Resumos
Esta análise sobre os terapeutas populares baseia-se na documentação da Fisicatura-mor (1808-28). A partir, principalmente, de processos sobre oficializações de atividades médicas, abre-se acesso a categorias como sangradores e curandeiros, cujas atividades seriam cada vez mais perseguidas ao longo do século XIX. Na hierarquia das práticas de cura seguidas pela instituição, as exercidas por tais terapeutas eram menos valorizadas e, através da análise quantitativa dos dados, mostrou-se possível identificá-las com posições sociais desfavorecidas. Foram igualmente analisadas informações sobre o seu trabalho e sua aceitação fornecidas por alguns terapeutas populares e por sua clientela.
história da medicina; terapeutas populares; Fisicatura-mor
Based on documentation from the institution known as the Fisicatura-mor (1808-28), and mainly on proceedings involving its official ‘accreditation’ of medical activities, this analysis of popular therapists opens access to categories like bleeders and healers, who were persecuted for their activities down through the nineteenth century. The curing practices employed by these bleeders and curandeiros ranked low on the hierarchy of procedures acceptable by the Fisicatura-mor. Quantitative data analysis demonstrates a link between these practices and disadvantaged social positions. Also analyzed was information that popular therapists and their clientele provided on these practices and on how they are accepted.
history of medicine; popular therapists; Fisicatura-mor
Barbeiros-
sangradores e
curandeiros no
Brasil (1808-28)*
Bleeders and
healers in Brazil
(1808-28)
*Este artigo foi escrito com base em minha dissertação
de mestrado Artes de curar: um estudo a partir dos documentos
da Fisicatura-mor no Brasil do começo do século XIX. (T.S.P.)
Tânia Salgado Pimenta
Rua Sorocaba, 673/401
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Tels.: (021) 527-8727 (019) 254-5010
e-mail: spimenta@domain.com.br
Graduação e licenciatura em história na
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Mestrado em história social do trabalho
na Universidade de Campinas (Unicamp)
Doutoranda em história social
do trabalho na Unicamp
SALGADO, T. S.: Barbeiros-sangradores e curandeiros no Brasil (1808-28).
História, Ciências, Saúde Manguinhos,
vol. V(2): 349-72, jul.-out. 1998.
Esta análise sobre os terapeutas populares baseia-se na documentação da Fisicatura-mor (1808-28). A partir, principalmente, de processos sobre oficializações de atividades médicas, abre-se acesso a categorias como sangradores e curandeiros, cujas atividades seriam cada vez mais perseguidas ao longo do século XIX. Na hierarquia das práticas de cura seguidas pela instituição, as exercidas por tais terapeutas eram menos valorizadas e, através da análise quantitativa dos dados, mostrou-se possível identificá-las com posições sociais desfavorecidas. Foram igualmente analisadas informações sobre o seu trabalho e sua aceitação fornecidas por alguns terapeutas populares e por sua clientela.
PALAVRAS-CHAVE: história da medicina, terapeutas populares, Fisicatura-mor.
SALGADO, T. S.: Bleeders and healers in Brazil (1808-28).
História, Ciências, Saúde Manguinhos,
vol. V(2): 349-72, Jul.-Oct. 1998.
Based on documentation from the institution known as the Fisicatura-mor (1808-28), and mainly on proceedings involving its official accreditation of medical activities, this analysis of popular therapists opens access to categories like bleeders and healers, who were persecuted for their activities down through the nineteenth century. The curing practices employed by these bleeders and curandeiros ranked low on the hierarchy of procedures acceptable by the Fisicatura-mor. Quantitative data analysis demonstrates a link between these practices and disadvantaged social positions. Also analyzed was information that popular therapists and their clientele provided on these practices and on how they are accepted.
KEYWORDS: history of medicine, popular therapists, Fisicatura-mor.
1 Em 1808, juntamente com
a Fisicatura-mor, foi criada
a Provedoria-mor de Saúde, responsável pela fiscalização da carga dos navios que chegavam, com especial atenção aos africanos, e da tripulação. Mas como os cargos de provedor-mor e
de físico-mor eram exercidos
pela mesma pessoa, havia
uma certa superposição de responsabilidades, e alguns documentos endereçados à Provedoria, ou que deveriam ser a ela endereçados, encontram-se em meio à documentação da Fisicatura-mor.
