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A NOÇÃO HUMIANA DE ‘CONSCIÊNCIA’ NO APÊNDICE AO TRATADO DA NATUREZA HUMANA

HUME’S NOTION OF ‘CONSCIOUSNESS’ IN THE ‘APPENDIX’ TO THE TREATISE OF HUMAN NATURE

RESUMO

O artigo avança a hipótese de que David Hume não define consciência como ‘percepção ou pensamento refletido’, como parece sugerir uma passagem do vigésimo oitavo parágrafo do ‘Apêndice’ ao Tratado da natureza humana. A partir da observação de algumas dificuldades relativas às compreensões de consciência como ‘percepção’ e como ‘pensamento refletido’, argumenta-se que, na referida passagem, Hume tem em vista o fenômeno da autoconsciência, o modo como o eu está consciente de si próprio.

Palavras-chave:
História da Filosofia; David Hume; Consciência; Autoconsciência; Mente

ABSTRACT

The paper advances the hypothesis that David Hume does not define consciousness as ‘perception or reflected thought’ such as a passage from the twenty-eighth paragraph of the ‘Appendix’ to the Treatise of Human Nature seems to suggest. From the observation of some difficulties related to the understandings of consciousness as ‘perception’ and ‘reflected thought’, it is argued that, in that passage, Hume has in view the phenomenon of self-consciousness, that is, the way in which the self is conscious of itself.

Keywords:
History of Philosophy; David Hume; Consciousness; Self-consciousness; Mind

A discussão do tema da ‘consciência’ em seu sentido psicológico, isto é, enquanto atividade que permite o acesso da mente aos seus fenômenos, seus estados e operações, surge na história da filosofia no século XVII, mais especificamente, nas reflexões de René Descartes (1596-1650) sobre o conhecimento. A partir das teses defendidas pelo filósofo francês nas Meditações sobre filosofia primeira (1641) e, sobretudo, em algumas de suas observações nas Objeções e respostas, o tema começa a chamar a atenção de autores da recepção do pensamento cartesiano1 1 Para uma breve história do desenvolvimento da noção de ‘consciência’ nos séculos XVII e XVIII, ver capítulo introdutório da obra de Thiel, Self-consciousness and Personal Identity from Descartes to Hume (2011), seu artigo ‘Hume’s Notions of Consciousness and Reflection in Context’ (1994) e o artigo ‘Consciousness among the Cartesians’ de Stephan Nadler (2011). . Na França, Louis de La Forge (1632-1666)2 2 No Tratado do espírito do homem (1666). , Nicolas Malebranche (1638-1715)3 3 Em A busca da verdade (1674). e Antoine Arnauld (1612-1694)4 4 Em Das ideias verdadeiras e falsas (1683). são exemplos de pensadores que se interessam pela noção psicológica de ‘consciência’. Entre os britânicos, Ralph Cudworth (1617-1688)5 5 Em O verdadeiro sistema intelectual do universo (1678). parece ser o primeiro a pensar na consciência como aquilo que permitiria o acesso da mente aos seus fenômenos. É com John Locke (1632-1704), no entanto, ao apoiar sua explicação da identidade pessoal sobre a consciência, que a noção passa a ser considerada mais de perto pelos filósofos de língua inglesa – ecoando mais tarde nas discussões entre Anthony Collins (1676-1729) e Samuel Clarke (1675-1729) e nos trabalhos de George Berkeley (1685-1753). Em 1728, um Ensaio dedicado somente ao tema é publicado anonimamente em Londres, as Duas dissertações a respeito dos sentidos e da imaginação, com um Ensaio sobre a consciência, escrito erroneamente atribuído a Zachary Mayne6 6 Sobre a autoria do Ensaio, ver Tim Milnes ‘On the Authorhip of Two Dissertations concerning Sense and Imagination, with an Essay on Consciousness’ (2000). (1631-1694).

David Hume (1711-1776), diferentemente desses autores, não vai além de algumas menções à consciência em suas obras. O autor, com efeito, não confere um tratamento sistemático ao fenômeno do estar consciente em sua ciência da natureza humana. Não há uma seção no Tratado da natureza humana (2001)7 7 Publicado originalmente em 1739 (Livros I e II) e 1740 (Livro III e ‘Apêndice’). Doravante, apenas Tratado. em que o filósofo se dedique a explicar sua compreensão desse fenômeno que há pelo menos quatro décadas despertava o interesse dos filósofos de língua inglesa. Não obstante esse aparente silêncio, intérpretes têm se dedicado à tarefa de compreender o que seria a ‘teoria humiana da consciência’, seja de modo direto – como, por exemplo, Keith Yandell (1992)YANDELL, K. “Continuity, Consciousness, and Identity in Hume’s Philosophy”. Hume Studies, Vol. XVIII, Nr. 2, pp. 255-274, 1992., Udo Thiel (1994)THIEL, U. “Hume’s Notions of Consciousness and Reflection in Context”. British Journal for the History of Philosophy, Vol. II, Nr. 2, pp. 75-115, 1994., Wayne Waxman (1994)WAXMAN, W. “Hume’s Theory of Consciousness”. Cambridge: Cambridge University Press, 1994., Gordon Park Stevenson (1998)STEVENSON, G. “Humean Self-Consciousness Explained”. Hume Studies, Vol. XXIV, Nr. 1, pp. 95-129, 1998., Donald Ainslie (2012)AINSLIE, D. “Hume, a Scottish Locke? Comments on Terence Penelhum’s Hume”. Canadian Journal of Philosophy, Vol. XIIL, Nr. 1, pp. 161-170, 2012., Terence Penelhum (2012)PENELHUM, T. “Hume, Locke and Conciousness”. Canadian Journal of Philosophy, Vol. XIIL, Nr. 1, pp. 198-203, 2012. e Hsueh Qu (2015)QU, H. “Hume on Mental Transparency”. Pacific Philosophical Quarterly, Vol. XCVIII, Nr. 4, pp. 576-601, 2015. – ou marginal – como, por exemplo, James Noxon (1969)NOXON, J. “Senses of Identity in Hume’s Treatise”. Dialogues, Vol. VIII, Nr. 3, pp. 367-384, 1969., Saul Traiger (1985)TRAIGER, S. “Hume on Finding an Impression of the Self”. Hume Studies, Vol. XI, Nr. 1, pp. 47-68, 1985. e Stacy Hansen (1988)HANSEN, S. “Hume’s Impressions of Belief”. Hume Studies, Vol. XIV, Nr. 2, pp. 277-304, 1988..

O termo ‘consciência’ e a expressão ‘estar consciente’, em seus sentidos psicológicos, aparecem algumas vezes ao longo das discussões desenvolvidas por Hume no Tratado. Em uma única passagem, no ‘Apêndice’, o filósofo parece estar mais próximo de apresentar o que seria uma ‘definição’ de consciência:

A maioria dos filósofos parece inclinada a pensar que a identidade pessoal ‘surge’ da consciência; e que a consciência é apenas uma ‘percepção ou pensamento refletido8 8 A tradução de Danowski dessa passagem apresenta um erro. Hume diz ‘perception or reflected thought’, não ‘percepção refletida ou pensamento’, como traduz a tradutora. ’ [destaque meu]. A presente filosofia, portanto, tem até aqui um aspecto promissor (Apêndice §28).

A referência à ‘maioria dos filósofos’ pode levar à suposição de que Hume não assume para si a compreensão de que a consciência é uma percepção ou pensamento refletido. Contudo, a referência final à sua própria filosofia – ‘a presente filosofia’ –, parece ser inequívoca a esse respeito.

O objetivo do presente artigo é discutir o sentido de ‘consciência’ na referida passagem. A hipótese avançada estabelece que Hume não define consciência como ‘percepção ou pensamento refletido’, como sugerem intérpretes como Thiel (1994, p. 106)THIEL, U. “Hume’s Notions of Consciousness and Reflection in Context”. British Journal for the History of Philosophy, Vol. II, Nr. 2, pp. 75-115, 1994. e Stevenson (1998, pp. 95-96)STEVENSON, G. “Humean Self-Consciousness Explained”. Hume Studies, Vol. XXIV, Nr. 1, pp. 95-129, 1998.. Para fins de esclarecimento, sugiro a distinção entre dois fenômenos mentais, a consciência e a consciência de si. A consciência – mais geral – seria o conhecimento dos fenômenos mentais enquanto esses ocorrem na mente. A consciência de si – mais específico – seria o conhecimento que o eu – a pessoa – tem de si próprio ao estar consciente de suas percepções. Na referida passagem, Hume não considera o fenômeno da consciência em geral, ou seja, todo e qualquer caso em que a mente está consciente de um estado mental particular. A passagem não diz respeito a todos os possíveis objetos da consciência – impressões de sensação, impressões de reflexão, ideias, suas relações e inclinações/tendências –, mas a um objeto específico, a saber, o eu. Se estou certo em minha leitura, portanto, a passagem do ‘Apêndice’ refere-se, na verdade, ao fenômeno mais específico do estar consciente de si próprio ou à autoconsciência.

Pretendo desenvolver essa hipótese em três seções. Na primeira e segunda, discuto e problematizo a compreensão de consciência como ‘pensamento refletido’ e como ‘percepção’ respectivamente. As dificuldades encontradas nessas duas possíveis compreensões de consciência servem de apoio, acredito, para a hipótese a ser defendida na terceira seção: na passagem do ‘Apêndice’, Hume tem em vista apenas o modo como o eu está consciente de si próprio, não a consciência em geral.

1. A consciência como ‘pensamento refletido’

A seguir, discuto o que me parecem ser dificuldades para se compreender a noção de ‘consciência’ como ‘pensamento refletido’.

Consciência e reflexão

Thiel (1994)THIEL, U. “Hume’s Notions of Consciousness and Reflection in Context”. British Journal for the History of Philosophy, Vol. II, Nr. 2, pp. 75-115, 1994., para quem não haveria nada particularmente novo no uso que Hume faz do termo ‘consciência’ – tendo o filósofo seguido o uso dos autores britânicos desde o fim do século XVII9 9 “Ele usa a noção de consciência tal como ela foi desenvolvida nos debates filosóficos na Grã-Bretanha desde o fim do século XVII (sem, é claro, chamar a atenção do autor para esse fato” (Thiel, 1994, p. 77). –, argumenta que a passagem do ‘Apêndice’ revela a compreensão humiana de consciência:

A definição de consciência de Hume como um ‘pensamento refletido ou percepção’ parece sugerir que ele segue a tradição de Descartes, Sergeant e Law, ao invés da [tradição] de La Forge, Arnauld, De Vries e Locke, igualando a consciência com a reflexão individual (Thiel, 1994, p. 106THIEL, U. “Hume’s Notions of Consciousness and Reflection in Context”. British Journal for the History of Philosophy, Vol. II, Nr. 2, pp. 75-115, 1994.).

