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TRADUZIR E PUBLICAR O TEATRO DE ELFRIEDE JELINEK NO BRASIL: POR QUE, O QUE E COMO?

TRANSLATE E PUBLISH ELFRIEDE JELINEK’S THEATRE IN BRAZIL: WHY, WHAT AND HOW?

Resumo

O artigo apresenta um projeto atualmente em andamento, que tem como objetivo a tradução de textos teatrais de Elfriede Jelinek. Aborda de forma breve a tradição da tradução teatral do Brasil, os critérios da seleção dos textos a serem traduzidos dentro do referido projeto, o viés teórico pelo qual se orientam as estratégias empregadas e o conceito de tradução colaborativa. Assim, as reflexões aqui apresentadas foram conduzidas por três perguntas norteadoras: por que traduzir o teatro de Jelinek no Brasil? Quais obras traduzir? Como traduzi-las?

Palavras-chave
Tradução Teatral; Tradução Colaborativa; Elfriede Jelinek

Abstract

This article presents a translation project, currently underway, which aims to translate theatre texts from de Austrian author Elfriede Jelinek. It briefly addresses to the tradition of theatre translation in Brazil, the criteria for the selection of the texts to be translated, the theoretical bias and the concept of collaborative translation. The reflections presented here deal with three guiding questions: why translate Elfriede Jelinek’s theatre in Brazil? Which works should be translated? How can they be translated?

Keywords
Theatre Translation; Collaborative Translation; Elfriede Jelinek

Introdução: traduzir teatro no Brasil

Em comparação com outros países, no Brasil publicam-se poucos textos dramáticos, sejam eles obras nacionais ou traduções. Conforme aponta Walter Lima Torres Neto, “o mercado editorial nativo nunca se interessou de maneira programática por dramaturgia, nacional ou estrangeira” (Torres 188Torres Neto, Walter Lima. “Posfácio: O presidente, nova tradução, nova onda”. O presidente. Thomas Bernhard. Tradução de Gisele Eberspächer e Paulo R. Pacheco Júnior. Supervisão da tradução Ruth Bohunovsky. Curitiba: UFPR, 2020, pp. 181-191.)1 1 Conforme aponta Torres (186-187), algumas editoras brasileiras tentaram mudar esse cenário desde meados do século passado, com diversas coleções: a Coleção Teatro Moderno (final dos anos 1950, ed. Agir), Coleção Brasiliense de Bolso: série teatro universal (a partir de 1965); Coleção Teatro Vivo (a partir de 1976, ed. Abril Cultural); Coleção Teatro de Hoje (segunda metade dos anos 1960, ed. Civilização Brasileira); Coleção Teatro de Bertolt Brecht (1976, ed. Civilização Brasileira); Coleção Clássicos do Teatro Brasileiro (1977-1995, coordenado pelo Serviço Nacional do Teatro, em parceria com o Ministério da Educação e Cultura); Coleção Dramaturgia(s) (desde 1999, ed. 7Letras); Coleção Dramaturgos do Brasil (2002, ed. Martins Fontes) e, por fim, a coleção Os Grandes Dramaturgos (2004-2007, ed. Peixoto Neto). . Muito frequentemente, ver uma peça encenada num teatro brasileiro não significa que seja possível consultar ou ler o texto-base da montagem numa versão publicada, seja em forma de livro ou de caderno2 2 A forma de caderno é comum nos países de língua alemã, onde muitos teatros fornecem programas impressos das peças em cartaz, às vezes incluindo o texto-base. . Ou vemos a peça encenada ou não podemos conhecê-la. Isso vale também no caso de Elfriede Jelinek, escritora austríaca de renome internacional e autora de uma vasta obra literária e teatral – boa parte dela, aliás, acessível integralmente na página oficial da autora3 3 Cf. https://www.elfriedejelinek.com/. . Por exemplo, a peça Sportstück [peça esporte] foi montada em 2015 pela Companhia de Teatro Acidental, em São Paulo, numa tradução de Camilo Schaden4 4 Cf. http://www.usp.br/tusp/?portfolio=peca-esporte-cia-de-teatro-acidental/. ; e a Companhia Cia das Atrizes, também de São Paulo, apresentou em 2016 Prinzessinnendramen [Dramas de Princesas], numa tradução de Alexandre Krug5 5 Cf. https://www.ciadasatrizes.com/copia-epifanias-urbanas. . Apesar dessa presença no cenário teatral brasileiro, não há nenhuma peça de Jelinek disponível para o leitor brasileiro interessado. Ou seja, segundo a terminologia usada pela estudiosa da tradução teatral Sirkku Aaltonen (2020)Aaltonen, Sirkku. Time-Sharing on Stage. Drama Translation in Theatre and Society. (Topics in Translation 17). Clevedon, Multilingual Matters LDG, 2000., embora Jelinek já faça parte do sistema teatral brasileiro, o sistema literário ainda não conta com nenhum texto teatral dessa autora.

Ultimamente, o mercado editorial brasileiro tem dado alguns sinais que indicam um aumento do interesse em publicar textos teatrais. Além da já conhecida Cobogó, jovens casas, por exemplo, a Temporal e a Javali, têm se dedicado intensamente a esse gênero e publicado textos selecionados segundo rigorosos critérios literários e artísticos, em edições caprichadas e acompanhadas de paratextos informativos e/ou fotos de montagens já realizadas. Além dessas editoras comerciais, a editora da Universidade Federal do Paraná (UFPR) também se propôs investir no gênero teatral e deu início à coleção Dramas & Poéticas. É nesse âmbito de um crescente interesse pela publicação de textos teatrais que se situa a proposta aqui apresentada e que está vinculada a um projeto de pesquisa mais amplo: “Traduzir o teatro e o cômico: dramas de Thomas BernhardBernhard, Thomas. O presidente. Tradução de Gisele Eberspächer e Paulo R. Pacheco Júnior. Supervisão da tradução Ruth Bohunovsky. Curitiba: UFPR, 2020., Elfriede Jelinek e Wolfgang Bauer em versão brasileira”, desenvolvido atualmente pela autora deste artigo no curso de Letras da referida universidade.

