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Denegrindo trajetórias acadêmicas: formação docente em Química e a Lei 10.639/2003

Blackening academic curricula: teacher education in Chemistry and law 10639/2003

Resumo

O racismo que engendrou todo tipo de sofismas para difundir a tese de que a África e sua diáspora são constituídas de seres inferiores modulou um currículo que o produz e reproduz em sala de aula. Em contrapartida, as populações negras têm resistido. Na esteira desse movimento contra hegemônico, este artigo teve como objetivo conhecer e analisar o desenvolvimento e planejamento de uma intervenção pedagógica em um curso de formação de professores de Química, na disciplina Educação para as Relações Étnico-Raciais no Ensino de Ciências-Química, desenvolvida pelo Coletivo X. O trabalho, caracterizado como pesquisa-ação emancipatória, coligiu dados empíricos por registro fílmico, que foram analisados conforme elementos de uma análise bakhtiniana. Os resultados permitiram reconhecer a responsividade dos licenciandos nas discussões levantadas, a polifonia da natureza dos enunciados e concluir sobre uma habilidade afroperspectivista, que os docentes terão que desenvolver para denegrir o ensino de Química, denominada de polirracionalidade.

Palavras-chave
Ensino de química; Descolonização; Formação de professores; Polirracionalidade

Abstract

Racism, which spawned all manner of sophism in order to spread the thesis that Africa and its diaspora are made up of inferior beings, modulated a curriculum that produces and reproduces it in the classroom. Black populations, on the other hand, have resisted. In the aftermath of this counter-hegemonic movement, the purpose of this article was to comprehend and analyze the design and implementation of a pedagogical intervention in a Chemistry teacher training program in the course Education for Ethnic-Racial Relations in Science-Chemistry, developed by Coletivo X. The emancipatory action research project gathered empirical data through video recordings that were analyzed using elements of a Bakhtinian analysis. The findings allowed for the identification of the prospective teachers' responsiveness to the issues raised in the discussions, the polyphony of the nature of the utterances, and the drawing of conclusions about a skill called polyrationality, which teachers will need to master in order to blacken the teaching of chemistry.

Keywords
Chemistry teaching; Decolonization; Teacher training; Polyrationality

Introdução

O racismo antinegro é uma tecnologia do poder. Para Fanon (2008)FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008., Mbembe (2016)MBEMBE, A. Necropolítica. Artes & Ensaios, Rio de Janeiro, v. 32, p. 123-151, 2016. e Oliveira (2018)OLIVEIRA, L. S. Racismo de estado e suas vias para fazer morrer. 2018. Dissertação (Mestrado em Filosofia) - Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2018. é o racismo que aparta a espacialidade dos mundos colonizados em territórios típicos: a zona do ser (do colonizador e seus descendentes, bairros nobres) e a zona do não ser (habitada majoritariamente por pessoas negras, periferias). O não ser é aquele homem-espécie que é alvo das políticas de morte: o aniquilamento físico, o encarceramento em massa e o epistemicídio. Conforme Oliveira (2018)OLIVEIRA, L. S. Racismo de estado e suas vias para fazer morrer. 2018. Dissertação (Mestrado em Filosofia) - Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2018., essas são as vias pelas quais o racismo, enquanto tecnologia das relações assimétricas da sociedade, opera trazendo morte para a população negra do Brasil. Neste artigo, enfoca-se sobre o racismo em sua dimensão epistêmica, ou seja, acerca das realizações deste inconveniente social em favor do aniquilamento, silenciamento, inferiorização do sistema de referências negro-africano que contribui para coisificação desse grupo racial.

A formação de professores, pautada pelo reconhecimento do Estado brasileiro da necessidade de se combater esse racismo, tem como um de seus principais marcos a Lei 10.639/2003 (BRASIL, 2003BRASIL. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática ‘história e cultura afro-brasileira’, e dá outras providências. Brasília, DF: Câmara dos Deputados, 2003. Disponível em: https://tinyurl.com/2dvvbkyx. Acesso em: 12 set. 2023.
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) - que obriga o ensino de cultura e história africana e afro-brasileira na Educação Básica - e as diretrizes correlatas (Parecer n° 1 do Conselho Nacional de Educação, de 2004) que orientam quanto à necessidade, especialmente das licenciaturas, de proverem espaços formativos para ações afirmativas em favor da população negra. Na Educação em Ciências e Matemática, pesquisas têm sido desenvolvidas no sentido de instrumentalizar professores desse amplo campo de conhecimentos (BENITE, CAMARGO; AMAURO, 2020BENITE, A. M. C.; CAMRGO, M. J. R.; AMAURO, N. Q. Trajetórias de descolonização da escola: o enfrentamento do racismo no ensino de ciências e tecnologias. Belo Horizonte: Editora Nandyala, 2020.; CUNHA, 2008CUNHA, L. R. P. Oguntec, um novo tom para a ciência na Bahia: o desvelar de uma proposta pedagógica anti-racista para a educação científica de jovens negros e negras. 2008. Dissertação (Mestrado em Ensino, Filosofia e História das Ciências) - Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2008.; CUNHA JÚNIOR, 2010CUNHA JÚNIOR, H. A. Tecnologia africana na formação brasileira. Rio de Janeiro, CEAP, 2010.; FRANCISCO JÚNIOR, 2007FRANCISCO JÚNIOR, W. E. Opressores-oprimidos: um diálogo para além da questão étnico-racial. Química Nova na Escola, São Paulo, n. 26, p. 10-12, 2007.; PINHEIRO, 2020; VERRANGIA, 2016VERRANGIA, D. Criações docentes e o papel do ensino de ciências no combate ao racismo e a discriminações. Educação em Foco, Juiz de Fora, v. 21, n. 1, p. 79-103, 2016.) e prover materiais didáticos.

O presente artigo justifica-se por ser uma tentativa de contribuir para esse campo recente no Brasil. Relatou-se o trabalho investigativo com professores em formação inicial em um curso de licenciatura em Química de uma universidade pública do Centro-Oeste. Este artigo é um recorte revisado de uma tese de doutoramento do primeiro autor, da qual apresenta-se uma intervenção pedagógica (IP) da disciplina Educação para as Relações Étnico-Raciais no Ensino de Ciências/Química. O problema que mobilizou a pesquisa, portanto, foi compreender como formar professores de química habilitados a implementar a Lei 10.639/2003 (BRASIL, 2003BRASIL. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática ‘história e cultura afro-brasileira’, e dá outras providências. Brasília, DF: Câmara dos Deputados, 2003. Disponível em: https://tinyurl.com/2dvvbkyx. Acesso em: 12 set. 2023.
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) e, a partir desse processo, refletir sobre aspectos teóricos e práticos da ação docente do formador do currículo pré-ativo ao currículo em ação. O objetivo do artigo é conhecer e analisar o processo de planejamento e desenvolvimento da IP de modo a suscitar um debate epistemológico e prático do processo contra hegemônico de denegrir o ensino de Química.