O intérprete acredita que duas passagens da terceira parte do Livro I, da seção ‘Da ideia de conexão necessária’, confirmariam que Hume entende a consciência como pensamento refletido. Na primeira dessas passagens, o filósofo parece opor ‘sensação’ e ‘reflexão’: “tal ideia [de eficácia] tem que ser derivada da experiência e de alguns exemplos particulares dessa eficácia, que penetram na mente pelos canais comuns da sensação ou da reflexão” (T 1.3.14§6). Na segunda passagem apontada por Thiel, encontrada poucas linhas abaixo da primeira, Hume parece opor ‘sensação’ e ‘consciência’:

Portanto, se alegamos possuir uma idéia legítima dessa eficácia, devemos apresentar algum exemplo em que a eficácia se mostre à mente de forma clara, e em que suas operações sejam evidentes à nossa ‘consciência’ ou ‘sensação’” (T 1.3.14§6).

Para Thiel, as duas oposições – reflexão e sensação/consciência e sensação – significariam que Hume identifica a consciência com a reflexão10 10 Sobre a passagem da terceira parte do Livro I, Thiel observa: “por exemplo, no Tratado (T 1.3.14§6), Hume diz que as ideias ‘penetram na mente pelos canais comuns da sensação ou da reflexão’, e, pouco depois, ele se refere à ‘consciência ou sensação’, obviamente usando ‘consciência’ e ‘reflexão’ como sinônimos. Embora o uso de Hume de consciência como ‘pensamento refletido ou percepção’ não possa significar exatamente a ‘mesma’ coisa que os usos sinônimos de ‘consciência’ e ‘reflexão’ sugerem, parece, a partir dessas passagens, que a consciência de Hume deve ser entendida em termos de reflexão (quaisquer que sejam os detalhes desse entendimento de consciência)” (Thiel, 1994, p. 78). e que, portanto, consciência poderia ser entendida como pensamento refletido.

A meu ver, Hume, nas duas passagens da seção ‘Da ideia de conexão necessária’, refere-se a fenômenos mentais distintos. Na primeira delas, ao mencionar os ‘canais comuns’, Hume parece ecoar explicitamente a distinção lockiana entre as duas fontes de ideias na mente, a sensação e a reflexão11 11 “São as observações que fazemos sobre os objectos exteriores e sensíveis ou sobre as operações internas da nossa mente, de que nos apercebemos e sobre as quais nós próprios reflectimos, que fornecem à nossa mente a matéria de todos os seus pensamentos. Estas são as duas fontes de conhecimento, de onde brotam todas as ideias que temos ou podemos naturalmente ter” (Locke, 1999, pp. 106-107). . Essa passagem causa certa estranheza na medida em que Hume não admite a existência de ideias de reflexão no sentido lockiano, isto é, a realidade de ideias que representam operações mentais, como Locke o faz. Sugiro que, longe de ser uma inconsistência do filósofo, Hume realmente tem em vista nessa passagem a fonte dos conteúdos mentais. Contudo, ele não fala de reflexão em sentido lockiano, como um sentido a que as ideias de operações mentais são devidas. Para Hume, a ideia de eficácia só poderia surgir de uma impressão de sensação ou de uma impressão de reflexão, os ‘dois ‘canais comuns’. Nesse sentido, o filósofo refere-se às impressões de reflexão e não à atividade reflexiva – que, em Locke, origina ideias de reflexão.

Na segunda passagem, Hume não considera as fontes de ideias, isto é, as impressões de sensação ou impressões de reflexão. O filósofo fala sobre o próprio fenômeno de perceber uma ideia – o estar consciente de uma ideia – e o fenômeno de sentir uma impressão – sensação. Na verdade, essa segunda passagem parece sugerir – e, como argumento a seguir, essa sugestão é apenas aparente – mais uma oposição entre o sentir e o estar consciente do que uma identificação entre a consciência e a reflexão, como pretende Thiel12 12 A seguir, no entanto, observo que essa é de fato apenas uma sugestão, haja vista outras evidências de que, para Hume, não há oposição entre sensação e consciência – isto é, a mente está consciente de suas sensações assim como de suas ideias. . Portanto, a reflexão, na primeira passagem, não diz respeito à atividade reflexiva, mas a uma das fontes de ideias, as impressões de reflexão, de modo a não permitir a identificação com a consciência mencionada na segunda passagem da seção ‘Da ideia de conexão necessária’ apontada pelo intérprete.

A falta de evidência textual talvez não seja a única dificuldade para a interpretação que identifica consciência e reflexão. Volto minha atenção para a questão de entender o significado de ‘refletido’ para, na sequência, avaliar se a identificação entre consciência e reflexão é consistente. Locke, algumas décadas antes de Hume, pensa a ‘reflexão’ como uma forma de ‘introspecção’, uma espécie de ‘volta da mente sobre si mesma’13 13 “‘Voltando-se sobre si próprio’ [destaque meu], reflicta sobre as suas próprias operações e faça delas objecto da sua contemplação” (Locke, 1999, p. 111). Em outra passagem do Ensaio: “outra fonte a partir da qual a experiência provê de ideias o entendimento é a percepção das operações interiores da nossa própria mente ‘enquanto se debruça sobre as ideias que recebeu’ [destaque meu]” (Locke, 1999, p. 107). A compreensão de reflexão como ‘introspecção’ em Locke é sugerida por autores e autoras como Richard Aaron (1963, p. 129), M. J. Mabbott (1973, p. 18) e OKaila bstfeld (1983, p. 47). . É possível que, em Hume, a consciência possa ser entendida à maneira da noção lockiana de ‘reflexão’? Nessa leitura, em casos em que a mente está consciente, sua atenção estaria direcionada a um estado mental particular que, enquanto objeto de atenção, tornar-se-ia objeto da consciência. Haja vista a necessidade de atenção, a reflexão torna-se, em algum sentido, dependente de um ato voluntário da mente de voltar-se sobre si mesma, de inspecionar seus próprios fenômenos.

Essa leitura da consciência como reflexão está de acordo com o texto humiano? Não acredito que esteja. Tanto quanto sei, Hume não reconhece, em qualquer passagem do Tratado, a necessidade de atenção para que a mente esteja consciente de seus fenômenos ou, pelo menos, da maior parte deles. Tampouco Hume afirma que, para estar consciente, é preciso um ato voluntário da mente de voltar a atenção para os seus fenômenos. A necessidade de reflexão – enquanto introspecção – para a investigação filosófica é clara. Um filósofo da mente, comprometido com a investigação rigorosa dos fenômenos mentais, deve refletir para conhecer com mais exatidão suas percepções e as relações estabelecidas entre elas. Nesse caso, é preciso um ato voluntário da parte do filósofo, uma ação voluntária da mente para ‘dirigir o pensamento em direção’ às próprias operações mentais, como observa Locke, por exemplo, sobre a aquisição de ideias claras e distintas das operações mentais14 14 “Embora não seja possível àquele que contempla as operações interiores da mente deixar de obter delas ideias claras e distintas, o certo é que, se ele não dirige o seu pensamento nessa direcção e não as considera ‘atentamente’, estará tão longe de ter ideias distintas de todas as operações da mente como aquele que pretendesse possuir todas as ideias possíveis de uma certa paisagem ou das partes e movimentos de um relógio, sem dirigir os olhos para esses objectos e sem reparar nas suas partes com atenção” (Locke, 1999, p. 110). . Mas isso não parece ocorrer em todos os casos de consciência. A experiência não permite supor que todos os casos de consciência dependam desse ato voluntário da mente de voltar-se sobre si mesma. Samuel Rickless (2018)RICKLESS, S. “Hume’s Distinction between Impressions and Ideas”. European Journal of Philosophy, pp. 1-16. 2018. observa – na décima terceira nota de rodapé de seu trabalho – essa confusão entre consciência e reflexão:

A reflexão não é o mesmo [fenômeno] que a consciência. Consciência é o estar ciente [awareness] de uma percepção, um tipo de estar ciente que nos oferece o conhecimento de suas características intrínsecas (qualitativas e quantitativas). [...] Visto que é impossível pensar sobre uma percepção sem estar consciente dela, a reflexão envolve a consciência. Contudo, a consciência não envolve ou exige a reflexão: é possível estar ciente de uma percepção sem se engajar em um ato de segunda ordem de refletir sobre ela (Rickless, 2018, p. 15RICKLESS, S. “Hume’s Distinction between Impressions and Ideas”. European Journal of Philosophy, pp. 1-16. 2018.).

Estou plenamente de acordo com essa compreensão.