2 Embora tenham existido algumas exceções: uma
referia-se à carta de cirurgiã, relacionada ao ramo da obstetrícia, e as outras eram referentes às cartas de boticárias concedidas a três irmãs que moravam na Bahia.
3 Mas o número apresentado de sangradores não inclui aqueles que possuíam autorização para exercer a
arte da cirurgia.
4 Daqui em diante usam-se indistintamente as palavras sangrador e barbeiro.
5 Apesar dessa referência, devido à própria alçada, em termos geográficos, da Fisicatura-mor, que não teve grande atuação em áreas
onde o contato com os
índios era maior, não é possível, com base nessa documentação, discutir as práticas indígenas de cura.
6 Nacionalidade por falta de palavra melhor, pois a África consta desta tabela como
um lugar genérico. Inclui sangradores que eram
também dentistas.
7 Dois anos para sangrador.
8 Ver também Chalhoub
(1994) sobre diferentes interpretações a respeito de questões relacionadas à
saúde (especificamente
sobre a varíola e a sua vacina), segundo os diversos grupos sociais existentes no século XIX.
9 Pagava-se menos por uma licença do que pelo exame e pela carta. Apesar de a primeira ser temporária, sempre havia oportunidade
de os sangradores embarcarem sem licença ou carta, como parece ter feito
a maioria delas.
10 Especificamente na região Centro-Sul do Brasil, a escravidão era caracterizada por ser africana, com predominância banto.
Mesmo após 1810, quando
se deu uma certa variação quanto às regiões de onde provinham os africanos falantes de língua banto,
ainda assim as semelhanças lingüísticas permitiram a utilização de uma língua franca, conforme nos mostra Slenes (1992).
11 A licença expedida pela Fisicatura-mor era para usar do ofício de curandeiro, mas algumas vezes escrevia-se
nos processos o termo curador.
12 Missionários, cirurgiões-barbeiros, barbeiros e a tradição oral conservaram a memória e difundiram o uso dos vegetais conhecidos e empregados pelos nativos, como, por exemplo, a copaíba, a maçaranduba para ulcerações e ferimentos; a jurubeba, as quineiras, o maracujá para febres; o caju
e o jaborandi como
diuréticos etc. (Santos Filho, 1977, pp. 114, 106).
13 O cavalo-marinho era o símbolo desse ofício e afastava os espíritos diabólicos (Ewbank, op. cit., pp. 246-9), o que permite a conclusão de que a cura estava relacionada à
expulsão de espíritos malignos, segundo Karasch (1987, pp. 263-4).
14 Sobre concorrência de mercado entre curandeiros e médicos na segunda metade do século passado, ver Sampaio (1995).
15 De acordo com Goubert (1977), na França, ao final do século XVIII, os médicos e cirurgiões diplomados
também enfrentavam essa situação.
Introdução
Em 1856, os membros da Academia Imperial de Medicina viam- se às voltas com um problema que os indignava. O presidente da província havia autorizado que um curandeiro africano, conhecido como Manuel, tratasse dos doentes de cólera no Hospital da Marinha de Recife. A reação dos médicos, nesse caso, foi tentar impedir que o "preto buçal" Manuel empregasse "o seu remédio" (Annaes Brasilienses de Medicina, mar. 1857, pp. 9-10; Freyre, 1968, pp. 506-9).
Cerca de quarenta anos antes, uma situação semelhante era percebida pelos médicos de modo completamente diferente. Um terapeuta popular chamado Adão, que era preto forro, praticara por algum tempo na Santa Casa do Rio. Em vez de horrorizar os médicos, essa experiência serviu como argumento em favor do pedido feito por Adão para que fossem oficializadas suas práticas médicas (Fisicatura-mor, caixa 1195).
Os moradores de Macacu, localidade fluminense onde exercia o seu ofício, apoiavam o curador. Apresentaram, em 1815, um abaixo-assinado com 44 assinaturas (entre as quais as de capitães, tenentes, alferes e sargentos), no qual diziam padecer a falta de médicos e cirurgiões e, como Adão havia aprendido a sangrar na cidade e tinha "conhecimento das várias ervas medicinais que entre nós há com abundância", pediam licença para que ele pudesse "livremente sangrar nossas famílias e em algumas doenças leves ensinar-nos alguns remédios e também tirar dentes".