Denegrir (Enegrecer) o ensino de Química

Denegrir é um conceito filosófico afroperspectivista proposto por Noguera (2011)NOGUERA, R. Denegrindo a filosofia: o pensamento como coreografia de conceitos afroperspectivistas. Griot: revista de filosofia, Amargosa, v. 4, n. 2, p. 1-19, 2011. Doi: https://doi.org/10.31977/grirfi.v4i2.500.
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, que pode ser traduzido como enegrecer, ou reconhecer interpretações e cosmovisões subalternizados em razão de sistemas classificatórios impetrados pela colonização, como raça, gênero, sexualidade e classe. Logo, sugere-se que, enquanto modelo pedagógico, diz respeito a um processo de renovação curricular: pluralizar cânones, variar nas abordagens, incluir conhecimentos invisibilizados etc. Esse conceito indica a superação do racismo em sua dimensão epistêmica, compreendendo-se este aspecto do racismo como o que ataca as produções culturais cunhada em bases não europeias em busca do apagamento, do silenciamento quiçá do seu epistemícidio.

Ora, se denegrir o ensino de Química refere-se à superação do racismo epistêmico no ensino e aprendizagem dessa disciplina, como o elenco de temas que a sustenta poderia ser revisitado a fim de atender esta reinvindicação? Para esta inquietação pode-se dar duas orientações. A primeira, é que uma aula de Química não é um momento de neutralidade absoluta em que as pessoas deixam de ser o que são para ocupar uma carteira da classe e, unicamente, aprender Química. A escola é microcosmo social, a sala de aula é constituída de sujeitos sociais, assim, se o racismo antinegro permeia toda sociedade, com muita certeza podemos inferir que este fenômeno também estará na escola, o que inclui a aula. Em Camargo e Benite (2019)CAMARGO, M. J. R.; BENITE, A. M. C. Educação para as relações étnico-raciais na formação de professores de química: sobre a lei 10.639/2003 no ensino superior. Química Nova, São Paulo, v. 42, n. 6, p. 691-701, 2019. Doi: https://doi.org/10.21577/0100-4042.20170375.
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apresenta-se um exemplo disso: turnos de falas racistas foram produzidas por alunos durante a execução de um experimento que utilizava uma palha de aço em uma reação de oxirredução, em que temas como reconhecimento de reações químicas e conservação de massas eram discutidos.

A segunda orientação é que a Química que se ensina, é uma ciência já a muito estabelecida e que deveria ser apresentada como construção coletiva humana em um processo histórico não linear. De acordo Camargo e Benite (2019CAMARGO, M. J. R.; BENITE, A. M. C. Educação para as relações étnico-raciais na formação de professores de química: sobre a lei 10.639/2003 no ensino superior. Química Nova, São Paulo, v. 42, n. 6, p. 691-701, 2019. Doi: https://doi.org/10.21577/0100-4042.20170375.
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, p. 692),

Há variadas possibilidades para essa ampliação do foco curricular no ensino de Química, por exemplo, propiciando a superação da ideia de que a contribuição africana e afro-brasileira à formação da sociedade brasileira contemporânea se deu apenas nas manifestações folclóricas, culinárias, samba etc. Resgatar a produção de saberes técnicos e tecnológicos de matriz africana e da diáspora em Química é combater a insipiência sobre as origens da vida material e deter a desvalorização da herança cultural africana e afrodescendente tão determinante para a formação da nossa sociedade.

Importa salientar que os primeiros trabalhos que discutem possibilidades de intersecção entre o ensino de ciência naturais, matemática e suas tecnologias são recentes no Brasil, sendo Cunha Júnior (2010)CUNHA JÚNIOR, H. A. Tecnologia africana na formação brasileira. Rio de Janeiro, CEAP, 2010. importante referência, assim como Cunha (2008)CUNHA, L. R. P. Oguntec, um novo tom para a ciência na Bahia: o desvelar de uma proposta pedagógica anti-racista para a educação científica de jovens negros e negras. 2008. Dissertação (Mestrado em Ensino, Filosofia e História das Ciências) - Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2008. e Francisco Júnior (2007)FRANCISCO JÚNIOR, W. E. Opressores-oprimidos: um diálogo para além da questão étnico-racial. Química Nova na Escola, São Paulo, n. 26, p. 10-12, 2007.. Mas, em resumo, enegrecer o ensino de Química pressupõe reeducar para as relações étnico-raciais de um lado e incluir os temas ensejados pela Lei 10.639/2003 (BRASIL, 2003BRASIL. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática ‘história e cultura afro-brasileira’, e dá outras providências. Brasília, DF: Câmara dos Deputados, 2003. Disponível em: https://tinyurl.com/2dvvbkyx. Acesso em: 12 set. 2023.
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), por outro. Para Gonzaga (2018)GONZAGA, Y. M. A reeducação para as relações étnico-raciais: compromisso ético e político. In: CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES NEGROS, 10., Uberlândia, 2018. Anais [...]. Disponível em: https://tinyurl.com/yh9jxx9b. Acesso em: 12 set. 2023.
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, a reeducação para as relações étnico-raciais presume um comprometimento ético e político do corpo docente e administrativo da escola, que deverão renunciar concepções e falas homogeneizantes (que vivemos em uma democracia racial, por exemplo) para notarem que pessoas negras são reais e devem ser respeitadas. “Eles/as terão de construir um ethos que contemple a diversidade étnico-racial em suas ações” (GONZAGA, 2018GONZAGA, Y. M. A reeducação para as relações étnico-raciais: compromisso ético e político. In: CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES NEGROS, 10., Uberlândia, 2018. Anais [...]. Disponível em: https://tinyurl.com/yh9jxx9b. Acesso em: 12 set. 2023.
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, p. 13).

Pondera-se que essas ações que não devem ser pontuais, mas sistêmicas ou, em outras palavras, devem estar presentes no dia a dia da sala de aula, no pátio recreativo, na sala dos professores, na direção da escola, nas reuniões com os responsáveis dos discentes e, se possível for, até mesmo na vizinhança das escolas. Concorda-se com Onofre (2008ONOFRE, J. A. Repensando a questão curricular: caminho para uma educação antirracista. Revista Praxis Educacional, Jequié, v. 4, n. 4, p. 103-122, 2008. Disponível em: https://tinyurl.com/5n6bta93. Acesso em: 29 jul. 2022.
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, p. 118) que:

Uma política educacional que pretenda recuperar as culturas negadas não pode se restringir à sua discussão uma vez ao ano, reduzindo-se a unidades e lições isoladas, a exemplo das datas comemorativas. Essas são importantes e precisam ser lembradas, mas tais temáticas necessitam percorrer todo o ano letivo. As culturas silenciadas devem estar presentes nas atividades escolares, nos recursos didáticos, nos planejamentos, nas reuniões dos docentes, enfim em todo coletivo escolar.

Defende-se, portanto, a educação científica em concomitância com o letramento racial, ou seja, no caso da Química, é preciso se preocupar com o ensino e a aprendizagem dos seus conceitos, suas aplicações, linguagem e processos amplamente difundidos e presentes na vida social. Também, não se pode prescindir da educação para as relações étnico-raciais que tem como conteúdos a história e cultura negro-africanas, a discussão do eurocentrismo colonial como forma de apagamento do patrimônio científico e tecnológico dentre outros e, principalmente, fazer o uso social dessas aprendizagens.

É imperativo, logo, que não apenas a escola, mas que fundamentalmente ela, seja um espaço para o letramento racial da juventude, de negros e não negros. Por letramento racial entende-se, a partir da concepção freiriana do letrar-se, como não apenas a apropriação de leituras e escritas como um fim em si mesmas, mas, no caso da educação antirracista, não se trata somente de aprender a ler e a escrever sobre raça e racismo, mas de se apropriar dessas aprendizagens como meio para ler, interpretar e, sobretudo, transformar a realidade.

