecânico com gazes (11; 45,8%). Em um vídeo (4,2%) não foi realizado desbridamento, pois a demonstração ocorreu em tecido de granulação. Em seis vídeos (25%), embora o tecido de granulação estivesse presente, houve demonstração do desbridamento instrumental.
Finalização
No domínio finalização, foram elencadas três etapas. Em 16 (66,7%) vídeos não houve o retorno ao posto de Enfermagem, em 19 (79,2%) não houve a higienização das mãos e em 20 (83,3%), a checagem da prescrição com registro do procedimento não ocorreu.
Foram identificados 1.181 comentários, embora em dois vídeos essa função estivesse desativada; e, em quatro, não estivessem presentes. Elaborou-se uma nuvem de palavras com os três comentários positivos e três comentários negativos de cada vídeo representado na Figura 1.
Nuvem de palavras com síntese dos comentários positivos à esquerda e negativos, à direita, dos vídeos analisados. Brasília, DF, Brasil, 2024
DISCUSSÃO
Análise crítica dos vídeos que compuseram a amostra final desta pesquisa, disponíveis na plataforma Youtube ®, possibilitou identificar lacunas na produção dos materiais, os quais são consumidos por leigos, mas também tem o seu espaço na educação e formação acadêmica. Assim, são utilizados por professores e estudantes da área da saúde, em especial de enfermagem, uma vez que o procedimento de curativo é uma habilidade essencial na formação de enfermeiros.
O consumo de vídeos, podcasts, imagens, divulgados em plataformas, aplicativos e, sobretudo, mídias sociais, é uma realidade que vai ao encontro do perfil de estudantes matriculados em cursos de graduação. Um estudo que identificou a idade média dos estudantes de enfermagem em quatro universidades públicas revelou que a faixa etária predominante está entre 20 e 24 anos, ou seja, faixa etária que compõem a chamada geração Z ou millennials14. Esses jovens, os millennials, nascidos entre 1982 e 2004; e a geração Z, nascidos de 2005 ao presente, são gerações formadas por indivíduos adaptados à internet, redes sociais, e que fazem uso das tecnologias, sobretudo os smartphones15. Quando necessitam de conteúdos e informações, mesmo que de cunho acadêmico e científico, a preferência é por produtos com mensagens sintetizadas, curtas e de fácil acesso.
Nessa seara, os vídeos do Youtube ® são uma ferramenta para acesso à informação e conhecimento, porém, necessitam de curadoria específica quando utilizados na formação profissional. Outro estudo sobre aprendizagem de novas habilidades em enfermagem comparou o ensino com demonstração e o associado a vídeos do Youtube ®. Os achados indicaram que o estilo de aprendizagem preferido dos participantes era visual (41,7%), seguido pela combinação visual, tátil e auditiva (41,7%) e todos os entrevistados (100%) relataram que os vídeos aumentam o aprendizado e os prepara melhor para a prática16. Por outro lado, uma revisão sistemática que abordou a qualidade de informações sobre saúde em vídeos do Youtube ® indicou que os conteúdos das produções analisadas apresentavam qualidade média ou abaixo da média. Os mesmos autores concluíram que o Youtube ® não é uma fonte confiável de informações médicas e relacionadas à saúde17.
Em relação aos domínios que compuseram o instrumento para análise crítica dos vídeos, na etapa pré-procedimento, falhas foram observadas e salientam a importância do reforço a práticas elementares no cuidado assistencial. A higienização das mãos continua a ser a prática mais eficiente e menos dispendiosa para a prevenção de infecções relacionadas à assistência em saúde (IRAS), estando presente plenamente em apenas 10 (41,7%) vídeos no momento da entrada do profissional na unidade e em apenas quatro (16,7%), quando o profissional deixa a unidade. É essencial resgatar que a higienização das mãos está contemplada entre as metas de segurança do paciente e os cinco momentos para higienização das mãos reforça a necessidade de sua realização18. Na mesma linha, a identificação do paciente não foi citada na maioria dos vídeos. Esta prática, também prevista nas metas de segurança do paciente, previne que erros associados à realização de procedimentos18, como administração de medicamentos, nutrição, exames, cirurgias, a exemplo, sejam realizados de forma equivocada. Além disso, observou-se que em 23 (95,8%) vídeos não houve a verificação da presença de alergias, expondo dessa forma, o paciente, a reações alérgicas que podem ser desde as mais leves até as fatais. Reforçar nos vídeos aspectos associados à segurança do paciente, higiene e limpeza em ambiente assistencial, resgatam a memória dos espectadores, a importância da implementação e a manutenção de boas práticas básicas ao cuidado de enfermagem.