Por que traduzir o teatro de Elfriede Jelinek no Brasil?

Elfriede Jelinek é autora de uma obra muito extensa que engloba poesia, mais de dez romances, dezenas de peças teatrais, peças radiofônicas, roteiros para cinema, libretos, textos para instalações artísticas e ensaios, além de traduções de textos dramáticos, de prosa e de poesia. O Prêmio Nobel de Literatura que recebeu em 2004 aumentou muito sua visibilidade e presença no cenário literário e teatral mundial. No Brasil, entretanto, a primeira tradução de uma obra de sua autoria só aconteceu sete anos mais tarde. Em 2011, foi lançado o romance “A pianista”Jelinek, Elfriede. A pianista. Tradução de Luis S. Krausz. São Paulo: Tordesilhas, 2011. [Die Klavierspielerin], originalmente escrito em 1983 e que se tornou famoso sobretudo a partir do filme “A professora de piano” (2011) de Michael Haneke. A tradução é de Luis S. Krausz. Em 2013, saiu “Desejo”Jelinek, Elfriede. Desejo. Tradução de Marcelo Rodinelli. São Paulo: Tordesilhas, 2013., versão brasileira de Lust, traduzido por Marcelo Rondinelli.

A obra de Jelinek tem fama de ser difícil, provocativa, polêmica e pornográfica – fatores que podem ter contribuído para sua presença ainda limitada no Brasil. Numa resenha sobre “Desejo”, no jornal Estado de São Paulo, podemos ler, por exemplo, que o livro tiraria o leitor de sua “zona de conforto”, “causando repulsa, não excitação” (Leones s/p.Leones, André. “Elfriede Jelinek lança leitor a anos-luz de qualquer zona de conforto.” O Estado de S. Paulo, São Paulo, 23 ago. 2013. Web 20/09/2021 https://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,elfriede-jelinek-lanca-leitor-a-anos-luz-de-qualquer-zona-de-conforto,1067216.
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). Ao mesmo tempo, basta lançar um olhar para o índice do Jelinek Handbuch, onde consta uma lista dos “Temas e discursos centrais” abordados pela autora em sua obra como um todo, para confirmar que eles dizem respeito não apenas a assuntos ligados à sexualidade ou a problemas que dizem respeito à região dentro das fronteiras da pequena Áustria, mas a outros que são de relevância e atualidade política e cultural em nível internacional, inclusive no Brasil: economia – estruturas patriarcais – imagens da mulher – pátria – natureza – nacional-socialismo – mortos-vivos6 6 O conceito de “mortos-vivos” tem relevância na obra de Jelinek por se referir às relações que os vivos mantêm (ou que tentam suprimir) com seus mortos e ao recalque de traumas psicológicos e históricos (cf. Mertens 292-293). – corpo, esporte e guerra – mídias – música (Janke VIJanke, Pia (org.). Jelinek Handbuch. Stuttgart: Metzler, 2013.). Jelinek é uma autora capaz de tirar os leitores e os espectadores de suas peças de sua “zona de conforto” em todas essas esferas da vida, uma autora de forte engajamento político e moralista, porém pessimista, e que nunca se entrega à ilusão de soluções fáceis. Sua escrita comove, incomoda, provoca, e nos instiga a colocar em questão práticas discursivas com as quais todos nós estamos familiarizados. Jelinek costuma lançar obras que se referem a acontecimentos políticos bastante atuais, chamando a atenção para os mecanismos de poder político, patriarcal e econômico que regem nosso mundo e para a hipocrisia daqueles que acreditam estar do lado do “bem” (em alemão, os “Gutmenschen”, expressão que pode ser traduzida por “pessoas de bem” no contexto brasileiro). Um exemplo disso é a peça Schwarzwasser, sobre o “escândalo Ibiza”, lançada e estreada poucos meses após os acontecimentos reais aos quais se refere e que derrubaram o governo austríaco em 2019.

Jelinek não trabalha com frases coerentes, argumentos bem elaborados ou convincentes, mas com um trabalho criativo e transgressor do idioma alemão, inspirado no ceticismo linguístico e no sarcasmo satírico de outros grandes austríacos: o dramaturgo Johann Nestroy (século XVIII), o pai da psicanálise Sigmund Freud, o filósofo Ludwig Wittgenstein, o satírico Karl Kraus e os representantes do Grupo de Viena. Segundo Jelinek, são todos eles expoentes de uma “literatura muito focada na forma, que trabalha menos com conteúdo do que com a tonalidade, com o som da língua”, no “transbordamento barroco da língua” e no “afiado humor judaico” (JelinekJelinek, Elfriede. “Ich renne mit dem Kopf gegen die Wand und verschwinde”. Interview mit Rose-Maria Gropp und Hubert Spiegel. Frankfurter Allgemeine Zeitung. Frankfurt, 8 nov. 2004: 35. Web 01/09/2020 https://www.faz.net/aktuell/feuilleton/buecher/elfriede-jelinek-ich-renne-mit-dem-kopf-gegen-die-wand-und-verschwinde-1196979.html.
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, “Ich renne mit dem Kopf gegen die Wand und verschwinde”).