Advoga-se que a presença negra no componente curricular Química - ou nas ciências naturais em geral - não pode mais ser apagada ou renunciada. Essa mudança pressupõe uma renovação do conhecimento químico com novas abordagens, perspectivas e novos saberes. Neste sentido, entende-se que se abre a possibilidade da inclusão de uma episteme afropindorâmica (matriz quilombola e indígena), conforme definiu Santos (2015SANTOS, A. B. Colonização, quilombos, modos e significados. Brasília: Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Inclusão no Ensino, 2015., p. 85) “[...] em que tudo que fazemos é produto da energia orgânica [logo] esse produto deve ser reintegrado a essa mesma energia”. Essa relação comunidade e natureza é de complementaridade, e que Santos (2015)SANTOS, A. B. Colonização, quilombos, modos e significados. Brasília: Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Inclusão no Ensino, 2015. denomina de biointeração.

A despeito da dinâmica de expropriação do colonialismo e das falácias das sínteses e reciclagens do desenvolvimento (in)sustentável, Santos (2015)SANTOS, A. B. Colonização, quilombos, modos e significados. Brasília: Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Inclusão no Ensino, 2015. ressalta a importância da biointeração que se dá por meio de processos de reedição da natureza. A partir dessa lógica da biointeração, tudo que é produzido é direcionado para o bem viver da comunidade e, “[...] além disso, uma relação com a natureza que não é da ordem do acúmulo e do desperdício” (MORAES, 2019MORAES, M. J. D. A filosofia ubuntu e o quilombo: a ancestralidade como questão filosófica. Revista África e Africanidades, Rio de Janeiro, ano XII, n. 32, p. 1-11, 2019., p. 9). Isto posto, argumenta-se que é possível criar uma atmosfera de diálogos interculturais possibilitando o deslocamento epistêmico de currículo de Química. Interculturalidade, neste artigo, refere-se a uma relação de reciprocidade e intervalorização de saberes em busca do ganho de experiência e questionando a pretensão da ciência moderna de se colocar como saber unicamente válido (SANTOS, 2008SANTOS, B. S. Um discurso sobre as ciências. São Paulo: Cortez, 2008.). Compreende-se então que “Não se trata de uma abordagem rasa ou de usar o saber tradicional como objeto da ciência moderna, mas de garantir a presença de saberes não hegemônicos no currículo em ação e de insurgência ao epistemicídio” (SANTOS; CAMARGO; BENITE, 2020SANTOS, M. A.; CAMARGO, M. J. R.; BENITE, A. M. C. Vozes griôs no ensino de química: uma proposta de diálogo intercultural. Revista Brasileira de Pesquisas em Educação em Ciências, Belo Horizonte, v. 20, p. 919-947, 2020. Doi: https://doi.org/10.28976/1984-2686rbpec2020u919947.
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, p. 924).

Também, como pontua Cunha (2008CUNHA, L. R. P. Oguntec, um novo tom para a ciência na Bahia: o desvelar de uma proposta pedagógica anti-racista para a educação científica de jovens negros e negras. 2008. Dissertação (Mestrado em Ensino, Filosofia e História das Ciências) - Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2008., p. 109), esse movimento de inclusão não significa negação da ciência:

Ao referendar conhecimentos populares como a farmacologia das plantas medicinais, não queremos negar a grande vantagem conferida hoje ao conhecimento científico. Ou seja, ainda que os conhecimentos tradicionais tenham se revelado de grande relevância para a preservação das comunidades e tragam grandes contribuições sobre a compreensão do ambiente natural, não se pode negar a imensa vantagem adquirida pela ciência a partir de sua profissionalização e do volume de recursos que foram empregados no seu desenvolvimento ao longo da história.

Propõem-se, pela via da interculturalidade, o diálogo horizontal entre ciência e saberes tradicionais. Mas, como também salientou Cunha (2008)CUNHA, L. R. P. Oguntec, um novo tom para a ciência na Bahia: o desvelar de uma proposta pedagógica anti-racista para a educação científica de jovens negros e negras. 2008. Dissertação (Mestrado em Ensino, Filosofia e História das Ciências) - Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2008., o universalismo eurocêntrico da ciência não apenas busca colocá-la como episteme superior, como também pela exclusão das contribuições históricas de não-brancos à sua própria edificação. Em vista disso, argumenta-se que a formação de professores pode contribuir para catalisar esses diálogos interculturais. Nas próximas linhas, é apresentado o caminho metodológico da pesquisa que se deu em uma disciplina proposta e desenvolvida para instrumentalizar professores de Química, para a implementação da Lei 10.639/2003 (BRASIL, 2003BRASIL. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática ‘história e cultura afro-brasileira’, e dá outras providências. Brasília, DF: Câmara dos Deputados, 2003. Disponível em: https://tinyurl.com/2dvvbkyx. Acesso em: 12 set. 2023.
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) em um curso de licenciatura.

Metodologia

O trabalho desenvolvido configurou-se como uma pesquisa-ação emancipatória. Logo, se entende como um trabalho coletivo, focado na resolução de um problema, realizado em ciclos espirais e que se compromete com a emancipação social em colaboração aos movimentos sociais (CARR; KEMMIS, 1988CARR, W.; KEMMIS, S. Teoria crítica de la enseñanza. Barcelona: Ed. Martinez Roca, 1988.). A pesquisa foi realizada no âmbito das atividades do Laboratório de Pesquisas em Educação Química e Inclusão (LPEQI), notadamente o Coletivo Ciata, que é um grupo de estudo que discute história e cultura negra na Educação em Ciências. Neste artigo, por motivo de espaço, é analisada uma das IPs realizadas no primeiro ciclo da pesquisa-ação.

Importa descrever, portanto, as etapas dessa investigação que se inicia com o seguinte problema: como instrumentalizar professores de Química para educação e para as relações étnico-raciais e a implementação da Lei 10.639/2003? Esse questionamento mobilizou o grupo de estudo na elaboração de uma disciplina que foi proposta ao colegiado do curso de Licenciatura em Química de uma Universidade Federal. Sendo aceita como disciplina do núcleo optativo do curso, passamos à fase de elaboração de intervenções pedagógicas que totalizaram 15 IPs. A etapas seguintes foram: ação - desenvolvimento das IPs em sala de aula - e, concomitantemente, o processo de avaliação e reflexão dessas IPs. Por fim, encaminhou-se a investigação para o replanejamento e sistematização das reflexões realizadas, para o início de um novo ciclo. Na figura 1, apresenta-se o fluxograma da pesquisa-ação.

Figura 1
Fluxograma de desenvolvimento do trabalho investigativo

O plano da IP foi considerado um resultado desta pesquisa. Assim, para conhecer o processo de construção da IP, optou-se por descrever o plano e as reflexões que emergiram dessa empreitada. Assim, considera-se que a prática docente não se efetiva apenas na sala de aula, mas, também, no planejamento aqui entendido como currículo pré-ativo (LOPES, 2007LOPES, A. C. Currículo e epistemologia. Ijuí: Editora Unijuí, 2007.).