O curandeiro Adão teve o seu saber reconhecido oficialmente pelos médicos, que o autorizaram a praticar, pelo período de um ano, as "várias mezinhas" que conhecia "para certas enfermidades", renovando a licença anualmente até 1822. Mas, quatro décadas depois, os médicos externariam profunda irritação com a permissão dada pelo presidente da província de Pernambuco para que o preto escravo Manuel tratasse de doentes de cólera. Assim, enquanto no início do século a população pôde ainda se manifestar pacificamente através de um abaixo-assinado, em 185(?), suas opções quanto à prática médica só puderam prevalecer ao preço de muita tensão social e até ameaça de motim popular.
A Fisicatura
Em 1810 foi instituído o Regimento do Físico-mor, que orientava os seus representantes no exercício de suas funções. Havia uma divisão de responsabilidades entre as práticas médicas relativas à prescrição e à fabricação de remédios, que eram da alçada do físico-mor, e as práticas médicas relacionadas às intervenções cirúrgicas, que eram da responsabilidade do cirurgião-mor.
Em minha pesquisa, dei prioridade aos dados dos pacotes e, nestes, aos pedidos de oficialização das atividades. Tais pedidos abriram um processo burocrático, cujas partes principais eram o próprio pedido, o atestado do mestre com quem havia praticado o suplicante (ou, caso não fosse possível, a produção de atestado, relatos de testemunhas), o auto de exame (feito pelos examinadores da Fisicatura-mor) e a ordem para que se passasse a carta ou a licença, que permitiam a livre prática de determinado ofício. As licenças, ao contrário das cartas, eram provisórias. Valiam por um, dois, três anos, conforme o tempo considerado justo pelo físico-mor, pelo cirurgião-mor ou por seus representantes. Em muitos casos era comum que, em vez de um atestado de mestre, fossem apresentadas atestações de pessoas de posição social prestigiada, padres, militares, políticos locais e, às vezes, ainda, abaixo-assinados da população que usufruía dos serviços daquele que solicitava a carta ou licença.
Terapeutas populares
A documentação da Fisicatura-mor nos apresenta um quadro em que as categorias médicas mais populares estão menos presentes nas vias de legalização do que as atividades mais conceituadas, o que, é claro, não significa que as primeiras existissem em menor número.
Distribuição percentual das categorias de cura (1808-28)
Fonte: Pedidos de licença e de carta provenientes do Brasil e, até 1822, de Portugal e seus demais domínios, para o livre exercício de alguma prática médica específica.
Documentação da Fisicatura-mor contida nas caixas 1186-1212, AN.
Cerca de 1.300 processos eram pedidos de licença procedentes do Brasil, o que representa 70% do total. A quantificação desses dados mostrou os seguintes resultados: a categoria de terapeutas que mais se oficializou no Brasil foi a dos cirurgiões (30%), seguidos dos boticários (29%), dos sangradores (16%), dos licenciados para curar de medicina prática (que eram cirurgiões com autorização para prescrever remédios, 15%), das parteiras (5%), dos médicos (3%) e dos curandeiros (2%, incluídos nesta categoria os licenciados a curar alguma moléstia específica). Mesmo constituindo a menor porção dos pedidos para oficialização, outras fontes contemporâneas e muitas observações registradas nos papéis da própria Fisicatura-mor, indicam terem sido as terapias populares as mais difundidas então na sociedade. E contudo, apesar de saber-se que eram tais terapias mais utilizadas nessa época, existem poucos registros sobre como eram praticadas. Há algumas observações genéricas, feitas por praticantes da medicina européia, que acentuam a "limitação" do conhecimento das pessoas que não curavam de acordo com os preceitos dessa medicina, as quais eram identificadas com setores subordinados da sociedade (escravos, forros, livres pobres, mulheres), muito embora tais práticas de cura fossem reconhecidamente necessárias. A Fisicatura-mor não se preocupava com entrar em detalhes sobre as terapias populares, até porque, para os requerentes serem aprovados, suas práticas deveriam adequar-se, pelo menos na petição e no exame, às linhas da medicina acadêmica. Por isso, considerava suficiente registrar se as capacidades dos requerentes estavam ou não de acordo com as atividades que pretendiam exercer. Raras vezes tais métodos de cura foram explicitados, tanto pela parte suplicante quanto pelos examinadores.