As “distorções da linguagem” (Farrés 23Farrés, Ramon. “Distorsions del llenguatge en la dramatúrgia austríaca contemporània: un repte per al traductor”. Quaderns, Revista de Traducción. 19, (2012): 23-30.) que resultam das estratégias literárias e intertextuais de Jelinek são certamente um grande desafio para o tradutor e podem também ter contribuído para o ritmo mais que devagar com o qual sua obra está chegando ao Brasil. Ao mesmo tempo, a peculiaridade de sua linguagem foi exatamente a justificativa oficial apresentada pela Academia Sueca de Literatura para a sua premiação com o prêmio Nobel. Consta na comunicação oficial da instituição que a autora foi escolhida pelo “fluxo musical de vozes e contravozes em romances e peças que, com extraordinário zelo linguístico, revelam o absurdo dos clichês sociais e seu poder subjugador”7 7 Cf., por exemplo, https://www.bbc.com/portuguese/noticias/story/2004/10/041007_nobelliteratura.shtml. . A própria Jelinek resume: “Aquilo que eu escrevo não é uma língua comum, é uma língua artificial, inclusive na técnica de montagem que uso de vez em quando. É, na verdade, uma composição linguística” (JelinekJelinek, Elfriede. “Ich möchte seicht sein”. Theater heute. 102 (1983): s/p. Web 01/09/2020. https://www.elfriedejelinek.com/fseicht.htm.
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, “Ich renne mit dem Kopf gegen die Wand und verschwinde”). Tal modo de escrever não é apenas uma forma estética para registrar um conteúdo temático, mas é, em si mesma, parte do projeto político e declaradamente moralista da autora. Assim como seus precursores acima citados, de Nestroy até Kraus, Jelinek esfacela a superfície da língua, de frases bem elaboradas de discursos políticos e de expressões idiomáticas bastante conhecidas pelos leitores e espectadores para chamar a atenção para aquilo que está escondido atrás da fachada do nosso idioma. O “zelo linguístico” com a superfície da língua, o uso de lapsos linguísticos ou erros ortográficos para revelar novas camadas de sentido, o intenso jogo intertextual com discursos que circulam na Áustria e mundo afora fazem dos romances e peças teatrais de Jelinek uma obra única e universal – e devem, no nosso entender, ser considerados numa tradução, mesmo representando um desafio descomunal para qualquer tradutor(a).

No caso do teatro, as técnicas literárias de Jelinek resultam em figuras que parecem ser máquinas, seres mortos-vivos, que pronunciam, desconstroem e combinam em novas formas excertos de discursos alheios. Jelinek não está interessada em imitar a vida no teatro, sua dramaturgia é antinaturalista, artificial, didática, narrativa, antimimética. Sua famosa frase “Não quero teatro” diz respeito justamente à sua procura pela desconstrução da “falsa unidade” da “vida” (JelinekJelinek, Elfriede. “Ich renne mit dem Kopf gegen die Wand und verschwinde”. Interview mit Rose-Maria Gropp und Hubert Spiegel. Frankfurter Allgemeine Zeitung. Frankfurt, 8 nov. 2004: 35. Web 01/09/2020 https://www.faz.net/aktuell/feuilleton/buecher/elfriede-jelinek-ich-renne-mit-dem-kopf-gegen-die-wand-und-verschwinde-1196979.html.
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, “Ich möchte seicht sein”), típica do teatro burguês e corroborada pela coerência entre personagem, identidade e voz. Assim como sua prosa, o teatro de Jelinek é escrito com a técnica literária da “montagem”, que coloca “na boca das figuras afirmações que já existem” (JelinekJelinek, Elfriede. “Ich schlage sozusagen mit der Axt drein”. Theaterzeitschrift. 7, (1984): 14-16., “Ich schlage sozusagen mit der Axt drein”, 14).

A pergunta “Por que traduzir o teatro de Jelinek no Brasil?” pode ser respondida de várias maneiras. Podemos começar pela relevância da autora e sua obra no cenário literário e teatral mundial e a lacuna que ainda existe por aqui em relação à sua obra; podemos enfatizar sua possível contribuição para análises e reflexões sobre nosso próprio cenário político e discursivo; podemos também ressaltar sua dramaturgia inovadora e as vantagens de disponibilizar de modo permanente suas peças em forma impressa, seja para leitura, seja como base para futuras montagens; e, por fim, podemos mencionar ainda as manifestações já existentes de um interesse pela autora por parte de agentes criativos do teatro brasileiro, evidenciado pelas peças que já foram levadas ao palco, sem que suas traduções tenham sido publicadas.

Quais obras traduzir?

Qualquer seleção não deixa de ser uma escolha em parte aleatória e baseada em critérios subjetivos. No presente projeto, não procuramos esconder esse fato, qualquer uma das traduções tem como um dos motivos de sua escolha uma preferência pessoal por parte dos ou das tradutoras. Porém, é sim possível definir alguns outros critérios norteadores para realizar essas escolhas. No contexto do presente projeto, levamos em conta fatores tais como a possibilidade de inserção da peça no mundo discursivo e teatral brasileiro ou a probabilidade de uma recepção mais ampla em decorrência da escolha de textos mais acessíveis e que abordem temas relevantes.

Diferentemente de uma tradução elaborada como texto-base para uma encenação teatral específica – que já leva em consideração o interesse de um diretor e as peculiaridades de um determinado elenco, de um teatro e um contexto bem definido – no âmbito do presente projeto é nosso objetivo elaborar traduções a serem publicadas. Procuramos basear nossas escolhas no desejo de oferecer ao público brasileiro textos das diversas fases da produção teatral da autora e, ao mesmo tempo, textos que permitam uma conexão rápida com temas e discursos conhecidos no Brasil. Assim, ficaram fora de nossa seleção peças sobre assuntos que se referem explicitamente a discursos e polêmicas na sociedade austríaca como, por exemplo, sobre os escândalos de assédio sexual na equipe nacional austríaca de esqui (como na peça Schneeweiss) ou sobre resquícios nazistas no maior teatro de Viena (como na peça Burgtheater).