Os dados empíricos foram coletados mediante registro fílmico das IPs, importa dizer que os participantes assinaram termo de consentimento livre e esclarecido e que esta pesquisa cumpriu as normas do Comitê de Ética da Universidade Federal de Goiás (UFG). O material audiovisual foi transcrito e analisado tendo como referencial elementos de uma análise bakhtiniana conforme proposto por Veneu, Ferraz e Rezende (2015)VENEU, A.; FERRAZ, G.; REZENDE, F. Análise de discursos no ensino de ciências: considerações teóricas, implicações epistemológicas e metodológicas. Ensaio, Belo Horizonte, v. 17, n. 1, p. 126-149, 2015. Doi: https://doi.org/10.1590/1983-211720175170106.
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. Na transcrição o registro de cada interlocução é representado por turnos dispostos cronologicamente e agrupados em extratos para efeito de análise.

O uso dessa ferramenta analítica cumpriu seguintes passos: a identificação dos enunciados - compreendidos como unidade real da comunicação discursiva, cujos enunciadores, nos turnos, são identificados por códigos alfanuméricos, onde L refere-se aos licenciandos/as e F1 ao doutorando, na situação como professor formador, que conduziu o desenvolvimento da IP - as leituras preliminares; a descrição do contexto extra verbal1 1 Apesar desta distinção entre as etapas, a análise do contexto extra verbal permeia as demais etapas num movimento dialético. e, por fim, a análise se dá na dinâmica relação entre alguns conceitos bakhtinianos, o objetivo da pesquisa e os elementos linguísticos (VENEU; FERRAZ; REZENDE, 2015VENEU, A.; FERRAZ, G.; REZENDE, F. Análise de discursos no ensino de ciências: considerações teóricas, implicações epistemológicas e metodológicas. Ensaio, Belo Horizonte, v. 17, n. 1, p. 126-149, 2015. Doi: https://doi.org/10.1590/1983-211720175170106.
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). Adapta-se esta ferramenta ao reconhecer a centralidade da raça nos referenciais adotados enquanto quadro teórico na análise e discussão dos resultados.

Resultados e discussões

O plano da terceira IP desenvolvida na concretização da disciplina é apresentado no quadro 1. Buscou-se, primeiramente, caracterizar o processo de planejamento e algumas dificuldades correlatas à sua construção à luz de referenciais orientados por uma perspectiva negra de teorização, ou seja, que reconheça a centralidade da raça no processo analítico.

Quadro 1
Intervenção Pedagógica

A IP apresentada no quadro 1, diz respeito aos temas específicos da Química acionados pelo acúmulo dos conteúdos propostos através da Lei 10.639/2003 (BRASIL, 2003BRASIL. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática ‘história e cultura afro-brasileira’, e dá outras providências. Brasília, DF: Câmara dos Deputados, 2003. Disponível em: https://tinyurl.com/2dvvbkyx. Acesso em: 12 set. 2023.
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) e diretrizes correlatas: abordar conhecimentos químicos, história e cultura africana e afro-brasileira e relações étnico-raciais. Essa relação traz consigo algumas singularidades: racionalizar possibilidades de promovê-la, convergindo objetivos da educação antirracista aos da Química pura e vice-versa; a inserção de recursos não comuns ao conteúdo da área de humanidades, como o laboratório de ensino de Química, por exemplo, ou, em sentido inverso, sobrepor recursos e métodos das humanidades na disciplina de Química; e, por fim, o planejamento do desenvolver e do avaliar de todo esse processo.

Essas especificidades podem ser vistas como obstáculos intransponíveis se vistas com as lentes da racionalidade cartesiana. No início de seus estudos sobre cultura negra e ensino de Química, o primeiro autor deste artigo já se viu diante desse embaraço quando indagava: “mas, o que tem a ver Química com a história e cultura negra? Com é possível ensinar as duas coisas?” E é justamente o dizer duas coisas, como entes dicotômicos, que revela, ao menos, dois aspectos desse estranhamento.

Primeiro, o desconhecimento de que, como prática social, os conhecimentos químicos sempre estiveram presentes em todas as sociedades e culturas ainda que não estruturados e socializados nos mesmos padrões epistemológicos da Química moderna (BENITE et al., 2017BENITE, A. M. C.; BASTOS, M. A.; CAMARGO; M. J. R.; VARGAS, R. N.; LIMA, G. L. M.; BENITE, C. R. M. Ensino de química e a ciência de matriz africana: uma discussão sobre as propriedades metálicas. Química Nova na Escola, São Paulo, v. 39, n. 2, p. 131-141, 2017. Doi: https://doi.org/10.21577/0104-8899.20160069.
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). A ciência de matriz africana é produto de uma visão de mundo específica: homem, natureza, tempo e espaço estão entre as noções divergentes entre as duas epistemes.

Contudo, de acordo com Bernardino-Costa (2018)BERNARDINO-COSTA, J. Decolonialidade, Atlântico negro e intelectuais negros brasileiros: em busca de um diálogo horizontal. Sociedade e Estado, Brasília, v. 33, n. 1, p. 119-137, 2018. Doi: https://doi.org/10.1590/s0102-699220183301005.
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, o processo histórico moderno/colonial em que a diferença colonial - conceito desenvolvido por evangelizadores espanhóis nas Américas no século XVI para classificar povos em superiores e inferiores, entre os que tinham a escrita e os que não tinham - estabeleceu o domínio colonial, instaurando perene deslegitimação das culturas originárias e também dos povos africanos e sua diáspora. O plano da IP rompeu com essa ideia, uma vez que colocou em debate os ferreiros africanos e o pioneirismo deles na difusão de técnicas e tecnologias de forja do ferro metálico para que o efetivar do planejamento consubstanciasse representações positivas do segmento negro em oposição à via epistêmica pela qual o racismo busca aniquilar o legado negro-africano para humanidade em ciência e tecnologia. Portanto, configurou-se como a tentativa de afirmar a ontologia africana.

O segundo aspecto desse estranhamento decorre de, às vezes, parecer impossível relacioná-las, uma vez que se pode considerar não haver, em um primeiro momento, elementos que as aproximem. Ou seja, como estabelecer o diálogo intercultural? A resposta a essa questão não parece simples, uma vez que, segundo Meneses (2006MENESES, M. P. Agentes do conhecimento? A consultoria e a produção de conhecimento em Moçambique. In: SANTOS, B. S. (org.). Conhecimento prudente para uma vida decente: um discurso sobre as ciências revisitado. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2006. p. 721-756., p. 732), a natureza eurocêntrica da ciência moderna:

[...] possui raízes históricas bem profundas que assentam na capacidade da retórica do saber moderno em colocar e promover, de modo convincente, uma constelação de potenciais centros e periferias numa dicotomia única e estável, onde este saber moderno se constitui como centro e o resto do mundo como periférico. Este centro confronta-se com extrema heterogeneidade das culturas a quem atribui o epíteto de periferia em vias de desenvolvimento.

Desse modo, para este diálogo a noção de superioridade da ciência moderna deve ser superada, assim como as tentativas de reduzir os conhecimentos de matrizes não europeias a apenas objetos da ciência moderna. O foco é estabelecer um diálogo polirracional, ou seja, dispor de variados modelos explicativos e modos de pensar, não para estabelecer hierarquias entre os tais, mas para confrontar a invisibilidade e explicitar o epistemicídio. Neste sentido, o plano da IP materializou essa concepção quando nele se propôs a discussão da história dos ferreiros africanos e seus conhecimentos, dinamicamente aos conceitos químicos.