Adiciono ainda que essa impossibilidade se torna mais evidente, a meu ver, quando se considera que Hume admite a tese de inspiração cartesiana da ‘transparência do mental’: não há ocorrência de percepção de que a mente não esteja consciente15 15 Hsueh Qu (2015) explica: “a transparência mental diz respeito a duas teses: incorrigibilidade, que é a tese de que não podemos estar enganados em relação (ao menos a alguns aspectos) de nossos estados mentais; luminosidade, que é a tese de que não podemos falhar em estarmos conscientes (ao menos de alguns aspectos) de nossos estados mentais” (Qu, 2015, p. 576). Parece não haver dúvida de que Hume está comprometido com o primeiro aspecto da tese da transparência: “porque, como todas as ações e sensações da mente nos são conhecidas pela consciência, elas devem necessariamente, em todos os pormenores, parecer o que são, e ser o que parecem. Como tudo que entra na mente é na ‘realidade’ uma percepção, é impossível que alguma coisa pareça diferente em sua ‘sensação’. Afirmar isso seria supor que poderíamos estar enganados mesmo sobre aquilo de que estamos mais intimamente conscientes” (T 1.4.2§7). Não está claro, no entanto, que Hume admite o segundo aspecto da tese da transparência. Parece existir, no entanto, acordo na literatura secundária a esse respeito. Thiel (1994, p. 90) e Yandell (1992, p. 261), por exemplo, admitem que Hume assume esse aspecto da tese. . O teste da experiência permitido pelo princípio da cópia (T 1.1.1§7), por exemplo, assenta-se sobre a compreensão de que a mente tem consciência de todas as impressões que a afetaram16 16 Para a compreensão do papel do princípio da cópia na filosofia humiana, sugiro a leitura do trabalho de Don Garrett (2008), em específico, a seção ‘The Copy Principle’ (2008, pp. 50-52). Para um estudo recente sobre a capacidade da imaginação de copiar ideias das impressões da mente, o ‘poder mimético’, sugiro a leitura de uma seção da obra de Timothy Costelloe, ‘The Mimetic Power of Imagination’ (2018, pp. 07-14). . Com efeito, o compromisso com essa tese é o fundamento das diversas buscas do filósofo por uma impressão que explique a origem de certas ideias. Por exemplo, a busca pela impressão de eu no Livro I ilustra perfeitamente esse compromisso humiano. Diante do compromisso do filósofo com o princípio de que toda percepção é acompanhada por sua consciência, como poderia a mente estar consciente de todas as suas percepções se, para isso, fosse preciso que ela, de modo voluntário, voltasse-lhes sua atenção? Essas dificuldades, portanto, parecem impedir a identificação entre a consciência e a reflexão entendida como introspecção, uma volta da mente sobre si própria.

Consciência e pensamento

Uma segunda dificuldade que, a meu ver, parece surgir da compreensão da consciência como pensamento refletido diz respeito ao aspecto sensível da natureza humana, mais especificamente, às impressões de sensação e impressões de reflexão. Considerando as páginas iniciais do Tratado, páginas nas quais Hume afirma que a distinção entre impressões e ideias pode ser compreendida ‘intuitivamente’17 17 “Cada um, por si mesmo, percebe imediatamente a diferença entre sentir e pensar” (T 1.1.1§1). como a distinção entre o sentir e o pensar, ao definir a consciência como pensamento refletido, o filósofo excluiria as impressões do âmbito do consciente? Hume concebe alguma distinção entre o sentir e o estar consciente, como se apenas as ideias pudessem ser objetos da consciência18 18 Samuel Rickless (2018) observa: “de acordo com a visão do Sentir/Pensar [Feeling/Thinking view], a distinção humiana é reduzida a uma diferença intuitiva entre o sentir (impressões) e o pensar (ideias)” (Rickless, 2018, p. 01). Rickless observa algumas dificuldades de se apelar a esse critério para se separar entre impressões e ideias: “o principal problema dessa visão é que algumas percepções que Hume classifica como ideias são claramente sentidas, se algo o pode ser. Lembrando que Hume assume que as alucinações são ideias, não impressões [e algumas alucinações são sentidas, não pensadas]” (Rickless, 2018, p. 08). ?

É notável que uma leitura atenta do Tratado pareça revelar um uso sistemático do termo ‘consciência’ ou da expressão ‘estar consciente’ para se referir principalmente à percepção de ideias19 19 Por exemplo, na discussão sobre a ideia de eficácia na terceira parte do Livro I, o filósofo parece voltar a opor os objetos que se apresentam aos sentidos – impressões – e os objetos que se apresentam à consciência – ideias: “[...] segue-se que a suposição de uma divindade de nada nos serve para dar conta daquela ideia de poder ativo que em vão procuramos em todos os objetos que se apresentam a nossos sentidos [impressões], ou de que estamos internamente conscientes em nossa própria mente [ideias]” (T 1.3.14§10). . Hume parece mesmo pensar uma oposição entre sensação e consciência, como visto na passagem discutida acima (1.3.14§6) e na passagem a seguir:

[...] Segue-se que a suposição de uma divindade de nada nos serve para dar conta daquela ideia de poder ativo que em vão procuramos em todos os objetos que se apresentam a nossos sentidos [impressões], ou de que estamos internamente conscientes em nossa própria mente [ideias] (T 1.3.14§10).

Há mais de uma passagem a indicar que Hume compreende que a mente, além de ideias, está consciente também de impressões de reflexão ou impressões secundárias. A referência mais explícita de Hume à consciência de impressões de reflexão20 20 Sobre a distinção entre impressões de sensação e impressões de reflexão, sugiro a leitura dos textos de Janet Broughton (2006), em específico, a seção ‘Original and Secondary Impressions’ (2006, pp. 46-48), e de Garrett (2008), em específico, a seção ‘Distinctions between Kinds of Impressions’ (2008, pp. 43-45). aparece na seguinte passagem21 21 Outras passagens no Tratado também apontam nessa direção. No Livro II, Hume sugere que a mente está consciente da impressão de eu – que, a meu ver, somente poderia ser explicada enquanto impressão de reflexão (Freitas, 2019, 2020). Hume é explícito também sobre a consciência da vontade – uma impressão interna: “desejo observar que entendo por ‘vontade’ simplesmente a ‘impressão interna que sentimos e de que temos consciência quando deliberadamente geramos um novo movimento em nosso corpo ou uma nova percepção em nossa mente’” (T 2.3.1§2). :

É evidente que, como estamos em todos os momentos intimamente conscientes de ‘nós mesmos, de nossos sentimentos e paixões’ [destaque meu], as ideias destes devem nos tocar com maior vividez que as ideias dos sentimentos e paixões de qualquer outra pessoa (T 2.2.2§15).

Contudo, o que dizer das impressões de sensação? Hume as considera como entidades mentais, ainda que produzidas a partir das operações dos sentidos: “todas as impressões são existências internas e perecíveis [...]” (T 1.4.2§15). Portanto, não haveria uma razão para o filósofo excluir as sensações do campo do consciente. De fato, apesar desse uso – aparentemente – sistemático do termo consciência para se referir a ideias e impressões de reflexão –, Hume reconhece textualmente que as impressões de sensação, enquanto conteúdos mentais, são objetos da consciência: “[...] como todas as ações e sensações da mente ‘nos são conhecidas pela consciência’ [destaque meu], [...]” (T 1.4.2§7). A visão humiana a esse respeito, portanto, parece clara: a mente está consciente de pensamentos e sentires, de ideias e impressões, sejam elas de reflexão ou sensação.

Diante dessas últimas reflexões, como seria possível entender a consciência de sentires – se Hume não exclui impressões de sensação e reflexão dos objetos de consciência – como pensamento refletido? Poder-se-ia refletir sobre as impressões? Nesse caso, não se teria uma nova percepção, uma ideia originada da reflexão sobre uma impressão? Com efeito, Hume parece reconhecer isso nas páginas iniciais do Tratado: “as ideias parecem ser de alguma forma os reflexos das impressões” [...] (T 1.1.1§3). A possibilidade de leitura aberta, assim sendo, parece estabelecer que o pensamento refletido que acompanharia as impressões de sensação e as impressões de reflexão é ele próprio uma percepção, uma percepção distinta daquelas impressões. Essa possibilidade conduz à discussão da consciência como percepção.

2. A consciência como ‘percepção’

A seguir, discuto o que me parecem ser as dificuldades para se compreender a noção de consciência como ‘percepção’.

A consciência como uma percepção de segunda ordem

Entendo que existem ao menos duas maneiras para se compreender a definição de consciência como percepção. Na primeira possibilidade de leitura, a consciência seria um tipo especial de percepção, algo como uma percepção que acompanha todas as outras percepções de que a mente está consciente. Nesse caso, a consciência poderia ser entendida como uma percepção de segunda ordem, isto é, uma percepção que tem como objeto – portanto, intencional22 22 Hansen (1988), sobre a intencionalidade: “para Searle, ‘intencionalidade é aquela propriedade de muitos estados e eventos mentais por meio da qual eles são direcionados para ou sobre os objetos e estados de coisas do mundo [of affairs in the world]’. Que tipos de estados mentais são intencionais? ‘Se um estado S é intencional, então deve haver uma resposta para questões como: sobre o que é S? De que é esse estado?’” (Hansen, 1988, p. 288). – uma percepção de primeira ordem – o perceber que se percebe. Todo acontecimento mental seria, portanto, acompanhado por uma percepção que permitiria a sua consciência.