Nossa seleção começa com o texto “O que aconteceu após Nora deixar seu marido ou Pilares das Sociedades” [Was geschah, nachdem Nora ihren Mann verlassen hatte oder Stützen der Gesellschaften], a primeira peça teatral publicada por Jelinek, em 1979. Escrita em forma dialógica, tem 18 cenas em diferentes cenários. Trata-se de uma peça à primeira vista ainda convencional que, no entanto, já traz embutidas as novidades dramatúrgicas e estéticas mais tarde radicalizadas por Jelinek. Como aponta Dagmar von Hoff, essa primeira peça ainda “finge [...] participar do cânone dramático tradicional”, mas, “por fim, rompe com as categorias clássicas da mimese e da ação, e as expectativas dos leitores e leitoras e dos espectadores e espectadoras são radicalmente desiludidas”, desenvolve-se “uma nova perspectiva estético-teatral” (HoffHoff, Dagmar von. “Was geschah, nachdem Nora ihren Mann verlassen hatte oder Stützen der Gesellschaften; Clara S.; Krankheit oder Moderne Frauen”. Jelinek Handbuch, organizado por Pia Janke. Stuttgart: Metzler, 2013, pp. 131-137., “Was geschah, nachdem Nora ihren Mann verlassen hatte oder Stützen der Gesellschaften; Clara S.; Krankheit oder Moderne Frauen”, 132). Tal viés, assim como o caráter explicitamente intertextual da peça, revela-se logo no início, quando a protagonista Nora diz: “Não sou uma mulher que foi abandonada pelo marido; sou uma mulher que abandonou por conta própria, algo bem mais raro. Sou a Nora, aquela da peça Casa de bonecas de Ibsen8 8 No original: “Ich bin keine Frau, die von ihrem Mann verlassen wurde, sondern eine, die selbsttätig verließ, was seltener ist. Ich bin Nora aus dem gleichnamigen Stück von Ibsen.” Todas as traduções citadas são da autoria de um grupo de tradutores composto por Angélica Neri, Gisele Eberspächer, Luiz Abdala Jr, Tassia Kleine e a autora deste artigo. ” (Jelinek 2018Jelinek, Elfriede. Theaterstücke. Hamburg: Rowohlt, 2018.: 9). Num ensaio de 1984, Jelinek apresenta o programa estético que a guiou na redação dessa primeira peça, ressaltando que não pretende mostrar personagens “redondas, com pontos fortes e fracos, mas polêmicas, contrastes fortes, cores duras, uma pintura em preto e branco” (JelinekWindle, Kevin. “The Translation of Drama”. The Oxford Handbook of Translation Studies. Organizado por Kirsten Malmkjær e Kevin Windle. Oxford: University Press, 2011, pp. 153-168., “Ich schlage sozusagen mit der Axt drein”, 14).

Como já indica o título da peça, Jelinek a escreveu com base em dois dramas de Henrik Ibsen: “A casa de bonecas” e “Pilares da sociedade” – mais tarde, ela cunhou o nome Sekundärdrama [drama secundário] para textos teatrais que usam explicitamente outros textos dramáticos como base9 9 Cf.https://www.elfriedejelinek.com/fsekundaer.htm. . Os empréstimos que Jelinek emprega ao longo da peça em relação à temática, a motivos, falas e personagens das peças de Ibsen são bem conhecidos entre o público teatral brasileiro e facilmente identificáveis; o tema central – a relação entre a posição de subjugação da mulher e a manutenção de uma sociedade capitalista e patriarcal – sem dúvida mantém atualidade no Brasil de hoje. Ou seja, além de fazer referência a discursos bem conhecidos entre os brasileiros (os discursos feminista, machista e economicista), a obra estabelece uma relação intertextual com dois dramas de Henrik Ibsen que já fazem parte do mundo literário e teatral do nosso país. Além disso, a peça segue, em linhas gerais, o modelo de um drama tradicional e é influenciada pelo modelo brechtiano do teatro épico, também bem conhecido no Brasil. Todos esses elementos são passíveis de conexão com temas e discursos existentes por aqui, o que, no nosso entender, torna essa obra apropriada para introduzir uma dramaturga ainda pouco conhecida num novo contexto linguístico e cultural.

Em 2013, Jelinek escreveu um “drama secundário” para sua própria peça “O que aconteceu após Nora deixar seu marido”, uma “continuação”: “Após Nora” [Nach Nora]10 10 A tradução desse texto faz parte do projeto de doutorado de Tassia Kleine, sob minha orientação. , cujo foco temático é a exploração da mão de obra feminina e infantil pela indústria têxtil da Índia, que abastece o mercado europeu (e brasileiro também) de moda. É um exemplo de um texto teatral que segue o formato de “superfície linguística” [Sprachfläche], característico das peças mais recentes da autora. São textos sem a distribuição de falas individuais em diálogos, sem rubricas ou indicações sobre o cenário e personagens, apenas textos a serem falados por uma personagem ou distribuídos entre algumas figuras no palco, permitindo liberdade total aos responsáveis pelas encenações. Esses textos continuam sendo teatrais, no sentido de que são escritos para serem encenados, mesmo Jelinek tendo eliminado, de uma forma radical, quase tudo que associamos tradicionalmente com um texto dramático. Por essa peça ser uma espécie de extensão do drama da personagem Nora, optamos por incluí-la na nossa seleção de textos jelinekianos a serem traduzidos. Desse modo, poderíamos oferecer ao público leitor brasileiro um conjunto de obras relacionadas por uma só temática e, ao mesmo tempo, apresentar o modo de escrever mais radical e recente da autora, isto é, um texto construído por meio da “superfície linguística”.

Outra peça de Jelinek sobre a dificuldade de a mulher assumir o direito de fala igualável ao do homem é “Sombras (Eurídice diz)” [Schatten {Eurydike sagt}], de 2013. Como já indica o título, Eurídice apenas “diz” algumas coisas, mas não “fala”, pois, numa sociedade falocêntrica, apenas os homens têm esse direito. É mais uma peça escrita na forma de “superfície linguística”. Jelinek apoia-se aqui no mito de Orfeu e Eurídice, dando voz à mulher, geralmente silenciada pela voz dominante de seu amado Orfeu, a quem serve cumprindo a função de objeto de desejo e de amor. Além da obra Metamorfoses, de Ovídio, são citados também diversos textos de Sigmund Freud, A história maravilhosa, de Adelbert de Chamisso, e textos que pertencem à cultura pop da atualidade – mais uma vez, escritos que fazem parte do universo literário e cultural brasileiro. Desse modo, essa peça também possui as características que definimos acima como relevantes para uma recepção positiva em solo brasileiro. Uma passagem de “Sombras (Eurídice diz)” já foi traduzida por mim e Cristiane Gonçalves Bachmann e publicada na revista Belas Infiéis, acompanhada de um texto introdutório (Bachmann; Bohunovsky, 2020Bachmann, Cristiane Gonçalves; Bohunovsky, Ruth. “Elfriede Jelinek – Sombra (Eurídice diz)”. Belas Infiéis. 9(2), (2020): 261-280.). A tradução do texto integral deve continuar em breve a cargo de Gonçalves Bachmann.