Analisando-se a relação da Fisicatura-mor com as camadas populares, é possível pensar que a própria não oficialização pode mostrar, além da impossibilidade da instituição cumprir seus objetivos, a recusa dos agentes de cura populares a se enquadrarem nos limites da Fisicatura-mor, bem como o desconhecimento da população quanto à atuação da mesma. No entanto, principalmente nos locais de maior concentração urbana, onde havia uma presença maior de médicos, boticários, cirurgiões e da Fisicatura-mor, forjaram-se categorias a cujas atividades os defensores das concepções da medicina européia queriam que os praticantes de terapias populares se ativessem. Mas existem indícios, nos documentos, de que muitas vezes as atividades de quem era rotulado como sangrador, parteira ou curandeiro, de acordo com a concepção da Fisicatura-mor, não se restringiam aos limites do título obtido. Muitos sangradores faziam as vezes de dentistas, enquanto as parteiras receitavam remédios de medicina internos. A maior parte das informações de que dispomos, porém, diz respeito a certas atividades consideradas em seus limites impostos pela Fisicatura-mor e, por isso, serão apresentadas separadamente.
A medicina popular abordada aqui se distinguia da medicina acadêmica primeiramente pela classe social dos que a praticavam e dela se valiam. As práticas de cura populares eram exercidas por escravos, forros e livres pobres; já os que praticavam a medicina acadêmica eram, em geral, pessoas de posição econômica privilegiada. Outra característica da medicina popular era a falta de sistematização, muito embora a medicina acadêmica também não possuísse então um conjunto de teorias e práticas completamente organizados. De qualquer forma, as práticas terapêuticas oficiais hauriam em sua matriz européia concepções de doença e cura mais ordenadas em classificações de moléstias e métodos específicos de terapia. Também tinham a seu favor o fato de serem exercidas por pessoas de posição social privilegiada e o poder de tentar coibir práticas muito diferentes das suas. Mas a relação entre essas medicinas não se fazia apenas de imposição, por um lado, e resistência, por outro. Alguns medicamentos preconizados pelos médicos acadêmicos podiam ser utilizados pelos praticantes da medicina popular, e, certamente, o oposto também ocorria. Além disso, pessoas da classe dominante recorriam a tratamentos da medicina popular, prescritos por quem pertencia aos setores desfavorecidos da população, não só pela falta de médicos como por efeito da reconhecida competência dos terapeutas populares, ainda que, nessa questão, não se possa falar de reciprocidade, vez que a população mais pobre não tinha condições de recorrer à medicina oficial.
Sangradores
O negócio de sanguessugas está em mãos dos barbeiros. ... entramos certa vez numa barbearia para ver as caixas de madeira grossa, de três pés de comprimento, cheias de argila, em que os vermes são importados, e na qual se os enterravam até serem retirados para serem usados. Algumas sanguessugas são de dimensões enormes. O preço usual é de vinte centavos de dólar para cada uma que o barbeiro aplica.
Não havendo explicações sobre as práticas terapêuticas na documentação produzida pela Fisicatura-mor, é forçoso recorrer a observadores contemporâneos leigos como o reverendo Walsh (1985, pp. 177-8), que assinalou a predominância de negros nesse ofício:
Para as dores reumáticas, eles usam de maneira singular as ventosas, que geralmente são aplicadas por um negro. Um dia, ao passar pela rua detrás do palácio, vi um médico negro aplicando esse tratamento em alguns pacientes sentados na escadaria de uma igreja. Ele amarrou o braço e o ombro de uma mulher que parecia sentir dores terríveis e, fazendo pequenas escarificações em vários pontos com um pedaço de lâmina de navalha, começou a bater levemente nesses locais com a parte plana da lâmina até que o sangue surgisse. Em seguida colocou pequenas ventosas feitas de chifres sobre elas e, aplicando sua boca numa abertura situada na extremidade, habilmente extraiu o ar de seu interior e fechou a abertura com argila, deixando-a firmemente presa à pele. Fazendo a mesma coisa, ele fixou mais sete ventosas do cotovelo ao ombro, onde elas tinham uma aparência muito estranha. Quando foram removidas, o braço estava coberto de sangue e a mulher disse que sentia um grande alívio.