Encontram-se, na literatura secundária, autoras e autores que defendem uma interpretação semelhante à apresentada acima. Stacy Hansen (1988)HANSEN, S. “Hume’s Impressions of Belief”. Hume Studies, Vol. XIV, Nr. 2, pp. 277-304, 1988., por exemplo, ao discutir as menções de Hume à ‘maneira de conceber’ uma ideia, compreende que o estar ciente (awareness) a que o filósofo se refere é uma forma de sentir e que, deve, por essa razão, ser compreendido como uma ‘impressão interna’23 23 “Para cada ideia em que se acredita, tem-se consciência [awareness] dessa ideia. Nossas consciências [awareness] de ideias diferentes são diferentes. Como elas são diferentes, nós as sentimos diferentemente [they feel different to us]. Cada consciência, ou seja, cada ato que tem uma intenção, pode ser distinguido de outro ato intencional pela forma como é sentido pela mente. Por exemplo, atos que têm objetos externos como intenções são sentidos de uma certa maneira pela mente e atos que têm ideias envolvidas em uma relação causal como intenções são sentidos diferentemente [feel different]. No primeiro caso, pode-se ver que o fogo está queimando; no último, pode-se acreditar que há calor que o acompanha. A mente é capaz de distinguir esses atos pela maneira como eles são sentidos [they feel]. Aqui, finalmente, encontramos as impressões de que Hume precisa para concluir que todo raciocínio é apenas uma espécie de sensação. É por essa impressão interna que é uma consciência [awareness] de uma ideia em que se acredita que distinguimos os argumentos superiores dos inferiores, segundo Hume” (Hansen, 1988, pp. 289-290). No caso pensado pela intérprete, Hume distingue entre raciocínios superiores e inferiores (T 1.3.1§2) pela consciência, pelo modo como esses raciocínios são sentidos pela mente. Isto é, pela impressão – consciência – que os acompanha. . A já citada interpretação de Thiel, em certo sentido, também parece poder ser identificada com essa possibilidade de leitura. Tanto a consciência quanto a reflexão24 24 Thiel identifica consciência e reflexão em Hume, contudo, sugere que existe uma distinção implícita no texto humiano entre ambos os fenômenos mentais. A consciência, entendida pelo intérprete como “uma relação imediata de si para consigo próprio [immediate relation of oneself to oneself]”, é um ato mental distinto da percepção de que se está consciente, portanto, ela deveria ser entendida como uma percepção – uma impressão de reflexão (Thiel, 1994, p. 106). A reflexão, por sua vez, seria um ‘tipo especial’ de percepção, uma percepção que surgiria quando a mente volta sua atenção explicitamente para as suas próprias percepções: “quando Hume apela à reflexão individual nas passagens citadas anteriormente, reflexão, é claro, é tratada como sendo ela própria um tipo especial de ‘percepção’, pois a mente consiste, de acordo com Hume, de nada senão percepções. Reflexão é uma percepção que tem outras percepções como seus objetos. Refletir, então, é perceber (ou observar) as próprias percepções: o que eu percebo quando eu refito são minhas percepções” (Thiel, 1994, p. 88). seriam impressões de reflexão, atos mentais distintos que acompanhariam todas as percepções em casos de consciência25 25 “Bem, Hume mantém, como vimos, que ter percepções envolve ser sensível ou estar consciente delas. Contudo, ele em nenhum lugar sugere que essa consciência é uma qualidade inerente do próprio pensamento. Contudo, ao indicar que a consciência é um sentir, Hume parece implicar que ela é, como a reflexão, um ato mental distinto ou percepção” (Thiel, 1994, p. 109). . Stevenson (1998)STEVENSON, G. “Humean Self-Consciousness Explained”. Hume Studies, Vol. XXIV, Nr. 1, pp. 95-129, 1998. compreende o ‘pensamento refletido’ como uma ideia que se origina de uma impressão de reflexão – consciência, a seu ver, é tanto essa impressão de reflexão quanto a ideia que dela se origina26 26 “Assim, um caso singular de consciência é idêntico a algum tipo de ‘pensamento refletido ou percepção’ e se nós levarmos a escolha de Hume da palavra ‘refletido’ a sério, segue-se que Hume está aqui insinuando que a consciência é uma espécie de reflexão. Visto que as ideias reflexivas devem ter uma impressão reflexiva como sua fonte, nossa reformulação classificatória de T 635 [isto é, de ‘Apêndice’ §28] se converte da seguinte maneira: uma instância da consciência humiana é equivalente a uma impressão de reflexão (ou sua subsequente ideia-cópia)” (Stevenson, 1998, p. 97). Stevenson, observo, tem uma compreensão particular de impressões de reflexão. A seu ver, impressões de reflexão são como ‘atitudes intencionais’ primitivas direcionadas a objetos (ideias) (Stevenson, 1998, pp. 97-99). Ademais, o intérprete conta, entre as impressões de reflexão, a própria vivacidade (a vivacidade é simultaneamente uma impressão de reflexão, uma ação da mente e uma qualidade). As impressões de reflexão de vivacidade são as impressões que podem ser acertadamente consideradas como atos de consciência (Stevenson, 1998, pp. 99-103). E: “a vivacidade é um aspecto natural da mente sentido como estando ‘unido’ [conjoined] a percepção de que estamos conscientes” (Stevenson, 1998, p. 101). .

Julgo encontrar mais de uma diflculdade para essa interpretação da consciência como uma percepção de segunda ordem que acompanharia as impressões e ideias de que se está consciente. Em primeiro lugar, não há evidência textual para essa interpretação no Tratado. Em nenhum momento, com efeito, Hume se refere explicitamente a uma impressão de reflexão ou ideia que acompanharia as ocorrências de percepções em casos de consciência. Em segundo lugar, é possível considerar essa interpretação à luz do ‘princípio da separabilidade’ – ‘tudo aquilo que é diferente é separável, e tudo aquilo que é separável, é diferente’ – apresentado no início do Tratado (T 1.1.1). Se há uma impressão de reflexão ou ideia conectada a toda ocorrência de percepção na mente de que se está consciente, de acordo com o princípio de separabilidade, seria possível distinguir entre as percepções de primeira e segunda ordens.

Em todos os casos em que a mente está consciente de uma percepção, a mente seria afetada também por uma impressão de reflexão ou ideia. Se todas as percepções distintas podem ser separadas pela imaginação, a mente seria capaz de distinguir entre a impressão de reflexão ou ideia do objeto de que se tem consciência. A experiência, contudo, parece não permitir essa separação.

Proponho uma aproximação entre a discussão acima e as considerações de Hume sobre a ‘existência’, na última seção da segunda parte do Livro I do Tratado, ‘Da ideia de existência e de existência externa’. Nessa seção, Hume argumenta, a partir do princípio da separabilidade, contra a possibilidade de se entender a existência como uma ideia ou impressão conectada a cada uma das percepções da mente. O filósofo observa: “como não penso que existam duas impressões distintas que sejam inseparavelmente conjugadas, assim também estou longe de admitir que haja uma impressão distinta [de existência] acompanhando cada ideia e cada impressão” (T 1.2.6§3). A percepção de existência não pode ser distinguida de outras percepções. Hume desafia:

Quem se opuser a isso deverá necessariamente apontar a impressão distinta de que deriva a ideia de entidade, e provar que essa impressão é inseparável de toda percepção que acreditamos ser existentes. Mas podemos concluir, sem hesitar, que isso é impossível (T 1.2.6§5).

Se estou certo em minha leitura, o que Hume diz sobre a percepção de existência pode ser dito igualmente da consciência. Em casos de consciência, não é possível distinguir a suposta percepção de consciência das percepções de que se está consciente. Autoras como Hansen (1988)HANSEN, S. “Hume’s Impressions of Belief”. Hume Studies, Vol. XIV, Nr. 2, pp. 277-304, 1988. e autores como Thiel (1994)THIEL, U. “Hume’s Notions of Consciousness and Reflection in Context”. British Journal for the History of Philosophy, Vol. II, Nr. 2, pp. 75-115, 1994. e Stevenson (1998)STEVENSON, G. “Humean Self-Consciousness Explained”. Hume Studies, Vol. XXIV, Nr. 1, pp. 95-129, 1998. devem, portanto, ser capazes de apontar essa percepção distinta que permite a consciência e, do mesmo modo, provar que essa percepção é inseparável de toda percepção de que se está consciente. Stevenson, é verdade, parece ter notado a dificuldade de se apontar essa percepção de consciência que acompanharia outras percepções: “é certo que devido aos efeitos do costume que entorpecem a consciência [consciousness-dulling effects of custom], ela [a percepção de consciência] está, muitas vezes, imperceptivelmente unida com nossas percepções” (Stenvenson, 1998, p. 101STEVENSON, G. “Humean Self-Consciousness Explained”. Hume Studies, Vol. XXIV, Nr. 1, pp. 95-129, 1998.). Muito embora o costume possa ter esse efeito de fazer com que a mente ‘não perceba’ essa percepção, ao menos em algumas ocasiões, essa percepção de consciência poderia ser distinguida da impressão ou ideia de que se está consciente. Mas isso não acontece. Essa percepção adicional de consciência, ademais, seria desnecessária para explicar o fenômeno que se pretende explicar. Como observado por Hume a respeito da existência: “a ideia de existência, quando conjugada com a ideia de um objeto, não acrescenta nada a esta. Tudo o que concebemos, concebemos como existente” (T 1.2.6§4). Parafraseando a passagem de Hume: ‘a percepção de consciência, quando conjugada com a percepção de um objeto, não acrescenta nada a esta’.

Ainda que não seja meu objetivo defender uma hipótese sobre a noção humiana de ‘consciência’, gostaria de fazer uma pequena observação a esse respeito. Confesso que, a partir da leitura da seção ‘Da ideia de existência e de existência externa’, minha hipótese inicial para explicar a noção humiana de ‘consciência’ seria bastante similar ao que Hume diz sobre a existência: tal como uma percepção concebida não pode ser concebida como não existente – “a ideia de existência, portanto, é exatamente a mesma que a ideia daquilo que concebemos como existente” (T 1.2.6§3) –, toda percepção é consciente. Assim como o existir é uma marca de toda impressão ou ideia percebida, o ser consciente seria uma marca de toda percepção enquanto dela a mente está consciente. Isto é, a existência e o ser consciente seriam parte da natureza das próprias percepções. Interessa notar que essa compreensão conduz a uma dificuldade em relação ao fato de que a mente, e Hume parece reconhecer essa possibilidade, é capaz de estar consciente de fenômenos que não podem ser reduzidos a impressões e ideias.

A consciência de fenômenos não reduzíveis à percepção

Há uma segunda possibilidade para se interpretar a sugestão de Hume da consciência como percepção. De acordo com essa leitura, toda percepção é acompanhada por consciência, nesse sentido, dizer ‘percepção’ seria o mesmo que dizer ‘estar consciente’. Por essa razão, Hume definiria o termo ‘consciência’ por percepção.

