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POR UMA ESCOLA PÚBLICA DEMOCRÁTICA

FOR A DEMOCRATIC PUBLIC SCHOOL

POR UNA ESCUELA PÚBLICA DEMOCRÁTICA

“Ninguém tem destino, nós construímos o nosso destino.

E como ele está sendo, pode ser diferente.

Estamos coletivamente contribuindo para que ele seja diferente,

seja cada dia melhor, mais justo,

menos desigual e, obviamente, mais solidário.”

(Lisete Arelaro)

O livro Escola pública: práticas e pesquisas em educação, que acaba de vir a público em formato digital (com distribuição gratuita) e impresso, publicado pela Editora da UFABC, organizado por Ana Corti, professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP), e pelos professores Fernando Cássio, professor do Centro de Ciências Naturais e Humanas da Universidade Federal do ABC (UFABC), e Sergio Stoco, professor do Instituto de Ciências Ambientais, Químicas e Farmacêuticas da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), campus Diadema, é resultado de um longo, raro e apurado trabalho coletivo de reflexão, de estudos, de participação e militância política e de discussões sobre as políticas públicas educacionais, em regime sistemático de colaboração e de desenvolvimento de projetos de pesquisa entre profissionais da educação pública, seja das escolas da educação básica, seja das universidades (Universidade Federal de São Carlos, UFABC, Unifesp, Universidade de São Paulo, Universidade Estadual de Campinas) e do IFSP. Esse é o grupo da Rede Escola Pública e Universidade (Repu).

As ideias que se consubstanciam agora no livro cobrem um arco de variadas questões, temas e problemas do sistema educacional público brasileiro e que, para quem acompanha o site e as publicações, as propostas, as campanhas e as intervenções da Repu, representam a maturação e a sedimentação das perspectivas críticas formadas no trabalho que o grupo desenvolve há tempos. Atentos por isso mesmo às condições conjunturais, tanto brasileiras quanto internacionais, às sucessivas crises (política, econômica, ética, sanitária e educacional), as contribuições dos capítulos primam pela capacidade de tratar de complexas questões (por exemplo, avaliações externas, democracia, a política nas orientações de gestão escolar) e temas emergenciais (violência contra professores, direitos humanos e crise do trabalho) com um esforço de linguagem, ao mesmo tempo clara e abreviada, sem perder o alcance da exposição e da compreensão do que está em jogo, com um compromisso ético de ser acessível, esclarecedor e propositivo. Por si só, virtudes cada vez mais raras e, no entanto, cada vez mais imprescindíveis.

O gesto de dar a público esse feixe de considerações sobre a escola pública configura também, como não poderia deixar de ser, um sentido político específico, visto que surge no processo que muitos têm chamado de reconstrução da democracia e de recuperação dos valores republicanos no Brasil. Portanto, motivo a mais para celebrar a boa hora a que se junta. Nesse sentido, o conceito-chave que orienta, a meu ver, os pontos de vista em todos os capítulos é o de democracia, o que significa ainda que, sendo um livro à primeira vista exclusivamente sobre a escola pública, é também, a fortiori, sobre toda a dimensão pública brasileira. Selecionei aqui apenas alguns trechos do livro para tentar dar uma ideia de como são tratadas e de como se inter-relacionam as variadas contribuições que formam, desde o princípio, um conjunto harmônico. Outras discussões no livro tratam ainda dos temas da juventude, da crise do trabalho, das avaliações externas, dos direitos humanos, do conselho escolar, da educação integral e das políticas públicas para a educação de jovens e adultos. Cito um trecho do capítulo 3, “Participação e democracia na escola pública”:

No atual contexto histórico, em que o autoritarismo, a intolerância e a violência se fortalecem nas relações sociais, é fundamental que a escola, enquanto instituição que contribui para a formação das novas gerações, ofereça aos estudantes conteúdos e práticas que lhes permitam a mais ampla reflexão dos significados sociais e políticos das formas autocrática e democrática de organização das sociedades

(Jacomini, 2023JACOMINI, M. Participação e democracia na escola pública. In: CORTI, A.; CÁSSIO, F.; STOCO, S. (org.). Escola pública: práticas e pesquisas em educação. São Paulo: Editora da UFABC, 2023. p. 43-51., p. 44).