O plano da IP apresentado, portanto, revela a intencionalidade e a ação dos formadores em prol de um compromisso ético e político com a educação antirracista. No entanto, foi preciso verificar se essa intencionalidade e os objetivos propostos nas IPs se concretizaram no currículo em ação. Entende-se, assim como Lopes (2007)LOPES, A. C. Currículo e epistemologia. Ijuí: Editora Unijuí, 2007., que as formas pré-ativas e interativas do currículo não se sobrepõem e que esta pode até mesmo subverter aquela, ainda que não seja factível desconsiderar os efeitos de primeira sobre a segunda. Portanto, nas seções subsequentes analisa-se e discute-se alguns extratos de discursos que constituem os dados empíricos da efetuação do plano apresentado.

O Extrato 1 ocorreu no contexto de discussão do texto Notas sobre a historiografia da arte do ferro nas Áfricas Central e Ocidental, de Pena (2004)PENA, E. S. Notas sobre a historiografia da arte do ferro nas Áfricas central e ocidental. In: ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA, 27., 2004, Campinas. Anais [...]. Disponível em: https://tinyurl.com/mr2afjpf. Acesso em: 2 ago. 2022.
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, em que são abordados conhecimentos e tecnologias da arte do ferro inventadas por africanos, especialmente os que habitavam o centro-sul africano, região da qual forçadamente foram transportados a maioria dos ancestrais africanos para o Brasil. O referido texto desconstrói a ideia de que os africanos traficados para o Brasil foram escolhidos aleatoriamente, mas, pelo contrário, foram deliberadamente sequestrados para fins específicos do sistema de produção colonial.

Extrato 1: Estranhamento às novas descobertas

71-L6: Eu achei interessante que desde aquela época já tinha toda uma habilidade. E aproveitando para fazer uma pergunta: o que é forja?

72-F1: Um modo de preparo que transforma o ferro em objetos.

73-L7: Eu achei interessante, deles [os europeus] traficarem os negros, porque eles não sabiam fazer. Eles buscavam de fora do país para ensinar o povo daqui.

74-L8: Você pode observar que o mestre que sabia, entendia de tudo. Desde a extração, qual terra era melhor. Tinha um conhecimento abrangente.

75-L3: Vai dizer que os problemas sociais que aconteceram no Brasil, depois fala de todo o conhecimento que o ferreiro tinha do ferro, da manutenção, ferramentas agrícolas, utensílios. E eu estava até falando com a [A1], que as mulheres tinham a função de moldar o barro, e tinha mais habilidade com jarros e depois comenta falando que para a fundição tinha uma época especifica, que a umidade atrapalhava todo o processo.

76-L1: Eu já falei, o texto é muito bom, que era uma ideia meio preconceituosa que o negro não sabe fazer nada, tanto é que a cegueira cientifica que eles não admitiam isto! Eles tinham algo para acrescentar, e fala que a aparição do ferro é datada de um milênio antes de Cristo. Então, eles já tinham uma habilidade para isto! E para outras coisas, agricultura.

77-L2: Gostei do texto, e tinha muita informação que eu não sabia, nem imaginava! Tipo a organização social que os mestres da forja tinham na tribo, era uma parte importante e líder social. Isto fica na cabeça o quanto a nossa ciência é branca, que a gente só aprende as coisas que a Europa faz, e isto me irrita muito.

O momento discursivo transcrito no extrato 1 apresentou uma participação dos alunos na discussão a respeito do texto de Pena (2004)PENA, E. S. Notas sobre a historiografia da arte do ferro nas Áfricas central e ocidental. In: ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA, 27., 2004, Campinas. Anais [...]. Disponível em: https://tinyurl.com/mr2afjpf. Acesso em: 2 ago. 2022.
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, caracterizada pela construção de turnos de fala alternados a respeito do texto. Expressões como “achei interessante”, “gostei do texto”, ditas e repetidas por diversos participantes, denotam o entusiasmo com a discussão e a atitude responsiva ativa. No turno 71, o L6 pareceu admirar o fato de “desde aquela época eles terem toda uma habilidade”, primeiro, pela marcação temporal que denota que muito antes dos europeus, os africanos já dominavam técnicas de produção e forja do ferro - conforme Pena (2004)PENA, E. S. Notas sobre a historiografia da arte do ferro nas Áfricas central e ocidental. In: ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA, 27., 2004, Campinas. Anais [...]. Disponível em: https://tinyurl.com/mr2afjpf. Acesso em: 2 ago. 2022.
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, desde tempos antigos, as tradições centro-africanas e da África Ocidental já tinham economia baseada na produção metalúrgica - e, segundo, pela marcação ontológica de, mesmo em tempos tão longínquos, serem os africanos a demonstrar esses conhecimentos (habilidades).

No turno 76, o L1 também fez menção às habilidades dos ferreiros africanos entonando2 2 Entonação (ou entoação) é um conceito bakhtiniano que se refere às tonalidades do enunciado que são determinadas pelo que é presumido e partilhado entre os interlocutores. de forma a demonstrar surpresa; o L2 afirmou que eram informações que sequer imaginava, no turno 77. Esse espanto parece revelar dois aspectos antagônicos. De um lado, a estranheza que caracteriza o quanto a objetificação das populações negras ainda está presente nas nossas representações culturais, a ponto de surpreender uma pessoa negra ser autora de um grande feito. Pois os africanos e sua diáspora tiveram seu estatuto ontológico vilipendiado pelo eurocentrismo que cunhou e disseminou a ideia filosófica de que apenas o homem do Ocidente personificaria, autenticamente, a conhecida máxima aristotélica de que ‘o homem é um animal racional’ (RAMOSE, 2011RAMOSE, M. Sobre a legitimidade e o estudo da filosofia africana. Ensaios Filosóficos, Rio de Janeiro, v. 4, p. 6-23, 2011.).

Por outro lado, esse pode ter sido um passo na tentativa de desconstrução dessa ideia para afirmar/reafirmar a ontologia africana quanto sua capacidade de desenvolver racionalmente a transformação da matéria. Defende-se, assim, que a Química enquanto prática social foi e é uma constante em todos os agrupamentos humanos. Desconsiderar isso ou julgar os conhecimentos produzidos por povos não europeus como originários de uma episteme inferior (menos evoluída) é desconhecer o processo histórico das ciências e suas epistemologias que, por sua vez, são social e historicamente construídas. A dúvida sobre a possibilidade ou não de discutir essas questões substancia a desumanização do segmento negro e reforça o europeu como padrão.

Ainda sobre essa questão, o enunciado de L1, no turno 76, também fez referência a essa questão da ontologia africana ao mencionar o que denominou de preconceito do europeu ou a cegueira científica que possuíam ao não reconhecer o conhecimento africano. O L1 pareceu apropriar-se do texto de Pena (2004)PENA, E. S. Notas sobre a historiografia da arte do ferro nas Áfricas central e ocidental. In: ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA, 27., 2004, Campinas. Anais [...]. Disponível em: https://tinyurl.com/mr2afjpf. Acesso em: 2 ago. 2022.
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, no trecho em que o autor explicou que os viajantes europeus, ao se depararem com os utensílios de ferro e sua qualidade superior, atribuíam tal feito à qualidade da matéria-prima local, mais fácil de ser fundida, e não como algo resultante da práxis cultural africana, pois o ferro em estado de oxidação zero não tem ocorrência natural e é, portanto, um fenômeno artificial da ciência dos ferreiros africanos. Pode-se inferir a polifonia como característica desses enunciados em que se mobilizam discursos localizados em narrativas contra hegemônicas que contestam a desumanização de pessoas negras.