A dificuldade dessa compreensão, no entanto, diz respeito ao fato de que, para Hume, a mente estaria consciente de fenômenos mentais que não são eles próprios percepções, isto é, fenômenos cuja explicação não pode ser reduzida a impressões ou ideias. Por exemplo, a mente está consciente de relações27 27 Sugiro como leitura para a compreensão de Hume das relações filosóficas e das associações naturais, o texto de David Owen (2009), sobretudo a seção ‘Relações’ (2009, pp. 79-85). e as relações – ao menos algumas delas – não podem ser compreendidas como percepções28 28 Essa interpretação não é unânime na literatura secundária. Há intérpretes que parecem negar que as relações são objetos da consciência. Andrea Cachel (2016), por exemplo, observa: “evidentemente Hume não sustenta que observamos esses princípios da imaginação [os princípios de associação], mas sim que percebemos os seus efeitos. E é a partir da observação de seus efeitos – a relação natural estabelecida entre ideias contíguas espacialmente, por exemplo – que sustenta a existência de princípios que dariam os parâmetros da associação da imaginação. A própria liberdade da imaginação para separar e unir percepções diferentes e complexas por si só não pode ser percebida, senão em seus efeitos, [...]” (Cachel, 2016, p. 31). No que se segue, argumento em favor da possibilidade de que a mente está consciente não apenas desses efeitos, mas ao menos de algumas dessas relações. . A discussão da consciência das relações está presente na literatura secundária. De modo marginal, Noxon (1969)NOXON, J. “Senses of Identity in Hume’s Treatise”. Dialogues, Vol. VIII, Nr. 3, pp. 367-384, 1969. a considera ao sugerir a leitura de que essas relações não são exatamente objetos da consciência, mas que devem existir na própria consciência29 29 “Quando uma semelhança é detectada, por exemplo, há dois objetos percebidos [percepts] na consciência que têm as propriedades intrínsecas em virtude das quais elas se assemelham. Não há um terceiro objeto percebido [percept] na coleção à qual o termo relacional se refere. Se assim o fosse, uma vez que ‘todas as percepções particulares [...] podem existir separadamente’, os objetos relacionados [relata] poderiam desaparecer e a relação permaneceria como um objeto do estar ciente [awareness] imediato, o que é absurdo. O estar ciente [awareness] das relações não pode, portanto, assumir um lugar no interior da consciência primária definida por Hume como um ‘feixe ou coleção de diferentes percepções’. O estar ciente deve ocorrer na consciência reflexiva para a qual os objetos percebidos semelhantes aparecem na relação” (Noxon, 1969, p. 376). . Waxman (1994)WAXMAN, W. “Hume’s Theory of Consciousness”. Cambridge: Cambridge University Press, 1994. considera a questão mais de perto, desenvolvendo mais sistematicamente essa possibilidade de leitura. A seu ver, as relações estão na consciência ao invés de serem seus objetos:

Hume atribuiu as relações à imaginação, portanto, em vez de serem objetos ‘diante’ da consciência, ‘elas estão no domínio da consciência que contempla os objetos’ [destaque meu]. Por quê? Hume não nos diz; mas não há nenhuma afirmação que ele repetiu mais frequentemente ou com tal insistência do que a de que os objetos presentes imediatamente diante de nós são, um e todos, existências distintas e independentes; cada um é, portanto, capaz de existir na ausência de um – ou, nesse caso, de todos – os outros (Waxman, 1994, pp. 11-12WAXMAN, W. “Hume’s Theory of Consciousness”. Cambridge: Cambridge University Press, 1994.).

Tendo a concordar com leituras como as sugeridas por Noxon e defendidas por Waxman, ao menos no que diz respeito às relações naturais. Explico. No caso das relações filosóficas, parece-me que não é preciso ir além das próprias percepções para se explicar uma associação entre percepções. As ideias são relacionadas na medida em que “podemos considerar apropriado comparálas” (T 1.1.5§1), ou seja, as relações são estabelecidas a partir da consciência de qualidades presentes nas próprias percepções. A mente está consciente de qualidades como a semelhança, identidade, espaço/tempo, quantidade/número, qualidade/graus, contrariedade e causa e efeito (T 1.1.5§§3-9), e, a partir dessa consciência, ela é capaz de relacionar ideias30 30 Reconheço, no entanto, que essa interpretação não é unânime entre os intérpretes. Silvio Chibeni (2011), por exemplo, argumenta que ao menos três das relações filosóficas – identidade, as relações de espaço e tempo e causação – não podem ser explicadas a partir unicamente de percepções: “[...] por exemplo, para que possamos determinar se dois objetos estão próximos espacialmente, devemos ser capazes de percebêlos sensorialmente de forma conjunta; sua proximidade ou afastamento é um fato empírico complexo, que não pode ser estabelecido simplesmente a partir das ideias que temos dos objetos” (Chibeni, 2011, p. 346). Mesmo que a minha interpretação a esse respeito não esteja de acordo com a do intérprete, a posição de Chibeni favorece a minha posição – acerca da consciência – ao estabelecer que existem fenômenos mentais que não podem ser reduzidos a percepções – e, portanto, haveria uma dificuldade para se identificar os termos ‘consciência’ e ‘percepção’. . No caso das relações naturais, no entanto, parece-me que a questão é um pouco mais complexa e envolve, para que o fenômeno possa ser explicado, o reconhecimento de ‘forças’ existentes na mente – de que ela está consciente. Com efeito, Hume as entende não como conexões inseparáveis, mas “força[s] suave[s], que comumente prevalece[m]” (T 1.1.4§1). De acordo com Hume, a mente está consciente de ser conduzida suavemente a associar ideias por semelhança, contiguidade e causa e efeito e essa força – apesar de objeto da consciência – não pode ser, é claro, entendida ela própria como uma percepção.

A meu ver, as relações naturais não são os únicos fenômenos mentais de que a mente está consciente e que não podem ser compreendidos como percepções. Hume observa, em várias ocasiões no Tratado, o modo como a mente está consciente de ‘inclinações’ e ‘tendências’ que a determinam nas mais diversas operações. Para ficar apenas em alguns poucos exemplos do Livro I, cito o caso do hábito (aquela perseverança constante que em qualquer curso da vida produz uma forte ‘inclinação e tendência’ a permanecer no futuro) (T 1.3.12§6); a tendência de atribuir uma identidade a objetos diferentes (T 1.4.2§35); a inclinação na natureza humana de conferir aos objetos externos as mesmas emoções que são observadas nela própria (T 1.4.3§11); a inclinação da fantasia (fancy) que determina a mente a incorporar o gosto ao objeto extenso (T 1.4.5§13). Em todos esses casos, Hume parece reconhecer a possibilidade de que a mente esteja consciente de fenômenos cuja explicação não pode ser reduzida às percepções31 31 Para um estudo da compreensão humiana das ‘determinações’ da mente, isto é, das tendências ou inclinações da mente humana a proceder naturalmente de modos específicos, sugiro a leitura do trabalho de André Klaudat (2005). .

Portanto, acredito que esses casos de consciência impossibilitam a leitura que procura identificar consciência e percepção. Como seria possível entender a identificação do ‘Apêndice’ entre consciência e percepção se, como apontado, a mente está consciente de fenômenos que não se reduzem a impressões ou ideias?

3. O fenômeno da consciência de si ou da autoconsciência

Apresentei acima algumas das dificuldades que, a meu ver, as compreensões da consciência como pensamento refletido ou percepção implicam. Não pretendo defender, no entanto, que a passagem do ‘Apêndice’ apresenta um deslize de Hume a respeito de sua compreensão de consciência. Minha proposta não é apontar algum equívoco do filósofo a esse respeito. A meu ver, a compreensão do sentido dessa passagem deve considerar o contexto em que ela é apresentada, isto é, a discussão da origem da identidade pessoal. Tendo esse contexto em vista, talvez seja possível explicar a referência de Hume ao pensamento refletido e à percepção ao falar da consciência.

Não é novidade para as leitoras e os leitores do Tratado que Hume parece se esquivar da tarefa de explicar o fenômeno da autoconsciência. Como observa Stevenson (1998)STEVENSON, G. “Humean Self-Consciousness Explained”. Hume Studies, Vol. XXIV, Nr. 1, pp. 95-129, 1998.:

Hume negligencia consistentemente a explicação da relação entre consciência, percepção e o eu em seus escritos. Tanto no Tratado quanto na primeira Investigação carecem de um tratamento da autoconsciência que sua teoria psicológica geral parece exigir (Stevenson, 1998, p. 95STEVENSON, G. “Humean Self-Consciousness Explained”. Hume Studies, Vol. XXIV, Nr. 1, pp. 95-129, 1998.).

Há quem defenda que a confissão apresentada por Hume no ‘Apêndice’, sobre uma possível inconsistência na explicação da identidade pessoal32 32 No ‘Apêndice’ ao Tratado, Hume parece confessar sua incapacidade de apresentar uma teoria acerca da identidade pessoal: “eu acalentava alguma esperança de que, por mais deficiente que pudesse ser nossa teoria do mundo intelectual, ela estaria livre daquelas contradições e absurdos que parecem acompanhar qualquer explicação que a razão humana possa dar acerca do mundo material. Mas, ao fazer uma revisão mais cuidadosa da seção concernente à ‘identidade pessoal’, vejo-me perdido em um tal labirinto que, devo confessar, não sei como corrigir minhas opiniões anteriores, nem como torná-las coerentes” (Apêndice §18). Para uma sistematização das linhas de interpretação do problema apontado por Hume no ‘Apêndice’, ver Garrett (1997, pp. 167-80) e Ainslie (2008, pp. 148-51). , deve-se justamente à incapacidade de Hume de explicar o fenômeno da consciência de si – como sugerem, por exemplo, D. G. C. MacNabb (1951)MACNABB, D. G. C. “David Hume: Theory of Knowledge and Morality”. Hutchinson: London, 1951., S.C. Patten (1976)PATTEN, S. C. “Hume’s Bundles, Self-Consciousness and Kant”. Hume Studies, Vol. II, Nr. 2, pp. 59-75, 1976. e Talia Mae Bettcher (2009)BETTCHER, T. “Berkeley and Hume on Self and Self-Consciousness”. In: Topics in Early Modern Philosophy: Studies in the History of Philosophy of Mind. J. Miller (ed.). Berlin: Springer Science + Business Media B.V., 2009. pp. 193-222..

Não pretendo avançar uma hipótese sobre a teoria humiana da autoconsciência ou tentar sistematizar essa teoria. Contudo, gostaria de defender que, na passagem do ‘Apêndice’ em que Hume fala sobre a consciência como percepção ou pensamento refletido, ele tem em vista justamente o fenômeno do estar consciente de si. Para isso, volto minha atenção ao texto do Ensaio de Locke. Na passagem do ‘Apêndice’, Hume certamente tem em vista – quando se refere à ‘maioria dos filósofos’ – o pensamento de autores que, como Locke, assentam a explicação do conhecimento do eu sobre consciência. Em ‘Da identidade e da diversidade’, Locke é explícito sobre como cada ato mental consciente, toda percepção de uma ideia, seja de sensação ou de reflexão, é acompanhada pela consciência do próprio eu:

[...] É-lhe [ao eu] possível fazer isto [pensar-se como pessoa] devido apenas a essa consciência que é inseparável do pensamento e, pelo que me parece, é essencial para este, sendo impossível para qualquer um compreender sem ‘apreender’ que consegue compreender. Quando vimos, ouvimos, cheiramos, sentimos, reflectimos ou desejamos alguma coisa, sabemos o que estamos a fazer (Locke, 1999, p. 442-443LOCKE, J. (1690). “Ensaio sobre o entendimento humano”. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1999. Tradução para o português de Eduardo Abranches de Soveral.).