Importa frisar o modus operandi aqui ilustrado na formulação que todos os textos, mais ou menos, expressam. A formação escolar preconizada é aquela na qual as pessoas envolvidas, nos vários níveis, são respeitadas nas suas especificidades etárias, profissionais, políticas, sociais e culturais. Ou seja, não se aponta um caminho senão aquele que permita a todos e todas participarem da construção de opções de caminhos e discernimento sobre valores e princípios em cada circunstância de escolha. Eis, em poucas palavras, um dos sentidos de democracia que participam deste livro.

Como prossegue a professora Márcia Jacomini (2023, p. 45-46)JACOMINI, M. Participação e democracia na escola pública. In: CORTI, A.; CÁSSIO, F.; STOCO, S. (org.). Escola pública: práticas e pesquisas em educação. São Paulo: Editora da UFABC, 2023. p. 43-51.: “Uma formação democrática se faz com experiências educativas de participação e tomada de decisão coletiva em instâncias de democracia direta e representativa, que proporcionem vivências favoráveis à constituição de personalidades não autoritárias”. Do mesmo modo e estendendo para a sociedade, poderíamos parafrasear: uma sociedade democrática faz-se com experiências de participação e tomada de decisão coletiva em instâncias de democracia direta e representativa, que proporcionem vivências favoráveis à constituição de uma cidadania que recuse qualquer manifestação autoritária. Isso porque é, como vamos aprendendo, somente pelas práticas democráticas que a educação restrita ao sentido escolar alcançaria e se espraiaria pelo espaço social e a formação passaria a ser de domínio, de fato, público. Condição sem a qual perdem força a ideia e as práticas de que todas as pessoas devem ser respeitadas no direito de participação e de organização da vida em sociedade.

No trabalho cotidiano, mesmo na educação, é comum o uso de modos de fala repetitivos que, como descobrimos no livro, representam também formas de pensamento e, no limite, princípios políticos, conscientes ou não. O que nos permite tornar sensível, concretamente, uma antiga tese da filosofia da linguagem, a de que “uma linguagem representa um modo de vida”. Os sentidos menos óbvios da formulação possibilitam pensar no sentido reverso de que um modo de vida se consolida pela prática de uma linguagem. Isto é, desse modo de vida, consta como lastro um modo de pensar, de conceber a ordenação do mundo e, por isso, de orientar escolhas. O texto do professor Fernando Cássio estuda a palavra gestão e os caminhos ideológicos que a levam até o modo de compreensão e de atuação na escola.

A “gestão” evoca uma visão empresarial de que é possível decompor quaisquer processos complexos em processos mais simples, que poderão ser mais facilmente administrados para gerar os melhores resultados. Nesse ideário, tanto faz se estamos falando de uma escola pública, de um restaurante ou de uma loja de roupas

(Cássio, 2023CÁSSIO, F. Gestão para resultados na escola pública. In: CORTI, A.; CÁSSIO, F.; STOCO, S. (org.). Escola pública: práticas e pesquisas em educação. São Paulo: Editora da UFABC, 2023. p. 81-91., p. 82).

O comprometimento com a palavra manifesto pelo uso recorrente tem a ver, nesse caso, com um “ideário empresarial”, ou seja, com um modo de lidar com a dimensão privada na ordem social. Pelo tipo de hierarquia e relações verticais entre cargos e funções, uma empresa não comporta bem os princípios de uma gestão que se pretende democrática, ou seja, a condição, como vimos, que poderia respeitar e priorizar a participação das pessoas na definição de decisões. Por isso e por muito mais, a ideia de gestão nesse sentido só pode causar um desarranjo organizativo na chamada esfera pública, porque os propósitos públicos são diferentes e, em grande medida, opostos aos da esfera privada. A lição a que este capítulo nos convida é para a desnaturalização e a politização dos vocabulários e, por extensão, das posturas, dos procedimentos e dos modos enrijecidos de refletir e decidir sobre as demandas que o trabalho em educação pública nos cobra. Uma vez mais, somente por um trabalho colaborativo, baseado em princípios democráticos, seria possível criar as condições oportunas para que esses horizontes se constituíssem, sem o que a tarefa individualizada se torna infinitamente maior do que qualquer boa intenção solitária poderia fazer frente.