O enunciado de L7, no turno 73, citou outra questão que é levantada por Pena (2004)PENA, E. S. Notas sobre a historiografia da arte do ferro nas Áfricas central e ocidental. In: ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA, 27., 2004, Campinas. Anais [...]. Disponível em: https://tinyurl.com/mr2afjpf. Acesso em: 2 ago. 2022.
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no texto base da intervenção. De acordo com o autor, ancorado em estudos de Florentino (1995)FLORENTINO, M. G. Em costas negras: uma história do tráfico atlântico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro (século XVIII e XIX). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995., Libby (1988)LIBBY, D. Transformação e trabalho em uma economia escravista: Minas Gerais do século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1988., Miller (1976)MILLER, J. C. Kings and kinsmen: early Mbundu states in Angola. Oxford: Clarendon, 1976. e Vansina (1968)VANSINA, J. Kingdoms of the savana. Madison: University of Wisconsin Press, 1968., a captura e escravização de africanos ferreiros no comércio transatlântico tinha finalidades estratégicas. Ou seja, os africanos mais cobiçados no desumano tráfico negreiro eram aqueles que dominavam as técnicas de mineração, ferraria e forja para atender as necessidades mercantis na colônia portuguesa, especialmente, com instrumentos para agricultura e para exploração de ouro. O L8, no turno 74, destacou, em seu enunciado, que o conhecimento dos ferreiros era abrangente. Uma vez que o ferreiro africano era um especialista neste ofício e participava de todo o processo: mineração, fabrico do carvão e outros combustíveis, edificação do forno, a fundição, o refino e beneficiamento do ferro florado e, por fim, a forjaria do ferro - na verdade uma mistura de ferro, carbono e outras impurezas - em utensílios (HERBERT, 1993HERBERT, E. W. Iron, gender, and power: rituals of transformation in African societies. Indianapolis: Indiana University Press, 1993.; PENA, 2004PENA, E. S. Notas sobre a historiografia da arte do ferro nas Áfricas central e ocidental. In: ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA, 27., 2004, Campinas. Anais [...]. Disponível em: https://tinyurl.com/mr2afjpf. Acesso em: 2 ago. 2022.
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).

O enunciado de L3, no turno 75, elencou conhecimentos específicos dos ferreiros e acresceu às mulheres africanas e sua função laboral. O L3 fez referência à divisão sexual do trabalho nesses grupos, chefiados pelos ferreiros. O trabalho com o ferro era específico de homens, enquanto as mulheres exerciam tarefas relacionadas à olaria, que envolvia a manipulação de óxidos, o design das peças e controle de secagem (HERBERT, 1993HERBERT, E. W. Iron, gender, and power: rituals of transformation in African societies. Indianapolis: Indiana University Press, 1993.). Logo, o ferreiro era uma pessoa com múltiplas atribuições e exercia papel de líder (ferreiro-rei), como enunciou L2 no turno 77.

Essas assertivas sobre o ferreiro e as oleiras africanas nos discursos desses professores em formação são parte da constituição de uma identidade específica. O docente de Química passou, a partir desse momento, a ter acesso a conhecimentos que antes não eram mobilizados em sua trajetória acadêmica, esperando, a partir dessas intervenções, que esses conteúdos pudessem ser desenvolvidos nas experiências escolares configurando um profissional que não apenas desenvolva conhecimentos conceituais de sua área específica, mas que atendesse às demandas por uma educação antirracista. Todavia, esse passo de transformar o currículo pré-ativo antirracista em currículo interativo não é um processo automático, especialmente nas ciências da natureza e suas tecnologias. Aspectos relacionados à natureza da ciência foram discutidos, conforme apresenta-se no Extrato 2, que segue.

Extrato 2: Representatividade e a ciência do colonizador

78-L2: E a gente não tem esses textos para informar.

79-L2: E bato mais uma vez na tecla para dizer que a gente tem certa ignorância dentro da gente mesmo, de não correr atrás.

80-L3: A questão da forja, de mexer apenas na seca, do mestre já ter aquele raciocínio, e de ter aquela vivência e ver a questão do forno para ter o mínimo de umidade possível. A questão da organização social de ter um chefe é uma questão muito interessante.

81-F1 : A primeira coisa é questão da representatividade, nós negros não somos representados na ciência que aprendemos. E por quê?

82-L2: É a ciência do colonizador, a cultura.

83-F2: A gente só ver a ciência a partir de uma única ótica. A gente não amplia o foco. A gente vê tanto na Europa, Ásia, África o homem com a sua capacidade de se ver e modificar a sua realidade, ele atuava como um agente transformador da natureza. Seja na Europa, na África. E não temos essa informação. Qual é o trabalho do ferreiro, o que você enquanto professor de Química pode discutir?

84-L2: Abordar um tema de metal.

102-F1: Como vocês discutiriam o ferro, em sala de aula, vocês acham importante?

103-L8: Tudo é importante, pode estudar na Química, Geografia, História, o espaço geográfico de onde tirou este minério até mesmo no processo de transformação onde aplica a Química.

104-L1: Estudar da origem do ferro no solo, e como reflete até hoje. Os ferreiros de hoje, como são, não utilizam as mesmas técnicas, tem as máquinas que substitui, pode fazer a evolução e a partir de que antes era negado, pode ser assim.

105-L2: Eu apresentaria a aula, uma pureza de metal, ligação metálica, ligas metálicas, condutividade.

106-L1: Conceitos de densidade,

107-L3: Pode explicar por que a umidade faz tão mal para o minério.

108-F1: Tem umidade, soltava jatos de vapor.

109-L9: Pode falar do ferro, da história do ferro e de onde vem.

No processo dinâmico de enunciação no extrato 2, foram realizados alguns encaminhamentos em relação a traduzir os conhecimentos mobilizados em currículo em ação no ensino médio. Primeiro, o reconhecimento de que a ciência moderna é branca, ou seja, eurocêntrica e do colonizador por parte de L2 (turno 77 e 82). O F1, em atitude responsiva ativa de complementação, acrescentou que há uma ausência de textos como o de Pena (2004)PENA, E. S. Notas sobre a historiografia da arte do ferro nas Áfricas central e ocidental. In: ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA, 27., 2004, Campinas. Anais [...]. Disponível em: https://tinyurl.com/mr2afjpf. Acesso em: 2 ago. 2022.
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, com informações sobre os feitos tecnológicos não creditados aos europeus, e a não representatividade na ciência que é ensinada. A assertiva de F1 parece se referir ao fato de que, naquele ano de 2016, eram ainda escassos materiais orientadores para área da Química; outro fator é que muitos textos que explicitam os processos metalúrgicos africanos, dentre outras técnicas e tecnologias, são encontrados em maioria na língua inglesa, Herbert (1993)HERBERT, E. W. Iron, gender, and power: rituals of transformation in African societies. Indianapolis: Indiana University Press, 1993. e Fluzin (2004)FLUZIN, P. The process chain in iron and steelmaking: archaeological materials and procedures: the contribution of metallographical studies. In: BOCOUM, H. (ed.). The origins of iron metallurgy in Africa: new light on its antiquity: West and Central Africa. Paris: UNESCO, 2004. p. 65-96. Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000133843. Acesso em: 29 jul 2022.
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são dois exemplos que podemos citar.