Em Locke, a condição da autoconsciência é justamente a consciência de estados mentais particulares. Ao estar consciente de uma ideia, o eu conhece a si próprio por meio desse ato da consciência, de modo que as operações mentais não podem ser exercidas sem a presença daquilo que Locke denomina ‘ato reflexo de percepção’. Esse ato reflexo da percepção, presente em cada uma das ocorrências de estados mentais conscientes, não é senão a autoconsciência:

Portanto, até que ponto é que a consciência está agregada a um agente individual de forma a que outro provavelmente não possa tê-la, será, para nós, difícil de determinar até que saibamos que tipo de acção é que não pode ser realizada sem a companhia de um ‘acto reflexo da percepção’ [destaque meu], e o modo como é concretizado pelas substâncias pensantes, que não podem pensar sem estarem conscientes disso mesmo (Locke, 1999, pp. 446-447LOCKE, J. (1690). “Ensaio sobre o entendimento humano”. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1999. Tradução para o português de Eduardo Abranches de Soveral.).

Gostaria de sugerir uma aproximação de Hume, na passagem do ‘Apêndice’, com o que é dito por Locke nas passagens citadas acima, seguindo a própria sugestão humiana de que ele admite o caráter promissor do pensamento da ‘maioria dos filósofos’ a esse respeito. Se estou certo em minha leitura, é possível identificar a ‘percepção/pensamento refletido’ humiano com o ‘ato reflexo de percepção’ lockiano. Ambos os autores consideram a autoconsciência, não a consciência em geral. O pensamento refletido e o ato reflexo de percepção dizem respeito à consciência que o eu tem de si. Todas as ações da mente são acompanhadas, diz Locke, por atos reflexos de percepção. Hume, em consonância com a compreensão lockiana, observa que a consciência de si surge a partir de cada um dos estados mentais conscientes. Na passagem do ‘Apêndice’, portanto, Hume fala de um fenômeno mais específico que o fenômeno da consciência – que diz respeito a todo e qualquer ato mental.

Minha hipótese estabelece, portanto, que a passagem em que Hume parece definir consciência como ‘percepção ou pensamento refletido’ deve ser compreendida como uma reflexão de Hume sobre a autoconsciência. O interesse do filósofo é pela consciência de si, não pela consciência em geral. Reconheço que a passagem não é explícita a esse respeito – a não ser talvez pela observação de Hume de que ele se refere ao pensamento da maioria dos filósofos (dentre eles, Locke) sobre a origem da identidade pessoal. Contudo, outras passagens do próprio ‘Apêndice’ permitem a compreensão de que Hume admite a tese de que a autoconsciência, não a consciência, é a percepção/pensamento refletido. Em todos os casos em que a mente percebe, seja uma impressão de sensação/reflexão ou ideia, o eu torna-se consciente de si próprio. Alguns parágrafos antes do vigésimo oitavo, Hume diz, com efeito: “quando volto minha reflexão para ‘mim mesmo’, nunca consigo perceber esse ‘eu’ sem uma ou mais percepções, e não percebo nada além de percepções” (Apêndice §23). No parágrafo seguinte, o filósofo continua a desenvolver essa compreensão:

Podemos conceber que um ser pensante tenha muitas ou poucas percepções. Suponhamos que a mente seja reduzida a um estado inferior ao de uma ostra. Suponhamos que tenha apenas uma percepção, como a de sede ou fome. Consideremo-la nessa situação. Sois capazes de perceber alguma coisa além dessa mera percepção? Possuís alguma noção de ‘eu’ ou ‘substância’? Se não a possuís, a adição de outras percepções nunca poderá vos dar essa noção (Apêndice §24).

A meu ver, essa compreensão de Hume sequer é original do ‘Apêndice’. Com efeito, na seção ‘Da identidade pessoal’, o filósofo já a anuncia ao dizer:

De minha parte, quando penetro mais intimamente naquilo que denomino ‘meu eu’, sempre deparo com uma ou outra percepção particular, de calor ou frio, luz ou sombra, amor ou ódio, dor ou prazer. Nunca apreendo a ‘mim mesmo’, em momento algum, sem uma percepção, e nunca consigo observar nada que não seja uma percepção (T 1.4.6§3).

O eu não é apreendido senão por meio da consciência de suas percepções. Sem esses estados mentais particulares de que se tem consciência, sequer é possível supor a própria existência:

Quando minhas percepções são suprimidas, por algum tempo, como ocorre no sono profundo, durante todo esse tempo fico insensível a ‘mim mesmo’, e pode-se dizer verdadeiramente que não existo. E se a morte suprimisse todas as minhas percepções; se, após a dissolução de meu corpo, eu não pudesse mais pensar, sentir, ver, amar ou odiar, eu estaria inteiramente aniquilado – pois não posso conceber o que mais seria preciso para conceber o que mais seria preciso para fazer de mim um perfeito nada (T 1.4.6§3).

A tese humiana reaparece ao menos em duas ocasiões no Livro II. Hume observa:

É evidente que, como estamos em todos os momentos intimamente conscientes de ‘nós mesmos, de nossos sentimentos e paixões’ [destaque meu], as ideias destes devem nos tocar com maior vividez que as ideias dos sentimentos e paixões de qualquer outra pessoa (T 2.2.2§15).

A consciência da própria pessoa “de quem estamos a todo momento conscientes” (T 2.2.2§16) só pode acontecer por meio de atos particulares de consciência, em cada uma das ocorrências de percepção.

Longe de entender representar, portanto, uma explanação de sua compreensão da consciência, a passagem do ‘Apêndice’ deve ser entendida tão somente como uma das reflexões de Hume sobre como o eu conhece a si próprio.

A título de conclusão, gostaria de observar que este artigo não constitui um estudo exaustivo da noção de ‘consciência’ no Tratado de Hume. Meu objetivo é tão somente esclarecer o que, a meu ver, é o verdadeiro sentido de ‘consciência’ no vigésimo oitavo parágrafo do ‘Apêndice’. Não obstante, reconheço a existência de importantes temas – não considerados no presente artigo – que merecem atenção e surgem como discussões a serem desenvolvidas em uma pesquisa futura. O primeiro deles, é claro, e talvez mais importante, diz respeito à própria noção de ‘consciência’ na obra humiana. Provisoriamente, tendo a pensar na ‘consciência’, ao menos no Tratado, como uma ‘marca do mental’, presente em todos os momentos em que a mente percebe uma impressão/ideia, relaciona segundo as relações filosóficas ou associa naturalmente segundo os três princípios associativos, inclina-se a realizar certas operações etc. Nesse sentido – e estou aberto a repensar essa compreensão –, a consciência seria a própria ‘essência’ dos fenômenos mentais – não apenas das percepções. No entanto, essa compreensão precisa ser defendida, sobretudo quando se tem em vista que Hume parece admitir a possibilidade de operações de ‘poderes misteriosos’ ou ‘princípios últimos’ a influenciarem a mente de modo não consciente. O filósofo admite a existência de operações para além do registro da consciência? Há restrições à tese – que Hume parece assumir – de que a mente está consciente de todos os seus fenômenos? O estar consciente é de fato uma marca do mental? Esse e outros temas certamente merecem aprofundamento em um trabalho posterior.

