Open-access O Potencial Evocado Auditivo com estímulo de fala pode ser uma ferramenta útil na prática clínica?

RESUMO

Objetivo:  Discutir a aplicabilidade clínica do Potencial Evocado Auditivo com Estímulo de Fala (PEATEf) no auxílio à identificação dos transtornos do processamento auditivo.

Métodos  : Foram selecionados os prontuários de 27 crianças e adolescentes, com idade entre sete e 15 anos, que apresentaram alteração no PEATEf. Foram levantados os dados referentes à avaliação comportamental do processamento auditivo desses indivíduos.

Resultados:  Observou-se que das 27 crianças com PEATEf alterado, 23 também apresentaram alteração de processamento auditivo. A partir dessa amostra, foi possível apontar probabilidade de 85,15% em observar avaliação comportamental do processamento auditivo alterada em uma criança que apresentou PEATEf também alterado.

Conclusão:  Sugere-se que o PEATEf pode ser utilizado na prática clínica como uma ferramenta importante no diagnóstico do Transtorno do Processamento Auditivo, uma vez que neste estudo uma alteração do PEATEf quase sempre representou, também, uma alteração nos resultados da avaliação comportamental do processamento auditivo, portanto pode ser utilizado para obter informações acerca da percepção dos sons da fala em crianças menores de sete anos ou de difícil avaliação comportamental.

Descritores: Potenciais Evocados Auditivos; Vias Auditivas; Transtornos da Percepção Auditiva; Eletrofisiologia; Criança.

ABSTRACT

Purpose  : To discuss the clinical applicability of the speech-evoked Auditory Brainstem Response (speech-evoked ABR) to help identifying auditory processing disorders.

Methods  : We analyzed the records of 27 children and adolescents, aged between seven and 15, who presented abnormal speech-evoked ABR. Then, the data from the behavioral auditory processing evaluation of these individuals were surveyed.

Results  : It was observed that, among the 27 children with abnormal speech-evoked ABR, 23 also had auditory processing disorders. Therefore, from this sample, an 85.15% probability of observing abnormal behavioral assessment of auditory processing in a child who presented abnormal speech-evoked ABR was obtained.

Conclusion  : It is argued that the speech-evoked ABR can be used in clinical practice as an important aid tool in the diagnosis of auditory processing disorder, because, in this study, an abnormal speech-evoked ABR usually represented a deficit in the results of behavioral assessment of auditory processing. Thus, it can be used to obtain information about the perception of speech sounds in children under seven years or with challenging behavioral assessment.

Keywords: Evoked Potentials Auditory; Auditory Pathways; Auditory Perceptual Disorders; Electrophysiology; Child.

INTRODUÇÃO

Há aproximadamente 35 anos, Greenberg1 apresentou à comunidade científica o primeiro estudo utilizando a fala como estímulo no potencial evocado auditivo de tronco encefálico (PEATEf), demonstrando que informações acústicas específicas dos sons de fala são codificadas pelo PEATE com grande precisão. No Brasil, o PEATEf tem sido estudado há cerca uma década, ainda com poucas publicações2 3 4 5 6.

Pesquisadores têm procurado estabelecer critérios de normalidade confiáveis para os parâmetros de resposta do PEATEf7 8 9 10, uma vez que esse potencial é capaz de representar as propriedades acústicas do estímulo, ou seja os formantes da fala são fielmente preservados na resposta do tronco encefálico8, sendo que a alteração nessa resposta pode representar alteração na percepção das características da fala.

Muitos estudos concordam quanto à associação entre respostas alteradas no PEATEf e dificuldades no processamento auditivo da fala5 6 7 8 9, porém um dos maiores questionamentos relacionados a esse potencial refere-se ao seu uso clínico.

Embora esteja bem estabelecida clínica e cientificamente, sendo a principal ferramenta no diagnóstico das alterações do Processamento Auditivo (PA), a avaliação do PA sofre influência de fatores top-down (cognição e linguagem), da motivação e da fadiga11, além da possibilidade de que outras patologias associadas possam comprometer as condições necessárias para que as respostas comportamentais sejam consideradas confiáveis. Por esses motivos, é recomendado que o diagnóstico de Transtorno de Processamento Auditivo (TPA) seja dado com cautela, a partir da análise do conjunto de testes utilizados e com apoio de avaliações eletrofisiológicas12.

Assim, considerando as variáveis envolvidas no estabelecimento de um diagnóstico preciso de TPA e as contribuições do PEATEf para avaliação dos elementos que subjazem o processamento auditivo da fala, o objetivo deste estudo foi discutir a aplicabilidade clínica do PEATEf como instrumento auxiliar na identificação do TPA, por meio da análise das avaliações comportamentais de crianças que apresentaram PEATEf alterado.

MÉTODOS

Este estudo foi de cunho retrospectivo, utilizou levantamento de dados em um Centro de Diagnóstico em Processamento Auditivo de uma instituição da rede pública. Este trabalho foi aprovado pela Comissão de Ética sob o protocolo nº 1049/07.