Outro texto sendo traduzido atualmente é Die Schutzbefohlenen, cujo título provisório em português é “Os protegidos”11 11 A tradução dessa peça está sendo realizada por Gisele Eberspächer, sob minha supervisão. e cuja temática é o conflito humano atual na Europa em relação à aceitação e inclusão de migrantes vindos de regiões de guerra que procuram apoio e proteção nos países ricos da União Europeia. No contexto brasileiro, esse texto tem menos atualidade política. Porém, possui um potencial de se relacionar com obras clássicas conhecidas pelo público brasileiro, como As suplicantes, de Esquilo, e, mais uma vez, Metamorfoses, de Ovídio. Outras referências são a filosofia de Heidegger e as obras poéticas de Hölderlin e Rilke – igualmente clássicos do cânone literário e filosófico universal.

Além dos textos aqui mencionados, outros poderão ser selecionados para tradução ao longo dos próximos anos, seguindo critérios semelhantes. Resumindo, até agora, todos os textos escolhidos para serem traduzidos e (esperamos) publicados relacionam-se com aspectos (discursivos, políticos, literários e/ou dramatúrgicos) da realidade brasileira – algo que consideramos fundamental para uma recepção mais ampla, que inclua o cenário teatral e não fique restrita a círculos já familiarizados com a obra e relevância de Jelinek. Obviamente, há outras peças da autora com potencial para tal alcance. Mas, como não poderia deixar de ser, nossas escolhas também dizem respeito às inclinações e aos interesses pessoais dos envolvidos. Cientes desse fato, procuramos ter em vista não apenas esse lado pessoal, senão também o propósito de abrir o caminho para uma recepção mais abrangente dessa dramaturga no nosso país.

Como traduzir?

No contexto da tradução teatral, é comum se distinguir entre traduções pensadas para serem impressas em forma de livro (for page) e aquelas feitas para uma encenação (for stage). Conforme destaca Aaltonen (2000)Aaltonen, Sirkku. Time-Sharing on Stage. Drama Translation in Theatre and Society. (Topics in Translation 17). Clevedon, Multilingual Matters LDG, 2000., as primeiras tendem a ser inseridas no sistema literário e a serem avaliadas de acordo com os critérios geralmente aplicados à tradução literária. Em outras palavras, espera-se que essas traduções mostrem uma postura de “reverência” em relação ao original (AaltonenAaltonen, Sirkku. “Theatre Translation as performance”. Target 25: 3 (2013): 385-406., Time-Sharing on Stage. Drama Translation in Theatre and Society, 8) evidenciando a busca por exatidão filológica e que haja poucas adaptações, omissões ou acréscimos. É importante lembrar que essas características dizem respeito apenas à expectativa de boa parte do público leitor e da crítica em relação a traduções publicadas e não a alguma suposta “fidelidade” ao original que traduções publicadas teriam ou deveriam ter12 12 Para uma argumentação mais aprofundada sobre essa questão, cf. Bohunovsky (no prelo). . Já em relação às traduções feitas para o palco, há uma tolerância maior por parte do público e da crítica no que tange a alterações e omissões, comumente em prol da chamada “performabilidade”. Fazendo uso das palavras de Torres, podemos chamar de “performático” um texto ao qual se tem tradicionalmente atribuído a qualidade de “funcionar no palco” (Torres, 189) – uma característica que nunca deixa de ser “pouco objetiva e mais intuitiva”, sobretudo em tempos pós-dramáticos (Torres, 189Torres Neto, Walter Lima. “Posfácio: O presidente, nova tradução, nova onda”. O presidente. Thomas Bernhard. Tradução de Gisele Eberspächer e Paulo R. Pacheco Júnior. Supervisão da tradução Ruth Bohunovsky. Curitiba: UFPR, 2020, pp. 181-191.). Ou seja, percebe-se que esse conceito de destaque na área dos estudos sobre a tradução teatral é mais do que vago: não se trata de uma característica intrínseca de um texto teatral, o termo não pode ser definido de modo objetivo. E os textos que Jelinek escreveu para o teatro são um ótimo exemplo para ilustrar esse fato. Conforme já apontado, eles não correspondem àquilo que tem sido estabelecido como característico de um texto dramático ao longo de séculos. Eles não têm diálogos, nem rubricas, nem desenvolvem uma ação e não têm tempo e espaço definidos. Ou seja, não possuem aquilo que muitas vezes é associado ao conceito de “performabilidade” – certa fluidez e predisposição de ser pronunciado de modo claro pelos atores e facilmente compreendido pelo público. O caráter relativo do conceito de “performabilidade” torna-se ainda mais evidente se pensarmos que é cada vez mais comum textos em prosa – lembrando aqui, por exemplo, os romances e narrativas de Thomas Bernhard – serem classificados como “performáticos” e levados a palcos teatrais. No nosso entender, com base em teóricos como Aaltonen (2000)Aaltonen, Sirkku. Time-Sharing on Stage. Drama Translation in Theatre and Society. (Topics in Translation 17). Clevedon, Multilingual Matters LDG, 2000., Bassnett (1991)Bassnett, Susan. “Translating for the theatre: the case against performability”. TTR: Traduction, Términologie, Redaction, v. 4, n.1, 1991, p. 99-111. Disponível em: https://www.erudit.org/fr/revues/ttr/1991-v4-n1-ttr1474/037084ar.pdf.
https://www.erudit.org/fr/revues/ttr/199...
ou Krebs (2007)Krebs, Katja. Cultural Dissemination and Translational Communities: German Drama in English Translations, 199-1914. Manchester, Kinderhook: St. Jerome, 2007., o fato de um texto ser classificado e/ou interpretado como “performático” depende muito mais das convenções de leitura do respectivo contexto de recepção e do conhecimento anterior do público do que do texto propriamente dito. Obviamente, na tradução o contexto muda, o texto é transformado e inserido em um novo ambiente com outras tradições literárias e teatrais, diferentes daquelas que marcaram o âmbito de recepção do texto de partida.