  • 1
    Para uma breve história do desenvolvimento da noção de ‘consciência’ nos séculos XVII e XVIII, ver capítulo introdutório da obra de Thiel, Self-consciousness and Personal Identity from Descartes to Hume (2011)THIEL, U. “The Early Modern Subject: Self-consciousness and Personal Identity from Descartes to Hume”. Oxford: Oxford University Press, 2011., seu artigo ‘Hume’s Notions of Consciousness and Reflection in Context’ (1994) e o artigo ‘Consciousness among the Cartesians’ de Stephan Nadler (2011)NADLER, S. “Consciousness among the Cartesians”. Studia Leibnitiana, Vol. XLIII, Nr. 2, pp. 132-144, 2011..
  • 2
    No Tratado do espírito do homem (1666).
  • 3
    Em A busca da verdade (1674).
  • 4
    Em Das ideias verdadeiras e falsas (1683).
  • 5
    Em O verdadeiro sistema intelectual do universo (1678).
  • 6
    Sobre a autoria do Ensaio, ver Tim Milnes ‘On the Authorhip of Two Dissertations concerning Sense and Imagination, with an Essay on Consciousness’ (2000)MILNES, T. “On the Authorhip of Two Dissertations concerning Sense and Imagination, with an Essay on Consciousness”. Notes and Queries, pp. 196-198, 2000..
  • 7
    Publicado originalmente em 1739 (Livros I e II) e 1740 (Livro III e ‘Apêndice’). Doravante, apenas Tratado.
  • 8
    A tradução de Danowski dessa passagem apresenta um erro. Hume diz ‘perception or reflected thought’, não ‘percepção refletida ou pensamento’, como traduz a tradutora.
  • 9
    “Ele usa a noção de consciência tal como ela foi desenvolvida nos debates filosóficos na Grã-Bretanha desde o fim do século XVII (sem, é claro, chamar a atenção do autor para esse fato” (Thiel, 1994, p. 77THIEL, U. “Hume’s Notions of Consciousness and Reflection in Context”. British Journal for the History of Philosophy, Vol. II, Nr. 2, pp. 75-115, 1994.).
  • 10
    Sobre a passagem da terceira parte do Livro I, Thiel observa: “por exemplo, no Tratado (T 1.3.14§6), Hume diz que as ideias ‘penetram na mente pelos canais comuns da sensação ou da reflexão’, e, pouco depois, ele se refere à ‘consciência ou sensação’, obviamente usando ‘consciência’ e ‘reflexão’ como sinônimos. Embora o uso de Hume de consciência como ‘pensamento refletido ou percepção’ não possa significar exatamente a ‘mesma’ coisa que os usos sinônimos de ‘consciência’ e ‘reflexão’ sugerem, parece, a partir dessas passagens, que a consciência de Hume deve ser entendida em termos de reflexão (quaisquer que sejam os detalhes desse entendimento de consciência)” (Thiel, 1994, p. 78THIEL, U. “Hume’s Notions of Consciousness and Reflection in Context”. British Journal for the History of Philosophy, Vol. II, Nr. 2, pp. 75-115, 1994.).
  • 11
    “São as observações que fazemos sobre os objectos exteriores e sensíveis ou sobre as operações internas da nossa mente, de que nos apercebemos e sobre as quais nós próprios reflectimos, que fornecem à nossa mente a matéria de todos os seus pensamentos. Estas são as duas fontes de conhecimento, de onde brotam todas as ideias que temos ou podemos naturalmente ter” (Locke, 1999, pp. 106-107LOCKE, J. (1690). “Ensaio sobre o entendimento humano”. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1999. Tradução para o português de Eduardo Abranches de Soveral.).
  • 12
    A seguir, no entanto, observo que essa é de fato apenas uma sugestão, haja vista outras evidências de que, para Hume, não há oposição entre sensação e consciência – isto é, a mente está consciente de suas sensações assim como de suas ideias.
  • 13
    “‘Voltando-se sobre si próprio’ [destaque meu], reflicta sobre as suas próprias operações e faça delas objecto da sua contemplação” (Locke, 1999, p. 111LOCKE, J. (1690). “Ensaio sobre o entendimento humano”. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1999. Tradução para o português de Eduardo Abranches de Soveral.). Em outra passagem do Ensaio: “outra fonte a partir da qual a experiência provê de ideias o entendimento é a percepção das operações interiores da nossa própria mente ‘enquanto se debruça sobre as ideias que recebeu’ [destaque meu]” (Locke, 1999, p. 107LOCKE, J. (1690). “Ensaio sobre o entendimento humano”. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1999. Tradução para o português de Eduardo Abranches de Soveral.). A compreensão de reflexão como ‘introspecção’ em Locke é sugerida por autores e autoras como Richard Aaron (1963, p. 129)AARON, R. “John Locke: Second Edition”. Oxford: Claredon University Press, 1963., M. J. Mabbott (1973, p. 18)MABBOTT, J. “Locke”. London e Basingstoke: The MacMillan Press, 1973. e OKaila bstfeld (1983, p. 47)OBSTFELD, K. “Locke’s Causal Theory of Reflection”. Southern Journal of Philosophy, Vol. XXI, pp. 47-56, 1983..
  • 14
    “Embora não seja possível àquele que contempla as operações interiores da mente deixar de obter delas ideias claras e distintas, o certo é que, se ele não dirige o seu pensamento nessa direcção e não as considera ‘atentamente’, estará tão longe de ter ideias distintas de todas as operações da mente como aquele que pretendesse possuir todas as ideias possíveis de uma certa paisagem ou das partes e movimentos de um relógio, sem dirigir os olhos para esses objectos e sem reparar nas suas partes com atenção” (Locke, 1999, p. 110LOCKE, J. (1690). “Ensaio sobre o entendimento humano”. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1999. Tradução para o português de Eduardo Abranches de Soveral.).
  • 15
    Hsueh Qu (2015)QU, H. “Hume on Mental Transparency”. Pacific Philosophical Quarterly, Vol. XCVIII, Nr. 4, pp. 576-601, 2015. explica: “a transparência mental diz respeito a duas teses: incorrigibilidade, que é a tese de que não podemos estar enganados em relação (ao menos a alguns aspectos) de nossos estados mentais; luminosidade, que é a tese de que não podemos falhar em estarmos conscientes (ao menos de alguns aspectos) de nossos estados mentais” (Qu, 2015, p. 576QU, H. “Hume on Mental Transparency”. Pacific Philosophical Quarterly, Vol. XCVIII, Nr. 4, pp. 576-601, 2015.). Parece não haver dúvida de que Hume está comprometido com o primeiro aspecto da tese da transparência: “porque, como todas as ações e sensações da mente nos são conhecidas pela consciência, elas devem necessariamente, em todos os pormenores, parecer o que são, e ser o que parecem. Como tudo que entra na mente é na ‘realidade’ uma percepção, é impossível que alguma coisa pareça diferente em sua ‘sensação’. Afirmar isso seria supor que poderíamos estar enganados mesmo sobre aquilo de que estamos mais intimamente conscientes” (T 1.4.2§7). Não está claro, no entanto, que Hume admite o segundo aspecto da tese da transparência. Parece existir, no entanto, acordo na literatura secundária a esse respeito. Thiel (1994, p. 90)THIEL, U. “Hume’s Notions of Consciousness and Reflection in Context”. British Journal for the History of Philosophy, Vol. II, Nr. 2, pp. 75-115, 1994. e Yandell (1992, p. 261)YANDELL, K. “Continuity, Consciousness, and Identity in Hume’s Philosophy”. Hume Studies, Vol. XVIII, Nr. 2, pp. 255-274, 1992., por exemplo, admitem que Hume assume esse aspecto da tese.
  • 16
    Para a compreensão do papel do princípio da cópia na filosofia humiana, sugiro a leitura do trabalho de Don Garrett (2008)GARRETT, D. “Hume’s Theory of Ideas”. In: A Companion to Hume. E. S. Radcliffe (ed.). Malden/Oxford/Carlton: Blackwell Publishing, 2008. pp. 41-57., em específico, a seção ‘The Copy Principle’ (2008, pp. 50-52). Para um estudo recente sobre a capacidade da imaginação de copiar ideias das impressões da mente, o ‘poder mimético’, sugiro a leitura de uma seção da obra de Timothy Costelloe, ‘The Mimetic Power of Imagination’ (2018, pp. 07-14)COSTELLOE, T. “The Imagination in Hume’s Philosophy: The Canvas of the Mind”. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2018..
  • 17
    “Cada um, por si mesmo, percebe imediatamente a diferença entre sentir e pensar” (T 1.1.1§1).
  • 18
    Samuel Rickless (2018)RICKLESS, S. “Hume’s Distinction between Impressions and Ideas”. European Journal of Philosophy, pp. 1-16. 2018. observa: “de acordo com a visão do Sentir/Pensar [Feeling/Thinking view], a distinção humiana é reduzida a uma diferença intuitiva entre o sentir (impressões) e o pensar (ideias)” (Rickless, 2018, p. 01RICKLESS, S. “Hume’s Distinction between Impressions and Ideas”. European Journal of Philosophy, pp. 1-16. 2018.). Rickless observa algumas dificuldades de se apelar a esse critério para se separar entre impressões e ideias: “o principal problema dessa visão é que algumas percepções que Hume classifica como ideias são claramente sentidas, se algo o pode ser. Lembrando que Hume assume que as alucinações são ideias, não impressões [e algumas alucinações são sentidas, não pensadas]” (Rickless, 2018, p. 08RICKLESS, S. “Hume’s Distinction between Impressions and Ideas”. European Journal of Philosophy, pp. 1-16. 2018.).
  • 19
    Por exemplo, na discussão sobre a ideia de eficácia na terceira parte do Livro I, o filósofo parece voltar a opor os objetos que se apresentam aos sentidos – impressões – e os objetos que se apresentam à consciência – ideias: “[...] segue-se que a suposição de uma divindade de nada nos serve para dar conta daquela ideia de poder ativo que em vão procuramos em todos os objetos que se apresentam a nossos sentidos [impressões], ou de que estamos internamente conscientes em nossa própria mente [ideias]” (T 1.3.14§10).
  • 20
    Sobre a distinção entre impressões de sensação e impressões de reflexão, sugiro a leitura dos textos de Janet Broughton (2006)BROUGHTON, J. “Impressions and Ideias”. In: TRAIGER, S. (ed.). The Blackwell Guide to Hume’s Treatise. Malden/Oxford/Carlton: Blackwell Publishing, 2006. pp. 43-58., em específico, a seção ‘Original and Secondary Impressions’ (2006, pp. 46-48), e de Garrett (2008)GARRETT, D. “Hume’s Theory of Ideas”. In: A Companion to Hume. E. S. Radcliffe (ed.). Malden/Oxford/Carlton: Blackwell Publishing, 2008. pp. 41-57., em específico, a seção ‘Distinctions between Kinds of Impressions’ (2008, pp. 43-45).
  • 21
    Outras passagens no Tratado também apontam nessa direção. No Livro II, Hume sugere que a mente está consciente da impressão de eu – que, a meu ver, somente poderia ser explicada enquanto impressão de reflexão (Freitas, 2019FREITAS, V. “David Hume sobre a identidade pessoal nos Livros I e II do Tratado”. Filosofia Unisinos, Vol. XX, pp. 46-54, 2019a., 2020). Hume é explícito também sobre a consciência da vontade – uma impressão interna: “desejo observar que entendo por ‘vontade’ simplesmente a ‘impressão interna que sentimos e de que temos consciência quando deliberadamente geramos um novo movimento em nosso corpo ou uma nova percepção em nossa mente’” (T 2.3.1§2).
  • 22