Houve um tempo no qual as discussões políticas tratavam de argumentar sobre o problema contido na questão: reforma ou revolução? Isso significava, para resumir o rosário, na escolha entre horizontes de emancipação mais próximos e outros mais distantes, entre a possibilidade de mudanças ainda que superficiais e possíveis no curto prazo e as transformações radicais de longo prazo cujo horizonte era o da emancipação e da igualdade social. Este livro também renova esse tema que estava (está?) nos subterrâneos dos sonhos adormecidos de utopia, trazendo-o para o campo das persistentes reformas educacionais, principalmente no ensino médio.

Como parecia estar ainda no prazo de validade, o princípio iluminista de uma educação para todos e todas, também expresso pela Constituição Federal de 1988, acrescido da experiência dos anos de aprendizado de organização política da esquerda durante a ditadura militar, resultou em conscientização da classe média, sobretudo aquela que estava constantemente na fronteira e sob risco de cair à classe baixa, e em pressão social pelas garantias de um acesso ampliado à educação básica, como dever do Estado. Como mostra a professora Ana Corti (2023, p. 125)CORTI, A. O ensino médio entre reformas. In: CORTI, A.; CÁSSIO, F.; STOCO, S. (org.). Escola pública: práticas e pesquisas em educação. São Paulo: Editora da UFABC, 2023. p. 123-138.:

Estudos sobre a história da educação brasileira mostram que a democratização da educação básica com a incorporação de novos segmentos sociais antes excluídos do direito à educação foi fruto de pressão das classes médias e pobres por acesso à escola, o que ocorreu também com o Ensino Médio.

A “solução” era, portanto, de teor reformista, porque os tempos eram já de vacas políticas magras, afinal, com o colapso da modernização que representaram os anos 1990, o fim da União Soviética, a queda do muro de Berlim, a crise das perspectivas emancipatórias, tudo isso fez desmoronar os antigos alicerces das utopias políticas. Quando o governo Fernando Henrique Cardoso resolveu que era hora de propor reformas no ensino médio, defendeu “um ensino mais flexível, que ajudasse os jovens a se adaptarem aos diversos tipos de arranjos ocupacionais, diante de um mundo do trabalho em crise, com aumento do desemprego, da informalidade e diminuição dos ganhos salariais” (Corti, 2023CORTI, A.; CÁSSIO, F.; STOCO, S. (org.). Escola pública: práticas e pesquisas em educação. São Paulo: Editora da UFABC, 2023., p. 127). Um furo n’água, para dizer apenas o mínimo, se não fosse um projeto intencional de maquiagem política e interesse ideológico de classe, para um terço da população, os “inempregáveis”, como o então presidente se referiu em discurso, para os quais não havia lugar no atual estágio de desenvolvimento das forças produtivas.

A realidade econômica do chamado neoliberalismo criou uma casta de pessoas “inempregáveis” no Brasil. Esse é o mais recente neologismo do presidente Fernando Henrique Cardoso, após chamar de “neobobos” aqueles que o criticam. O “inempregável” foi forjado ontem em uma palestra na qual desempenhou o papel em que fica mais confortável: o de sociólogo (Gielow, 1997GIELOW, I. Retórica presidencial. Folha de S. Paulo, São Paulo, 8 abr. 1997., p. A3).

Portanto, tudo em chave cosmética condizente com um horizonte de expectativas rebaixadas e decrescentes, como formularam Christophe Lasch (1983)LASCH, C. A cultura do narcisismo: a vida americana numa época de expectativas em declínio. Rio de Janeiro: Imago, 1983., em A cultura do narcisismo: a vida americana numa época de expectativas em declínio; Günther Anders (2002ANDERS, G. L’obsolescence de l’homme: sur l’âme à l’époque de la deuxième revolution industrielle. Paris: Ivrea, 2002.; 2007)ANDERS, G. Le temps de la fin. Paris: L’Herne, 2007., em A obsolescência da humanidade e Tempo do fim; e Paulo Arantes (2014)ARANTES, P. O novo tempo do mundo: estudos sobre a era das emergências. São Paulo: Boitempo, 2014., em O novo tempo do mundo: estudos sobre a era das emergências. Os títulos e subtítulos desses livros já dão uma notícia de como o livro Escola pública, aqui em pauta, participa de uma discussão mais ampla sobre o diagnóstico e os desafios do presente, com a coragem de avançar sobre os dados, as informações e os conhecimentos menos óbvios que dão a ver uma realidade brutal, mas igualmente com a necessária convicção e tirocínio de que a postura propositiva é igualmente emergencial, e isso participa ativamente dos fundamentos éticos do grupo que forma a Repu. Uma iniciativa que deve inspirar tanto profissionais da educação quanto jovens estudantes e pesquisadores no empenho que a construção do futuro tem exigido. Não precisaria haver nisso nenhuma necessidade de esperança, até porque para essas pessoas, pesquisadores e pesquisadoras, professoras e professores, não haveria outra escolha possível de atuação e de exercício político e responsável da cidadania e do comprometimento social que o trabalho em educação envolve.