O trabalho do tradutor é um trabalho autoral, criativo e complexo, não há receitas a serem aplicadas. No âmbito do presente projeto, interessa-nos tanto levar em consideração aspectos fulcrais de forma e de conteúdo das obras originais (entendendo essas duas facetas como inseparáveis), quanto optar por estratégias que possam contribuir para inserir as traduções no seu contexto de recepção, isto é, brasileiro. Nossa proposta é produzir traduções a serem publicadas, traduções dos textos integrais e com uma postura de “reverência” em relação aos textos de origem, mas que possam servir também como ponto de partida para se pensar numa montagem. Ou seja, elaborar traduções que possam encontrar seu espaço nos sistemas literário e teatral brasileiros, que sejam uma base possível tanto para leituras envolventes quanto para uma eventual apresentação cênica de sucesso. Tencionamos pôr esses objetivos em prática tanto através da própria tradução – aplicando estratégias que tenham o intuito de recriar no texto de chegada efeitos comparáveis e compatíveis com aqueles estimulados pelo texto original – quanto através de paratextos (prefácios, posfácios, comentários dos tradutores etc.), capazes de estimular a sua recepção no contexto brasileiro. Aliás, a inclusão de paratextos abrangentes, informativos e escritos por especialistas da área de dramaturgia parece um ponto em comum de todas as recentes iniciativas editoriais nessa área citadas no começo deste artigo.

Para ilustrar alguns dos argumentos apresentados até aqui, seguem dois trechos de nossa tradução de “O que aconteceu após Nora deixar seu marido”. Nessa peça, ainda temos diálogos e ação, mas os jogos linguísticos com os significantes vão inspirando as associações feitas pelas personagens – inspirado nas teorias sobre inconsciente e linguagem de Freud e na tradição teatral-satírica de Johann Nestroy. No caso de Jelinek, isso resulta numa linguagem artificial, que oscila entre os usos metafórico e concreto de expressões linguísticas, que abre pistas interpretativas criativas e chistosas, porém enganosas. Há referências intertextuais dos mais variados tipos, sobretudo na superfície linguística, não havendo profundidade psicológica alguma conforme os moldes do drama tradicional. Algumas traduções já publicadas dessa peça optaram por tornar a linguagem mais convencional, talvez no intuito de facilitar a leitura e tornar a compreensão menos opaca. Um exemplo dessa estratégia é a tradução de Tinch Minter para o inglês (cf. JelinekJelinek, Elfriede. “What Happened After Nora Left Her Husband or Pillars of Society”. Tradução de Tinch Minter. Plays by Women, Volume Ten, organizado por Castledine, Annie. Portsmouth: Heinemann, 1994, pp. 24-65., “What Happened After Nora Left Her Husband or Pillars of Society”), que, além de aproximar a linguagem ao uso convencional, eliminou quase metade das falas, especialmente aqueles trechos que deixam a referida técnica literária de Jelinek mais evidente. Sendo essa artificialidade parte essencial da estética e proposta política da autora conforme mencionado acima –, tentamos recriar tais trechos em português, deixando, em alguns casos, em segundo plano a relação semântica com a passagem correspondente em alemão.

Jelinek (2018: 10) Nossa tradução NORA: Ich wollte mich am NORA – Quis me transformar de Arbeitsplatz vom Objekt zum objeto em sujeito, através de um Subjekt entwickeln. Vielleicht trabalho. Talvez possa com minha kann ich in Gestalt meiner Person pessoa trazer um raio de luz para noch zusätzlich einen Lichtstrahl um chão de fábrica tão sombrio. in eine düstere Fabrikshalle   bringen   PERSONALCHEF: Unsere COORDENADOR DE RH – Räume sind hell und gut gelüftet. Nossa fábrica é bem iluminada e   arejada. NORA: Ich möchte die NORA – Quero elevar a Menschenwürde und das dignidade humana e o direito Grundrecht auf freie Entfaltung Gitarre Cada homem no morro e sua básico pelo livre desenvolvimento der Persönlichkeit hochhalten. pessoal PERSONALCHEF: Sie können COORDENADOR DE RH – A überhaupt nichts hochhalten, senhora não pode elevar nada, weil Sie Ihre Hände für etwas pois precisa de suas mãos para Wichtigeres brauchen. segurar coisas mais importantes.

Na tradução inglesa, o que sobrou dessa passagem é uma única frase de Nora: “I wanted to develop in a job from an object to a human being” (JelinekJelinek, Elfriede. “What Happened After Nora Left Her Husband or Pillars of Society”. Tradução de Tinch Minter. Plays by Women, Volume Ten, organizado por Castledine, Annie. Portsmouth: Heinemann, 1994, pp. 24-65., “What Happened After Nora Left Her Husband or Pillars of Society”, 25). Na nossa tradução, procuramos tanto manter a alusão às discussões e às teorias no âmbito dos movimentos feministas sobre a posição de objeto da mulher numa sociedade, assim como as quebras semânticas causadas pela retomada de termos usados por Nora por parte do Coordenador de RH, que ignora sua dimensão metafórica. Com tais jogos intertextuais e trocadilhos com a superfície da linguagem, com os significantes, Jelinek não cria apenas um estilo literário único, mas reforça sua compreensão sobre como todo ser humano tende a ser determinado por discursos já existentes e sobre a impossibilidade de um diálogo dialético e argumentativo entre as pessoas. Portanto, acreditamos que eliminá-los seria empobrecer a peça.