No que compele aos instrumentos e materiais utilizados nas etapas de planejamento e execução, a SF 0,9% é a solução básica para a higiene de feridas, embora outras, tal como a polihemetileno biguanida e o ácido hipocloroso, possam substituir esse produto. Isotônico e de baixa toxicidade1, a SF é acessível e disponível para diferentes locais de prestação de cuidados. Para a limpeza de feridas, o aquecimento é recomendado pois a divisão de células ocorre em temperatura fisiológica, próximo a 37°C, portanto, é relevante a inclusão desta prática na demonstração e execução do procedimento. Outro item de atenção é o uso da agulha 40 x 12 mm para produção do jato de SF 0,9%, o qual não deve superar 15 psi para preservação de tecidos neoformados, e considerada adequada para a remoção de sujidades e impurezas no leito da ferida12. Destaca-se que para este item, em 62,5% dos vídeos analisados, não houve o uso deste dispositivo.
Durante a execução, seja esta realizada com pinças estéreis ou luvas cirúrgicas, merecem destaque os aspectos relativos à abertura e manipulação segura dos materiais estéreis. Em nenhum dos vídeos foi citado a verificação da integridade e validade dos materiais. Outro aspecto é a contaminação, observada em 60% de vídeos que utilizaram pinças e 33,4% daqueles que utilizaram luvas cirúrgicas. Embora contaminada, a realização do curativo deve seguir técnica asséptica em todas as etapas de sua realização, a fim de se evitar que germes externos acessem o leito da ferida e possam colonizá-la. Atualmente, um dos grandes problemas associados à cicatrização de feridas relaciona-se ao biofilme, comunidades bacterianas protegidas por matriz de polissacarídeos, proteínas e DNA, que estimulam a resposta inflamatória crônica. Neste sentido, sua remoção é possível por meio da limpeza, mas sobretudo pelo desbridamento1.
De acordo com recente consenso internacional, feridas de difícil cicatrização e crônicas devem ser tratadas segundo a realização coordenada de quatro ações, as quais cooperam para remoção do biofilme: limpeza, desbridamento, remodelamento das bordas e cobertura. No que concerne à remoção do tecido necrótico, esfacelo, detritos e biofilme, o desbridamento deve ser realizado em cada troca, e o método selecionado segundo a avaliação das características da ferida1. Embora presente em diversos vídeos analisados nesta pesquisa, o desbridamento em tecido de granulação não é previsto, pois a técnica é realizada para remoção de tecidos desvitalizados, detritos estranhos e biofilme1. Em seis vídeos houve a demonstração do desbridamento, alguns em tecido de granulação, porém não mencionaram a presença de agentes que prejudicam a cicatrização de feridas.
Além destes fatores, a ausência de ferramentas para avaliação de feridas e seleção de coberturas chamou a atenção. O acrônimo MEASURE possibilita avaliar o tamanho das feridas, exsudação e tecidos aderidos, entre outros itens19. O TIMERS, o qual avalia tecido, inflamação, umidade, bordas, regeneração/reparo e fatores sociais, fornece informações relevantes e auxilia o profissional a selecionar a cobertura adequada para o tratamento da ferida dos pacientes20.
Na finalização do procedimento, a ausência do registro de enfermagem identificada em 83,3% dos vídeos destacou-se nas inconformidades. A Resolução do Conselho Federal de Enfermagem n.° 754/202421 dispõe sobre o registro das ações dos profissionais de enfermagem no prontuário do paciente, independente do meio de suporte. Em 2016, o mesmo Conselho, publicou um Guia o qual apresenta orientações para boas práticas no momento do registro das atividades realizadas e, de modo mais atual, a Resolução n.º 736 de janeiro de 202422, a qual dispõe sobre a implementação do Processo de Enfermagem, reitera sobre a importância dos registros de enfermagem realizados pelos membros da equipe de enfermagem em prontuário, seja este físico ou eletrônico.