Fonte: Pedidos de licença e de carta para o livre exercício da arte de sangrar.
Documentação da Fisicatura-mor contida nas caixas 1186-1212, AN.
Não há como afirmar que os sangradores oficializados fossem todos também barbeiros, mas, considerando-se as muitas petições nas quais os suplicantes eram mencionados como barbeiros, não é improvável que, pelo menos no caso dos escravos e forros, essas palavras significassem a mesma coisa. Há testemunhos de contemporâneos, como Walsh (1985, vol. 1, p. 200), sobre a variedade dos serviços oferecidos pelos barbeiros, que preparavam e vendiam casco de tartaruga para fazer pente e remendavam meias de seda, sendo famosos pelo capricho com que se desimcumbiam desse serviço. Além disso, eram os músicos da cidade, e em suas barbearias, existiam sempre instrumentos musicais, em geral suspensos num arco para serem vendidos ou para entretenimento dos fregueses das classes mais elevadas e, às vezes até, para aliviar as dores de um paciente que o barbeiro estivesse tratando.
Um ofício, de setembro de 1820, do próprio cirurgião-mor José Correia Picanço, endereçado aos vereadores do Senado da Câmara da Corte, ajuda a definir um pouco melhor o grupo social que praticava essa especialidade médica. Justificando a admissão de um preto escravo a exame, Picanço explicava as razões pelas quais os escravos deveriam ser aceitos no exercício das artes de sangrar e de tirar dentes (Documentos sobre a escravidão, 6.1.23):
Pelo regimento do cirurgião-mor do reino não se acha acautelada a proibição de exame de escravos para que possam sangrar, sarjar, lançar ventosas e sanguessugas, e tirar dentes. Por isso admiti a exame o preto Vicente, escravo de Anacleto José Coelho. Não achei razão para, pelo meu juízo, deixar de assim o obrar, quando, considerando que, vivendo em um país onde os homens ingênuos, livres e libertos se negam ao exercício de muitas ocupações, de modo que não há suficiente número de sujeitos nelas peritos para ocorrer à necessidade pública, julguei deveria mais atender a esta do que a qualquer outra consideração, e tanto mais porque as artes de que se trata têm mais de mecânicas do que de liberais.
Os argumentos do cirurgião-mor são bastante claros no que diz respeito aos próprios membros mais bem posicionados da sociedade relegarem as atividades de sangrador a escravos e a outros socialmente "inferiores". Luccock (1975, p. 72) também inclui os barbeiros entre as profissões mecânicas e observa que eram muito numerosos. Quanto à recusa de libertos trabalharem como sangradores, Picanço pode estar fazendo referência ao aprendizado e não ao trabalho, pois os que haviam aprendido enquanto escravos continuavam a ser sangradores após a alforria e, inclusive, ensinavam a arte.
Esse era o caso de Vicente, mencionado no ofício. Trazido de Angola, aqui acabou sendo escravo de Anacleto José Coelho, que era sangrador aprovado e ensinou a seu escravo as artes de "sangrar, sarjar, deitar ventosas, sanguessugas, e tirar dentes", conforme atestado de junho de 1820 apresentado à Fisicatura-mor. Tendo isso em vista, Picanço admitiu o escravo a exame para sangrador e dentista em agosto, na Corte, durante o qual Vicente respondeu a perguntas práticas e teóricas, saindo aprovado e apto para receber a carta (Fisicatura-mor, caixa 1212).
Em 1824, porém, achando-se já "forro e liberto" e considerando "indecoroso conservar uma carta do tempo de escravo", Vicente recorreu ao cirurgião-mor para que lhe passasse uma nova, no que foi atendido em novembro do mesmo ano. Para isso, Vicente apresentou a carta de liberdade que lhe fora dada gratuitamente por Anacleto José Coelho em junho de 1824.
De volta à África
Além de ganhar a vida nas praças e ruas, ou numa loja, o sangrador também podia tentar acumular algum pecúlio exercendo as suas atividades em navios, especialmente os negreiros.
Em geral, os sangradores que trabalhavam nos navios não eram submetidos a exames, portanto não recebiam cartas da arte de sangria. Pediam uma licença provisória, que lhe permitisse exercitar as suas atividades durante o tempo que durasse a viagem que pretendiam fazer.