Seguindo essa mesma proposta de procurar recriar em português as estratégias literárias da autora, tentamos, em outros momentos, não gerar empecilhos em demasia para o leitor brasileiro e, sobretudo, manter a possibilidade prazerosa e enriquecedora de se reconhecer as alusões e intertextualidades durante a leitura ou uma apresentação cênica. Nesse sentido, em alguns momentos optamos por inserir referências do universo discursivo brasileiro, mesmo em lugares em que Jelinek não empregou tal técnica. Obviamente, assim como a autora no seu texto original, corremos também o risco de o leitor ou espectador não identificar tais intertextualidades. O trecho seguinte é um exemplo disso. Nele, substituímos uma frase de Nora que expressa sua falta de interesse pelos avanços amorosos de seu superior na fábrica pela citação de um verso de um rock americano, grande sucesso no Brasil na voz de Celly Campello (1959), “Estúpido Cupido”13 13 Stupid Cupid composição de Neil Sedaka e Howard Greenfield. Versão brasileira de Fred Jorge. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ECG-jn_TQz4. :

Jelinek (2018: 16) Nossa tradução NORA: Ich schiebe den NORA – Oh! Oh! Cupido, vá longe Gedanken an Liebe weit von de mim! mir.  

Na abordagem sobre “como traduzir” as peças de Jelinek, além de comentar algumas estratégias utilizadas, é importante mencionar que todas as traduções em andamento aqui apresentadas estão sendo feitas na modalidade da tradução colaborativa. Ao longo dos últimos anos, temos realizados muitos trabalhos tradutórios em grupo de, no mínimo, três membros, que se debruçam juntos sobre um único texto. Os resultados têm sido positivos, em primeiro lugar, por suprir eventuais dificuldades ou incertezas no domínio da língua estrangeira, lembrando que a maioria dos tradutores participantes não são profissionais, encontram-se ainda em fase de formação. Além disso, a construção de uma tradução de autoria múltipla – feita em grupo e não pela divisão do texto a ser traduzido – implica sempre discussões e negociações de interpretação que se mostram muito frutíferas para texto final. A autora deste artigo – falante nativa de alemão – tem agido ou como supervisora das traduções elaboradas em pareceria ou como um membro do grupo de trabalho (como no caso da tradução de “O que aconteceu após Nora deixar seu marido”). A colaboração de falantes nativos das duas línguas envolvidas também tem sido vista pelo grupo como um enorme ganho para a qualidade tanto da interpretação da riqueza semântica e formal dos textos originais quanto das soluções tradutórias encontradas em língua portuguesa. É curioso notar que esse formato parece ter inclusive o apoio de Jelinek que entende que seus textos sejam “muito difíceis para serem traduzidos” (Görtschacher 477Görtschacher, Wolfgang. “Recreation Rather Than Reproduction – Anthony Vivis’s Translation of Elfriede Jelibbvnek’s Clara S.”. Drama translation and theatre practice, organizado por Sabine Coelsch-Foisner e Holger Klein. Frankfurt am Main: Peter Lang, 2004, pp. 475-488.) ou até “introduzíveis”, embora “austríacos que cooperam com falantes nativos da outra língua talvez sejam capazes de traduzir meus textos” (Görtschacher, 484Görtschacher, Wolfgang. “Recreation Rather Than Reproduction – Anthony Vivis’s Translation of Elfriede Jelibbvnek’s Clara S.”. Drama translation and theatre practice, organizado por Sabine Coelsch-Foisner e Holger Klein. Frankfurt am Main: Peter Lang, 2004, pp. 475-488.). Não assumimos uma visão tão determinista em relação à tradução dos textos – embora sejam às vezes obscuros e multifacetados – dessa autora, mas acreditamos que a interpretação e a atividade em conjunto trazem um ganho considerável para o trabalho final.

Nesse contexto, é interessante notar ainda que a modalidade da tradução colaborativa tem sido discutida e defendida cada vez mais em trabalhos e estudos que versam sobre a tradução teatral – sobretudo no sentido de acreditar que a participação de pessoas com habilidades diferentes (diretores, dramaturgos, tradutores, linguistas, atores etc.) pode levar a resultados mais satisfatórios tanto no caso de publicação quanto de montagem de um texto teatral (cf. por exemplo, Aaltonen, “Theatre Translation as performance”, 385; Windle; Hörmannseder). No caso deste projeto, além da tradução em conjunto, como foi descrito acima, tem mostrado efeitos muito positivos também uma forma de colaboração ainda mais ampla, com o envolvimento de atores profissionais, sobretudo quando eles se dispõem a “testar” a versão em língua portuguesa realizando uma leitura dramática.

Palavras finais

Este artigo procurou mostrar alguns objetivos e resultados de um work in progress. Trata-se de um projeto de prática tradutória em âmbito universitário, vinculado ao processo de formação de jovens tradutores e tradutoras. É nosso intuito, ao longo dos próximos anos, traduzir e publicar em forma de livros uma série de textos teatrais escritos originalmente em língua alemã, sobretudo de autores austríacos como, por exemplo, Elfriede Jelinek, Thomas Bernhard e Wolfgang Bauer. Todas essas traduções virão acompanhadas de paratextos de autoria de estudiosos (acadêmicos ou não) dos respectivos autores e/ou das histórias teatrais do Brasil ou dos países de língua alemã, para ampliar as dimensões interpretativas das obras que desejamos introduzir no mundo literário e teatral do Brasil.