Por fim, discutir os comentários realizados pelo público espectador é pertinente, observadas as potências dos recursos audiovisuais no Youtube ®, mas também as lacunas e inconformidades referentes às práticas baseadas em evidências analisadas nos vídeos. Ao passo que as fragilidades foram identificadas e registradas nos comentários, como “inadequado”, “contaminou” e “horror”, respostas como “excelência”, “excelente explicação” e “perfeito” indicam a não observância das inconsistências, portanto, motivo de preocupação pois, a quebra de técnica e protocolos pode ser replicada, caso o espectador utilize o vídeo como base para prática em ambiente real.
Estudo de revisão sistemática a respeito da qualidade das informações de vídeos sobre saúde disponíveis no Youtube ® analisou 202 artigos. Um terço correlacionou a qualidade dos vídeos analisados com suas métricas de popularidade, incluindo o número de visualizações, curtidas, não curtidas, compartilhamentos e comentários. Em 23 não identificaram correlação entre o número de visualizações e a qualidade dos vídeos e 13 encontraram correlação negativa, ou seja, os vídeos de qualidade inferior foram vistos com mais frequência do que os vídeos de qualidade superior16.
O Youtube ® opera por métricas e sistema de recomendação por número de curtidas, comentários e compartilhamento23, mas em se tratando de vídeos com cunho instrucional, a exemplo dos analisados nesta pesquisa, nem sempre os conteúdos serão os mais exatos e fidedignos, pois estes são de responsabilidade exclusiva dos YouTubers.
Em relação às limitações, destaca-se a transversalidade da presente pesquisa e a análise de um número restrito de vídeos. A plataforma selecionada é alimentada constantemente, portanto, novas buscas podem identificar um novo quantitativo de vídeos. Embora o YouTube seja uma fonte rica e acessível para análise de conteúdos audiovisuais em saúde, as limitações relacionadas a ausência de informações contextuais, como etiologia das feridas em que se demonstra o procedimento, tipo de materiais utilizados, a formação dos profissionais e omissão de etapas importantes do procedimento, devem ser reconhecidas e discutidas. Além disso, observa-se a falta de padronização do conteúdo, pois há grande variação na técnica, nos materiais apresentados e na forma de apresentação. Complementar a esses pontos, há o viés temporal e de atualização, haja vista que vídeos antigos podem apresentar técnicas ultrapassadas ou desatualizadas e avanços recentes em produtos e métodos de curativos podem não estar contemplados.
CONCLUSÃO
O objetivo deste estudo foi analisar vídeos do Youtube ® que apresentavam a execução do procedimento de curativo em ferida contaminada. A partir da análise realizada, verificou-se que muitos vídeos apresentaram inconformidades quando comparadas com as etapas descritas na literatura e baseadas em evidências científicas. Apesar do Youtube ® possuir em seu escopo materiais de fácil e livre acesso, diversos vídeos postados na plataforma não podem ser utilizados para fins educacionais, uma vez que comprometerão o aprendizado dos estudantes de enfermagem; e, consequentemente, a assistência prestada ao paciente.
Como dificuldades encontradas, podemos citar a presença de vídeos que não correspondiam aos termos pesquisados na ferramenta de busca e a duplicidade de vídeos nas pesquisas feitas com diferentes termos. O algoritmo YouTube ® prioriza alguns canais e apresenta aqueles com maior popularidade - número de visualizações, curtidas e comentários.
Devido ao fácil acesso à plataforma para fins educacionais, recomenda-se que haja produção e postagem de vídeos baseados em literatura científica, tornando-se dessa forma, fontes seguras para consulta. Além disso, é necessário que as buscas por materiais relacionados ao tema sejam realizadas em fontes confiáveis, de preferência em sites de entidades e associações, bem como a consulta a livros, artigos, diretrizes e consensos da área. Para os docentes de enfermagem que utilizam essa ferramenta em sala de aula, e estudantes que acessam de forma irrestrita vídeos com o objetivo de aprender habilidades em procedimentos, se faz necessária a seleção e avaliação rigorosa do material, pois informações errôneas reproduzidas em ambiente assistencial trazem sérios riscos à saúde e segurança dos pacientes.
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COMO REFERENCIAR ESTE ARTIGO:
Cauduro FLF, Justino RR. Procedimento de curativos em feridas contaminadas: uma análise de vídeos em plataforma online. Cogitare Enferm [Internet]. 2025 [cited “insert year, month and day”];30:e96621pt. Available from: https://doi.org/10.1590/ce.v30i0.96621pt
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
01 Set 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
20 Ago 2024 -
Aceito
30 Abr 2025


Fonte: Os autores (2024).