    Hansen (1988)HANSEN, S. “Hume’s Impressions of Belief”. Hume Studies, Vol. XIV, Nr. 2, pp. 277-304, 1988., sobre a intencionalidade: “para Searle, ‘intencionalidade é aquela propriedade de muitos estados e eventos mentais por meio da qual eles são direcionados para ou sobre os objetos e estados de coisas do mundo [of affairs in the world]’. Que tipos de estados mentais são intencionais? ‘Se um estado S é intencional, então deve haver uma resposta para questões como: sobre o que é S? De que é esse estado?’” (Hansen, 1988, p. 288HANSEN, S. “Hume’s Impressions of Belief”. Hume Studies, Vol. XIV, Nr. 2, pp. 277-304, 1988.).
  • 23
    “Para cada ideia em que se acredita, tem-se consciência [awareness] dessa ideia. Nossas consciências [awareness] de ideias diferentes são diferentes. Como elas são diferentes, nós as sentimos diferentemente [they feel different to us]. Cada consciência, ou seja, cada ato que tem uma intenção, pode ser distinguido de outro ato intencional pela forma como é sentido pela mente. Por exemplo, atos que têm objetos externos como intenções são sentidos de uma certa maneira pela mente e atos que têm ideias envolvidas em uma relação causal como intenções são sentidos diferentemente [feel different]. No primeiro caso, pode-se ver que o fogo está queimando; no último, pode-se acreditar que há calor que o acompanha. A mente é capaz de distinguir esses atos pela maneira como eles são sentidos [they feel]. Aqui, finalmente, encontramos as impressões de que Hume precisa para concluir que todo raciocínio é apenas uma espécie de sensação. É por essa impressão interna que é uma consciência [awareness] de uma ideia em que se acredita que distinguimos os argumentos superiores dos inferiores, segundo Hume” (Hansen, 1988, pp. 289-290HANSEN, S. “Hume’s Impressions of Belief”. Hume Studies, Vol. XIV, Nr. 2, pp. 277-304, 1988.). No caso pensado pela intérprete, Hume distingue entre raciocínios superiores e inferiores (T 1.3.1§2) pela consciência, pelo modo como esses raciocínios são sentidos pela mente. Isto é, pela impressão – consciência – que os acompanha.
  • 24
    Thiel identifica consciência e reflexão em Hume, contudo, sugere que existe uma distinção implícita no texto humiano entre ambos os fenômenos mentais. A consciência, entendida pelo intérprete como “uma relação imediata de si para consigo próprio [immediate relation of oneself to oneself]”, é um ato mental distinto da percepção de que se está consciente, portanto, ela deveria ser entendida como uma percepção – uma impressão de reflexão (Thiel, 1994, p. 106THIEL, U. “Hume’s Notions of Consciousness and Reflection in Context”. British Journal for the History of Philosophy, Vol. II, Nr. 2, pp. 75-115, 1994.). A reflexão, por sua vez, seria um ‘tipo especial’ de percepção, uma percepção que surgiria quando a mente volta sua atenção explicitamente para as suas próprias percepções: “quando Hume apela à reflexão individual nas passagens citadas anteriormente, reflexão, é claro, é tratada como sendo ela própria um tipo especial de ‘percepção’, pois a mente consiste, de acordo com Hume, de nada senão percepções. Reflexão é uma percepção que tem outras percepções como seus objetos. Refletir, então, é perceber (ou observar) as próprias percepções: o que eu percebo quando eu refito são minhas percepções” (Thiel, 1994, p. 88THIEL, U. “Hume’s Notions of Consciousness and Reflection in Context”. British Journal for the History of Philosophy, Vol. II, Nr. 2, pp. 75-115, 1994.).
  • 25
    “Bem, Hume mantém, como vimos, que ter percepções envolve ser sensível ou estar consciente delas. Contudo, ele em nenhum lugar sugere que essa consciência é uma qualidade inerente do próprio pensamento. Contudo, ao indicar que a consciência é um sentir, Hume parece implicar que ela é, como a reflexão, um ato mental distinto ou percepção” (Thiel, 1994, p. 109THIEL, U. “Hume’s Notions of Consciousness and Reflection in Context”. British Journal for the History of Philosophy, Vol. II, Nr. 2, pp. 75-115, 1994.).
  • 26
    “Assim, um caso singular de consciência é idêntico a algum tipo de ‘pensamento refletido ou percepção’ e se nós levarmos a escolha de Hume da palavra ‘refletido’ a sério, segue-se que Hume está aqui insinuando que a consciência é uma espécie de reflexão. Visto que as ideias reflexivas devem ter uma impressão reflexiva como sua fonte, nossa reformulação classificatória de T 635 [isto é, de ‘Apêndice’ §28] se converte da seguinte maneira: uma instância da consciência humiana é equivalente a uma impressão de reflexão (ou sua subsequente ideia-cópia)” (Stevenson, 1998, p. 97STEVENSON, G. “Humean Self-Consciousness Explained”. Hume Studies, Vol. XXIV, Nr. 1, pp. 95-129, 1998.). Stevenson, observo, tem uma compreensão particular de impressões de reflexão. A seu ver, impressões de reflexão são como ‘atitudes intencionais’ primitivas direcionadas a objetos (ideias) (Stevenson, 1998, pp. 97-99STEVENSON, G. “Humean Self-Consciousness Explained”. Hume Studies, Vol. XXIV, Nr. 1, pp. 95-129, 1998.). Ademais, o intérprete conta, entre as impressões de reflexão, a própria vivacidade (a vivacidade é simultaneamente uma impressão de reflexão, uma ação da mente e uma qualidade). As impressões de reflexão de vivacidade são as impressões que podem ser acertadamente consideradas como atos de consciência (Stevenson, 1998, pp. 99-103STEVENSON, G. “Humean Self-Consciousness Explained”. Hume Studies, Vol. XXIV, Nr. 1, pp. 95-129, 1998.). E: “a vivacidade é um aspecto natural da mente sentido como estando ‘unido’ [conjoined] a percepção de que estamos conscientes” (Stevenson, 1998, p. 101STEVENSON, G. “Humean Self-Consciousness Explained”. Hume Studies, Vol. XXIV, Nr. 1, pp. 95-129, 1998.).
  • 27
    Sugiro como leitura para a compreensão de Hume das relações filosóficas e das associações naturais, o texto de David Owen (2009)OWEN, D. “Hume and the Mechanics of Mind: Impressions, Ideas, and Association”. In: The Cambridge Companion to Hume: Second Edition. Cambridge: Cambridge University Press, 2009. pp. 70-104., sobretudo a seção ‘Relações’ (2009, pp. 79-85).
  • 28
    Essa interpretação não é unânime na literatura secundária. Há intérpretes que parecem negar que as relações são objetos da consciência. Andrea Cachel (2016)CACHEL, A. “Teoria e experiência na ciência da natureza humana de Hume”. Revista Ética e Filosofia Política, Vol. I, Nr. XIX, pp. 28-41, 2016., por exemplo, observa: “evidentemente Hume não sustenta que observamos esses princípios da imaginação [os princípios de associação], mas sim que percebemos os seus efeitos. E é a partir da observação de seus efeitos – a relação natural estabelecida entre ideias contíguas espacialmente, por exemplo – que sustenta a existência de princípios que dariam os parâmetros da associação da imaginação. A própria liberdade da imaginação para separar e unir percepções diferentes e complexas por si só não pode ser percebida, senão em seus efeitos, [...]” (Cachel, 2016, p. 31CACHEL, A. “Teoria e experiência na ciência da natureza humana de Hume”. Revista Ética e Filosofia Política, Vol. I, Nr. XIX, pp. 28-41, 2016.). No que se segue, argumento em favor da possibilidade de que a mente está consciente não apenas desses efeitos, mas ao menos de algumas dessas relações.
  • 29
    “Quando uma semelhança é detectada, por exemplo, há dois objetos percebidos [percepts] na consciência que têm as propriedades intrínsecas em virtude das quais elas se assemelham. Não há um terceiro objeto percebido [percept] na coleção à qual o termo relacional se refere. Se assim o fosse, uma vez que ‘todas as percepções particulares [...] podem existir separadamente’, os objetos relacionados [relata] poderiam desaparecer e a relação permaneceria como um objeto do estar ciente [awareness] imediato, o que é absurdo. O estar ciente [awareness] das relações não pode, portanto, assumir um lugar no interior da consciência primária definida por Hume como um ‘feixe ou coleção de diferentes percepções’. O estar ciente deve ocorrer na consciência reflexiva para a qual os objetos percebidos semelhantes aparecem na relação” (Noxon, 1969, p. 376NOXON, J. “Senses of Identity in Hume’s Treatise”. Dialogues, Vol. VIII, Nr. 3, pp. 367-384, 1969.).
  • 30
    Reconheço, no entanto, que essa interpretação não é unânime entre os intérpretes. Silvio Chibeni (2011)CHIBENI, S. “Hume e o ‘dogma do reducionismo’”. Kriterion, Vol. LII, Nr. 124, pp. 343-353, 2011., por exemplo, argumenta que ao menos três das relações filosóficas – identidade, as relações de espaço e tempo e causação – não podem ser explicadas a partir unicamente de percepções: “[...] por exemplo, para que possamos determinar se dois objetos estão próximos espacialmente, devemos ser capazes de percebêlos sensorialmente de forma conjunta; sua proximidade ou afastamento é um fato empírico complexo, que não pode ser estabelecido simplesmente a partir das ideias que temos dos objetos” (Chibeni, 2011, p. 346CHIBENI, S. “Hume e o ‘dogma do reducionismo’”. Kriterion, Vol. LII, Nr. 124, pp. 343-353, 2011.). Mesmo que a minha interpretação a esse respeito não esteja de acordo com a do intérprete, a posição de Chibeni favorece a minha posição – acerca da consciência – ao estabelecer que existem fenômenos mentais que não podem ser reduzidos a percepções – e, portanto, haveria uma dificuldade para se identificar os termos ‘consciência’ e ‘percepção’.
  • 31
    Para um estudo da compreensão humiana das ‘determinações’ da mente, isto é, das tendências ou inclinações da mente humana a proceder naturalmente de modos específicos, sugiro a leitura do trabalho de André Klaudat (2005)KLAUDAT, A. “Hume e a determinação da mente”. In: GUIMARÃES, L. (Org.). Ensaios sobre Hume. Belo Horizonte: Segrac Editora e Gráfica Limitada, 2005. pp. 187-203..
  • 32
    No ‘Apêndice’ ao Tratado, Hume parece confessar sua incapacidade de apresentar uma teoria acerca da identidade pessoal: “eu acalentava alguma esperança de que, por mais deficiente que pudesse ser nossa teoria do mundo intelectual, ela estaria livre daquelas contradições e absurdos que parecem acompanhar qualquer explicação que a razão humana possa dar acerca do mundo material. Mas, ao fazer uma revisão mais cuidadosa da seção concernente à ‘identidade pessoal’, vejo-me perdido em um tal labirinto que, devo confessar, não sei como corrigir minhas opiniões anteriores, nem como torná-las coerentes” (Apêndice §18). Para uma sistematização das linhas de interpretação do problema apontado por Hume no ‘Apêndice’, ver Garrett (1997, pp. 167-80)GARRETT, D. “Cognition and Commitment in Hume’s Philosophy”. New York: Oxford University Press, 1997. e Ainslie (2008, pp. 148-51)AINSLIE, D. “Hume on Personal Identity”. In: RADCLIFFE, E. (ed.). A Companion to Hume. Malden/Oxford/Carlton: Blackwell Publishing, 2008. pp. 140-156..

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Abr 2023

Histórico

  • Recebido
    20 Dez 2021
  • Aceito
    15 Jul 2022
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