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    Conforme aponta TorresTorres Neto, Walter Lima. “Posfácio: O presidente, nova tradução, nova onda”. O presidente. Thomas Bernhard. Tradução de Gisele Eberspächer e Paulo R. Pacheco Júnior. Supervisão da tradução Ruth Bohunovsky. Curitiba: UFPR, 2020, pp. 181-191. (186-187), algumas editoras brasileiras tentaram mudar esse cenário desde meados do século passado, com diversas coleções: a Coleção Teatro Moderno (final dos anos 1950, ed. Agir), Coleção Brasiliense de Bolso: série teatro universal (a partir de 1965); Coleção Teatro Vivo (a partir de 1976, ed. Abril Cultural); Coleção Teatro de Hoje (segunda metade dos anos 1960, ed. Civilização Brasileira); Coleção Teatro de Bertolt Brecht (1976, ed. Civilização Brasileira); Coleção Clássicos do Teatro Brasileiro (1977-1995, coordenado pelo Serviço Nacional do Teatro, em parceria com o Ministério da Educação e Cultura); Coleção Dramaturgia(s) (desde 1999, ed. 7Letras); Coleção Dramaturgos do Brasil (2002, ed. Martins Fontes) e, por fim, a coleção Os Grandes Dramaturgos (2004-2007, ed. Peixoto Neto).
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    A forma de caderno é comum nos países de língua alemã, onde muitos teatros fornecem programas impressos das peças em cartaz, às vezes incluindo o texto-base.
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    O conceito de “mortos-vivos” tem relevância na obra de Jelinek por se referir às relações que os vivos mantêm (ou que tentam suprimir) com seus mortos e ao recalque de traumas psicológicos e históricos (cf. Mertens 292-293Mertens, Moira. “Untote”. Jelinek Handbuch, organziado por Pia Janke. Stuttgart: Metzler, 2013: 292-297.).
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    No original: “Ich bin keine Frau, die von ihrem Mann verlassen wurde, sondern eine, die selbsttätig verließ, was seltener ist. Ich bin Nora aus dem gleichnamigen Stück von Ibsen.” Todas as traduções citadas são da autoria de um grupo de tradutores composto por Angélica Neri, Gisele Eberspächer, Luiz Abdala Jr, Tassia Kleine e a autora deste artigo.
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    A tradução desse texto faz parte do projeto de doutorado de Tassia Kleine, sob minha orientação.
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    A tradução dessa peça está sendo realizada por Gisele Eberspächer, sob minha supervisão.
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    Para uma argumentação mais aprofundada sobre essa questão, cf. Bohunovsky (no prelo)Bohunovsky, Ruth. “Em caso de dúvida, sempre cômico!: o teatro de Elfriede Jelinek”. Pandaemonium Germanicum, 23(39), Universidade de São Paulo, (2020): 128-157..
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    Stupid Cupid composição de Neil Sedaka e Howard Greenfield. Versão brasileira de Fred Jorge. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ECG-jn_TQz4.

Referências

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    » https://www.erudit.org/fr/revues/ttr/1991-v4-n1-ttr1474/037084ar.pdf
  • Bernhard, Thomas. O presidente Tradução de Gisele Eberspächer e Paulo R. Pacheco Júnior. Supervisão da tradução Ruth Bohunovsky. Curitiba: UFPR, 2020.
  • Bohunovsky, Ruth. “Em caso de dúvida, sempre cômico!: o teatro de Elfriede Jelinek”. Pandaemonium Germanicum, 23(39), Universidade de São Paulo, (2020): 128-157.
  • Bachmann, Cristiane Gonçalves; Bohunovsky, Ruth. “Elfriede Jelinek – Sombra (Eurídice diz)”. Belas Infiéis 9(2), (2020): 261-280.
  • Bohunovsky, Ruth. “Neue Ansätze bei der Übersetzung von Theatertexten (Jelineks): Methodenvielfalt, neue Formen und Übersetzer*innen im Rampenlicht”. Jelinek (Jahr) Buch 2018-2019. Forschungsplattform Elfriede Jelinek, Universidade de Viena, no prelo.
  • Farrés, Ramon. “Distorsions del llenguatge en la dramatúrgia austríaca contemporània: un repte per al traductor”. Quaderns, Revista de Traducción 19, (2012): 23-30.
  • Görtschacher, Wolfgang. “Recreation Rather Than Reproduction – Anthony Vivis’s Translation of Elfriede Jelibbvnek’s Clara S”. Drama translation and theatre practice, organizado por Sabine Coelsch-Foisner e Holger Klein. Frankfurt am Main: Peter Lang, 2004, pp. 475-488.
  • Hoff, Dagmar von. “Was geschah, nachdem Nora ihren Mann verlassen hatte oder Stützen der Gesellschaften; Clara S.; Krankheit oder Moderne Frauen”. Jelinek Handbuch, organizado por Pia Janke. Stuttgart: Metzler, 2013, pp. 131-137.
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  • Janke, Pia (org.). Jelinek Handbuch Stuttgart: Metzler, 2013.
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  • Jelinek, Elfriede. “Ich schlage sozusagen mit der Axt drein”. Theaterzeitschrift 7, (1984): 14-16.
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  • Jelinek, Elfriede. A pianista Tradução de Luis S. Krausz. São Paulo: Tordesilhas, 2011.
  • Jelinek, Elfriede. Desejo Tradução de Marcelo Rodinelli. São Paulo: Tordesilhas, 2013.
  • Jelinek, Elfriede. Theaterstücke Hamburg: Rowohlt, 2018.
  • Leones, André. “Elfriede Jelinek lança leitor a anos-luz de qualquer zona de conforto.” O Estado de S. Paulo, São Paulo, 23 ago. 2013. Web 20/09/2021 https://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,elfriede-jelinek-lanca-leitor-a-anos-luz-de-qualquer-zona-de-conforto,1067216
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  • Windle, Kevin. “The Translation of Drama”. The Oxford Handbook of Translation Studies Organizado por Kirsten Malmkjær e Kevin Windle. Oxford: University Press, 2011, pp. 153-168.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    09 Jun 2021
  • Aceito
    15 Ago 2021
  • Publicado
    Set 2021
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