Na sequência (turno 83), o enunciado de F1 faz referência indireta ao conceito de deslocamento epistêmico do currículo. Para F1, não dever-se-ia aprender ciências a partir de um único prisma, o professor formador destacou, com uso de elementos linguísticos comparativos de igualdade, que todas as matrizes de povos foram capazes de atuar, analogamente, como químicos e, por isso, os conhecimentos legados pelos povos africanos, no enunciado de F1 representados pelos ferreiros, deveriam ser incluídos no currículo. O ato real da comunicação discursiva de F1, portanto, faz alusão às teorias pós-críticas do currículo, especialmente, àquelas da agenda do movimento negro. Assim, é um discurso que cita outros para direcionar a discussão.

No enunciado de F1 (turno 83), entende-se que o deslocamento epistêmico é concebido como o romper de fronteiras pré-estabelecidas, é ato de transgressão curricular. Em Química, significaria propor uma nova forma de ensiná-la e aprendê-la: incluir novos objetivos, conteúdos, estratégias de ação, avaliação e referenciais. O deslocamento epistêmico se daria, nessa perspectiva em que se defende nessa investigação, pela inconformidade com os limites impostos pelo eurocentrismo do currículo, propondo o denegrir, ou seja, em vez de um ensino e aprendizagem centro-periférico, um modo de se pensar e fazer educação policêntrico e polirracional (MASOLO, 2009MASOLO, D. A. Filosofia e conhecimento indígena: uma perspectiva africana. In: SANTOS, B. S.; MENESES, M. P. Epistemologias do sul. Coimbra: Almedina, 2009. p. 507-530.; NOGUERA, 2012NOGUERA, R. Denegrindo a educação: um ensaio filosófico para uma pedagogia da pluriversalidade. Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação, Brasília, n. 18, p. 62-73, 2012. Doi: https://doi.org/10.26512/resafe.v0i18.4523.
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). Importa dizer que a polirracionalidade, isto é, transitar por diferentes modos de pensar e produzir saberes, é uma condição imposta aos povos colonizados pela situação colonial, especialmente aos iorubás, como destacou Masolo (2009)MASOLO, D. A. Filosofia e conhecimento indígena: uma perspectiva africana. In: SANTOS, B. S.; MENESES, M. P. Epistemologias do sul. Coimbra: Almedina, 2009. p. 507-530.. Todavia, assim como Pontes (2017)PONTES, K. R. Kemet, escolas e arcádeas: a importância da filosofia africana no combate ao racismo epistêmico e a lei 10639/03. 2017. Dissertação (Mestrado em Filosofia e Ensino) - Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, Rio de Janeiro, 2017., não se discute aqui o modo pelo qual essa imposição se fez, mas como o uso da polirracionalidade pode ser salutar para insurgência contra os sistemas de dominação.

O F1, ainda no mesmo enunciado e no turno 102, convocou seus interlocutores a pensarem conteúdos que possam estabelecer essa forma transgressora de ensinar Química, e é, por isso, um discurso conformado pela antecipação da resposta (BAKHTIN, 1993BAKHTIN, M. M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. 3. ed. São Paulo: Unesp: Hucitec, 1993.). No turno 84, o L2 sugeriu abordar um tema de metal e, no turno 105, pareceu completar o enunciado dizendo que discutiria, além dos conhecimentos dos ferreiros africanos, assuntos como pureza, ligação metálica, ligas metálicas e condutividade. Por sua vez, o L1 sugeriu o conceito de densidade (turno 106); A3 propôs discutir aspectos relacionados aos malefícios da umidade e, importa dizer, que essa é uma referência ao texto de Pena (2004)PENA, E. S. Notas sobre a historiografia da arte do ferro nas Áfricas central e ocidental. In: ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA, 27., 2004, Campinas. Anais [...]. Disponível em: https://tinyurl.com/mr2afjpf. Acesso em: 2 ago. 2022.
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em que discutiu a complexidade do trabalho do ferreiro que deveria considerar, dentre outros parâmetros, a umidade do carvão no forno, uma vez que ela implicaria em menor eficiência do processo de transformação; no turno 109, o L9 apontou parar discussão de aspectos históricos do ferro. Esse momento discursivo é assinalado, diferente do extrato analisado anteriormente, por uma série de enunciados que já explicitam proposições mais objetivas de currículo antirracista no ensino de Química.

Nas ciências naturais, especialmente a Química, o professor transitaria, para denegrir o currículo, alternadamente, entre modelos de racionalidade peculiares. Em outras palavras, relacionar a história e cultura africana e o ensino de Química representaria intercalar, no contexto analisado, a ciência dos ferreiros africanos e a ciência moderna (Química): um diálogo em perspectiva intercultural, ou seja, alternar, de forma intervalorizada e não hierarquizada, conhecimentos dos ferreiros e conhecimentos químicos contemporâneos, discutindo elos e rupturas dessas duas formas de atribuir sentindo ao mundo e agir sobre ele, portanto, uma alternância que se dá pela reciprocidade e pelo questionamento de relações hierarquizadas.

No enunciado de L1, no turno 104, foi proposto um modelo de estratégia que em que os conhecimentos são ordenados em perspectiva evolucionista: um processo que visa organizar os saberes do primitivo ao mais complexo estruturando o processo histórico linearmente (BALIEIRO, 2012BALIEIRO, F. F. Diferenças, sociedade e a escola. In: SILVÉRIO, V. R.; MATTIOLI, E. A. K.; MADEIRA, T. F. L. (org.). Relações étnico-raciais: um percurso para educadores. São Carlos: EdUFSCar, 2012. v. 1, p. 17-56.). Neste enunciado percebe-se o já dito, provavelmente vivido e internalizado por L1 em outros momentos, que concebe a conhecimento humano como um todo unificado sem descontinuidades e, assim, seria possível dizer qual é o melhor e qual é o inferior, subtendendo-se, consequentemente, preconceitos sobre as pessoas que produzem esses saberes.

Não houve resposta de F1 na tentativa de desconstruir essa assertiva de L1. Porém, ressalta-se que denegrir o ensino de Química não se configura como um multiculturalismo superficial, mas como interculturalidade. Para Santos e Meneses (2009SANTOS, B. S.; MENESES, M. P. Introdução. In: SANTOS, B. S.; MENESES, M. P. Epistemologias do sul. Coimbra: Almedina, 2009. p. 9-19., p. 9), o multiculturalismo parte do pressuposto que há uma cultura superior “[...] que aceita, tolera ou reconhece a existência de outras culturas no espaço onde domina”. Por sua vez, a interculturalidade presume o reconhecimento mútuo e a disposição de trocas de experiências entre as culturas que compartilham um mesmo espaço.

Sobre o diálogo intercultural, deve levantar-se algumas premissas: as razões metonímicas que devem ser superadas e uma concepção descolonizadora a respeito da História da Ciência que deve ser materializada no currículo em ação. A primeira premissa é que as diversas culturas, ou dissemelhantes conhecimentos, não sejam usados como matéria-prima da ciência moderna, da Química, neste caso. De acordo com Santos (2002)SANTOS, B. S. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 63, p. 237-280, 2002. Doi: https://doi.org/10.4000/rccs.1285
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, algumas das facetas da ciência moderna são as razões metonímicas em que incorre nos debates multiculturais. Ou seja, tomar outros saberes, como os tradicionais3 3 Conhecimentos ou saberes tradicionais: usado aqui como uma expressão para fazer referência aos corpos deconhecimentos caracterizados por regimes de pensamento, formas de produção, atualização e transmissão que lhe são específicos, e, possivelmente, com tais atributos tão diversos quantos sejam os povos que os produzem/ reproduzem. , por exemplo, e fazer destes um tipo de insumo, tomando a parte pelo todo, para desenvolver suas teorias e tecnologias impondo-se como tipo superior de conhecimento.