A citação em epígrafe a cuja autora, professora Lisete Arelaro, o livro é dedicado é, originalmente, um comentário inspirado de duas frases famosas de Paulo Freire, “o mundo não é, o mundo está sendo”, lembrando sempre a seus ouvintes que o que se passa sempre poderia e poderá ser diferente, que temos chances de participar, mesmo coletivamente, das transformações que poderão produzir melhorias nos resultados do modo como conduzimos a vida em sociedade. Temos, então, responsabilidades e condições de permanecer ativos e atentos na constituição do mundo em que vivemos. A professora Lisete realiza assim a essência do trabalho de formação que foi seu ofício de vida inteira, colhe a lição do mestre e a faz ter prosseguimento, sempre com liberdade de elaboração, na sensibilidade e inteligência de quem a ouve ou lê. Assim, parece-me vigente a voz dela nas valiosas contribuições que as autoras e os autores deste livro oferecem, realizando uma vez mais aquela bela imagem que Jorge Luis Borges compôs sobre seus mestres:

Podemos dizer que Platão tinha saudades de Sócrates. Depois da morte de Sócrates, ele terá dito a si mesmo: “Ora, o que Sócrates diria sobre essa minha dúvida específica?” E então, a fim de ouvir mais uma vez a voz do mestre, escreveu os diálogos. […] E quando penso no grande autor judaico-espanhol Rafael Cansinos-Asséns, quando penso em Macedonio Fernandez, também gostaria de ouvir suas vozes. E de vez em quando treino minha voz para imitar as suas vozes, a fim de que possa pensar como eles teriam pensado

(Borges, 2000BORGES, J.L. Esse ofício do verso. Organização: Calin-Andrei Mihailescu. Tradução: José Marcos Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000., p. 16-17).

Referencias

  • ANDERS, G. Le temps de la fin Paris: L’Herne, 2007.
  • ANDERS, G. L’obsolescence de l’homme: sur l’âme à l’époque de la deuxième revolution industrielle. Paris: Ivrea, 2002.
  • ARANTES, P. O novo tempo do mundo: estudos sobre a era das emergências. São Paulo: Boitempo, 2014.
  • BORGES, J.L. Esse ofício do verso Organização: Calin-Andrei Mihailescu. Tradução: José Marcos Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
  • CÁSSIO, F. Gestão para resultados na escola pública. In: CORTI, A.; CÁSSIO, F.; STOCO, S. (org.). Escola pública: práticas e pesquisas em educação. São Paulo: Editora da UFABC, 2023. p. 81-91.
  • CORTI, A. O ensino médio entre reformas. In: CORTI, A.; CÁSSIO, F.; STOCO, S. (org.). Escola pública: práticas e pesquisas em educação. São Paulo: Editora da UFABC, 2023. p. 123-138.
  • CORTI, A.; CÁSSIO, F.; STOCO, S. (org.). Escola pública: práticas e pesquisas em educação. São Paulo: Editora da UFABC, 2023.
  • GIELOW, I. Retórica presidencial. Folha de S. Paulo, São Paulo, 8 abr. 1997.
  • JACOMINI, M. Participação e democracia na escola pública. In: CORTI, A.; CÁSSIO, F.; STOCO, S. (org.). Escola pública: práticas e pesquisas em educação. São Paulo: Editora da UFABC, 2023. p. 43-51.
  • LASCH, C. A cultura do narcisismo: a vida americana numa época de expectativas em declínio. Rio de Janeiro: Imago, 1983.
Editor de seção: Roberto Leher. https://orcid.org/0000-0002-5063-8753

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    31 Mar 2023
  • Aceito
    04 Abr 2023
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