Foram selecionados prontuários de 27 indivíduos, com idade entre sete e 15 anos (média: 10 anos), que apresentaram alteração no PEATEf e queixas referentes ao processamento auditivo, sem evidências de alteração neurológica ou psiquiátrica e avaliação audiológica normal. Foram levantados os dados de anamnese e da avaliação comportamental do processamento auditivo.

O PEATEf foi realizado com o Navigator Pro - Bio-Logic , equipado com o BioMAP (atual BioMARK ). Os parâmetros para obtenção do PEATEf seguiram critérios já estabelecidos na literatura11, a saber: o estímulo utilizado consistiu dos cinco primeiros formantes da sílaba (da) (40 ms), apresentado monoauralmente (orelha direita), em polaridades alternadas a 80 dB NPS e taxa de apresentação de 10,9 estímulos/segundo. A janela de gravação foi de 74,67 ms, com filtro passa-alto de 100 Hz e passa-baixo de 2000 Hz.

Foram realizadas duas varreduras de 3000 estímulos. Após a reprodução das ondas, os traçados obtidos foram somados de forma ponderada e, no traçado resultante, foram marcadas as ondas V e A (Figura 1). A alteração do PEATEf foi determinada pela pontuação (score ) gerada pelo algoritmo contido no BioMAP , que é baseado nas medidas de cinco parâmetros da resposta: latência da onda V, latência da onda A, slope , frequência do primeiro formante e altas frequências. Considerou-se PEATEf alterado quando o score estava entre 7 e 2213.

Figura 1:
Exemplo dos traçados do Potencial Evocado Auditivo com estímulo de fala

Todos os indivíduos haviam sido avaliados por, no mínimo, cinco dos seguintes testes comportamentais: Localização Sonora, Memória Sequencial para Sons Não Verbais, Memória Sequencial para Sons Verbais, Fala com Ruído ou Identificação de Figuras com Ruído, Dicótico de Dígitos ou Staggered Spondaic Word Test (SSW), Padrão de Frequência e Padrão de Duração, e Gaps in Noise (GIN). Os critérios de normalidade dos testes comportamentais seguiram aqueles já estabelecidos14. O indivíduo foi considerado com TPA quando apresentou pelo menos um teste alterado15.

A análise dos dados foi descritiva e qualitativa, e foi verificada a probabilidade de obter PA alterado em relação ao PEATEf alterado.

RESULTADOS

Foi observado que entre as 27 crianças com PEATEf alterado, que tiveram seus prontuários analisados, 23 apresentaram alteração de PA (Tabela 1). A partir dessa amostra, pudemos observar que há probabilidade de 85,15% de obter uma avaliação comportamental do processamento auditivo alterada em uma criança com PEATEf alterado.

Tabela 1:
Distribuição por faixa etária e gênero dos indivíduos com Potencial Evocado Auditivo e com estímulo de fala alterado, de acordo com o desempenho nos testes comportamentais do processamento auditivo

DISCUSSÃO

A análise realizada permite inferir que o PEATEf alterado tem um alto grau de precisão no diagnóstico positivo de TPA. Em outras palavras, diante de um PEATEf alterado há grande probabilidade (85,15%) de que o indivíduo demonstre alguma alteração na avaliação comportamental do PA.Resultados semelhantes também foram observados em um estudo anterior7, que observou as respostas de crianças com TPA, verificando que 80% delas possuía PEATEf alterado. Esses dados estão de acordo com estudos que evidenciaram grande relação entre alterações no PEATEf e na percepção auditiva6 7 8, e demonstraram melhoria nas respostas do PEATEf após a estimulação auditiva5 9 11.

Com base nas observações do presente estudo, e no que já se sabe acerca do PEATEf, é possível discutir algumas aplicações clínicas desse potencial. A principal aplicação está no diagnóstico diferencial do TPA e na monitoração dos benefícios do estímulo auditivo nesses casos, pois entre os potenciais evocados auditivos, que têm sido relacionados às alterações do PA, o PEATEf é o que tem apresentado maior confiabilidade, com menos variabilidade intra e inter-sujeito e valores de normalidade bem definidos.

Além disso, o PEATEf pode ser utilizado para avaliar crianças mais novas, para as quais os testes comportamentais não são padronizados, uma vez que a partir dos cinco anos de idade espera-se que as respostas do PEATEf de crianças sejam iguais a de um adulto13. Dessa maneira, a presença de alteração do PEATEf nessas crianças pode representar disfunção no sistema auditivo, o que permitiria intervir preventivamente, ainda que sem os resultados de uma avaliação comportamental. O mesmo pode ser aplicado em crianças com alterações não auditivas que podem dificultar a avaliação comportamental do PA11.

CONCLUSÃO

Neste estudo foi verificado que a alteração do PEATEf quase sempre representou uma alteração do PA, possibilitando a sugestão do uso do PEATEf na prática clínica como uma ferramenta auxiliar na avaliação do PA, o qual pode, ainda, oferecer informações acerca da percepção dos sons da fala em crianças de difícil avaliação comportamental.

REFERÊNCIAS

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  • 1
    Trabalho realizado no Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional da Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo - USP - São Paulo (SP), Brasil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Fev 2016

Histórico

  • Recebido
    16 Dez 2014
  • Aceito
    28 Abr 2015
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