A segunda premissa a ser observada no diálogo intercultural é que seja concretizado a partir de uma concepção descolonizadora da História da Ciência, ou seja, que a ciência é construída historicamente, por meio de profícuas partilhas entre povos, e que não se desenvolve linearmente. Essas ações impõem a necessidade de transgredir ao que está posto em textos curriculares, é nesse sentido que a discussão se encaminha no Extrato 3 analisado a seguir.

Extrato 3: Para denegrir é preciso transgredir o currículo

110-F1: Quando um europeu encontra, aparece nos livros. E a gente tem que ver a importância dos africanos na construção dos saberes científicos, é um dos maiores exemplos que nós temos e não temos essa discussão no ensino médio. E nós, como professores da educação básica, pensando em descolonizar esse currículo tão eurocêntrico, nós podemos levar essa discussão para a sala de aula.

111-L3: E pensando no Egito e vendo toda aquela organização matemática. Pouco depois tivemos as leias matemáticas, teorema de Pitágoras, as formulas geométricas, que foi dado a Pitágoras e tudo já tinha sido feito pelos africanos.

113-L3: E precisamos colocar isto em sala de aula.

114-F1: E não apenas repetir o que está no livro.

115-L1: O próprio professor tem a autonomia, e dentro do conteúdo você pode trabalhar.

Os enunciados de F1 e L3, no Extrato 3, parecem ecoar uma concepção de interculturalidade que se traduzem nas premissas apontas anteriormente na discussão nos turnos 110 e 111. O F1 destacou a necessidade da modificação curricular no ensino médio com a inclusão e reconhecimento dos africanos na produção do conhecimento científico. O L3, em seu turno, apontou para o roubo do legado africano por parte das tradições ocidentais. Ambos são discursos que reverberam enunciados já ditos de um movimento contra hegemônico e revisionista que tem buscado desconstruir a razão ocidental que aloca “[...] corpos e mentes brancas em um lugar de brilhantismo intelectual e reduz pessoas negras e de outras etnias às condições subalternas, de ausência de inteligência acadêmica e de propensão, unilateral, a trabalhos braçais” (PINHEIRO, 2019PINHEIRO, B.C.S. Educação em ciências na escola democrática e as relações étnico-raciais. Revista Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências, Belo Horizonte, n. 19, p. 329-344, 2019. Doi: https://doi.org/10.28976/1984-2686rbpec2019u329344.
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, p. 341).

Por fim, os turnos 113, 114 e 115 construíram os enunciados que ratificaram o desafio que é “levar essa discussão para sala de aula”. O L3 reconheceu a importância dessa mudança curricular; O F1 articulando ao que disse no turno 110 inferiu que para efetivação dessa prática o professor não deve apenas repetir o que está no livro. O enunciado de F1, portanto, opôs-se discursivamente às concepções tecnicistas do trabalho docente, assim, denegrir o ensino de Química impõe a necessidade de ação reflexiva do professor. Em atitude responsiva ativa, o L3 (turno 116) complementou o enunciado de F1 dizendo que o docente deveria atuar com autonomia e dentro de um conteúdo determinado operacionalizar os objetivos da educação antirracista discutidos na aula.

Autonomia é um signo que faz alusão à educação como prática da liberdade. Neste sentido, Hooks (2013)HOOKS, B. Ensinando a transgredir: educação como prática da liberdade. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013. explicou que os modos de ensinar e aprender das escolas e universidades foram cristalizados pelo aparelhamento ideológico desses espaços aos discursos historicamente edificados por grupos hegemônicos, logo, a educação libertadora é uma forma de ensino e aprendizagem que rompe com os discursos que reforçam tais mecanismos de opressão, especialmente, aqueles mantidos por sistemas de classificação baseados na raça, etnia, gênero, classe e sexualidade. É nesta seara que concretiza o ato de transgredir o currículo, ou seja, agir de forma deliberada e estratégica contra as forças que regulamentam a prática docente e colocam-na em prol de sistemas de opressão.

Considerações finais

Construir estratégias, na formação docente em Química, em face das mudanças possibilitadas pela Lei 10.639/2003, é um exercício no qual os formadores devem se comprometer ética e politicamente com a luta social historicamente empreendida pelo movimento negro. É preciso buscar, em fontes que reconheçam essa trajetória de enfrentamento ao racismo, possibilidades de romper com o eurocentrismo que ataca a resistência ontológica africana no ensino de ciências em geral, e da Química em especial. A IP apresentada evidenciou essa característica e acredita-se que ela representa o esforço para transgredir essas formatações que contribuem, no campo simbólico, para o extermínio do ser, do existir negro-africano.

No decorrer da intervenção foi possível observar a responsividade dos licenciandos no processo de discussão sobre metalurgia na África e transferência dessa tecnologia no processo diaspórico para o Brasil. Os enunciados produzidos nos momentos discursivos permitiram mapear a sua polifonia característica, pois principiaram em articular uma concepção descolonizadora da ciência e do currículo, porém ainda trazendo uma noção distorcida da ciência em relação a outros saberes. Argumenta-se, portanto, que é fundamental o preparo do professor formador para reconhecer e dar a devida resposta a essas situações que poderão ocorrer. Mais estudos na área de Educação em Ciências/Química são necessários, destarte, para compreender melhor esses enunciados e coligir argumentos e estratégias factíveis para a melhoria da formação docente em denegrir o ensino.

Defende-se, a partir do processo analítico da pesquisa que, no desenvolvimento da IP, foi possível identificar uma competência que deverá estar presente nas estratégias que estes docentes implementarão: a polirracionalidade, transitar por racionalidades peculiares o que impõe a superação das dicotomias científico/tradicional, Química/temática racial, corpo/mente etc. Pode-se inferir que os graduandos apresentaram ideias que correlacionavam temas comuns que se ministra em aulas de Química com a possibilidade de trazer o contexto dos saberes da ciência dos ferreiros africanos. Advoga-se, ainda, que esse pode ser um início de uma mudança que precisa ocorrer na Educação Básica, uma vez que os licenciandos hoje, serão professores amanhã. É responsabilidade da universidade formar esse professor crítico ao saber que ensina, capaz de reconhecer a dimensão epistêmica do racismo e de planejar e desenvolver intervenções que a considere, para mitigá-la.

  • 1
    Apesar desta distinção entre as etapas, a análise do contexto extra verbal permeia as demais etapas num movimento dialético.
  • 2
    Entonação (ou entoação) é um conceito bakhtiniano que se refere às tonalidades do enunciado que são determinadas pelo que é presumido e partilhado entre os interlocutores.
  • 3
    Conhecimentos ou saberes tradicionais: usado aqui como uma expressão para fazer referência aos corpos deconhecimentos caracterizados por regimes de pensamento, formas de produção, atualização e transmissão que lhe são específicos, e, possivelmente, com tais atributos tão diversos quantos sejam os povos que os produzem/ reproduzem.
  • ERRATA
    Na página 1, onde se lia:
    "Coletivo X"
    Leia-se:
    "Coletivo Ciata"

Agradecimento

Agradecemos à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), pelo investimento financeiro.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    02 Ago 2022
  • Aceito
    30 Jul 2023
  • Corrigido
    29 Nov 2023
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