Os proprietários de escravos que sabiam sangrar tratavam com os donos das embarcações com destino à Costa do Leste para que seus negros de ganho sangradores cuidassem dos africanos que seriam trazidos. Às vezes, o dono do escravo e do navio eram a mesma pessoa. Esses sangradores negros constituíam a única assistência médica recebida pelos africanos (Karasch, 1987, pp. 40, 194, 203) tanto na travessia para o Brasil, quanto ao desembarcarem aqui.
Entre as justificativas que acompanhavam os pedidos de licença para os sangradores viajarem sem prévios exames, figurava a dificuldade, alegada por alguns proprietários de embarcações, de encontrar um sangrador ou cirurgião aprovado para poder fechar a matrícula do navio. Tal explicação deveria ser acompanhada do argumento de que o sangrador possuía muita experiência, mesmo sem oficialização anterior de sua prática (como os que pediam admissão a exame).
Curandeiros
A categoria dos curandeiros pouco aparece nos pedidos de licença. Mas apesar do reduzido número, esses pedidos são alguns dos itens mais interessantes da documentação pesquisada, já que, após a extinção da Fisicatura-mor, essa atividade perdeu espaço de legalização.
assistir-lhe o seu curativo, o qual não foi mais senão com cozimentos de raízes dados internamente, externamente banhos de ervas, clisteres das mesmas, vindo eu no conhecimento que o seu curativo era ficá (sic) por presenciar entre o gentio da Costa de Leste onde tenho sete viagens, uma para o reino de Angola, segunda para Cabinda, terceira para Roma, e quatro para a capitania de benguela, onde presentemente navego, que o curativo entre eles não é mais senão com cozimentos de raízes, e ervas, e como os meus escravos ficaram bons com os medicamentos do curador na forma do gentio da Costa de Leste, e eu satisfeito com a saúde deles, passei esta por ser verdade ... (Fisicatura-mor, caixa 1191).
Além do reconhecimento da eficácia dos curativos de Bento Joaquim, tem-se aí um testemunho sobre práticas de cura da África e seu uso no Brasil entre a população pobre. O reconhecimento dessas práticas só não foi maior porque se trata de curas feitas por um curandeiro para um grupo específico, os escravos, no caso do atestado.
Teresa Joana do Espírito Santo (eram poucas as mulheres que passavam atestados) também testemunhou, em 1816, que havia sido com raízes de pau e folhas do mato que o pardo Bento a curara da enfermidade de que padecia havia anos e que "os professores desta Corte não se atreveram a curar". E, se precisasse, juraria pelos Santos Evangelhos e nomearia os "professores que a assistiram antes do curioso pegar-me a curar ...". Na mesma época, Quitéria Maria de Santana passou atestado semelhante.
Esses documentos confirmam que os curandeiros eram solicitados não apenas por falta de médicos ou cirurgiões, como queria a Fisicatura-mor, mas por serem mais eficientes, ao menos na visão de seus pacientes. E isso era admitido pela instituição que, apesar de basear-se na estratificação dos agentes de cura, deixava passar várias petições com atestados nesse sentido, que terminavam com a aprovação e licenciamento dos suplicantes.
Conclusão
A ação controladora da Fisicatura-mor não tinha o mesmo alcance sobre todas as categorias de terapeutas. As pessoas que exerciam as especialidades de medicina, cirurgia e farmácia oficializavam-se mais do que os sangradores, parteiras e curandeiros. Mas havia uma motivação comum às pessoas que buscavam legalizar as suas atividades: além do receio de uma punição, muitas podem ter visto, nos títulos da Fisicatura-mor, uma forma de elevar o seu status, de adquirir mais prestígio na comunidade em que atuavam e, dessa maneira, distinguir-se na concorrência.
Fontes
Manuscritas
Documentos sobre a escravidão e mercadores de escravos (1777-1831), Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, 6.1.1823.
Fisicatura-mor, Arquivo Nacional, caixas 1186 a 1212.
Impressas
Annaes Brasilienses de Medicina, Jornal da Academia Imperial de Medicina. Rio de Janeiro, mar. 1857.
Recebido para publicação em abril de 1998.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
23 Jan 2006 -
Data do Fascículo
Out 1998